Bem Público 46

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Nº 46 - ANO 9 - R$ 9,90

ISSN 1982-7202

19827202 0708 46

Paixão e as manifestações

Ensaio sobre as manifestações O positivo do movimento Tempos de ruptura

Ricardo Kotscho

Elisabeth Fonseca

Wanda Camargo

Leonardo Boff

Mario Milani

E agora ULISSES?

EDUCAÇÃO e indignação

Caixinha de SURPRESAS

O SENTIDO das ruas

Novos TEMPOS



PORQUE A CIDADANIA VALE MAIS DO QUE A CORRUPÇÃO


www.bempublico.com.br Cidadania Meio ambiente Inclusão social Inclusão digital Responsabilidade social Desenvolvimento sustentável

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ESTADO:

6 edições

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SOBRENOME:

12 edições

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NOME:

Revista Bem Público - assinaturas Rua Amazonas, 55 - Água Verde - CEP 80610-030 - Curitiba - PR

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A Revista Bem Público

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Primeira revista brasileira de cidadania e políticas públicas;

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Tem por objetivo divulgar idéias e ações que contribuem com a melhoria da qualidade de vida, preservação ambiental, desenvolvimento sustentado, geração de emprego e renda, cidadania e responsabilidade social;

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Plataforma de reflexão e mobilização sobre os temas;

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É uma revista de leitura permanente, uma inovação no mercado editorial brasileiro;

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Conta desde o início com parceiros relevantes, como Caixa, BRDE e Itaipu;

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Já em sua 46ª edição, em nove anos de circulação, a revista está consolidada. Periodicidade: bimestral Tiragem: 10 mil exemplares Distribuição: venda em bancas, assinaturas, envio para público específico Circulação: nacional, com maior predominância no Paraná, Santa Catarina, São Paulo e Brasília Representação nacional: EnterPress Correspondentes no exterior: Alemanha, Estados Unidos, Itália e Indonésia

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Público-alvo

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Cidadãos, pessoas de todas as faixas etárias e classes sociais abertas para a reflexão sobre os temas apontados pela revista;

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Estudiosos, cientistas, mobilizadores sociais, formadores de opinião;

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Sociedade civil e suas instituições educacionais, não-governamentais e empresariais;

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Empresários e empresas;

46ª 9 ANOS DE INFORMAÇÃO PARA A CIDADANIA

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ÍNDICE

14

O Brasil das ruas População faz história e deixa mensagem aos políticos e governantes: chega de corrupção, mais saúde, mais educação, menos impostos...

O positivo dos movimentos O sentido das ruas E agora Ulisses? Educação e indignação Caixinha de surpresa

29

Buraco na estrada Burocracia excessiva, projetos mal elaborados, contratos mal feitos, superfaturamento e má gestão impedem que os parcos investimentos em infraestrutura cheguem ao destino

Nossa Capa

E mais... 8 - Mário Milani: Novos tempos 10 - Gente do Bem 13 - Cartas 32 - Leitura

As manifestações em Curitiba. Foto: Mario Milani

2013 - edição 46 - 5


46ª

EXPEDIENTE

ISSN 1982-7202

19827202 0708 46

Bem Público é uma publicação da Hora Pública Editora julho/agosto de 2013 Editor-Chefe: Mario Milani

Correspondentes: EUA: Kim Mastters Indonésia: Fabio Mesquita Alemanha: Werner Schumann Itália: Marcus Carboneri

Editor Executivo Marcos Scotti Colaboraram nesta edição: Casimiro Linarth Dasio Roberto de Oliveira Debora Fajardo Pontes Esmael Alves de Morais Francisco (Temaphoto) Heverson Bayer Irineu Colombo Jubal Dohms Joka Madruga Jeferson Brittes Lais de Melo Milani Lelington Lobo Franco Luiz Manfredini Manoel Moscalewski Nani Goes Naiara Milani Rafael Brittes Milani Serli Andrade

Projeto Gráfico e Paginação: Enter Comunicação Assessoria Jurídica: Marcus Reis, Murilo Távora e Advogados associadosmarcus@vrs.com.br; murilo.tavora@terra.com.br Departamento Administrativo bempublico@bempublico.com.br Departamento Comercial: comercial@bempublico.com.br Jeferson Brittes Departamento de Assinaturas assinaturas@bempublico.com.br Representação EnterPress Brasília - São Paulo - Salvador Florianópolis - Porto Alegre enter@enter.com.br Parceiros: Hora Pública Editora Enter Comunicação

Articulistas Domingos Pellegrini Eloi Zanetti Ivan Schmidt João Pedro Stedile Jota Oliveira Leonardo Boff Parreira Rodrigues Ricardo Kotscho Willy Schumann

Distribuição Ghignone Distribuidora Av. Iguaçu, 624 - Rebouças Curitiba - PR (41) 33237737 Matérias assinadas não significam necessariamente a opinião da revista.

REALIZAÇÃO

Hora Pública Editora Rua Amazonas, 75 - Água Verde - Telefone (41) 3332-7580 - Curitiba/Paraná CEP: 80610-030 - E-MAIL: bempublico@bempublico.com.br

6 - edição 46 - 2013

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LOCAÇÃO

EST DIO Ensaios Fotográficos Filmagens Gravações para TV e WEBTV

Características do espaço: 5 metros de altura 15 metros de comprimento 13 metros de largura 195 Metros quadrados Fundo infinito com 28 metros (lateral e fundo do estúdio)

e s t ú d i o

(41) 3332-7580 comercial@bempublico.com.br estudiobempublico.com.br Rua Amazonas, 75, Água Verde Curitiba - Paraná

Foto: Itamar Crispim. Modelo: Priscila Tonon. Executada no Estúdio Bem Público.


OPINIÃO

Novos

tempos Por Mário Milani

É difícil imaginar que outras mudanças ocorram com a urgência necessária, mesmo por que as manifestações não se autosustentam. O confronto é desigual e o ranço político permanece inalterado

” 8 - edição 46 - 2013

2013 já é mais um ano daqueles para ficar na história. Marcado pelas maiores manifestações desde o impeachment do presidente Collor e das “Diretas Já”, quando mais de um milhão de pessoas foram às ruas, empunhando bandeiras do direito civil e da cidadania, como que lembrando aos gestores dos três poderes que o Brasil é, antes de tudo, uma Nação insatisfeita. Basta de corrupção. Basta de impostos exorbitantes. Precisamos sim de mais médicos, mas precisamos, também, de mais infraestrutura na saúde. Precisamos sim de professores, mas também precisamos de escolas estruturadas para que estes profissionais desempenhem eficientemente seu papel de educar. Queremos sim um Brasil com menos pobreza, mas também queremos que toda a sociedade sobreviva, participe, e não apenas pague a conta. Embora tenham levado algum tempo para entender o que acontecia, governos e políticos trataram de apaziguar as manifestações, primeiro reforçando o policiamento – o que, diga-se de passagem – provocou revolta e vandalismo. Depois, com decisões que já deveriam ter sido tomadas há muito tempo. Os preços das passagens urbanas, estopim do movimento popular,


caíram – não sem antes ouvirmos as lamentações dos governantes. Criou-se um programa para que novos médicos fossem contratados. Manteve-se o poder de investigação do Ministério Público. Recursos foram garantidos para a educação vindos da receita do petróleo – não como queria a presidenta (100%), mas 75%, como aprovado no Congresso. Muito pouco para o trabalhador que vê cerca de 50% dos seus rendimentos anuais sumirem em impostos. Decisões importantes foram adiadas com a justificativa de que é necessário mais tempo para serem discutidas. A reforma tributária ficou para depois. A reforma política também, entre outras questões. É difícil imaginar que outras mudanças ocorram com a urgência do lamento popular, mesmo por que as manifestações não se auto-sustentam. O confronto é desigual e o ranço político permanece inalterado. Foi assim com o movimento que culminou no impeachment de Collor. Achava-se, na época, que tudo ia ser diferente com a renúncia, que a classe política pensaria um milhão de vezes antes de legislar em causa própria. Apareceram “mensalões”, dinheiro na cueca, compra de votos, conchavos, licitações fraudulentas e toda sorte de sujeira,

Os ricos ficaram mais ricos. Os pobres só não ficaram mais pobres por conta dos programas criados para distribuir renda. A classe média pagou a conta

Mário Milani

comum nos tempos do coronelismo. Os ricos ficaram mais ricos. Os pobres só não ficaram mais pobres por conta dos programas criados para distribuir renda. A classe média pagou a conta. Resta a esperança de que nas urnas as mudanças vão acontecer. Boa leitura.

Mario Milani é jornalista.

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A S PA S

Viva a democracia, finalmente o povo brasileiro acordou e resolveu tomar para si o poder que é seu. Sonhei com esse momento!

Daniela Mercury

Vamos continuar a lutar civilizadamente pelos nossos direitos, porque todos nós merecemos um Brasil melhor

Gisele Bündchen

This is not samba, this is not soccer, this is protest! (Isso não é samba, isso não é futebol, isso é protesto!).

Vocês, queridos jovens, possuem uma sensibilidade especial frente às injustiças, mas muitas vezes se desiludem com notícias que falam de corrupção, com pessoas que, em vez de buscar o bem comum, procuram o seu próprio benefício. Também para vocês e para todas as pessoas repito: nunca desanimem, não percam a confiança, não deixem que se apague a esperança. A realidade pode mudar, o homem pode mudar. Procurem ser vocês os primeiros a praticar o bem, a não se acostumarem ao mal, mas a vencê-lo

Papa Francisco, em seu discurso na favela de Manguinhos, Rio de Janeiro. Sônia Braga 8 - edição 46 - 2013


Queremos e exigimos o que é nosso. Basta de sacanagem, roubo, humilhação, falcatruas, falta de atitude, seriedade política e social

O governo brasileiro deveria fazer um sacrifício político e enxugar as despesas públicas para controlar a inflação. Aumentar os juros é um remédio que deve ser usado somente em último caso, porque reduz o consumo, diminui os investimentos e piora a situação das famílias endividadas

Roque Pellizzaro Junior, presidente da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas.

Romário, deputado federal.

A sociedade precisa estar sempre um pouco à frente do Estado, dando exemplos de cidadania, e não esperar que o governo ou os políticos façam alguma coisa

Ricardo Affonso Ferreira, médico ortopedista do Instituto Affonso Ferreira, um dos coordenadores da organização Expedicionários da Saúde, que leva médicos voluntários às aldeias indígenas do Amazonas para prestar atendimento em praticamente todas as áreas da medicina.

Ana Moser, presidente da Associação Atletas pela Cidadania.

Não mudou absolutamente nada. Um ano depois da aprovação, não vi nenhuma mudança. Não é a lei que é ineficiente, mas sim os responsáveis por fazerem cumpri-la

Arquivo

As Olimpíadas trouxeram o foco no esporte de rendimento, então nós nos estruturamos errado. Há um foco em esporte nesse momento, há muitos investimentos, mas não se consegue investir no esporte para todos

Niro Higuchi, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, a respeito do Código Florestal brasileiro

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A S PA S

É preciso compartilhar as boas práticas com todos os interlocutores dentro da empresa, que busca transformar recursos humanos, econômicos, sociais e éticos em valores para a sociedade. Toda transformação precisa de uma boa gestão. A educação é a base de tudo e é estratégico para o crescimento das organizações e do País Clésio Andrade, presidente da CNT.

Transporte de massa é metrô, de superfície ou subterrâneo, e Veículo Leve sobre Trilhos (VLT). Ônibus não é transporte de massa, ele deve ser utilizado de forma complementar

Jairo Martins, superintendente geral da Fundação Nacional da Qualidade.

Carlos Francisco Theodoro Machado Ribeiro de Lessa, expresidente do BNDES e professor de Economia Brasileira.

A desnacionalização trouxe uma porção de defeitos. O mais elementar é que ela confirma cada vez mais a dependência de suprimentos do exterior e a necessidade de investir voltado para fora. Se se depende de suprimentos do exterior, se depende de exportar frango, açúcar, café, minério de ferro etc. O país fica cada vez mais amarrado à opção de globalização, amarrado para ser um componente da periferia mundial. Os países do centro desenvolvem atividades voltadas para o mercado interno, com tecnologia própria e tecnologia de ponta. Quando há desnacionalização, o país passa a ser apenas um comprador de tecnologia

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Joaquim Barbosa, ministro do STF.

Não há sistema judiciário mais confuso que o nosso. O sistema legal brasileiro precisa desesperadamente de simplicidade, eficiência e eficácia


CARTAS Lixo no Mar Oportuna e muito competente a matéria publicada na edição nº 43 da revista “Bem Público” – “Lixo no Mar”. É inacreditável a quantidade de materiais de toda espécie encontrados nas praias e nos mares. Vou com frequência ao litoral para pescar, geralmente embarcado, e em todas as viagens que fazemos encontramos uma infinidade de sacos plásticos, garrafas pet e outras tralhas que deveriam estar em latões de lixo ou depositadas em barracões de recicláveis. Sempre que possível trazemos de volta à terra. É preciso que o povo tome consciência de que o oceano não é depósito de lixo, ou corremos o risco de um dia, quando irmos à praia, mergulharmos no lixo. Parabéns à revista pela matéria. É digna de prêmio.

BIFE SUJO

Pedro Cardoso Melo, Curitiba (PR).

Lixo no Mar II Quero parabenizar a “Bem Público” pela matéria publicada na edição 43 (Lixo no Mar). É preciso conscientizar as pessoas que o entulho deixado na praia ou jogado no rio vai parar no mar e acaba prejudicando a vida marinha. A propósito do assunto, envio uma matéria do site “Vida Radical”, sobre o assunto que acho oportuno. “É difícil e até constrangedor falar sobre o descarte de lixo feito pelas pessoas, pois sempre terminam jogados no chão! Muitas vezes quando conversamos em rodas de amigos, nos deparamos com pessoas discursando sobre sustentabilidade e pensando "sou um exemplo de cidadão que não polui o meio ambiente” e em seguida presenciamos este “cidadão” jogando uma bituca de cigarro ou um pequeno plástico de bala no chão. Cerca de 35% do lixo acumulado na bacia do Tietê, por exemplo, não vem das redes de esgoto, e sim do lixo jogado nas vias públicas. Estes resíduos descartados de forma desordenada entopem bueiros e galerias pluviais, causando enchentes e desmoronamentos. Grande parte desse lixo chega até os oceanos. Não pense que neste momento acabaram os problemas, é lá que eles pioram. A vida nos oceanos vem sofrendo muito com o lixo no mar. Cidades situadas a até 200km de distância da costa são as maiores responsáveis por esta poluição marinha. Estudos da ONU mostram que resíduos plásticos são responsáveis anualmente, pela morte de mais de 1 milhão de pássaros e mais de 100 mil mamíferos marinhos como as baleias, as focas e as tartarugas. Estes animais confundem o lixo plástico com comida e ingerem, causando na maioria das vezes a morte por asfixia. Como ressalta Marcus Eriksem, diretor de pesquisas da Algalita Marine Research Foundation, este lixo que produzimos acaba representando um grande perigo a nós mesmos. “O que vai para o oceano, vai para os animais e vem para o seu prato!” No meio do Oceano Pacífico, entre o Estado da Califórnia nos EUA e o Havaí, fica o maior “lixão” do mundo com extensão superior a 700 mil km² (duas vezes maior que o Estado de São Paulo). Este lixão flutuante é formado por mais de 100 milhões de toneladas de detritos que ficam “presos” por correntes marinhas, formando uma enorme 'Sopa Plástica'. De todo este lixo, apenas 20% é resultado do descarte de navios e de plataformas petrolíferas o restante vem das cidades costeiras. Marina Santos, Florianópolis (SC).

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Imagens da Int

Descontente com a falta de saúde, educação, excesso de impostos, corrupção, gastos públicos e a política praticada no país, população sai às ruas nas maiores manifestações já vistas desde o impeachment de Collor e das Diretas Já

ernet

CIDADANIA

O

BRASIL das

ruas

Foi pelas redes sociais que a insatisfação do povo brasileiro eclodiu e tomou conta das ruas em praticamente todos os cantos do país. O estopim foi o reajuste das passagens urbanas, mas o motivo, de uma maneira geral, foi a indignação com os poderes do Estado, falência das políticas pública, corrupção descarada e impunidade. Juntaram-se ao “Passe Livre” o “não” à PEC 37, que pretendia tirar do Ministério Público o poder de investigar, o “não” à corrupção e à impunidade, o “não” ao lucro extorsivo, aos gastos excessivos com as Copas da Fifa e aos vergonhosos impostos que penalizam quem trabalha. “Queremos educação e saúde. Queremos qualidade de vida. Queremos transporte eficiente. Queremos segurança”, diziam os manifestantes em palavras de ordem e cartazes. Mais de dois milhões de brasileiros, não só nas capitais mas também em cidades do interior, soltaram a voz em manifestações, em sua grande maioria, pacíficas e deixaram boquiabertos gover14 - edição 46 - 2013

nantes e políticos que disseram “não entender” ou “não se sentiram ameaçados”, como declararam alguns parlamentares, com o grito das ruas. Infelizmente, ao anonimato das manifestações juntaram-se vândalos e movimentos contraditórios que promoveram violência e destruição. Apesar disso, politicamente a mensagem do povo foi clara: “Tomem uma atitude!”. A grande maioria das pessoas que foi para as ruas era de estudante, era classe média, era jovem. A eles juntaram-se aposentados, professores, donas de casa, médicos, todos que sentem na pele os efeitos da corrupção, da política suja e de um país que não vê justiça, moralidade e cidadania. Em momento algum esses manifestantes deixaram que partidos políticos abrissem suas bandeiras, numa clara demonstração de que quem estava ali era o cidadão, o povo. Tentaram conter o vandalismo e a depredação do patrimônio público por minorias que insistiam em se aproveitar da situ-


Imagens da Internet

Os protestos foram realizados em mais de 120 cidades brasileiras, reunindo cerca de dois milhões de pessoas

ação para promover a violência. Em São Paulo, numa atitude de ordem e respeito, chegaram a se colocar entre esses radicais e o palácio do governo para evitar o quebra-quebra. Ainda assim a idiotice dos vândalos conseguiu depredar algum patrimônio, mas não tirou a vontade e a esperança da maioria. O brasileiro ganhou o apoio dos cidadãos do mundo. No Canadá, nos EUA, na Austrália, na Europa, na Ásia. Jornais internacionais chamaram o movimento que tomou conta do Brasil de “Primavera brasileira”. “Saímos do Facebook”, diziam os cartazes no meio da multidão para mostrar que lutar por um país melhor para todos é um direito inalienável de todo cidadão. Naquele mês de junho, a democracia brasileira acordou mais forte. A cidadania amadureceu. De lá para cá, pouca coisa mudou. O governo federal, em regime de urgência, tratou de agir. Desonerou o transporte público por conta da retirada de alíquotas de impostos, fazendo a “sua parte” para reduzir o preço das passagens, criou um mega-programa para colocar médicos em todos os municípios e unidades de saúde básica, prometeu o dinheiro do petróleo e do pré-sal para a educação e agilizou a liberação de verba para obras de infraestrutura nas cidades. O Congresso derrubou a PEC 37 e votou a lei que tornou a corrupção crime hediondo e proibiu o voto secreto em sessões de cassação de mandato de legisladores acusados de irregularidades, entre outras atitudes. Confira a seguir uma síntese do que aconteceu e o que está sendo feito no

Brasil a partir das manifestações. Insatisfação generalizada As manifestações de 2013 começaram por Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, e tiveram a tarifa de ônibus como pano de fundo, ainda em março. O aumento no preço da passagem de R$ 2,85 para R$ 3,05, e das "lotações", de R$ 4,25 para R$ 4,50, levou os manifestantes a protocolar ação cautelar, aceita pelo juiz Hilbert Maximiliano Obara, da 5ª Vara da Fazenda Pública, que considerou que havia sérios indicativos de aumento abusivo no valor. A tarifa baixou. Em maio, em Goiânia, capital de Goiás, as tarifas chegaram a subir de R$ 2,70 para R$ 3,00. Manifestantes destruíram quatro ônibus, dois incendiados e dois depredados, e 13 veículos sofreram algum tipo de dano. Na ocasião, 24 estudantes acabaram detidos por vandalismo e desobediência. Em junho, as tarifas voltaram a custar R$ 2,70, após liminar expedida pelo juiz Fernando de Mello Xavier, da 1ª Vara da Fazenda Pública Estadual. No início de junho, foi a vez do Movimento Passe Livre sair às ruas de São Paulo contra o aumento das passagens de ônibus, metrô e trens urbanos de R$ 3,00 para R$ 3,20. Os conflitos com a polícia e a depredação do patrimônio ganharam mais evidência na mídia do que as reivindicações em si e deram ingredientes para outra parcela significativa da população sair às ruas. No dia 13 de junho os protestos chegaram a Natal, Teresina, Maceió, Rio de Janeiro, Sorocaba e novamente São 2013 - edição 46 - 15


«FIFA, paga minha tarifa". "Ei, Brasil, vamos acordar: um professor vale mais do que o Neymar". "Queremos hospitais padrões FIFA". "Da Copa eu abro mão, quero é investimento em saúde e educação"

Paulo, onde a represália policial excessiva deixou muitos feridos, incluindo vários jornalistas. Relembrando a época da ditadura, a força policial prendeu mais de 300 pessoas, a maioria delas “detidas para averiguação”. Pela primeira vez a mídia noticiou as manifestações em outro tom. No dia 17 de junho, uma segundafeira, cerca de 300 mil brasileiros saíram as ruas para protestar em 12 cidades espalhadas pelo Brasil. Nos dias que se seguiram um número cada vez maior de pessoas em um número crescente de cidades diversificou a pauta de reivindicações. Surgem temas como as PECs 37 e 33, "cura" gay, ato médico, gastos com a Copa das Confederações e com a Copa do Mundo e reforma política. No dia 20 de junho, perto de dois milhões de pessoas saíram às ruas em mais de 120 cidades pelo Brasil. Durante a Copa das Confederações, em junho, os protestos, cada vez maiores, tomaram conta das cidades lembrando os enormes gastos gerados com as copas da Fifa, enquanto a saúde e a educação no país capengam. Embora os governos federal e estaduais tenham proibido manifestações, a população foi às ruas. Em Minas Gerais, por exemplo, o Tribunal de Justiça chegou a proibir manifestações de qualquer tipo que interditassem as vias urbanas em todos os municípios do estado durante a Copa, o que não impediu que quase 30 mil manifestantes ocupassem o centro da cidade e tentassem chegar ao Mineirão. Em Brasília, cerca de 500 pessoas se reuniram na entrada do estádio Mané Garrincha contra a verba pública utili16 - edição 46 - 2013

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CIDADANIA

zada na Copa do Mundo de 2014. O estádio foi inicialmente orçado em R$ 696 milhões quando o projeto foi aprovado, mas custou aos cofres públicos a quantia de pelo menos R$ 1,7 bilhão. Houve confronto. Segundo a Polícia Militar, oito policiais foram feridos por pedradas, e oito manifestantes foram detidos. No Rio de Janeiro mais de 100 mil pessoas ocuparam importantes vias da capital fluminense, como a avenida Rio Branco, onde houve chuva de papel picado em apoio aos manifestantes. Em frente à Biblioteca Nacional, foram distribuídas flores aos policiais. Os confrontos com a polícia aconteceram em frente à Assembleia Legislativa, onde 80 policiais, acuados, se refugiaram. Naquele dia, o vandalismo usou de coquetéis molotov e rojões contra as forças policiais. Em Fortaleza 5 mil pessoas percorreram três quilômetros de ruas, desde a Praça da Gentilândia ao Hotel Marina Park, passando pelos bairros Centro, Benfica e Moura Brasil, onde a seleção brasileira de futebol estava hospedada. "FIFA, paga minha tarifa". "Ei, Brasil, vamos acordar: um professor vale mais do que o Neymar". "Queremos hospitais padrões FIFA". "Da Copa eu abro mão, quero é investimento em saúde e educação". Estas eram frases que se liam nos cartazes exibidos pelos manifestantes. No final de junho, cerca de 35 mil pessoas ocuparam a Esplanada dos Ministérios. Após o lançamento de rojões, sinalizadores e pedaços de madeira pelos manifestantes, os policiais responderam com spray de pimenta e bombas de gás lacrimogênio. Houve depre-


ernet Imagens da Int

dação na tentativa de ocupação pelos manifestantes mais radicais do Palácio do Itamaraty. Paredes foram pichadas e um manifestante chegou a atirar uma bomba incendiária que queimou parte da fachada do prédio projetado por Oscar Niemeyer. Nem mesmo a Catedral de Brasília foi poupada. A partir de julho, as manifestações tomaram outro rumo. Até então, por vontade própria dos manifestantes, bandeiras partidárias ou de sindicatos não eram exibidas, numa clara demonstração de insatisfação com os rumos políticos do país. No dia 11 de julho, centenas de organizações de trabalhadores, movimentos sociais e partidos de esquerda, foram às ruas com pautas próprias das categorias envolvidas. Esta foi a quarta greve geral do país desde a Independência, há 190 anos. Entre as pautas dos trabalhadores estava o marco regulatório dos meios de comunicação, que levou a um ato próprio em frente à sede da Rede Globo em São Paulo, o 1º Grande Ato Contra o Monopólio da Mídia, como foi batizado. Entre o dia 6 de junho e o dia 2 de julho, houve 53 ataques a profissionais de imprensa, seis detenções, 13 danificações totais ou parciais a veículos da mídia convencional e a sede da RBS em Porto Alegre sofreu duas tentativas de ataque. O saldo negativo para a mídia somou ainda duas unidades móveis queimadas e vários jornalistas agredidos e detidos.

Resposta oficial A Presidência da República só foi se manifestar no dia 17 de junho: “As manifestações são legítimas e próprias da democracia", disse Dilma Roussef, através de assessores. Na tarde do dia 17, falando pela primeira vez sobre os protestos para a imprensa, Dilma Rousseff disse que seu governo "está ouvindo essas vozes pela mudança", "está empenhado e comprometido com a transformação social" e "compreende que as exigências da população mudam quando nós mudamos também o Brasil". Lula elogiou este discurso no dia seguinte. À noite, a ministra chefe da casa civil, Gleisi Hoffmann, anunciou as medidas de desoneração adotadas pelo governo federal para propiciar a redução das tarifas de transporte coletivo. No dia 19 de junho, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, considerou pela primeira vez a possibilidade de rever o preço da passagem, dizendo que vai se subordinar às pessoas pois seu trabalho como prefeito é fazer o que a cidade quer que ele faça. No Rio de Janeiro, Eduardo Paes, anuncia a suspensão do aumento das tarifas de transporte público no município. Em 21 de junho, em rede nacional, Dilma prometeu conversar com prefeitos e governadores para realizar um pacto de melhoria dos serviços públicos e a criação de um Plano Nacional de Mobilidade Urbana. Prometeu destinar 100% do dinheiro dos royalties do petróleo à educação, a trazer médicos estrangeiros para ampliar o atendimento do SUS e a se encontrar com os líderes 2013 - edição 46 - 17


Os conflitos com a polícia e a depredação do patrimônio ganharam mais evidência na mídia do que as reivindicações em si e deram ingredientes para outra parcela significativa da população sair às ruas

das manifestações pacíficas. Disse ser favorável às reivindicações democráticas, reconheceu a necessidade de "oxigenar" o sistema político e prometeu uma ampla reforma que amplie o poder popular. Esclareceu que o dinheiro para a Copa não proveio de orçamento público federal mas sim de financiamentos de empresas e governos que exploram os estádios, de forma que não prejudicam setores prioritários como saúde e educação. Criticou os vandalismos e pediu respeitos aos espectadores dos jogos. No dia 24 de junho, a presidenta se reuniu com 26 prefeitos e 27 governadores em Brasília para apresentar cinco pactos nacionais: transporte público englobando investimentos em corredores de ônibus, VLTs e metrôs, e a criação de um Conselho Nacional de Transporte Público com a participação de usuários e sociedade civil. Reforma política e combate à corrupção – a proposta previa a realização de um plebiscito para que uma assembleia constituinte exclusiva fosse criada, o que foi descartado poucos dias depois pela Câmara dos Deputados e pelo próprio governo. Saúde – propondo a aceleração dos investimentos já contratados para construção de UPAs, UBS e hospitais e ampliação do sistema que troca dívidas de hospitais filantrópicos por mais atendimentos. Dilma defendeu que os médicos recebam incentivos para irem trabalhar nas regiões mais pobres e remotas, e que, caso isso não resolvesse, que médicos estrangeiros fossem levados para esses lugares, exclusivamente para trabalhar no sistema básico de saúde. 18 - edição 46 - 2013

Mario Milani

CIDADANIA

Educação - 100% dos royalties do petróleo para educação, e 50% do pré-sal. Por fim, um pacto nacional pela responsabilidade fiscal, a fim de manter as medidas de estabilidade econômica e controle da inflação. No Legislativo, foi aprovado no Senado o projeto de lei que transforma a corrupção em crime hediondo, seja passiva ou ativa, a Câmara derrubou a PEC 37 e engavetou a “cura gay”, prometendo ainda discutir a reforma política. No mais, tudo continua igual. Até quando?


OPINIÃO

Educação e

indignação saem às ruas

Por Elizabeth de Oliveira Morais Fonseca

Há mais de duas décadas que não víamos tantos jovens nas ruas. Unidos pela tecnologia e pela globalização da informação, começaram gritando pela queda no preço das passagens de ônibus e chegaram à educação. Na internet, tanto usuários experientes quanto iniciantes se tornaram organizadores, comentaristas e protagonistas de algum protesto, todos com mensagens claras de que a educação precisa de socorro. Segundo a coordenadora nacional do Projeto Popular para a Educação, Jessy Dayane Santos, não há investimentos suficientes na educação do país. "Desde os tempos da colonização que sofremos com o ensino no Brasil. Aqui, ele nunca foi prioridade. A partir disso, criamos o projeto em defesa de assuntos sociais que mobilizam toda a população", explicou. Dados apontam que 3,8 milhões de crianças estão fora da escola, somente 63% das que moram na zona rural têm acesso ao colégio, 31% dos adultos não entendem o que leem, 10% da população brasileira são analfabetos e, destes, 70% são negros. É fato que num país com a dimensão territorial do Brasil, a realidade da Educação é escandalosa, mas mesmo em grandes capitais, como Curitiba, considerada de acordo com o IDEB, a melhor entre as demais, há defasagens no ensino, no salário e na infraestrutura. Porém a busca por melhorias têm se feito com franca visão tanto dos profissionais como dos estudantes, junto aos órgãos competentes. A realidade vista não é exatamente a que se via pela mídia ou por àqueles que

3,8 milhões de crianças estão fora da escola, somente 63% das que moram na zona rural têm acesso ao colégio, 31% dos adultos não entendem o que leem, 10% da população brasileira são analfabetos e, destes, 70% são negros apenas se uniram a “massa”. Temos hoje uma sociedade, a qual pertencemos, em que quanto mais temos mais queremos. É justo. Mas o que estamos fazendo para que tenhamos mais e melhor? Para o Professor Andre Missfeldt, “o poder da mídia, de todas as formas, formais e informais, nos fez ficar fortes, mas estar na rua não significa estar atento as movimentações políticas. Muitos ainda buscam benefícios próprios e não a tão sonhada reforma política.” De acordo com o IBGE, dados da Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (Pense), dentro do Ensino Fundamental, de cada dez pais brasileiros que possuem filhos entre 13 e 15 anos, sete não estão informados sobre os deveres de casa do adolescente, e não sabem se eles entregam ou não a tarefa exigida pelos professores. Além disso, 40% deles não sabem o que as crianças fazem durante o tempo livre, e 25% desconhece que o filho havia faltado às aulas.

Levantar bandeiras e cartazes apolíticos, não resolverá a situação. Ficar a parte da política também não. Nossos jovens se desinteressam pela política, pois a visão que têm atualmente se faz desconfiar até do líder comunitário. A política como se vê, é distante e está na mão dos mesmos desde à colonização. Mesmo diante de toda essa problemática, conquistas têm sido feitas e podem ser vislumbradas como a narrada pela professora Ana Paula Galkowski: “Alienados politicamente? Sinto-me privilegiada por poder dizer que muitos dos meus alunos de Ensino Médio não respondem a essa questão de forma positiva.” É difícil um jovem, simples, cheio de ideais, poder concorrer com a norma já orquestrada pelos que estão hoje no poder. Os que chegam lá, ou são corrompidos, ou por “outras razões” abandonam seus ideais. A escola está a par de toda está situação e tem, sim, feito o “impossível” para incutir nos jovens o interesse pelas políticas públicas e sociais, mas como vemos, é o ter e não o ser que prevale. Os profissionais da Educação correm atrás do prejuízo deixado por tantos anos na falta de informação à sociedade. O que começou com um simples pedido de valores, passou a ser um pedido de mudanças na prática política de todo o país, não importando esta ou aquela denominação. Temos que acreditar que há solução e que o silêncio que agora se faz seja visto e respondido nas urnas em 2014. Elisabeth Fonseca é profesora.

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o POSITIVOdos

movimentos A juventude brasileira tomou as ruas para manifestar temas estruturais de relevância pública. Os protestos achocalharam o mundo da política e colocou em cheque os poderes nacionais. Não se pode negar que as transformações estão ainda por vim, pois, é apenas um começo. Nunca se viu tantas pessoas nas ruas com gritos de ordem simultaneamente depois da ditadura militar. Parou cidades inteiras como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Brasília e tantas outras. Os jovens levantaram cartazes com inúmeras frases de efeitos, contra corrupção, falta de investimento em saúde, educação, transporte, violência policial, etc. Questionaram pautas que fazem parte do cotidiano da sociedade, que não estão sendo tratado com respeito pelo mundo político. Temas como esses estão inseridas nas letras das músicas de algumas bandas nacionais dos anos 90, que traduziram as mazelas da sociedade nacional. Naquele período surgiram batidas de um som forte que transformou gerações. A “Bem Público” foi buscar a opinião de dois destes cantores e compositores Marcelo Yuka e Gabriel O Pensador, numa entrevista exclusiva, sobre como os levantes populares podem mudar o pensamento dos brasileiros. Segundo os artistas a sociedade tem novos eixos políticos a serem seguidos. “Os partidos perderam seu poder de transformação. Daí por diante não precisamos remediar e sim fazer o que é necessário: justiça”, destaca Yuka. “Nas nossas falas sobre o palco sempre provocamos o público em lutar por um país melhor sem tanta injustiça. Esse é um dos pontos que tratei no último CD Sem Crise”, frisa Pensador.

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Bem Público - Como que vocês vêm às mobilizações populares no Brasil, sendo organizandas por meio das redes sociais, sem comando de um partido político com ideologias diferenciadas? Marcelo Yuka – As pessoas estão utilizando o Rio de Janeiro como vitrine do mundo devido a copa e olimpíada para mostrar suas reivindicações. As ruas passaram a ser um espaço democrático e bem saudável. Sou pacifista, mas não otário. Não sou a favor destas manifestações mais radicais, não entendo porque elas acontecem. Muito mais violento é o “vandalismo” estatal o coorporativo, isto é, o institucional que não temos saúde e educação de qualidade. Gabriel o Pensador – A impressão que tínhamos é que o brasileiro estava cada vez mais passivo, alienado. Agente sempre sabe que tem uma parcela que es-


“ A mudança de consumir informação é uma mudança cultural. Até o voto de um guri de dezesseis anos deve ser pensado de forma diferenciada

O artista vive de utopia e o grande sonho dele é que essa utopia se transforme em realidade

Marcelo Yuka

Arthur Conceição

Gabriel O Pensador

tá tentando e que se mobiliza. O que nós víamos no passsado era apenas uma minoria. A massa como um todo tinha uma sensação de impotência e descrença. Não conseguiam enxergar mudanças. E tanta “porrada” que a gente levava de todos os lados que a sociedade acostumou com impunidade aos corruptos. Eu mesmo falava nas músicas: até quando você vai levar porrada. Os meus primeiros trabalhos há vinte ano atrás trataram sobre esses temas. Questionar esse sistema começou quando tratei na música “Tô Feliz (Matei o Presidente)" fui rapidamente censurado. Em seguida escrevi a canção "Abalando", que fala sobre a liberdade de expressão no Brasil. Ao longo dos anos. Eu mesmo não tinha esperança de ter grandes protestos e a coisa acontecer tão rápido. Na semana dos protestos estava viajando e vi grandes manifestações até em cidades pequenas, quando o pessoal marcava horário

para protestar. Com isso é possível perceber a amplitude desse movimento. Com esse acordar das ruas vemos o quanto nós não temos liberdade. Temos uma ditadura na polícia, nos governos e nos meios de comunicação. Bem Público – Essas manifestações populares vão fomentar mudanças no comportamento da sociedade e na cultura? Marcelo Yuka – As manifestações são históricas. Estão marcando época. Estamos vendo uma “mulecada” de quinze anos sem uma consciência política mais exacerbada, mas quando vão às manifestações levam a máscara e o vinagre. Eles vão protestar sabendo que podem levar “porrada”. Mesmo sem terem uma ideologia, lá estão. Isso é fantástico. Vi pais com filhos no colo, famílias e pessoas idosas nas manifestações. A sensação dessas pessoas era de uma

grande felicidade. As pessoas cantavam e sorriam por causa do movimento. Já estamos tendo mudanças. Teremos músicas, literaturas e poemas ponderando as manifestações. Meu sonho é que tudo isso mude nossa maneira de pensar. Na nossa geração não vimos isso de forma espontânea partindo de pessoas comuns, sem ideologias definidas. Tínhamos uma certa apatia. Porém, alguns setores do movimento social não deixaram de lutar, com o MST. Começamos a reescrever a história. O artista vive de utopia e o grande sonho dele é que essa utopia se transforme em realidade. Muito do que estamos vendo na rua o Gabriel O Pensador já compunha. Num todo a música tem uma forte importância que alimenta esperança. Estamos vivendo um momento único e os jovens são parte disso, que sorte. Gabriel O Pensador – Estamos percebendo que temos que driblar um sistema forte de privilégios que está inserido no estado, isto é, na política em geral. Então a questão não é só ir para rua, é entender o que estamos fazendo. O problema está enraizado nas relações políticas, principalmente quando falamos de corrupção. Sempre comentamos sobre as mazelas sociais em cima dos palcos quando íamos lá no Faustão ou no Gugu. Provocávamos as pessoas a protestarem, mas não sabíamos que tínhamos algo que ia mudar. Não conseguíamos visualizar. Falando, até me arrepio, pois, como cantor e compositor sei o poder da música e quanto as pessoas podem ser sensíveis para isso. O Yuka tem letras que passam essa sensibilidade e sou fã. As obras dele transmite a reflexão ao grande público. A mudança de consumir informação é uma mudança cultural. Até o voto de um guri de dezesseis anos deve ser pensado de forma diferenciada. Bem Público – O que você gostariam de deixar à sociedade brasileira? Marcelo Yuka – A juventude deve continuar esse legado que ela mesmos plantou. Gabriel o Pensador – É só um começo. Isso mostra que a gente está vivo e acordado. O povo brasileiro está muito acostumado com a corrupção e não podemos nos acostumar. Não se acostumem. 2013 - edição 46 - 21


CIDADANIA

Tempos de

ruptura

Por Arthur Conceição

A energia de luta foi canalizada na expressão mais rica da democracia a chamada livre expressão

” Vivemos o efeito da primavera Árabe de 2012, que também irradiou as ruas das principais cidades brasileiras com coros de ordem. Em terras tupiniquins tudo teve início com pequenos grupos, que deram o grito de liberdade contra a corrupção brasileira, no feriado de sete de setembro do ano passado. Tivemos um questionamento embrionário coletivo que aflorou em plena esplanada dos ministérios. Lá estava uma juventude em fase universitária que ocupava algumas capitais para protestar contra a corrupção política no país. Essas manifestações tomaram corpo pouco a pouco. De lá para cá a conscientização de luta veio num processo lento mas contínuo, com manifestações apartidárias isoladas nas redes sociais. O questionamento ao sistema tomou um rumo de contraposição que se propagou. Isto é, a juventude que era considerada apática pela grande massa da sociedade saiu de um sono profundo. As conversar de um mundo virtual, propiciada pelas redes sociais, se tornaram realidade tomando o espaço público das principais capitais. O movimento começou pelo passe livre as margens da Avenida Paulista, e hoje se faz presente nos grandes centros financeiros do país. Não é só um passe livre que está em questão e sim a falência de um sistema político partidário, que não dá vazão para a energia de uma ju22 - edição 46 - 2013

ventude que tem esperança de mudança. O que os adultos não têm coragem de fazer a juventude fez, esboçando um sentimento radicalizado. O mundo juvenil não tem nada a perder. Pois bem, colocou em xeque um jogo político descabido e viciado que estão presentes nos porões da obscuridade. A esperança de uma nova prática política está na participação social e consciente. As atividades de corrupção entre os três poderes tem construído uma injustiça social, que agora faz ferver o sangue de toda uma geração encorajada em se rebelar. O eco chegou ao pedestal do poder. Com tudo isso faz-se necessário entender e refletir que a escola, como uma instituição social, por si só perdeu sua força de transformação devido à defasagem estrutural. Os partidos políticos não são mais espaço de livres debates e sim bancas de negociação. Lá a agenda política é para beneficiar pessoalmente os detentores do poder, que de certo excluem milhares de pessoas da dignidade humana. O que sobrou foi a saída para um movimento social pleno e transformador, fora dos tetos de instituições sociais estruturantes presentes em nossa sociedade moderna. A energia de luta foi canalizada na expressão mais rica da democracia a chamada livre expressão. O tormento

das manifestações foi dirigido àqueles que ocupam a alta cúpula dos prédios públicos. Agora estes são culpados em autorizarem violência sistemática por meio do poder coercitivo estatal, manifestado por um polícia militarizada e irracional. O uso da força foi provocado de forma leviana contra manifestantes. O estado brasileiro está assustado. Quanto mais pressão exercida pela força policial ao jovem, mais ações e reações acontecerão. É uma lei natural do ser humano reagir aos tons de provocação. O que faremos? É necessário fazermos uma reforma política completa e uma reforma educacional mais do que completa, plena e democrática com começo meio e fim. Vivemos uma crise institucional de estado de direito. As lutas populares são sempre legítimas. A juventude só está antecipando um cenário de um país que entrará em crise econômica em que consequentemente haverá desemprego e crise social. O pior é que o Brasil não está adaptado em conviver com mais uma crise, por haver baixo investimento em educação; ter uma economia pautada apenas no bem de consumo e possuir desperdícios no sistema público alavancado também por uma corrupção sistemática. Viva a ruptura legitima de nossa juventude brasileira. Arthur Conceição é cientista político


Caixinha de

surpresa Por Wanda Camargo

Os acontecimentos de 2013 parecem indicar que a juventude está atendendo a chamados que eram considerados, até muito pouco tempo atrás, por políticos, pais e professores, sem a menor atratividade. De certo modo, convencidos de que os jovens estavam mergulhados em consumismo, narcisismo e apatia, nos surpreendemos com o grau de envolvimento e compromisso que esta geração tem demonstrado. Inesperadamente, mostram-se preocupados com as perspectivas profissionais futuras, com a economia brasileira, com a qualidade da educação, transportes e saúde oferecida à população, ao mesmo tempo em que rejeitam toda espécie de contenção e hierarquia. Estão presentes nas ruas, para o bem e para o mal, para clamar por direitos civis e humanos, para bradar contra corrupção, preconceito e exploração, e até mesmo para praticar atos de destruição e violência que não podem ser admitidos, mas que, como parte de um contexto geral de descrença nas instituições, tem o valor de alerta que não pode ser ignorado. E agora deixam pasmados grande parte dos educadores não ligados a instituições religiosas, admirados com a rapidez e efetividade da adesão à Jornada Mundial da Juventude. São centenas de milhares de moços e moças, que nos últimos anos pareciam um pouco apartados dos preceitos da Igreja Católica, de certa forma distante de seu dia-a-dia. Ocupados com traquitanas tecnoló-

gicas, aparentemente indiferentes aos problemas sociais, sem grande confiança no processo educacional, adeptos de comportamento bem mais livre que o de seus pais, distantes das prescrições consideradas fundamentais pelas entidades religiosas, nada fazia supor que atenderiam com tal intensidade a um pedido de encontro para celebrar religiosidade, castidade e contemplação. Mostram-se resolutos, enfrentam desafios, gritam alto a sua crença e determinação, de forma não muito diferente daquela com que bradaram a exigência de mais atenção às necessidades básicas do país. A figura carismática de um líder popular que está falando diretamente ao coração desta faixa etária, após muitos anos de distanciamento, recoloca a questão da esperança e da fé, não necessariamente contemplativa, na agenda de toda a população. Acreditar em valores simples e poderosos, na possibilidade de uma sociedade saudável, honestidade e solidariedade; para educadores essa questão é vital. Como aprender e ensinar num ambiente de descrença e desânimo? Porém, a real solidariedade deve carregar consigo uma boa dose de responsabilidade, não apenas com as tradições (religiosas ou sociais), mas, principalmente, com o devir, com a construção de uma comunidade melhor. A perspectiva de mudar o país a partir da juventude, da realidade de seus posicionamentos, abre sim, como diria o Papa, “uma janela para o futuro”.

A perspectiva de mudar o país a partir da juventude, da realidade de seus posicionamentos, abre sim, como diria o Papa, “uma janela para o futuro”

Wanda Camargo

Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência das Faculdades Integradas do Brasil – UniBrasil.

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OPINIÃO

“E agora, Ulysses?” Por Ricardo Kotscho

“ Assim como as Diretas, este também é um movimento suprapartidário - na verdade, contra os partidos. Parece mais ser uma resposta para a forma como os atuais partidos os representam, ou melhor, os deixam de representar

Ricardo Kotscho

Ao ver pela televisão as imagens da multidão vindo como uma onda gigante pela avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, foi impossível não me lembrar da mesma cena vivida quase 30 anos atrás, no dia 10 de abril de 1984, na reta final da Campanha das Diretas Já, o grande marco na redemocratização do país. Naquela época, como repórter da Folha de S. Paulo, eu tinha acompanhado os comícios pelo Brasil inteiro, e estava no palanque na Candelária quando um mar de gente inundou a avenida Presidente Vargas, para além da praça da República, e a avenida Rio Branco até a Cinelândia, engolfando os líderes políticos que estavam lá em cima. 24 - edição 46 - 2013

Ao se ver cercado por aquele mundo de gente, o então governador mineiro Tancredo Neves deu um passo à frente, deu uma olhada para baixo e, visivelmente assustado, virou-se para fazer uma pergunta ao líder do grande movimento, o deputado federal Ulysses Guimarães. "E agora, Ulysses? Como nós vamos fazer para administrar este povo todo?" A grande diferença entre estes dois momentos é que, em 1984, a manifestação era contra os militares da ditadura que já durava 20 anos e pela volta das eleições diretas para presidente da República, enquanto agora é contra os políticos civis de todos os partidos que

assumiram o poder depois deles. Em todos os palácios nacionais, os nossos governantes devem estar se fazendo a mesma pergunta que doutor Tancredo fez ao doutor Ulysses. Desta vez, é verdade, não há uma bandeira única como a das Diretas que foi capaz de unir o país no maior movimento cívico da nossa história - cada manifestante, agora, carrega cartazes e grita palavras de ordem diversas - nem um inimigo comum, o regime militar, como naquela época. Pelo que se lê nas faixas e se ouve nas manifestações que reuniram perto de um milhão de brasileiros, os protestos que começaram em São Paulo contra o aumento das tarifas de ônibus, e se espalharam por todo o país, após a violenta repressão policial, são contra tudo e contra todos, como escrevi diversas vezes em minhas colunas. Nas motivações e nos objetivos, um movimento não tem, é claro, absolutamente nada a ver com o outro, a não ser o de mostrar que a insatisfação de amplos setores da sociedade com os rumos do país e os donos do poder em todos os níveis atingiu um ponto de ebulição. Assim como as Diretas, este também é um movimento suprapartidário - na verdade, contra os partidos. Parece mais ser uma resposta para a forma como os atuais partidos os representam, ou melhor, os deixam de representar, distantes dos anseios de uma sociedade civil cada vez mais


Arquivo

organizada nas redes sociais. As diferenças são enormes. Em 1984, não havia internet nem celulares, e a grande mídia boicotou a Campanha das Diretas, defendendo o governo militar até onde pode, com exceção do jornal onde eu trabalhava. Foi a população, em comícios cada vez maiores que ocupavam as ruas e praças do país, que praticamente obrigou a grande imprensa a mostrar o que estava acontecendo fora dos gabinetes oficiais. Agora, as manifestações programadas pela grande rede virtual contaram desde o início com ampla cobertura dos principais meios de comunicação da nova e da velha mídias, que transmitem ininterruptamente as manifestações ao vivo. Só não conseguiram até agora, como eu, mesmo com a ajuda de cientistas políticos e analistas variados, explicar o que está acontecendo e onde este movimento do "saco cheio" quer e pretende chegar.

Estão todos atônitos, governantes e governados, analistas e analisados, assustados com o vulto que as manifestações tomaram, sem a menor ideia de onde tudo isso vai chegar. A única certeza é que teremos novas manifestações. Se já havia muita gente revoltada porque o transporte coletivo é de péssima qualidade e o transito está parando por toda parte, com o aumento do número de carros, agora ficou ainda mais difícil cruzar o caminho entre a casa e o trabalho ou a escola. Com isso, aumenta o número de gente insatisfeita com a vida que leva e irritada com a falta de soluções. Não bastou só voltar atrás no aumento das passagens do transporte coletivo.

Estão todos atônitos, governantes e governados, analistas e analisados, assustados com o vulto que as manifestações tomaram

Ricardo Kotscho

Ricardo Kotscho é jornalista. 2013 - edição 46 - 25


OPINIÃO

O

SENTIDO das

ruas Por Leonardo Boff

Estive fora do pais, na Europa, a trabalho e constatei o grande interesse que todas as midias daqui conferem às manifestações no Brasil. Há bons especialistas na Alemanha e França que emitem juízos pertinentes. Todos concordam nisso, no caráter social das manifestações, longe dos interesses da política convencional. É o triunfo dos novos meios e congregação que são as midias sociais. O grupo da libertação e a Igreja da libertação sempre mantiveram viva a memória antiga do ideal da democracia, presente nas primeiras comunidades cristãs até o século segundo pelo menos. Repetia-se o refrão clássico: ”o que interessa a todos, deve poder ser discutido e decidido por todos”. E isso funcionava até para a eleição dos bispos e do Papa. Depois se perdeu esse ideal, mas nunca totalmente esquecido. O ideal democrático de ir além da democracia delegatícia ou representati26 - edição 46 - 2013

va e chegar à democracia participativa, de baixo para cima, envolvendo o maior número possível de pessoas, sempre esteve presente no ideário dos movimentos sociais, das comunidades de base, dos Sem Terra e de outros. Mas nos faltavam os instrumentos para implementar efetivamente essa democracia universal, popular e participativa. Eis que esse instrumento nos foi dado pelas redes das várias mídias sociais. Elas são sociais, abertas a todos. Todos agora têm um meio de manifestar sua opinião, agregar pessoas que assumem a mesma causa e promover o poder das ruas e das praças. O sistema dominante ocupou todos os espaços. Só ficaram as ruas e as praças que por sua natureza são de todos e do povo. Agora surgiram a rua e a praça virtuais, criadas pelas midias sociais. O velho sonho democrático segundo o qual o que interessa a todos, todos tem direito de opinar e contribuir

para alcançar um objetivo comum, pode enfim ganhar forma. Tais redes sociais podem desbancar ditaduras como no Norte da África, enfrentar regimes repressivos como na Turquia e agora mostram no Brasil que são os veículos adequados de reivindicações sociais, sempre feitas e quase sempre postergadas ou negadas: transporte de qualidade (os vagões da Central do Brasil tem quarenta anos), saúde, educação, segurança, saneamento básico. São causas que tem a ver com a vida comezinha, cotidiana e comum à maioria dos mortais. Portando, coisas da Política em maiúsculo. Nutro a convicção de que a partir de agora se poderá refundar o Brasil a partir de onde sempre deveria ter começado, a partir do povo. Ai dos políticos que não mantiverem uma relação orgânica com o povo. Estes merecem ser varridos da praça e das ruas.


Nutro a convicção de que a partir de agora se poderá refundar o Brasil a partir de onde sempre deveria ter começado, a partir do povo

Leonardo Boff

Escreveu-me um amigo que elaborou uma das interpretações do Brasil mais originais e consistentes, o Brasil como grande feitoria e empresa do Capital Mundial, Luiz Gonzaga de Souza Lima. Seu livro se intitula: “A refundação do Brasil: rumo à sociedade biocentrada” (RiMa, S.Bernardo-SP, 2011). Permito-me citá-lo: ”Acho que o povo esbarrou nos limites da formação social empresarial, nos limites da organização social para os negócios. Esbarrou nos limites da Empresa Brasil. E os ultrapassou. Quer ser sociedade, quer outras prioridades sociais, quer outra forma de ser Brasil, quer uma sociedade de humanos, coisa diversa da sociedade dos negócios. É a Refundação em movimento”. Creio que este autor captou o sentido profundo e para muitos ainda escondido das atuais manifestações multitundiárias que estão ocorrendo no Brasil. Anuncia-se um parto novo. Devemos fazer tudo para que não seja abortado por aqueles daqui e de lá de

fora que querem recolonizar o Brasil e condená-lo a ser apenas um fornecedor de commodities para os países centrais que alimentam ainda uma visão colonial do mundo, cegos para os processos que nos conduzirão fatalmente à uma nova consciência planetária e a exigência de uma governança global. Problemas globais exigem soluções globais. Soluções globais pressupõem estruturas globais de implementação e orientação. O Brasil pode ser um dos primeiros nos quais esse inédito viável pode começar a sua marcha de realização. Dai ser importante não permitirmos que o movimento seja desvirtuado. Música nova exige um ouvido novo. Todos são convocados a pensar este novo, dar-lhe sustentabilidade e fazê-lo frutificar num Brasil mais integrado, mais saudável, mais educado e melhor servido em suas necessidades básicas. Leonardo Boff, teólogo e filósofo, é escritor 2013 - edição 46 - 27



INFRAESTRUTURA

“O Encalhe dos 300 começou às seis horas da manhã escura de 11 de agosto de 1958, no atoleiro do km 60 da Cianorte – Cruzeiro do Oeste, a estrada mais perebenta do Brasil. Um FNM com carga de peroba meteu o peito na lama empoçada e bambeou de lado, as rodas traseiras patinaram esguichando e duas afundaram na valeta coberta pela enxurrada, o motorista nem se deu ao trabalho de descer, aproveitou que ainda estava de sapatos secos e cruzou os pés no painel, acendeu um cigarro e deixou chover...”

Buraco na

estrada Por Hamilton Fonseca e Marcos Scotti

O texto de Domingos Pellegrini Jr., no livro “O Encalhe dos 300”, embora remeta a um tempo saudosista, se encaixa perfeitamente a algumas estradas brasileiras neste século XXI. Quem anda na boléia do caminhão hoje, ainda encontra muito encalhe pelo caminho. Precisa paciência, muita paciência. Segundo o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes - Dnit, o Brasil tem perto de 1,8 milhão de quilômetros de estradas, por onde circulam quase 18 milhões de automóveis diariamente. 1,17 milhão são caminhões. A Pesquisa CNT de Rodovias 2012 mostrou que apenas 11,9% da malha rodoviária do país é pavimentada, enquanto 62% das rodovias registram problemas graves de infraestrutura – geometria, pavimento e sinalização. Num país onde a riqueza anda pelas estradas - 60% de toda a carga transpor8 - edição 46 - 2013


tada no Brasil passa pelas rodovias. Os outros 40% sobram para as ferrovias, aerovias e hidrovias -, o problema é grave. “Os problemas estruturais são gargalos que aumentam os custos dos produtos e diminuem a nossa competitividade. Os desafios e decisões que o Brasil precisa não estão no futuro, eles começam agora”, disse Newton Gibson, presidente da Associação Brasileira de Logística e Transporte de Carga, durante o XIV Congresso Nacional Intermodal dos Transportadores de Cargas, realizado pela Confederação Nacional do Transporte (CNT), em setembro. Estudos da CNT dão conta que os problemas de infraestrutura aumentam, em média, 23% o custo do transporte no país. “No Brasil, o custo para escoar a produção da lavoura até o porto, por exemplo, é quatro vezes maior que nos Estados Unidos e na Argentina”, acrescenta Luiz Antônio Fayet, consultor em Logística e Infraestrutura da Confederação Nacional da Agricultura. “O transporte de carga se caracteriza pelas suas amplas externalidades”, conta Gilberto Antonio Cantú, presidente do Sindicato das Empresas de Transportes de Cargas do Estado do Paraná –

Setcepar, entidade que representa cinco mil empresas em 265 cidades do estado. “Mais do que um simples setor, é um serviço horizontalizado, que viabiliza os demais setores da economia, afetando diretamente a segurança, a qualidade de vida, e o desenvolvimento econômico do país”, completou Gilberto na apresentação do livro que conta a história do transporte de cargas no Paraná, lançado em comemoração aos 70 anos do sindicato. As principais reclamações de quem usa as estradas diariamente dizem respeito às más condições de tráfego e conservação, que danificam pneus e peças dos veículos, à ausência ou sinalização deficiente, à falta de fiscalização e à segurança. “Nossa atividade é fundamental para a logística e para a economia”, diz Gilberto. Não bastasse as condições das estradas, o presidente do Setcepar cita outros problemas estruturais e políticos que fazem parte deste universo: “A lei 12.619, de maio de 2012, que procura regulamentar o tempo de direção do motorista, por exemplo, é um desafio para o setor, por estar alterando a maneira como o motorista trabalha nas empresas. A profissão de motorista é um trabalho dife-

Sem o caminhão, o Brasil para. E, apesar do crescimento do país nos últimos anos, mesmo com o caminhão o Brasil está parando

Gilberto Cantú, presidente do Setcepar.

renciado. O roubo de cargas se tornou um problema crônico e os preços extorsivos dos pedágios elevam consideravelmente os custos do transporte”, cita o presidente do Setcepar. Segundo dados da pesquisa CNT, o país tem pouco mais de 15 mil quilômetros de rodovias administradas por concessionárias e cerca de 80% delas são consideradas estradas em ótimo estado de conservação, embora entre 2011 e 2012 esse percentual tenha sofrido um declínio por conta da falta de conservação. “As melhores estradas, sem dúvida, são as pedagiadas – muitas delas, no Paraná inclusive. Mas o custo é altíssimo. O pedágio corresponde a 15% ou 20% do valor da carga, principalmente se ela for de valor 2013 - edição 46 - 29


INFRAESTRUTURA

Burocracia excessiva, projetos mal elaborados, contratos mal feitos, superfaturamento e má gestão impedem que os parcos investimentos em infraestrutura cheguem ao destino agregado baixo. O pedágio hoje representa um componente muito alto no custo total do frete”, reclama Gilberto. Para se ter idéia, 30% do custo de um frete realizado entre Cascavel e Paranaguá, no Paraná, uma distância de cerca de 600 quilômetros, são gastos em pedágios. “Sem o caminhão, o Brasil para. E, apesar do crescimento do país nos últimos anos, mesmo com o caminhão o Brasil está parando”, diz Gilberto Cantú. Investimento Em dois anos de execução da segunda etapa do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC 2), foram investidos R$ 27,7 bilhões em obras de transporte em todo o país. De acordo com um balanço do programa realizado em 2013, fo30 - edição 46 - 2013

ram concluídas obras em praticamente 1.500 quilômetros de rodovias e há intervenções em mais 8 mil quilômetros. No entender dos especialistas, é pouco. Segundo o Fórum Econômico Mundial, o Brasil ocupa a 55ª posição a nível mundial em investimentos em infraestrutura. “Aplicamos 0,6% do PIB ao ano. É muito pouco”, diz Carlos Campos, coordenador de Infraestrutura do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea. Segundo o pesquisador. O Brasil deveria investir cerca de 150 bilhões de reais por ano para se tornar competitivo e suprir demandas interna e externa no que diz respeito à logística e infraestrutura. “Nos últimos anos até tem havido recursos alocados para o setor. Ocorre que nós temos deixado de investir por incapacidade administrativa e gestão ineficiente. Esbarramos em marcos regulatórios inacabados, licenças ambientais que demoram anos para serem expedidas, projetos mal elaborados e contratos mal feitos”, considera Campos. “Estamos atrasados e corremos o risco de continuarmos estagnados se não exigirmos que o governo leve mais a sério as necessidades do Brasil para conseguir ter resultados econômicos satisfató-

rios”, conclui Gilberto Cantú, presidente do Setcepar.

O Brasil precisa investir R$ 120 bi por ano para manter a infraestrutura e a logística funcionando

Carlos Campos, pesquisador do Ipea.


LEITURA

Passeando por Paulo Leminski

“- Biografia é muito convencional, eu não mereço algo melhor? Pé Vermelho então lembra daquele primeiro artigo que leu de Leminski, uma misturança de gêneros e gênesis, idiomas e gírias, signos e sacadas. Como ele era mistura de raças. Como sua literatura era mistura de erudição e sacação, Português e Inglês, tensão e relaxo, carne e espírito. Pé Vermelho dorme pensando nisso, e sonha que faz uma sopa com Leminski. Acorda, liga ao editor: - Biografia do Polaco já foi feita. Outro livro sobre ele tem de ser mistura de informação e romance, erudição e conversa, realidade e sonho, água e pedra, história e festa, uma lifestory!” (Trecho do livro Passeando por Paulo Leminski). Em junho fui convidado pela Editora Nossa Cultura para escrever biografia de Leminski, de quem fui amigo. O editor me afirmou que fui escolhido de comum acordo por ele e pelas herdeiras de Leminski, com quem seriam divididos os direitos autorais e a quem os originais seriam submetidos.

Por Domingos Pellegrini

Inicialmente aceitei, honrado, mas logo me dei conta de que a tarefa me privaria de duas condições essenciais para uma escrita criativa condizente com Leminski, a paixão e a liberdade. Além disso, já havia uma biografia sua, e eu teria ou de sugar informações dela ou buscar penosamente novas informações talvez não tão relevantes ou interessantes. Assim, resolvi desistir da empreitada antes de assinar contrato - mas continuei a ter lembranças de Leminski, tantas que resolvi escrever não exatamente uma biografia, mas uma mistura de minhas memórias com ele e necessárias observações críticas. Escrevi em poucas semanas, apaixonado, e a Editora Record se interessou em publicar - desde que com autorização das herdeiras, pois, sem isso, toda editora brasileira hoje teme ter prejuízo com a publicação embargada judicialmente. Como as herdeiras negaram autorização, resolvi colocar o livro na internet, esperando honrar a memória e a obra de meu amigo.

Uma contribuição para que o Brasil não seja o país das biografias chapa-branca

Domingos Pellegrini

Um jeito gostoso de investir em sua saúde!

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Publicações Hora Pública Editora “Bife Sujo”: a arte e a poesia dos curitibanos

Serviço: Coletânea Bife Sujo R$ 50,00 (em duas vezes com o frete incluso) ** Pagamento à vista 30% de desconto R$ 35,00 Formato: 26 x 26 cm 58 páginas Edição limitada

Mais informações ou aquisições: (041) 3332-7580 comercial@bempublico.com.br

Questão de Polícia Autor: Arthur Conceição JM Editora - Curitiba R$ 40,00

A Hora Publica Editora, responsável pela publicação da revista “Bem Público” há sete anos, está disponibilizando aos leitores o livro “Bife Sujo”, com crônicas, poesias, imagens e ilustrações produzidas por artistas do Paraná, numa autêntica valorização da cultura regional. Tradicional restaurante de Curitiba, por onde já passaram inúmeros artistas, o Bife Sujo possui um público diversificado e eclético. Foi pensando nessas pessoas que a HP Editora lançou a coletânea. Participam da obra M. Ilan, Rio Apa, Adelia Ribeiro, Ronald, Silvestre Duarte, Silvio Oricolli, Joaquim Simões Ribeiro, Sonia Bittencourt, Raymundo Rolim, Claudio Kambé, Carlos Molina, Gerson Maciel, Jairo Pereira, Hilton Barcelos, Mario Milani, Jorge Hardmoon, Joel Moreno, Katia Horn, Helio Leites, Li Travassos, Carlos Borges de Lima, Luiz Alceu, Bia de Luna, Marcos Terra, Marise Manoel Nilson Monteiro, Donizetti, Pilar, Analice, Thor, Jubal, Carlos Aguiar, Alberto Viana, José Antonio de Lima, Julian, Pablito, Ossoh, Norberto Silva, Marcos Fontinelli, Péricles Mello, Edu Hoffmann, Marcelo Oikawa, Jacques Brand, Claudir Maeus, Fernando Nascimento, Lauro Borges Gerson Cunha, Samuel Silva, Ademir Assunção, Claudia Gabardo, Marcos Carlson, Mazé Mendes,Luiz Bellenda, Willy Schuman e Eusébio Maestri.



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