Boletim do Museu Paraense EmĂlio Goeldi CiĂŞncias Humanas
v. 12, n. 1 janeiro-abril 2017
BOLETIM DO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI. CIÊNCIAS HUMANAS (ISSN 2178-2547) Imagem da capa Ação do tempo sobre inscrições rupestres no Sítio do Veado, Buíque, Pernambuco, Brasil. Foto: Marília Perazzo, 2016.
O Boletim do Museu Paraense de História Natural e Ethnographia foi criado por Emílio Goeldi e o primeiro fascículo surgiu em 1894. O atual Boletim é sucedâneo daquele. The Boletim do Museu Paraense de História Natural e Ethnographia was created by Emílio Goeldi, and the first number was issued in 1894. The present one is the successor to this publication.
EditorA CientíficA Jimena Felipe Beltrão Editores Associados Alegria Benchimol - Museu Paraense Emílio Goeldi - Museologia Candida Barros - Museu Paraense Emílio Goeldi - Linguística Claudia López - Museu Paraense Emílio Goeldi - Antropologia Cristiana Barreto - Museu de Arqueologia e Etnologia - Universidade de São Paulo - Arqueologia Flávia de Castro Alves - Universidade de Brasília - Linguística Hein van der Voort - Museu Paraense Emílio Goeldi - Linguística Jorge Eremites de Oliveira - Universidade Federal de Pelotas - Antropologia Martijn van den Bel - Universiteit Leiden - Arqueologia Mily Crevels - Universiteit Leiden - Linguística Priscila Faulhaber Barbosa - Museu de Astronomia e Ciências Afins - Antropologia Richard Pace - Middle Tennessee State University - Antropologia
CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO Ângela Domingues - Instituto de Investigação Científica Tropical - Lisboa - Portugal Bruna Franchetto - Museu Nacional - Universidade Federal do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil Eduardo Brondizio - Indiana University - Bloomington - USA Eduardo Góes Neves - Museu de Arqueologia e Etnologia - Universidade de São Paulo - São Paulo - Brasil Gustavo Politis - Universidad Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires - Tandil - Argentina Janet Marion Chernela - University of Maryland - Maryland - USA Klaus Zimmermann - Universidade de Bremen - Bremen - Alemanha Marcos Chor Maio - Casa de Oswaldo Cruz - FIOCRUZ - Rio de Janeiro - Brasil Maria Filomena Spatti Sândalo - Universidade Estadual de Campinas - Campinas - Brasil Michael J. Heckenberger - University of Florida - Gainesville - USA Michael Kraus - Universidade de Bonn - Bonn - Alemanha Neil Safier - The John Carter Brown Library - Providence - USA Nora C. England - University of Texas at Austin - Austin - USA Rui Sérgio S. Murrieta - Universidade de São Paulo - São Paulo - Brasil Tânia Andrade Lima - Museu Nacional - Universidade Federal do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil Walter Neves - Universidade de São Paulo - São Paulo - Brasil William Balée - Tulane University - Louisiana - USA
NÚCLEO EDITORIAL Normatização - Arlene Lopes, Daniele Alencar, Rafaele Lima e Taise da Cruz Silva Revisão ortográfica - Antonio Carlos Fausto da Silva Júnior e Rafaele Lima Editoração, versão eletrônica e capa deste número - Talita do Vale
Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações Museu Paraense Emílio Goeldi
Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi Ciências Humanas
ISSN 2178-2547 Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi
Cienc. Hum.
Belém
v. 12
n. 1
p. 11-255
janeiro-abril 2017
Endereço para correspondência: Museu Paraense Emílio Goeldi Núcleo Editorial - Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi Av. Perimetral, 1901 Terra Firme – CEP 66077-830 Belém - PA - Brasil Telefone: 55-91-3075-6186 E-mail: boletim.humanas@museu-goeldi.br
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 2017. – Belém: MPEG, 2017. v. 12, n. 1., v. il. Semestral: 1984-2002 Interrompida: 2003-2004 Quadrimestral a partir do v. 1, 2005. Títulos Anteriores: Boletim Museu Paraense de História Natural e Ethnographia 1894-98; Boletim Museu Paraense de História Natural e Ethnographia (Museu Goeldi) 1902; Boletim do Museu Goeldi (Museu Paraense) de História Natural e Ethnographia 1906-1914; Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi de História Natural e Etnografia 1933; Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, série Antropologia 1949-2002; Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, série Ciências Humanas, em 2005. A partir de 2006, Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas. ISSN 2178-2547 1. Antropologia. 2. Arqueologia. 3. História. 4. Saúde. 5. Agricultura Familiar. I. Museu Paraense Emílio Goeldi.
CDD-21ª.ed. 300 © Direitos de Cópia/Copyright 2017 por/by MCTIC/Museu Goeldi
CARTA DA EDITORA
Nesta edição, celebramos e agradecemos a todos que contribuíram para a nota máxima atribuída à Linguística segundo a avaliação da Capes: o Boletim agora é avaliado como A1 para a área. Compartilhamos também a notícia da reinserção do Boletim em um indexador que expressa o compromisso do Museu Goeldi com o acesso aberto às suas pesquisas: Directory of Open Access Journals - DOAJ. Entre os itens de leitura deste número estão temas que constituem testemunho de que a investigação e a consequente geração de conhecimento surpreende e educa. Artigos aqui publicados tratam da ocupação do espaço e da definição de territórios por grupos humanos, suas formas de perceber o tempo e de se expressar. Falam também de situações de deslocamento, doença, violência e conflito, bem como sobre laços de solidariedade e reciprocidade. A ocupação e definição de espaços, a apropriação e a transformação da paisagem, o estabelecimento de território e o uso de recursos são aspectos abordados nos três artigos que abrem esta edição: “Arqueologia de marinheiros e caçadores do século XIX: ensaio sobre o tempo e a Antártica”, de Sarah Barros Viana Hissa; “Tempo e Espaço Guarani: um estudo acerca da ocupação, cronologia e dinâmica de movimentação pré-colonial na Bacia do Rio Taquari/Antas, Rio Grande do Sul, Brasil”, de autoria de Fernanda Schneider, Sidnei Wolf, Marcos Rogério Kreutz e Neli Teresinha Galarce Machado; e “Novas perspectivas para a arqueológica Jê no Brasil meridional”, de Francisco Silva Noelli e Jonas Gregorio de Souza. Os artigos sobre Guarani e Jê trazem discussão sobre aspectos demográficos de relevância para a Arqueologia brasileira e refletem um acúmulo considerável de dados coletados em diferentes projetos de pesquisa nas últimas décadas. Em “Cauixi em cerâmica arqueológica da região de Lagoa Santa, Minas Gerais: inclusão de esponjas processadas ou exploração de depósitos sedimentares com espículas?”, os autores Igor Morais Mariano Rodrigues, Cecilia VolkmerRibeiro e Vanessa de Souza Machado investigam se a presença de esponjas de água doce amazônicas em fragmentos de cerâmica resulta de escolha e inclusão do material ou se advém do fato de que esse elemento já se fazia presente no material usado para confeccionar os objetos. As formas de expressão e as opções por certas técnicas e materiais são estudados por autores de outros quatro artigos sobre Arqueologia. Para Carolina Guedes e Denis Vialou, em “Símbolos na arte rupestre sob o olhar da Arqueologia Cognitiva: considerações analíticas sobre o sítio Conjunto da Falha, Cidade de Pedra, Rondonópolis, Mato Grosso”, meio e mensagem são elementos fundamentais. A análise conjuga o aspecto físico do sítio com as inscrições na superfície da rocha e as mensagens que “refletem as crenças e escolhas culturais do grupo pretérito”. Já em “Sítios com pinturas rupestres em Buíque, Venturosa e Pedra, Pernambuco, Brasil no contexto da geopaisagem”, Marília Perazzo Valadares Amaral, Carlos Celestino Rios e Souza e Ricardo José Ribeiro Pessoa buscam BELTRÃO, Jimena Felipe. Carta da Editora. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 12, n. 1, p. 5-6, jan.-abr. 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222017000100001.
entender os processos de adaptação dos grupos humanos ao meio ambiente e a sua escolha dos sítios Buíque, Venturosa e Pedra, no nordeste brasileiro. Da cultura pretérita vem ainda estudo de Ana Solari e Sérgio Francisco Serafim Monteiro da Silva sobre a “complexidade de prática funerária que faz o descarnamento ativo do cadáver e manipula ossos frescos”. Trata-se do artigo “Sepultamentos secundários com manipulações intencionais no Brasil: um estudo de caso no sítio arqueológico Pedra do Cachorro, Buíque, Pernambuco, Brasil”. A contribuição da Linguística nessa edição vem de evidências obtidas de fontes do século XIX e XX. Fernando O. de Carvalho, autor de “Philological evidence for phonemic affricates and diachronic debuccalization in Early Terena (Arawak)”, demonstra, a partir da análise de transcrições, contrastes presentes no Terena antigo, que foram perdidos no Terena moderno. Precariedade nas condições de vida e no acesso ao atendimento transformaram o câncer em um dos principais problemas de saúde pública da atualidade. Se, inicialmente, a doença era associada ao desenvolvimento e reflexo desse processo, essa percepção se alterou por completo. Analisando artigos científicos e discursos de médicos brasileiros de reconhecida reputação, Luiz Alves Araújo Neto e Luiz Antonio Teixeira comprovam tal transformação em “De doença da civilização a problema de saúde pública: câncer, sociedade e medicina brasileira no século XX”. Diferenças e conflito que detonaram uma onda de crimes entre locais e imigrantes italianos no Espírito Santo do século XIX surgem em “Cenas de violência na tessitura entre imigrantes italianos e brasileiros no interior do Espírito Santo”. Das páginas de jornais, Maria Cristina Dadalto recupera a cena e o veredito de não culpabilidade depois de uma onda de 11 assassinatos e outros atos de violência, num relato que guarda traços de similitude com tantos outros episódios de intolerância na história recente. “Reciprocidade e ação coletiva entre agricultores familiares no Pará”, de Heribert Schmitz, Dalva Maria da Mota e Glaucia Macedo Sousa é um estudo de caso realizado no município de Mãe do Rio sobre as motivações e o engajamento de agricultores em diferentes formas de ação coletiva. Da Amazônia para um cenário nacional, análises de percursos individuais e de elementos da cultura regional constam de dois artigos que encerram o conteúdo deste número. Em “Do Folclorismo à História da Cultura na Amazônia: o percurso construído por Vicente Salles”, Magda Ricci e Alexandra Mafra analisam o que o intelectual paraense compreendia enquanto ideia de folclore e suas contribuições teóricas para a definição do tema, que como a música e o negro, marcaram os estudos de Salles. Por sua vez, Alexandre Pacheco em “A inserção da obra ‘Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido’, de Leandro Tocantins, na imprensa carioca nos anos de 1960” identificou o processo de aceitação do livro com particular ênfase à forma cordial como jornalistas e críticos trataram o autor da obra, também, à época, um político. Até o próximo número. Jimena Felipe Beltrão Editora Científica
CARTA DA EDITORA EDITOR’S NOTE ARTIGOS ARTICLES Arqueologia de marinheiros-caçadores do século XIX: ensaio sobre o tempo e a Antártica Archaeology of 19th century sailor-hunters: an essay about time and Antarctica Sarah Barros Viana Hissa...................................................................................................................................................................... 11
Tempo e Espaço Guarani: um estudo acerca da ocupação, cronologia e dinâmica de movimentação pré-colonial na Bacia do Rio Taquari/Antas, Rio Grande do Sul, Brasil Guarani Space and Time: a study about occupation, chronology and pre-colonial migration dynamics in the Taquari/Antas River Basin, Rio Grande do Sul, Brazil Fernanda Schneider, Sidnei Wolf, Marcos Rogério Kreutz, Neli Teresinha Galarce Machado................................................................. 31
Novas perspectivas para a cartografia arqueológica Jê no Brasil meridional New perspectives on the archaeological cartography of the Jê in Southern Brazil Francisco Silva Noelli, Jonas Gregorio de Souza...................................................................................................................................57
Cauixi em cerâmica arqueológica da região de Lagoa Santa, Minas Gerais: inclusão de esponjas processadas ou exploração de depósitos sedimentares com espículas? Cauixi sponge in archaeological pottery from the Lagoa Santa region, Minas Gerais, Brazil: inclusion of processed sponges or exploitation of sedimentary deposits with spicules? Igor Morais Mariano Rodrigues, Cecilia Volkmer-Ribeiro, Vanessa de Souza Machado..........................................................................85
Símbolos na arte rupestre sob o olhar da Arqueologia Cognitiva: considerações analíticas sobre o sítio Conjunto da Falha, Cidade de Pedra, Rondonópolis, Mato Grosso Symbols in rock art through the eyes of Cognitive Archaeology: analytical considerations about the Conjunto da Falha site, Mato Grosso, Brazil Carolina Guedes, Denis Vialou........................................................................................................................................................... 101
Sítios com pinturas rupestres em Buíque, Venturosa e Pedra, Pernambuco, Brasil, no contexto da geopaisagem Rock art sites in Buíque, Venturosa and Pedra, Pernambuco, Brazil, in the context of the landscape Marília Perazzo Valadares Amaral, Carlos Celestino Rios e Souza, Ricardo José Ribeiro Pessoa........................................................... 125
Sepultamentos secundários com manipulações intencionais no Brasil: um estudo de caso no sítio arqueológico Pedra do Cachorro, Buíque, Pernambuco, Brasil Secondary burials with intentional manipulation in Brazil: a case study on the archaeological site Pedra do Cachorro, Buíque, Pernambuco, Brazil Ana Solari, Sérgio Francisco Serafim Monteiro da Silva....................................................................................................................... 135
Philological evidence for phonemic affricates and diachronic debuccalization in Early Terena (Arawak) Evidências filológicas de africadas fonêmicas e debucalização diacrônica em Terena antigo (Arawak) Fernando O. de Carvalho.................................................................................................................................................................. 157
De doença da civilização a problema de saúde pública: câncer, sociedade e medicina brasileira no século XX From disease of civilization to public health problem: cancer, society and the Brazilian medical profession in the 20th century Luiz Alves Araújo Neto, Luiz Antonio Teixeira.................................................................................................................................... 173
Cenas de violência na tessitura entre imigrantes italianos e brasileiros no interior do Espírito Santo Scenes of violence between Italian immigrants and Brazilians in the interior of Espírito Santo, Brazil Maria Cristina Dadalto....................................................................................................................................................................... 189
Reciprocidade e ação coletiva entre agricultores familiares no Pará Reciprocity and collective action among peasants in the State of Pará, Brazil Heribert Schmitz, Dalva Maria da Mota, Glaucia Macedo Sousa......................................................................................................... 201
Do Folclorismo à História da Cultura na Amazônia: o percurso construído por Vicente Salles From folklore to the cultural history of Amazon: Vicente Salles’ path Magda Maria de Oliveira Ricci, Alessandra Regina e Souza Mafra........................................................................................................ 221
A inserção da obra “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido”, de Leandro Tocantins, na imprensa carioca nos anos de 1960 The insertion of Leandro Tocantins’s “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido” in Rio de Janeiro Press in the 1960s Alexandre Pacheco............................................................................................................................................................................ 241
ARTIGOS
Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 12, n. 1, p. 11-29, jan.-abr. 2017
Arqueologia de marinheiros-caçadores do século XIX: ensaio sobre o tempo e a Antártica Archaeology of 19th century sailor-hunters: an essay about time and Antarctica Sarah Barros Viana Hissa Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
Resumo: O tempo é dimensão intrínseca da vivência humana e da nossa experiência de mundo. Evitando considerá-lo simplesmente como invólucro ou como um suporte de eventos, abre-se lugar para pensar sobre o tempo imanente, que nos é interno à consciência. Esse é o tempo tal como é percebido, que privilegia, por exemplo, a duração percebida de algum evento ao invés da duração absoluta, mensurada em minutos, dias ou anos. Essas questões se fazem relevantes quando se considera a presença dos marinheiros-caçadores na Antártica do século XIX. Isso porque a imagem recorrente do continente gelado é a de um espaço inerte e estático, sem ação e sem tempo. Contudo, pensando na possibilidade de outras formas de compreendê-la, esse artigo explora os elementos que podem determinar ou influenciar a percepção do tempo transcorrido, sua velocidade e compasso, para o contexto desses marinheiros-caçadores. Para isso, serão relacionados elementos como o ritmo intenso de trabalho de caça, os momentos de lazer, de atribulações e obstáculos, os marcadores absolutos e não absolutos de tempo, a proveniência dos objetos utilizados (metrópole x Antártica) e a durabilidade dos objetos trazidos na viagem. Palavras-chave: Tempo. Marinheiros-caçadores. Século XIX. Arqueologia. Paisagem. Antártica. Abstract: Time is an intrinsic dimension of our life as humans and our experience of the world. When not considering it simply as a shell or as a medium for events, we are invited to think about immanent time, which is internal to consciousness and refers to perception. It highlights, for example, perceived duration instead of absolute duration, measured in minutes, days or years. These issues are relevant when considering the presence of sailor-hunters in 19th century Antarctica. The recurrent image we created of the cold continent is one of it being still and static, without action or time. However, thinking about the possibility of other ways of understanding it, this article explores the elements that may determine or influence the perception of time passage, its velocity and rhythm, in the context of thesesailor-hunters. In this respect, the following elements will be correlated: the intense rhythm of the hunting activities, the moments of leisure and obstacles to the work, the absolute and non-absolute markers of time, the provenance of the objects used (Metropolitan state versus Antarctica), and the durability of the objects taken on the trip. Keywords: Time. Sailor-hunters. 19th century. Archaeology. Landscape. Antarctica.
HISSA, Sarah Barros Viana. Arqueologia de marinheiros-caçadores do século XIX: ensaio sobre o tempo e a Antártica. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 12, n. 1, p. 11-29, jan.- abr. 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222017000100002. Autora para correspondência: Sarah Barros Viana Hissa. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Parque Quinta da Boa Vista, São Cristóvão. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. CEP 20940-040 (sarah.hissa@gmail.com). Recebido em 31/07/2016 Aprovado em 08/09/2016
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Arqueologia de marinheiros-caçadores do século XIX: ensaio sobre o tempo e a Antártica
INTRODUÇÃO: ESPAÇO E TEMPO ANTÁRTICOS, FRENTE AO CARÁTER TEMPORÁRIO DA PRESENÇA HUMANA A Antártica é o continente onde as temperaturas mais frias do planeta foram registradas. A sua localização implica, para a presença humana, uma variedade de obstáculos e de ambientes hostis a serem atravessados. Dito isso, a relação que o ser humano construiu com aqueles espaços é, também, ímpar. É uma região que não é urbana, não é rural, não possui nativos. Diferentemente da África ou das Américas, incluindo as áreas relativamente próximas da Terra do Fogo e da Patagônia (Martinic, 2002), a Antártica não fez parte de um processo de colonização ou de evangelização de nativos, de domesticação de animais e de espaços férteis e habitacionais, ou, ainda, de alocação permanente e ininterrupta de grupos e de hierarquia administrativa. Não foi colônia, como comumente a entendemos1. Colônias foram incorporadas completamente (ainda que de maneiras diferentes) à imagem de um mundo antropizado e moderno, enquanto a Antártica permaneceu – e permanece – à margem dele. A presença humana na Antártica, apesar de existente, não se deu intensamente como em outras áreas do planeta. Isso não significa somente que o espaço antártico não foi utilizado ou alterado tanto quanto os outros espaços do mundo. Não falamos aqui somente de demografia ou de exploração econômica. Isso significa também que a ideia de Antártica mantém conotação de espaço desencaixado do mundo geográfico e isolado das pessoas. A imagem recorrente da Antártica é de um espaço inerte, estático e homogêneo. É como um verbo não
conjugado, sem tempo e sem ação. Verbo inerte que fala de uma natureza supostamente imaculada, feita de pedras, rochas, montanhas, nuvens, vento, frio, pinguins, focas, gelo, neve, mar. Não há pessoas, e, sem elas, também não há o movimento, a velocidade, a ação, a vida, o barulho, a convivência, o combate, o caos. É vazia. Nesse sentido, aproxima-se de como concebemos o deserto, o descampado, a savana, ou até mesmo a floresta e o mar. São espaços naturais. Porém, ainda assim, a Antártica se distingue deles. Associa-se um tipo humano a todos esses locais mencionados e, assim, esses locais se tornam mais parte integral do mundo. A ideia de mundo é incompleta sem esses espaços, enquanto a Antártica, desabitada, é o continente esquecido. Na dicotomia entre natureza e cultura, que marca a cosmologia moderna, a Antártica pertence ao domínio do natural e não do humano. Contudo, a presença humana na Antártica existiu. Após a descoberta do continente austral por marinheiroscaçadores2, na virada do século XVIII para o XIX, as caças foqueira e baleeira se voltaram para a região. Esse continente foi apensado ao mundo moderno, que se tornava cada vez mais comercial, para extração sazonal de proveitos naturais. Os caçadores extraíam em especial óleo e pele de vários mamíferos marinhos, enquanto se estabeleciam nas costas de ilhas antárticas em acampamentos temporários (cerca de três semanas no verão austral era suficiente para carregar o navio). Já no século XX, outras atividades passaram a ser também desempenhadas. A investigação científica neste continente é realizada sempre com base no Tratado Antártico (1959) de cooperação e paz internacional3. O
Em alguns pontos do texto, usam-se os termos ‘colônia’ e ‘metrópole’. Contudo, deve-se ressalvar que, da mesma forma que a Antártica não foi colônia como comumente a entendemos, também os países de origem das empresas de caça não foram metrópoles em sentido estrito. 2 “I Think This Southern Land to Be a Continent”: Capitão John Davis, do navio ‘Huron’, escreveu essas palavras em seu diário, na data de 7 de fevereiro de 1821. Foi então citado por Stackpole (1955) como a primeira menção documentada conhecida de avistamento do continente Antártico, após o descobrimento das ilhas Shetland do Sul, por caçadores de mamíferos marinhos. Contudo, há hipóteses para incursões anteriores, como a do navio argentino San Telmo, ou mesmo navios de caça, mas que mantinham em segredo a nova região de exploração. 3 Para mais informações, ver o site de Secretariat of the Antarctic Treaty (s. d.). 1
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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 12, n. 1, p. 11-29, jan.-abr. 2017
Programa Antártico Brasileiro (PROANTAR)4 de pesquisas científicas no continente recebe apoio logístico da Marinha Brasileira, além de financiamentos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), mantendo pessoal durante todo o tempo na base antártica (com os militares operando em regime de rotatividade) e as pesquisas operando em expedições específicas realizadas em momentos específicos de acordo com cronogramas anuais. Por último, a partir das últimas décadas do século XX, promove-se o turismo no continente austral, também essencialmente temporário. Essas três formas de relacionamento humano com a Antártica – caça, pesquisa e turismo – foram e/ou são essencialmente efêmeras e sazonais, visando à realização de objetivos específicos e o retorno bem-sucedido, mas nunca o estabelecimento duradouro ou a permanência fixa. Busca-se retirar algo da Antártica (bens, conhecimento ou experiências), ao invés de inserir pessoas ali de modo permanente ou transformar fundamentalmente aquele espaço, como ocorreu em diferentes ocupações e regiões colonizadas. Nota-se que o eixo que dá sentido às particularidades da presença humana na Antártica é o caráter temporário. Esse eixo conecta as concepções de humano, de espaço e de tempo (contudo, separáveis apenas do ponto de vista analítico). A discussão que se seguirá abordará esses três elementos – o humano, o espaço e o tempo –, buscando especialmente o tempo como conceito, experimentação e/ou percepção. A escolha de abordar o tempo se deu em função da infrequente tentativa de se problematizar questões relacionadas diretamente à temporalidade, mesmo em se tratando da arqueologia e, principalmente, de um ponto de vista subjetivo. Além disso, explora-se até que ponto as experiências de tempo na Antártica seriam condizentes com a estaticidade que se imagina de antemão. Nesse sentido, o artigo faz prioritariamente um exercício interpretativo.
Ressalta-se, antes de aprofundar a discussão, que o contexto logístico da pesquisa que origina esse texto se deu a partir da participação do Laboratório de Estudos Antárticos em Ciências Humanas, da Universidade Federal de Minas Gerais (Leach/UFMG), no PROANTAR desde 2009, com estudos na área das Humanidades, em Arqueologia e Antropologia (Ribeiro; Croveto, 2011; Guimarães; Moreira, 2011; Hissa, 2011, 2012; Resende, 2011; Santibáñez, 2011; Villagran; Schaefer, 2011; Zarankin et al., 2011). Na discussão, serão pontuados alguns resultados das pesquisas arqueológicas realizadas na Antártica (Zarankin et al., 2011; Zarankin; Senatore, 2007).
AS ATIVIDADES ANTÁRTICAS FOQUEIRAS: TEMPO DA PRODUÇÃO, TEMPO DO LAZER E O ‘TEMPO DO MAR’ “Os dias talvez sejam iguais para um relógio, mas não para um homem” (Marcel Proust)
No século XVIII, as relações comerciais já conectavam várias áreas do mundo, no Oceano Atlântico, no Índico e no Pacífico. Após a inclusão do continente Antártico no itinerário de caça, houve várias incursões à região para busca de peles e óleo. Os navios foqueiros (ou sealers, no inglês) antárticos comercializavam principalmente nos portos de Londres, Nova Iorque e Cantão (Basberg; Headland, 2008; Berguño, 1993a, 1993b; Bonner, 1968; Goodridge, 1839; Morrell, 1832; Murdoch, 1984; Smith; Simpson, 1987; Zarankin; Senatore, 2007) e provinham dos Estados Unidos, Reino Unido, África do Sul, Nova Zelândia, França, Tasmânia, Canadá, Chile, Noruega, Portugal, Alemanha, entre outros (Headland, 1989). Os produtos da exploração eram comercializados globalmente, sendo a pele para vestimentas, como chapéus, casacos, coletes e botas, e o óleo para lubrificação, manufatura e iluminação. Essa primeira indústria antártica (Basberg; Headland, 2008) foi
Para mais informações, ver o site da Marinha do Brasil (s. d.).
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Arqueologia de marinheiros-caçadores do século XIX: ensaio sobre o tempo e a Antártica
de curta duração, com um grande pico de intensidade entre os anos de 1820-1825 e um retorno brando na década de 1870 (Headland, 1989)5. As tarefas relacionadas ao trabalho da caça (tanto de pinípedes, quanto de cetáceos) eram extremamente físicas e violentas. Incluíam não somente a morte dos animais, mas também o processamento deles (remoção e salga das peles, remoção e fervura da gordura), assim como a embalagem e armazenamento6. Nos poucos anos de pico da caça foqueira, colônias de animais foram dizimadas, fragilizando seu equilíbrio e ameaçando sua existência. Os animais eram mortos tão rapidamente e em tão larga escala, sem um planejamento de sustentabilidade por gênero ou por idade, que a caça quase levou à extinção, na região, as espécies que alimentavam a atividade. Quando os animais já não eram tão abundantes, devido à caça intensa, as viagens se tornaram menos lucrativas. Desse modo, a frequência das expedições, que acompanhava as flutuações do mercado das peles e do lucro em potencial, teve que diminuir (Senatore; Zarankin, 1999; Zarankin; Senatore, 2007). Antes do esgotamento da indústria, números altíssimos de peles de focas foram coletados e lucros elevados foram produzidos, mobilizando dezenas de navios e vários capitães e tripulações, provenientes de nações diferentes. Nas Shetland do Sul, a alta quantidade de focas abatidas em pouco tempo, na ordem de 10.000 em 12 dias pelo navio ‘Hero’ em 1820 (Stackpole, 1955), demonstra a grande intensidade do trabalho foqueiro nos seus anos iniciais. O número citado se refere a peles e não focas inteiras, de modo que o processamento do animal também fora feito nesse curto período. Um cálculo breve para o caso do ‘Hero’ resulta em uma média de abatimento e processamento de 830 focas/dia ou 34 focas/hora, isso
se o trabalho nunca cessasse para sono, descanso, trajetos, alimentação, eventuais reparos do navio, do acampamento ou de vestimentas, e outras tarefas. Há outra referência de uma pessoa que chega a descourar 60 focas por hora (Delano, 1818 apud Stackpole, 1955). Outro número, um pouco mais modesto, porém ainda impressionante, é o de 9.000 peles em três semanas pelo ‘Hersília’, em 1819, totalizando, na mesma lógica do cálculo acima, em torno de 18 focas/hora, ou o ‘San Juan Nepomuceno’, que coletou 14.000 focas em 1820, em cinco semanas, totalizando em torno de 17 focas/hora (Stackpole, 1955). Ainda, vale mencionar que, dos grupos de até 10 pessoas7, que eram enviados em botes para vários pontos da costa, fazem parte oficiais hierarquicamente mais graduados (shipmates), encarregados do conjunto e de garantir a alta produção (Stackpole, 1955). Era possível atingir o marco de 12 horas contínuas de trabalho (Salerno, 2006). Os altos números da produção e da utilização do tempo do operário apontam para uma lógica capitalista de pensamento, que, como já dito, ameaçou até mesmo a própria sustentabilidade da atividade de caça. Tendo em vista que a razão principal da presença humana na Antártica do século XIX é extrativista, com ritmo intenso de trabalho, as atividades de caça requerem tempo bem aproveitado e trabalho otimizado. Trata-se da mentalidade moderna de que o tempo se iguala ao lucro obtido. Compreende-se o tempo por meio da velocidade como premissa do lucro da empresa, o que ordena as atividades diárias e a presença na Antártica. Esse tempo da produção, cujo compasso é ordenado pela lógica de mercado, é personificado, nos acampamentos foqueiros, pela já mencionada figura do shipmate. Era o indivíduo que possivelmente teria empunhado, em terra, um relógio de bolso e se certificado
Os dados utilizados pelo autor para a produção desses gráficos incluíram não somente fontes primárias, mas fontes também secundárias, desde que acessíveis, incluindo desde diários de bordo até lápides (Headland, 1989, p. 46). 6 Para uma descrição detalhada da caça às focas, da morte e do processamento desses animais em produtos comercializáveis, ver Fanning (1924, p. 255-264). 7 O número de dez pessoas por acampamento é sugerido por Stackpole (1955), enquanto números menores, de quatro a oito pessoas são sugeridos por Zarankin e Senatore (2007), tendo em vista os tamanhos dos acampamentos de pedra construídos nas ilhas Shetland do Sul. 5
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de que o tempo da produção seria implementado, ao impor um ritmo intenso de trabalho8. A coleção arqueológica antártica9 é composta de vestígios de instrumentos de trabalho (garrote, recipientes de ferro para produzir óleo, estacas de madeira10 para esticar o couro durante a secagem, facão, barris) (Figura 1), entre outros (Zarankin; Senatore, 2007). Esses elementos são parte remanescente da materialidade dos sítios industriais e laborais, aludindo ao tempo da produção. A lógica capitalista traz consigo uma dicotomia entre tempo de trabalho e tempo livre, esboçada a partir da Revolução Industrial, e que atinge contornos específicos na atualidade. Com isso em mente, a questão do lazer, como uma atividade a ser fruída ou desempenhada no tempo livre, surge dentro do universo do trabalho e em oposição a ele (Magnani, 1994, 2003). O tempo livre pode ser compreendido como ausência de trabalho ou como “tempo que alguém poderá fazer o que quiser” (Valtonen, 2004), tal como é compreendido na sua relação com noções de bem-estar (Magnani, 1994, 2003; Gross, 1984). Nesse sentido, além dos objetos relacionados ao trabalho foqueiro, há materialidades arqueológicas que corroboram atividades de repouso, de recreação ou lúdicas, como garrafas de vidro, destinadas ao consumo de álcool; cachimbos; e jogos (Figura 2) (Zarankin; Senatore, 2007). Seria um momento de pausa ou de desaceleração das atividades laborais e econômicas principais, relativas à caça e à presença na Antártica. Podem ter sido desenvolvidos,
nessas ocasiões, também o entalhe de dentes e ossos (no inglês, scrimshaw, que pode chegar a altos níveis de rebuscamento) e a costura de roupas rasgadas (Salerno, 2006). Não se pode precisar, contudo, o grau de alvedrio dessas pessoas em organizar o tempo livre que lhes cabiam. A organização do tempo decorrido na Antártica pelos caçadores inclui elementos de trabalho e de lazer. Pensa-se essa característica a partir da dicotomia própria da modernidade, que nos é familiar também hoje, mas que estava sendo construída naquele momento. Como a presença dos caçadores na Antártica é efêmera e voltada intrinsecamente para a produção capitalista, talvez esse não seja o palco ideal para se avaliar questões ligadas à preeminência de um sobre outro. A primazia dos objetivos capitalistas já é premissa. Contudo, como já apontado, houve atividades ligadas ao prazer da vivência na Antártica, mesmo com as intensas jornadas de trabalho. Por outro lado, um forte aspecto do trabalho na região austral é o ‘tempo do mar’, com o qual, por vezes, negocia o tempo do capitalismo. Por exemplo, a tripulação, quando chegada ao destino, não tinha muitas tarefas a realizar: Aboard the ship, when cruising, the crew or seamen had little to do, once they were on the grounds, save to swing the yards, trim sail or perform other work necessary in navigating the vessel; for every ounce of strength and every spark of vitality was conserved to be brought into instant use when a whale was sighted and the chase commenced (Verril, 1916, p. 49).
Reconhece-se que o próprio tempo da produção não pode ser compreendido como homogêneo entre todos os tripulantes. Por exemplo, quando no mar, esses homens, baleeiros e foqueiros, eram também marinheiros, com ritmo de labuta, conhecimento e relações próprios dessa ocupação. Mas o trabalho do navio era variado. As diferentes funções desempenhadas – do gajeiro, do faxineiro, do cozinheiro, do copeiro, do mecânico, navegador, etc. – criam vivências do tempo distintas: de períodos distintos do dia, de intensidade do trabalho, de tédio, de cansaço, de preocupação, de imediatismo, de planejamento, de tranquilidade, de velocidade, de convivência humana ou de solidão, e assim por diante. Contudo, entende-se que, apesar das nuances, que são bastante relevantes na compreensão da percepção da passagem de tempo, há também algo de unificador no próprio ritmo de trabalho capitalista. Essas duas forças se somam e são ambas atuantes. 9 O acervo arqueológico resultante das escavações na Antártica é numeroso. Excetuando-se os artefatos provenientes das pesquisas ou expedições européias, hoje, os materiais coletados dos vários sítios das ilhas Shetland do Sul estão localizados em três locais: Conicet (Buenos Aires, Argentina), Leach/UFMG (Belo Horizonte, Brasil) e Museo Nacional de Historia Natural (Santiago, Chile). 10 Um dos fragmentos de madeira coletados pelo Leach/UFMG na costa sul da ilha Livingston foi identificado como proveniente da família Pinaceae, gênero Pinus sp (grupo hard pines), por processo macroscópico e microscópico de exame da anatomia do lenho, realizada em 2010 pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas - IPT. 8
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Figura 1. Instrumentos de trabalho: A) panela de ferro, sítio Centro Negro; B) ferramenta de ferro, sítio Punta Varadero; C) ferramenta de ferro, coleta de superfície; D) estacas de madeira, sítio Lima-Lima; E) metade de tampa de barril em madeira, sítio Centro Negro; F) garrote. Fonte: Projeto Paisagem em Branco, Zarankin e Senatore (2007).
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Figura 2. Objetos arqueológicos associados a atividades lúdicas ou de repouso: A) tabuleiro de jogo, sítio arqueológico Praia Sul 1 (ilha Livingston); B) cachimbo de caulim cujo fornilho apresenta decoração fitomorfa, pedúnculo em spur (primeira metade do séc. XIX), sítio Cora D (ilha Desolação). Fonte: Leach/ UFMG.
Refere-se aqui também às atribulações e aos obstáculos que se deve transpor para efetivar o tempo da produção, devido à natureza marítima da viagem e do trabalho: as longas distâncias que os caçadores deveriam cruzar a bordo do navio, sujeitos às limitações materiais da carga carregada; as demoras em se aportar em alguma cidade; o mau tempo e as más condições de navegação; as atividades de manutenção do navio e atividades portuárias ou os momentos de espera pela presa. Nesse sentido, se a navegação marítima permite um trânsito rápido, sem eventos inesperados, as funções internas do navio se dão com certa homogeneidade, sem imprevistos e surpresas. Caso contrário, uma tempestade e um mar bravo podem suspender uma série de atividades, demandando prontidão e a interrupção do decorrer cotidiano. São elementos que posicionam o navio no mundo, definem sua aceleração, sua velocidade, sua previsão de chegada, a duração da viagem como um todo e as atividades a serem desempenhadas. E, quando acampados, os marinheiros-caçadores, findo o ritmo capitalista, estavam sujeitos à disponibilidade do navio e à permissão do mar para recolhê-los. Os foqueiros aguardavam sua coleta, nos acampamentos que construíam, em uma espera que poderia durar anos (Landis, 2001). Nesse caso hipotético (mas provavelmente
frequente) de pausa forçada do trabalho, o aqui dito ‘tempo do mar’ abre potencialmente espaço para momentos de lazer, mas também de expectativas e incertezas. Pensa-se que o tempo despendido em atividades laborais e no lazer, com a constante resolução do ‘tempo do mar’, marcam o compasso do tempo na Antártica, através das atividades desempenhadas.
DIREÇÃO E MENSURAÇÃO DO TEMPO: EXPERIMENTAÇÃO E MEMÓRIA É tradicional distinguir duas compreensões ocidentais de tempo, comumente tidas como opostas e dicotômicas. Uma delas ressalta que o tempo é externo ao ser humano, pertencente ao mundo natural e apreensível por meio da experiência, do intelecto e da representação. Assim concebido, é absoluto, linear, mensurável, regular e homogêneo (Jaguaribe, 2003; Piettre, 1997). A consolidação do tempo físico, absoluto, linear e não humano como concepção preeminente na modernidade culmina de vários processos (Le Goff, 2005; Thompson, 1967), entre eles, a ‘secularização do pensamento’ (através da qual o tempo se distancia do âmbito divino e se racionaliza como fenômeno da natureza, passível de compreensão e estudo); as ‘transformações socioeconômicas’ (advindas
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da Revolução Industrial e do estabelecimento das novas relações socioeconômicas capitalistas, nas quais o tempo se iguala ao lucro); os ‘desenvolvimentos técnicos’ (da invenção do relógio, por exemplo); e a ‘cientificização do conhecimento’ (de forma que o tempo mensurável e não humano permite a regularidade e o controle de experimentos) (Hissa, 2016). O relógio é um dos seus principais símbolos e marcadores. Nas coleções arqueológicas recuperadas da Antártica não foram encontrados relógios individuais de bolso. É provável que esse marcador de tempo linear e absoluto tenha sido pouco usado, especialmente quando em terra, entre os grupos acampados mais subalternos. Esses relógios, entretanto, muito provavelmente não foram ausentes na Antártica (ou a bordo dos navios), dadas, por exemplo, as marcações de tempo absoluto feitas nos diários. Um relógio de bolso, digamos, pode ter existido na Antártica, com o capitão, a bordo do navio, ou mesmo na praia, carregado pelo shipmate encarregado do grupo desembarcado e da sua produção11. Além disso, é certo que a noção de tempo mecânico, absoluto, progressista e capitalista, que estava sendo construída mundialmente, foi carregada pelos caçadores e desempenhou um papel importante na vivência daqueles locais. Os registros de bordo, por vezes datados e indicando a hora, tal como o trabalho intenso e os altos lucros obtidos, indicam a existência na Antártica desse contexto capitalista e da concepção absoluta de tempo. Ainda, Verrill12 (1916) descreve os avisos sonoros nos navios baleeiros, que marcavam o início de cada turno de trabalho, com quatro horas cada. Outra concepção pretende que o tempo – tal como o próprio mundo – é existente apenas através do olhar
humano e é compreendido a partir das sensibilidades subjetivas. Desse modo, é relativo, cíclico, irregular, heterogêneo e não pode ser mensurado (Jaguaribe, 2003; Piettre, 1997). Na abordagem da fenomenologia de Husserl (1973), esse é o tempo da experiência, da consciência, no qual a memória desempenha grande papel. O tempo, tal como descrito pelo autor, se vale de noções de passado, presente e futuro por meio da memória, do agora e das expectativas (‘fluxo do vivido’). Trata-se de uma constante coexistência de tempos, comumente tidos como distantes ou apartados no tempo linear. Essa contínua referência multitemporal da consciência constitui o que Husserl (2008) chama de retenções e protensões, que são apropriações de tempo — respectivamente, anterior e posterior — associadas ao tempo pontual original (Husserl, 1973, 1992). O contexto que essa continuidade oferece permite a sensação de ‘estar no tempo’ (being-in-time), como uma imersão, o que significa a sensação confluente das retenções e protensões que situam o ser e sua noção de realidade. O melhor exemplo oferecido pelo autor para esclarecer esse conceito é a maneira como apreendemos e experimentamos o som: [...] o som dura; temos aí a unidade evidentemente dada do som e da sua distensão temporal com as suas fases temporais, a fase do agora e as fases do passado; por outro lado, se reflectirmos, o fenómeno da duração do som, que é em si algo de temporal, tem a sua respectiva fase do agora e as suas fases do passado. E numa fase seleccionada do agora do fenómeno não só é objecto o agora do próprio som, mas agora o som é apenas um ponto numa duração sonora. [...] as fases passadas da duração do som são agora ainda objecto e, no entanto, não estão inclusamente contidas no ponto do agora do fenómeno (Husserl, 2008, p. 29-30).
Nesse sentido, a ausência dos relógios de bolso no registro arqueológico pode se explicar pelo simples fato de que os relógios, no início do século XIX ou mesmo no final desse século, quando se popularizaram, ainda eram artigos especiais. Isso significaria também que não foram facilmente considerados inutilizados ou esquecidos. 12 Toma-se aqui a liberdade de trabalhar com relatos de baleeiros, pela proximidade da natureza das atividades desempenhadas e pela proximidade cronológica: “Unlike the merchant sailors to whom eight-bell watches are almost sacred, the whalemen commenced them watches at six bells, and in this respect they differed from all other seamen. Thus the first watch was from 7 until 11 P.M.; the middle watch was from 11 until 3, and the last watch was from 3 until 7 A.M. Moreover, half-hours were never struck on a whaling vessel’s bell, only the even hours being sounded, and one, thre,e, five or seven strokes never rang across the waters from a whaleship” (Verrill, 1916, p. 82-83). 11
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Essa concepção de tempo remete à figura do canto dos marinheiros, uma forma alternativa de se ritmar e coordenar as atividades coletivas, o pensamento ou o trabalho. É célebre a imagem de marinheiros envolvidos em canções, enquanto realizando alguma tarefa coletiva a bordo (no inglês, sea shanty). É um marcador de tempo não absoluto, no que confere compasso a um evento. Outro exemplo de marcador de tempo não absoluto é o tempo marcado pela queima de velas. Ainda que o verão no extremo polo sul não ofereça noites, o verão nas ilhas Shetland do Sul apresenta algumas poucas horas de escuridão. As velas, além de desempenhar a função de iluminação e até mesmo de oferecer algum calor ao ambiente fechado, marcam a passagem de tempo. Certamente não oferecem a medição direta dos relógios-vela13, mas há uma constância na queima da vela, que permite a sua utilização como marco temporal. Na medida do seu consumo, apresenta ritmo e compasso. As velas identificadas arqueologicamente podem ter marcado indiretamente a duração de um evento, de momentos, de conversas e ilustrado a passagem de tempo. Mas a queima da vela é mais que uma marcação do tempo físico, pois apresenta outras conotações, de contemplação, e, no caso do seu uso na Antártica, possivelmente também de reunião. O ambiente Antártico das ilhas Shetland do Sul é marcado por ventos fortes, o que dificulta o uso das velas em ambientes abertos. Portanto, essas velas foram mais provavelmente utilizadas dentro dos recintos construídos pelos caçadores. E esses recintos eram pequenos, alguns poucos metros quadrados (Zarankin; Senatore, 2007). Nesse contexto, a vela apresenta conotação introspectiva, luz baixa, em local pequeno e cheio de pessoas, onde o grupo já está isolado. Esse pode ter sido um momento
onde o tempo antártico se preenche de proximidade entre as pessoas, da troca de subjetividades, de afastamento frente o tempo da produção. O tempo mecânico e sucinto do relógio é sobreposto pelo tempo impreciso, amplo e introspectivo da vela. Considerando as definições husserlianas, ressalta-se especialmente a experimentação de vários lugares por parte dos marinheiros, desde a metrópole, passando por vários portos no caminho, entremeados pela presença somente no navio, até a chegada nas ilhas antárticas, sequência sucedida pelo trajeto inverso de retorno. O ciclo sazonal antártico, por exemplo, não é percebido na íntegra. O período invernal não é sentido na Antártica, mas no país de origem, a menos que algum imprevisto tenha impedido o regresso de um dado grupo. Como ‘nômades do mar’ (Basberg; Headland, 2008), essas experiências criam, na memória, uma rede de espaços interligados. Isso fica expresso em alguns trechos dos diários de bordo. Em meio à descrição numeral, sequencial e linear de eventos e impressões, aparecem subjetivações de concepções menos lineares e irregulares de tempo, como em “Com esperança de uma viagem curta, içamos velas” e “O dia se finda em doce saudade de casa”14 (trechos de um diário de bordo). O tempo imanente de Husserl (1973, 2008) fica aqui manifesto, dotado de uma ordenação própria da consciência. No primeiro trecho, o presente se enche de futuro, com a projeção do que se deseja do devir. O segundo trecho, por sua vez, volta-se contemplativamente para o passado. Esses fragmentos iluminam uma autoanálise do agora e uma projeção das preferências construídas no presente, tanto para o passado como para o futuro. A descrição linear de tempo é interrompida para dar lugar
Usadas no século XVIII, e por séculos antes, os relógios-vela (candle-clocks) apresentam marcações de horas e, ao passo que são queimadas, revelam a duração já consumida. 14 “Saturday on board. Lying at anchor, Bedford Harbor below Palmer’s Is. 5 fathoms of Water. First part of these 24 hours strong Breezes from the NW, the weather fine. Most of the crew on Board employed in Ship’s Duty. Mid part (of the day) light airs from the N.W. Latt. part a fine Breeze from the N. At 5 o’clock Broke ground and Bid a Due to the Land, We all so much admire. But with the hopes of a Short Voyage, We set all sail. At 9 o’clock the pilot left us. Steered out SW. At 11 o’clock the wind shifted to the East from that time to the SE, we steering to the SW. At 12 o’clock to Gay Head light House. Bore E 1-2 N. Dist. 8 miles. The No Mans Land Bore ESE. Saw number of vessels steering different courses. So Ends this day with Sweet Fealings of Home.” (Verrill, 1916, p. 175-176). 13
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a uma reflexão relacional sobre a condição do momento atual, por uma propensão dos ‘agoras’ que virão e uma retenção de momentos passados. Nesse sentido, o arcabouço teórico aqui apropriado de Husserl (1973, 2008) é útil para pensar o movimento entre passado, presente e futuro que se dá na consciência, evidenciando como o fluxo do vivido antártico é, também, feito de tempo relacional e integra distintos espaços. Assim, tem-se que a mensuração absoluta de tempo própria do capitalismo se fez presente nas marcações dos diários de bordo e na alta produção. Por outro lado, inferiu-se a possibilidade de marcadores não absolutos de tempo, para construir uma imagem do que poderia ter sido o ritmo de algumas experiências. Ainda, o processo de incorporação dos espaços e de eventos na vivência humana se trata também de incorporá-la, eterna ou atemporal, na nossa reminiscência, em sentido pessoal, considerando que a memória é, segundo Husserl (1929), essencialmente temporal. Nesse sentido, a presença de vários locais na memória quando, na Antártica, se fez presente nas alusões ao lar, registradas nos diários. A partir dessa reflexão, notase a presença dos dois tipos ideais de tempo, o absoluto e o relacional, na própria experimentação da Antártica.
partir de uma breve digressão à minha experiência pessoal na ilha Livingston, Península Byers, visando a levantar possibilidades acerca da forma que a Antártica é inserida na memória e na vivência, para, posteriormente, apresentar e tratar elementos da materialidade antártica do passado. No ano de 2010, como parte do registro da minha estadia na praia sul da referida península, tirei várias fotografias, a partir de um mesmo ponto, em um mesmo quadro (Figura 3). À direita da foto, na linha do horizonte, há uma rocha pontiaguda, que, diariamente, me servia de referência de enquadramento, já que eu não dispunha de tripé fixo. Enquadram-se: horizonte, céu e chão. Eventualmente, nuvens, pedra, neve, água, ave, musgo, cores. Quem sabe, também, precipitação ainda líquida. Fotografar o frio, o vento gélido, a quietude ou dias mais quentes e aconchegantes: subentende-se o que é experimentado, complementando o que está visível no interior do quadro. Ao observar atentamente cada fotografia, tal como o conjunto das imagens, é possível perceber a recorrência persistente de uma ou outra pedra, da linha do horizonte, das montanhas ao fundo. Mas notam-se, também, variações de iluminação causadas pelo curso de um dia: manhã, tarde e noite. Notam-se as mudanças nas condições do tempo climático, que pode causar nevascas, acúmulos d’água em seu estado líquido ou exposição da vegetação rasteira. O sol, que às vezes nasce em forte tom amarelo, colore a vegetação, o marrom do sedimento e a cor do céu. Eventualmente, aparecem algumas cores vivas: um verde, um azul. Noutro dia, a paisagem está coberta de branco, com as nuvens escondendo e homogeneizando as cores trazidas pelo sol, em um brilho opaco. São mudanças de iluminação, de cor, de presenças e ausências de corpos (d’água, neve, nuvens e, eventualmente, pessoas e animais). Varia a quantidade de elementos e a distribuição em que aparecem. Muda a sensação que suscitam de temperatura ou de preenchimento do espaço. Demonstram também qual o movimento captado visualmente nas paisagens antárticas vivenciadas, que vai além de cor e iluminação, para inferir, também, sensações sinestésicas ou psicológicas.
MATERIALIDADE E PERCEPÇÃO: DOS ESPAÇOS E DOS OBJETOS MÓVEIS Falou-se até o momento da relação entre o compasso do tempo e as atividades desempenhadas. As atividades capitalistas marcariam um ritmo acelerado, porém atenuado por momentos de lazer e diversificado pelas nuances entre as atividades específicas de cada função que desempenham os marinheiros. Ponderou-se também sobre a presença de distintas formas de mensuração (e de experiência) do tempo, absolutas e relacionais, que coexistiram na Antártica, unindo passado, presente e futuro na memória. Agora, esta seção do artigo trará para a discussão a relação entre materialidade antártica (espaço e objetos móveis) e a percepção que temos dela, na sua associação com o tempo. Este tópico inicia a
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Figura 3. Paisagem antártica. Fotos: Sarah Hissa, 2011.
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Tilley (1994) pondera sobre a impossibilidade de observar a paisagem e inferir diretamente elementos específicos do passado, dadas as transformações físicas que ela sofreu desde os tempos pré-históricos. A paisagem antártica certamente não sofreu tantas transformações quanto outros lugares, como aqueles hoje urbanizados, por exemplo. Contudo, o argumento ainda procede para o caso em discussão, no que nossas premissas não são equivalentes às dos marinheiroscaçadores. Como em Tilley (1994), também não se tem aqui pretensões nomotéticas, tal como não se trata de transpor e equivaler percepções da Antártica ocasionadas em momentos distintos. Contudo, aponta-se aqui, por meio dessa digressão, a necessidade de acostumar o olhar e conhecimento dos espaços, a partir da perspectiva
oferecida no transcurso de ‘habitar’ (to dwell) em um local (Ingold, 2000). Nesse caso, é importante não tomar como estaticidade o que poderá ser relativa menor velocidade. Assim, as fotografias, muito semelhantes, na verdade recortam fragmentos distintos da Antártica. E, ao passo que ela é incorporada nas memórias e na rotina, a Antártica homogênea e inerte – anunciada na introdução deste artigo – deixa de ser a única perspectiva que se tem. Com essas questões em mente, pensa-se nos caçadores de foca do século XIX. Esses homens do mar também vivenciavam uma Antártica hostil e distinta do que haviam experimentado até então. A ilha Livingston (Figura 4), tal como o restante do arquipélago Shetlands do Sul do qual faz parte, é de formação vulcânica/magmática, sobre o Bransfield Basin/arco vulcânico. Apresenta
Figura 4. Mapa de localização da ilha Livingston, arquipélago Shetland do Sul, Antártica, e distribuição dos sítios arqueológicos já identificados pelo Projeto Paisagens em Branco. Autoria: Letícia Hissa, 2011.
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sequências de rochas sedimentares e vulcânicas, área montanhosa de altas altitudes coberta por calota de gelo a leste, com a península Byers a oeste, onde se desenvolve a pesquisa do Leach/UFMG, em planície de baixas altitudes e sem gelo. A península é composta por basaltos friáveis, com arenitos e conglomerados. Neve e gelo aderem aos pontos mais altos do relevo ao longo do ano e a neve ocupa canais erosionais durante o verão. Contudo, a península não apresenta calota de gelo. O material depositado provém principalmente da formação vulcânica recente que forma o interior da península, em praias soerguidas de cascalhos e aluviões (Alfaro et al., 2010; Hobbs, 1968). Os marinheiros-caçadores, alocados nas praias da península Byers em pequenos grupos, construíam acampamentos aproveitando pequenos afloramentos rochosos, com a construção de paredes adicionais de blocos desprendidos ainda angulosos, para se proteger do frio e do vento. As estruturas desses acampamentos periódicos, durante o verão austral, serviam não somente como morada (recintos maiores), mas também era onde armazenavam os produtos da estadia (anexos). Vértebras de baleia compunham parte do mobiliário e costelas de cetáceos faziam o papel de vigas de sustentação de uma cobertura superior baixa (Zarankin; Senatore, 2007). Os espaços são pequenos, circunscrevendo algumas poucas pessoas. São o cenário no qual ocorriam tanto as atividades de lazer quanto parte das atividades de trabalho e sobrevivência, atestado pela presença de elementos que remetem à defesa, construção do abrigo e armazenamento do produto. Era neles que se dormia, que se protegia do frio, que se comia, que se jogava damas e que se fumava, sob a luz de velas (Figura 5). Fazia parte da alimentação dos marinheiros-caçadores, não somente a carne dos pinípedes capturados na própria praia, cujos ossos remanescentes exibem marcas de corte, mas também carne de vaca e porco, levados no navio para consumo também em terra (Muñoz, 2000). Garrafas de vidro, que teriam contido vinho, sidra ou cerveja, também foram encontradas na península (Moreno, 1999).
Pensando na proveniência dos objetos utilizados (metrópole x Antártica), vê-se que uma característica marcante da materialidade usada pelos marinheiroscaçadores é a combinação de itens transportados do ocidente moderno com a materialidade de origem antártica. A lista de itens com os quais usualmente os navios já partiam do porto incluía equipamentos de navegação, para o processamento da caça e para a cozinha, além de peças para reparo de maquinário, alimentos, itens de lazer e de uso pessoal, como cachimbos, tabaco, sabonetes, sapatos, roupas etc. (Verrill, 1916). Esses itens eram destinados, em sua maioria, para uso interno (havia também algum comércio ou trocas eventuais em portos ao longo do trajeto). A materialidade da metrópole poderá ter oferecido conforto daquilo que é familiar à memória. Por outro lado, a apropriação da materialidade local poderá estar estreitamente relacionada à apropriação do próprio local. É necessário ter conhecimento prévio dos recursos locais, para planejar o carregamento. Mais que isso, ao construir o abrigo com blocos de rocha antárticos, ao comer animais antárticos, ao dormir nos abrigos, cheirar os fortes odores e ouvir o som que os elefantes marinhos emitem, sentir o frio local, no próprio movimento de vivenciar a Antártica, ela passa a integrar, também, a memória, construindo uma relação identitária de incorporação do lugar, como sugerido na discussão acerca da Figura 3. Penso que Husserl (1929, 1973, 1992, 2008), mais que Heidegger (2006) ou Merleau-Ponty (2006), entende o tempo como parte imanente do sujeito. Se a percepção de tempo se dá na consciência, tal como quer Husserl (1929, 1973, 1992, 2008), ou externo ao ser humano onde ele, encarnado, habita, como quer Merleau-Ponty (2006), é somente nesse momento, de sincronização com a Antártica e a partir da materialidade, é que se vive um tempo verdadeiramente antártico, que se deixa fluir em si o ritmo lento mas que se movimenta, das materialidades mínimas, dos sons mínimos porém únicos, de dias extensos e noites curtas, da criação gradual de uma rotina, do transcurso de ‘habitar’ o local (Ingold, 2000).
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Figura 5. Acampamentos de marinheiros-caçadores: A) acampamento foqueiro; B) sítio arqueológico Punta Varadeiro, Recinto Maior, ilha Livingston península Byers; C) planta baixa do mesmo sítio. Fonte: (A) Stackpole (1955, p. 6); Foto: (B) Sarah Hissa, 2011; Imagem: (C) Leach/ UFMG.
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Para além da paisagem antártica, em sentido fenomenológico e como elemento material da memória, deve-se mencionar a cultura material móvel, os pequenos objetos. Thomas (2008) ressalta a escassez de estudos arqueológicos de objetos portáteis a partir da fenomenologia, que se voltou especialmente para a paisagem e estruturas. Para discutir essa lacuna, aventa-se a seguir outros pontos de discussão, pensando na durabilidade e decadência dos objetos, tal como sugere Lucas (2006). As coleções antárticas de artefatos arqueológicos são bastante distintas daquelas provenientes de ocupações domésticas urbanas e modernas do mesmo século XIX. Pode-se também dizer que são coleções similares a ocupações domésticas, referentes a grupos de menos posses. Geralmente, ocupações domésticas abastadas, em contextos urbanos do século XIX, incluiriam objetos que refletem ostentação de modernidade e status, como, por exemplo, louças de mesa em porcelana, ironstone ou whiteware inglesa, nos mais variados transfer prints, garrafas de perfume em vidros com decoração em relevo e marcas de fabricante, bonecos e estatuetas de porcelana, moedas, dobradiças de porta e afins, botões ornamentados, broches, fivelas de cinto, dedais, pentes e escovas de dente em osso entalhado, para mencionar algumas possibilidades. A relação capitalista entre noções de status social, as elites econômicas e sociais e sua expressão na cultura material busca, deliberadamente, o novo, em últimas opções de estilo e inovação. É o tempo da produção, materializado nos objetos do cotidiano, da construção e afirmação da noção de progresso através do material. Aceleram-se as preferências, as modas, os gostos, os descartes, as necessidades. Privilegiase o inédito, que se renova constantemente em detrimento do antigo e do durável. Há uma relação estreita entre padrões de consumo, materialidade e percepção temporal (Lucas, 2005, 2006). Alguns objetos de distinção social, exibindo claras marcas de temporalidade de estilo, existem na coleção antártica, porém são raros e desviantes. E, de fato, nada soa mais estrangeiro que esses objetos estarem presentes
na Antártica, onde as condições extremas e hostis, que suscitam preocupações severas acerca de segurança e sobrevivência, são alheias à imagem de uma coleção material em grande número de objetos, de distinção social ou luxo, alto custo, grandes ou desajeitadas, ou, ainda, frágeis. Como contraponto, os objetos cerâmicos em grés são mais duráveis que as louças e mais presentes na Antártica. Suas paredes são mais espessas e mais resistentes. As garrafas de vidro, relativamente abundantes na Antártica, não são duráveis como os recipientes em grés, desafiando essa correlação. Contudo, a decoração que ambas as categorias materiais ostentam é mais simples e menos suscetível a flutuações temporais de gosto, estilo e moda (marcas materiais da flutuação do tempo histórico moderno), ou, em outras palavras, ‘durabilidade social’. Evidentemente, questões de moda não fazem parte da preocupação de um habitante desse local. Os muitíssimo poucos fragmentos de louças históricas encontradas arqueologicamente na Antártica revelam mais provavelmente o seu uso mínimo nos acampamentos de caçadores do que um cuidado extremo com essas peças durante seu uso em terra. Do ponto de vista da percepção dos marinheiros-caçadores, a maior utilização de objetos vulgares permite pensar as ocupações antárticas como desarticuladas da noção capitalista de consumo de objetos crescentemente diversificados e hierarquizados, como já apontado neste artigo e em Zarankin e Senatore (2007). Isso reforça como, na Antártica, troca-se o efêmero pelo durável. Por outro lado, ressalta-se que os recipientes de grés se referem a transporte/armazenamento de grandes quantidades de líquidos, inclusive para servir, enquanto que xícaras ou pratos de louça referem-se ao consumo individual de alimentos. A predominância é para recipientes de uso coletivo – tanto para armazenamento e quanto para servir – do que de consumo individual. Esse ponto foi associado em Zarankin e Senatore (2007) à adoção, na Antártica, de práticas de consumo menos modernizadas que na metrópole. Contudo, conclui-
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se também que não somente o caráter operário dos assentamentos marca a materialidade, mas também o caráter temporário dos assentamentos e da presença humana na Antártica. Ao invés de objetos de consumo de alimentos em porcelana e faianças, temos objetos em grés, de mais baixo custo que as faianças finas e com maior durabilidade física frente a impactos mecânicos (no caso do grés) e maior durabilidade social dos objetos (como grés e vidros) (Figura 6).
Para reforçar a noção de que se buscava retirar o máximo de tempo de uso de objetos, prolongando-o, ressalta-se o reparo a peças de roupa e calçados (Salerno, 2006). A reutilização e o reparo de itens, como roupas e calçados, ou como o próprio acampamento, demonstram não somente uma potencialmente pequena quantidade de matéria-prima ou produtos armazenados, como também uma noção de durabilidade, estendida pela natureza isolada do local.
Figura 6. Recipientes para o consumo de alimentos: A) fragmento de xícara de chá de louça em earthenware, transfer print azul embaixo do esmalte, associado a pinturas à mão (na borda da xícara), sítio Rugged 1; B) louça pintada à mão, em cor azul, sítio Punta Varadero; C) fragmentos de recipientes em grés, sítio Cuatro Pircas; D) fragmentos de recipente em grés, sítio Pencas 3. Fonte: Leach/ UFMG.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS Para atar algumas ideias, volta-se à imagem de uma Antártica não humana, inerte e sem vida. Ela equivale à imagem platônica do que é eterno, onde o tempo, que invariavelmente degenera o mundo, não transcorre (Hissa, 2016). Discordando dessa imagem de Antártica, buscou-se demonstrar as nuances sutis do movimento do tempo antártico, que transforma as paisagens. Ressaltou-se que houve ocupações humanas no continente, entre elas a dos marinheiros-caçadores, todas marcadas pelo compasso de um movimento pendular, entre o local de origem (do mundo moderno), que permanece sempre na memória e nos planos futuros, e o local de estadia temporária (mundo antártico), presente da concretude efetiva. Concluiu-se que, apesar do seu caráter temporário, a presença humana mínima nos espaços antárticos não é, contudo, vazia de significados ou de experiências. Tampouco se deram em um lugar estático, com o qual não se interage, palco inerte de acontecimentos. Carregando consigo o mundo moderno, porém ressignificando e incorporando os espaços antárticos, sugere-se que os marinheiros-caçadores do século XIX teriam experimentado esse continente a partir da intensidade do ritmo capitalista de trabalho, atenuado por momentos de lazer e introspecção, tanto individuais quanto coletivos, como a bebida, os jogos e o fumo. Obstáculos e perigos que atravessam teriam oferecido momentos de pausa e de tensão, como o aguardo pelo resgate. Ainda, a experiência teria sido ritmada também pelas funções específicas (do gajeiro, do faxineiro, do cozinheiro, do copeiro, do mecânico, do navegador etc.), embarcada ou em terra. No tocante à mensuração e à direção do tempo, levantou-se a coexistência de elementos absolutos e não absolutos, lineares e relacionais, observados nos textos dos diários de bordo. Observa-se, sobre o tempo relacional, que as distâncias percorridas para atingir o continente gélido implicam em constantes retornos ao passado (da mesma maneira que perdura o som, também perduram as lembranças da vida na metrópole) e projeções para o futuro. Sobre a materialidade da vivência antártica, volta-se
para a escolha do durável, em oposição ao frágil, inovador e/ou moderno, sugerida aqui na opção pelos recipientes em grés, por exemplo. O caráter temporário da presença humana na Antártica marca também essas escolhas. Em meio a todos esses elementos das experiências dos marinheiros-caçadores na Antártica, ressalta-se alguns: as pausas preenchidas por atividades de lazer; as interrupções ao trabalho, colocadas pelos obstáculos; o eventual aguardo pelo resgate; a mensuração não absoluta do tempo, presente nos cantos dos marinheiros e na queima das velas; o tempo relacional, latente na esperança pelo retorno ao lar; e a escolha pelo objeto durável. Esses podem ter sido alguns dos momentos de sincronização ou mesmo de uma aproximação com o compasso lento, mas variável, da Antártica.
AGRADECIMENTOS A pesquisa de mestrado que deu origem a este artigo recebeu financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (Fapemig) e CNPq, através de bolsas de estudo, e o PROANTAR e a Marinha Brasileira ofereceram a logística das viagens antárticas através do Leach/UFMG. Agradeço ao prof. Andrés Zarankin, pela orientação, e ao prof. Ruben Stehberg e a prof.ª Maria Ximena Senatore, pelo acesso às bases de dados digitais das coleções arqueológicas do Chile e da Argentina, respectivamente. Sou grata também a Letícia Hissa, pela feitura do mapa aqui apresentado, e a Anaeli Almeida; aos pareceristas anônimos e editores do Boletim, pelos comentários sobre o texto. REFERÊNCIAS ALFARO, p.; LÓPEZ-MARTINEZ, j.; MAESTRO, A.; GALINDOZALDÍVAR, J.; DURÁN-VALSERO, J. J.; CUCHÍ, J. A. recent tectonic and morph structural evolution of Byers Peninsula (Antarctica): insight into the development of the South Shetland Islands and Bransfield Basin. Journal of Iberian Geology, v. 36, n. 1, p. 21-38, 2010. Basberg, B. L.; Headland, R. K. The 19th century Antarctic sealing industry: sources, data and economic significance. Polar research, St. Petersburg, 2008. Available in: <http://papers.ssrn. com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1553751>. Access in: 31 July 2016.
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Tempo e Espaço Guarani: um estudo acerca da ocupação, cronologia e dinâmica de movimentação pré-colonial na Bacia do Rio Taquari/Antas, Rio Grande do Sul, Brasil Guarani Space and Time: a study about occupation, chronology and pre-colonial migration dynamics in the Taquari/Antas River Basin, Rio Grande do Sul, Brazil Fernanda SchneiderI, Sidnei WolfI, Marcos Rogério KreutzI, Neli Teresinha Galarce MachadoI ICentro Universitário Univates. Lajeado, Rio Grande do Sul, Brasil
Resumo: Neste artigo foram analisadas as relações espaciais e temporais da ocupação Guarani pré-colonial na Bacia do Rio Taquari/Antas a partir da delimitação do perímetro da ocupação e seu estabelecimento na paisagem, da cronologia intrasítio e regional e de discussões referentes às movimentações espaciais. A partir dos resultados foram mapeados 121 sítios Guarani na porção centro-sul da Bacia, em um perímetro de várzeas que circundou as terras altas do Planalto das Araucárias, demonstrando tratar-se de uma ocupação regional longa, entre os séculos XIV e XVIII. O estabelecimento teria ocorrido a partir da conexão entre o Rio Jacuí e o Rio Taquari/Antas, em uma expansão compulsória do sul para o norte, observando-se assentamentos contemporâneos em todo o perímetro e sítios com fatores de alta permanência. Tal dinâmica justificar-se-ia a partir de um controle consciente do ambiente, permitindo, por um lado, a manutenção das aldeias, e, por outro, o crescimento demográfico e novas expansões. Além da motivação demográfica, inferiu-se a possibilidade de que os limites da ocupação Guarani na região tenham sido estabelecidos de forma igualmente consciente a partir de um pulso de expansão inicial e posterior estabilidade, configurando-se a ocupação compulsória como uma estratégia de manutenção política do território. Palavras-chave: Arqueologia Guarani. Terras baixas da América do Sul. Bacia do Rio Taquari/Antas. Análise espacial. Cronologia. Abstract: This study examines spatial and temporal relations of pre-colonial Guarani occupation in the Taquari/Antas River Basin.The perimeter of occupation and itsestablishment inthe landscapeare discussedas well as local and regional chronology and migrations. The data wereused to map 121 Guarani sites in the center-south portion of the river basin, in a perimeter of lowlands surrounding the highlands of the Plateau of the Araucarias.Results show that therewas a long regional occupation between the 14th and 18th centuries. The Guarani settlementsin this region occurred at the confluenceof the Jacuí and Taquari/Antasrivers, in a forcedexpansion from south to north, where contemporary settlements can be observed throughout the perimeter, and sites show evidence of longpermanence. Such dynamics can be understood as forms ofenvironmentmanagement, enabling village maintenance , allowing demographic growth and furtherexpansion. Apart fromdemographic motivation, the regional limits of the Guarani occupation were probably defined consciously, after an initial expansion impulse and ensuingstability, which must have defined forcedoccupation as a strategy of territorial politics. Keywords: Guaraní archaeology. Lowlands of South America. Taquari/Antas River Basin. Spatial analysis. Chronology.
SCHNEIDER, Fernanda; WOLF, Sidnei; KREUTZ, Marcos Rogério; GALARCE MACHADO, Neli Teresinha.Tempo e Espaço Guarani: um estudo acerca da ocupação, cronologia e dinâmica de movimentação pré-colonial na Bacia do Rio Taquari/Antas, Rio Grande do Sul, Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 12, n. 1, p. 31-56, jan.-abr. 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/ 1981.81222017000100003. Autora para correspondência: Fernanda Schneider. Centro Universitário Univates, Setor de Arqueologia. Rua Avelino Tallini, Bairro Universitário. Lajeado, Rio Grande do Sul, Brasil. CEP 95900-000 (fernandaschneider@universo.univates.br). Recebido em 10/05/2016 Aprovado em 01/08/2016
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INTRODUÇÃO Durante a colonização europeia no leste da América do Sul, observou-se que línguas estreitamente relacionadas eram faladas ao longo de um extenso espaço geográfico. Pertencentes ao tronco linguístico Tupi, eram partilhadas do litoral Atlântico até a Bacia do Rio da Prata, cobrindo uma área de mais de seis mil quilômetros. No sentido Leste-Oeste encontravam-se, não necessariamente de forma constante, do Atlântico até a base dos Andes, ocupando trechos do curso do Amazonas até seus formadores, envolvendo uma distância de quase três mil e quinhentos quilômetros (Brochado, 1989). O tronco Tupi reúne cerca de sessenta línguas, divididas em 10 famílias linguísticas: Awetí, Mawé, Mundurukú, Jurúna, Arikém, Tuparí, Ramaráma, Mondé, Puruborá e Tupí-Guaraní (Rodrigues, 2011). Dessas, as nove primeiras encontram-se distribuídas em uma área relativamente reduzida entre os rios Madeira e o Xingu e o sul do Rio Amazonas, enquanto que, no restante do Brasil, nordeste da Argentina, sul do Paraguai, Uruguai, leste da Bolívia, leste do Peru, Colômbia, Venezuela e Guiana Francesa falam-se línguas muito semelhantes entre si, associadas então à família TupíGuaraní, da qual a língua Tupinambá e a Guaraní fazem parte (La Salvia; Brochado, 1989). Correspondendo em grande parte aos limites territoriais do contorno linguístico Tupi, mas especialmente Tupí-Guaraní, centenas de sítios arqueológicos com cerâmicas policrômicas aparentadas (pintura em vermelho, preto e branco) foram evidenciados (Brochado, 1984; Noelli, 1999). Com base em observações etnográficas e na linguística histórica, das primeiras décadas da colonização até a década de 1950, viajantes e naturalistas estabeleceram uma forte relação entre essas cerâmicas e os falantes do Tupí-Guaraní. Já na década de 1960, limitando a relação direta entre língua e registro arqueológico, o Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (PRONAPA), buscou estabelecer características perceptíveis no registro arqueológico, descoladas das informações etnográficas e linguísticas. Dessa forma, os sítios superficiais com cerâmica apresentando
pintura policrômica e técnicas plásticas de acabamento (alisado, corrugado, ungulado, escovado) ou superfícies apenas engobadas; assim como sítios com enterramentos secundários em urnas, presença de machados de pedra polida e adornos tembetá, foram associados às populações portadoras de uma ‘tradição tecnológica ceramista’ nomeada de Tradição Tupiguarani (Chmyz, 1969), sem o uso do hífen, para diferenciar a denominação Tupí-Guaraní, com hífen, referente à família linguística (Scatamacchia, 1990). Apesar dos esforços do PRONAPA, essa dissociação teórica passou, ao longo dos anos, a dar lugar novamente a uma conexão bastante imediata entre as cerâmicas arqueológicas da Tradição Tupiguarani e os falantes do Tupí-Guaraní (Noelli, 1993). Já durante a década de 1970, como ressalta Corrêa (2014), Meggers e Evans (1973), nomes responsáveis pela execução do PRONAPA, atualizaram suas teorias sobre a origem Tupiguarani com a compilação de dados etnográficos de Martius (1867) e Metráux (1927) e com dados linguísticos de Rodrigues (1964). Foi Brochado (1984), entretanto, quem reformulou a utilização conjugada de Etnografia, Linguística e Arqueologia para o conhecimento do Guarani arqueológico. O autor propôs que as cerâmicas consideradas pertencentes à Tradição Tupiguarani fariam parte, na verdade, da Tradição Policroma da Amazônia e, a partir de uma separação espaço-temporal ocasionada pelo aumento demográfico no interior da região amazônica, a Tradição teria se dividido em duas subtradições cerâmicas distintas, a Guarani e a Tupinambá, separadas ainda por línguas diferentes. Assim, os sítios com cerâmica policrômica que se localizassem na porção meridional do território Tupí-Guaraní pertenceriam aos falantes do Guaraní, enquanto que a cultura material evidenciada na porção norte estaria relacionada aos falantes do Tupinambá. Embora a relação entre língua, dados etnográficos e cultura material tenha se tornado uma forma comum de interpretação na Arqueologia Guarani, ainda hoje não encontra consenso. Em crítica a esse modelo, especialmente com relação à associação direta entre fontes documentais e dados arqueológicos, Soares (2001-2002,
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2012) propôs que fosse desfeito o denominador comum entre o Guarani histórico, etnográfico e arqueológico, sob pena de estar-se criando um “Frankenstein Guarani” que nunca existiu (Soares, 2012). Schiavetto (2003), ao discutir a formação da identidade Guarani na Arqueologia brasileira, entende que a imagem arqueológica dessas populações estaria sendo elaborada a partir da premissa histórico-cultural de que cultura material definiria etnia e esta, por sua vez, a língua. Tais ideias lançariam mão da construção de um Guarani monolítico ou, como argumenta Eremites de Oliveira (2007), favoreceriam a construção de uma etnicidade genérica Guarani, onde parcialidades distintas, sob um ponto de vista êmico, estariam sendo agrupadas equivocadamente em categorias homogêneas. Nessa ótica, com base especialmente nas discussões antropológicas realizadas em 1969 por Barth (1998) e Jones (1997), a autopercepção étnica e formas diversas de organização social Guarani não observáveis no registro arqueológico estariam sendo ignoradas. Se, por um lado, a discussão referente às parcialidades étnicas e sobre uma identidade homogênea virtual atribuída aos Guarani demonstra-se relevante e latente ao avanço qualitativo da Arqueologia Guarani, por outro, foi na relação entre cultura material, etnia e língua que os principais modelos explicativos para essa disciplina foram estruturados, especialmente referentes a uma longa duração temporal (Meggers; Evans, 1973; Brochado, 1984) e uma tendência à prescritividade cultural (Noelli, 1993). Essas premissas, mas em particular o amplo alcance territorial observado pela dispersão da cultura material associada a essas populações, fez com que desde muito cedo surgissem interesses destinados à compreensão do seu estabelecimento no espaço, mais especificamente sobre a origem desses povos, as rotas de dispersão e a motivação para os deslocamentos. Noelli (1996) ressalta, entretanto, que apesar do volume de trabalhos referentes a temas espaciais, o consenso entre os especialistas apresenta-se apenas na noção da existência de um centro de origem comum do qual os Tupi se distanciaram e se
diferenciaram por meio de processos histórico-culturais, uma vez que não há acordo quanto à localização geográfica desse centro e quanto à direção das rotas. Na Arqueologia Guarani, por sua vez, os temas espaciais amplos dividem terreno com preocupações específicas da organização espacial dessas populações, destacando-se debates quanto à distribuição dos sítios na paisagem, à dinâmica da movimentação durante os deslocamentos, e, de forma paralela, discussões cronológicas. Tais temas apresentaram avanços interpretativos importantes a partir da década de 1980 (Brochado, 1984, 1989; Schmitz, 1985, 1991; Schmitz et al., 1990; Scatamacchia, 1990; Ribeiro, 1991, 1995; Noelli, 1993, 1996, 1998a, 1999, 2004; Rogge, 1996, 2004; Dias, 2003; Klamt, 2005; Pestana, 2011; Machado, 2008; Milheira, 2008, 2010; Neves et al., 2011; Wolf, 2012; Kreutz et al., 2014; Milheira; DeBlasis, 2014; Schneider, 2014; Corrêa, 2014; Kreutz, 2015; Bonomo et al., 2015; Almeida; Neves, 2015; De Souza et al., 2016), porém, ainda não se encontram plenamente resolvidos, carecendo de diversas respostas regionais. Nesse contexto, configurando-se como um estudo regional do processo de ocupação Guarani das várzeas meridionais, este artigo discute a dinâmica espacial e temporal ocorrida nas terras baixas da Bacia do Rio Taquari/Antas, localizada no nordeste do estado do Rio Grande do Sul. Apresentando-se como uma região ainda periférica do ponto de vista do conhecimento Guarani, foi uma das últimas a sofrer contato com as levas colonizadoras europeias no sul do Brasil. Para a discussão pretendida, pensando na contribuição de questões espaciais gerais para a Arqueologia Guarani, mas também específicas para a região da Bacia, três objetivos centrais foram eleitos. O primeiro deles procura traçar os limites da ocupação territorial Guarani na Bacia e o seu estabelecimento na paisagem a partir da distribuição dos sítios evidenciados na região. O segundo propõe discutir a cronologia Guarani na Bacia a partir, então, de dois enfoques: a cronologia regional, por meio de um conjunto de sítios, e a temporalidade intrassítio, a partir do estudo
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cronológico detalhado do sítio RS-T-114, um dos sítios Guarani com o maior número de datas do Rio Grande do Sul. Finalmente, configurando-se como a conjugação dos resultados anteriores, o terceiro objetivo busca interpretar a dinâmica das movimentações Guarani na Bacia. Nesse ponto, destaca-se a reflexão sobre a direção, a velocidade e o ritmo dos deslocamentos ocorridos, objetivando-se compreender, especialmente, se a ocupação das novas áreas era precedida pelo abandono das aldeias antigas, em um movimento conceituado por Brochado (1984) e Noelli (1996) como de “migração”, ou se a ocupação ocorria a partir de um comportamento compulsivo e contínuo, com o alastramento de aldeias sem que as antigas sofressem abandono, em um movimento conceituado pelos mesmos autores como de “expansão”.
em mais de dois milhões de indivíduos (Melià, 1986). O grande alcance territorial e o sucesso demográfico não passavam apenas pela organização espacial e social, mas também pelo sucesso conquistador diante de outras etnias, apresentando a tendência de incorporar o outro, o não-Guarani, por meio de alianças ou assimilação à custa das contínuas guerras de conquista (Noelli, 1999), encontrando-se sítios Guarani sempre nas camadas superiores dos estratos arqueológicos pré-coloniais (Scatamacchia, 1990). Conforme Noelli (2004), depois dos primeiros contatos com os europeus as populações começaram a declinar, restando, no final do século XVII, poucos grandes núcleos Guarani fora do sistema colonial. Perto de 1700, em grande parte do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina, do Paraná, do oeste de São Paulo, do Uruguai e das províncias de Buenos Aires, Entre Ríos, Corrientes e Misiones encontravam-se apenas grupos isolados. Em alguns pontos do centro do Rio Grande do Sul, as datações chegam, entretanto, até finais do século XVIII (Noelli, 2004; Schneider, 2014; Bonomo et al., 2015). A síntese de Scatamacchia (1990) demonstrou que a maioria dos sítios Guarani se concentra em áreas de clima úmido, sem estação seca e com recursos abundantes, geralmente margeando as terras altas. Fora do núcleo florestal do sistema Paraná-Paraguai-Uruguai, os vestígios são encontrados de forma marginal nas áreas alagadiças do Rio Grande do Sul e Uruguai e na região do Chaco, distribuindo-se em áreas colinares, sobre terraços ou vertentes, sobre cerritos, sobre cordões de conchas, sobre sambaquis, sob abrigos, sobre dunas e em terrenos abrigados perto das praias litorâneas. Apesar da preferência de ocupação por terras baixas, planas ou com leves inclinações (Scatamacchia, 1990; Prous, 1992), assim como por várzeas férteis (Scatamacchia, 1990; Schmitz, 1991; Rogge, 1996; Wolf, 2012; Kreutz et al., 2014), ressalta-se que a distribuição dos sítios também apresentou adaptação a diferentes climas e solos. Enquanto algumas áreas de Floresta Estacional Decidual ao longo de rios maiores localizados no Paraná encontram-se praticamente desprovidas de sítios Guarani (Chmyz, 1981; Parellada, 2005), registros dessas
DISTRIBUIÇÃO DOS SÍTIOS NA PAISAGEM, ORGANIZAÇÃO ESPACIAL E CRONOLOGIA: UM BALANÇO GERAL DA ARQUEOLOGIA GUARANI Em meio aos temas espaciais discutidos na Arqueologia Guarani, talvez o padrão de distribuição dos sítios na paisagem seja o que apresente as informações mais consensuais. Antes do processo colonizador europeu, a ocupação Guarani abarcou grande parte do leste da América do Sul (Schmitz, 1985, 1991; Scatamacchia, 1990; Rogge, 1996; Noelli, 1996, 1999, 2004), encontrando-se vestígios arqueológicos em mais de 2.900 sítios, distribuídos nos estados brasileiros do Mato Grosso do Sul, de São Paulo, do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul; no Paraguai oriental, no nordeste da Argentina e no Uruguai (Noelli, 2004; Bonomo et al., 2015), em um perímetro de terras baixas sul-americanas que circundam os planaltos brasileiros ocupados, por sua vez, por falantes de línguas do Tronco Macro-Jê (Brochado, 1989). Os dados históricos sugerem que no começo do século XVI, durante o estabelecimento das primeiras colônias europeias, os Guarani viviam seu auge geográfico e demográfico (Noelli, 2004), com uma população estimada
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populações aparecem em áreas de maiores altitudes da Serra Geral do Paraná (Noelli, 2004) e do Planalto Catarinense (De Souza et al., 2016), assim como em perímetros de transição entre florestas (Wolf, 2012). As informações coloniais e os dados arqueológicos indicam que a organização espacial configurava-se por um sistema de redes, não se registrando sítios isolados, nem mesmo em áreas periféricas ao território, sendo os isolamentos resultados da queda demográfica causada pelo sistema colonial (Noelli, 2004; Bonomo et al., 2015). A partir dos dados etnohistóricos e etnográficos referentes aos Guarani, especialmente vistos em Montoya (1639) e Susnik [1979-1980], faz-se possível ilustrar esse sistema, onde os domínios espaciais refletiriam laços de parentesco e reciprocidade em três níveis territoriais inclusivos: guârá, tekohá e teii (Montoya, 1639; Susnik, [1979-1980]; Noelli, 1993). O guârá representaria uma região delimitada geralmente por rios e subdividida em unidades territoriais socioeconomicamente aliadas, denominados tekohá, representando a aldeia. Sua área era delimitada geralmente por colinas, arroios ou rios, utilizada comunalmente e exclusivamente pelo grupo local. Finalmente, os tekohá eram formados por teiî isolados ou agrupados em função das condições locais e políticas. Teiî, ‘parcialidade, genealogia’, seria a família extensa em linguagem antropológica, podendo ser traduzido também como casa, onde vivia a linhagem e até sessenta famílias nucleares. Segundo relatos dos séculos XVI e XVII, essa organização sociopolítica apresentava estrutura complexa e a localidade era do tipo kindred (Soares, 1997; Noelli, 1999). Apesar do sistema de parentesco, Noelli (1999) observa que nem a ‘matrilocalidade’ nem a ‘patrilocalidade’ funcionavam como fatores agregadores, mas sim o prestígio do líder e sua capacidade de organizar grupos guerreiros ou de trabalho, com qualidades de bom orador, guerreiro, agricultor, caçador, articulista político e provedor de grandes festas. Nesse sistema os tekohá eram organizados a partir da conjugação de três níveis espaciais básicos: a casa, o espaço preservado para caça e pesca e o espaço cultivado
(Angrizani, 2009). A roça, constituída por uma bem estruturada horticultura praticada em clareiras abertas nas florestas por meio da técnica de derrubada e queima da mata (coivara) (Milheira; DeBlasis, 2014), apresentava-se como um importante fator de manutenção do sistema. A grande maioria das plantas cultivadas era de origem tropical, apresentando-se mais de 180 cultivos distribuídos em 36 gêneros diferentes (Noelli, 1993, 1998b), incluindo alimentos como a mandioca (Manihot esculenta Crantz), o amendoim (Arachis hypogea L.), o feijão (Phaseolus vulgaris L.), a batata (Solanum tuberosum L.), o inhame (Dioscorea sp.), a batata-doce (Ipomoea batatas (L.) Lam.), o milho (Zea mays L.) e tipos variados de abóboras (Cucurbita spp.). A alimentação era conjugada ainda com a coleta de plantas silvestres, caça, pesca e cultivo de alguns animais, como larvas e tartarugas (Brochado, 1989). Assim como a compreensão da distribuição dos sítios na paisagem e aspectos da organização espacial, o quadro temporal Guarani apresenta-se relativamente estabelecido. As primeiras referências cronológicas concisas ocorreram em Brochado (1973), quando este autor apresentou uma popular sequência para a ocupação do leste da América do Sul. A partir de dados gloto-cronológicos e de 54 datas obtidas em Carbono 14 (14C), coletadas durante a vigência do PRONAPA, estipulou cinco estágios de ocupação Tupi: período Inicial, entre A.D 0-500; período Antigo, entre A.D 500-900; período Médio, entre A.D 900-1300; período Tardio, entre A.D 1300-1500; período Colonial, entre A.D 1500-1800; e o período Atual, entre A.D 1800-1900. Partindo dessa sequência, Rogge (1996, 2004) apresentou três estágios de ocupação Guarani para o território que hoje corresponde ao Rio Grande do Sul. Em um estágio inicial, no começo da Era Cristã, a entrada teria ocorrido pelo noroeste e ao longo de várzeas férteis de rios de maior porte, como do Médio Uruguai e Rio Ijuí, alcançando o Alto e o Médio Jacuí. A data em 14C mais antiga do Rio Grande do Sul, Cal. A.D 274, localiza-se, contudo, nas margens do Rio Jacuí, no centro do estado (Bonomo et al., 2015). Em um segundo estágio de expansão, entre os
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séculos VIII e XIII, as populações Guarani teriam ocupado com maior intensidade as áreas férteis da margem esquerda do Rio Jacuí, ao mesmo tempo em que se dirigiam para o Rio Uruguai e se expandiam ao longo da faixa costeira, ocupando também as matas da Serra do Sudeste e alguns locais florestados da Laguna dos Patos. Por fim, em uma terceira onda de ocupação, entre os séculos XIII e XVII, teriam expandido por áreas mais afastadas dos grandes rios e porções mais altas e estreitas dos vales dos rios que descem o Planalto. Assim, estimando que a expansão tenha sido de 0,8 a 1 km por ano, por volta dos séculos XV e XVI, quando do encontro com colonizadores europeus, os Guarani já ocupariam praticamente todas as áreas florestadas dos vales fluviais e da faixa litorânea. A partir de uma recente revisão da cronologia Guarani, utilizando então 248 datas obtidas por 14C e Termoluminescência (TL), os resultados de Bonomo et al. (2015) indicaram a região do Alto Rio Paraná como área potencial para as datas mais antigas dessas populações. A partir dessa área inicial, sete principais rotas dispersivas foram observadas, sendo três vias para o norte e quatro vias de dispersão para o sul. Bonomo et al. (2015) interpretaram que os deslocamentos teriam ocorrido em dois períodos de expansão (especialmente sítios novos em áreas novas) intercalados por um período de relativa estabilidade (especialmente sítios novos em áreas já ocupadas). O primeiro período significativo de expansão Guarani teria ocorrido entre A.D 0-300, desenvolvendo-se ao longo do Rio Paraná, Rio Ivaí, Bacia do Paranapanema, Rio Uruguai e rios Ibicuí e Jacuí, apresentando uma velocidade de expansão estimada em 750 km² por ano. Os sete séculos seguintes, entre A.D 300-1000, configurariam um período de relativa estabilidade, com a permanência e o aumento de assentamentos em áreas já ocupadas. Em um ritmo lento de expansão estimado em 110 km² por ano, as dispersões para áreas novas teriam sido limitadas, restringindo-se a um avanço para o leste no setor meridional. Esse avanço estaria representado por uma data em TL obtida para o sítio RS-T-114, na Bacia Taquari/Antas, com o resultado de Cal. A.D
570, e pelo sítio Palmeira 2, localizado no Rio dos Sinos, com datação em 14C de Cal. A.D 718. Após esse período de relativa estabilidade, entre A.D 1000-1780 insere-se o maior número de datas analisadas, observando-se um período de notável expansão para novas áreas. Nesse segundo pulso expansionista, além de uma crescente densidade de sítios nas áreas já ocupadas, teria ocorrido forte expansão para todas as direções da Bacia do Prata e Atlântico Sul, em um ritmo de expansão estimado em 500 km² por ano.
MODELOS DE MOVIMENTAÇÃO ESPACIAL GUARANI Apesar da falta de consenso acerca do centro de origem e das rotas de dispersão Guarani, a ideia de que esses povos tiveram sua etnogênese cultural em algum lugar da Amazônia (Metráux, 1927; Rodrigues, 1964; Lathrap, 1970; Meggers; Evans, 1973; Brochado, 1984, 1989; Schmitz, 1985, 1991; Noelli, 1993, 1996, 1998a, 1999; Ribeiro, 1995; Mello; Kneip, 2005; Corrêa, 2014; Almeida; Neves, 2015) é bastante aceita. Assumindo essa origem, dois principais modelos se materializaram na Arqueologia brasileira quanto à dinâmica de movimentação Guarani pelo território, um a partir dos escritos de Meggers (1972, 1975, 1977, 1979) e o outro a partir dos escritos de Lathrap (1970) e Brochado (1984, 1989). Com proximidade às ideias lançadas em 1838 por Martius (1867) e nos escritos de Julian Steward, organizador do seminal “Handbook of South American Indians”, 1946, Meggers (1972) postulou que a cerâmica policrômica teria sido inventada fora da Amazônia, em uma porção geográfica que, hoje, se configura como a Bolívia, e teria sofrido decadência cultural quando levada para o ambiente da Floresta Tropical (Noelli, 1996). No ano seguinte, Meggers e Evans (1973) deslocaram o centro de origem Tupiguarani para a planície amazônica, a leste do Rio Madeira. Além das mudanças degenerativas na cerâmica, Meggers (1975, 1977, 1979) associou a migração das populações a mudanças climáticas intensas sofridas pela Bacia Amazônica no Holoceno recente, entre 4.000 e 2.000 BP e entre 1.500
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e 400 BP. O clima adverso teria reduzido as áreas florestadas e provocado o processo de dispersão. Nessa teoria, baseada no modelo de refúgios florestais, a Floresta Tropical estaria em processo de retração formando ilhas isoladas, circundada por extensos cerrados. A contínua retração desses refúgios teria chegado a tal ponto que as populações ali estabelecidas, pressionadas pelos fatores naturais limitantes, teriam migrado em busca de novas áreas (Rogge, 1996). Sobre o legado de Meggers (1972, 1973, 1975, 1977, 1979) pode-se dizer que os traços gerais da teoria dos fatores ambientais limitantes foram utilizados de forma bastante frequente na interpretação da ocupação Guarani do Brasil meridional, como visto em Schmitz (1985), Schmitz et al. (1990), Schmitz (1991), Ribeiro (1991, 1995), Rogge (1996, 2004), Klamt (2005), Pestana (2011), Chmyz et al. (2008) e Machado (2008). Schmitz (1985) e Schmitz et al. (1990) definiram que a movimentação das aldeias Guarani no espaço se daria por motivos econômicos e ecológicos, uma vez que a ocupação de um mesmo local por muitos anos acarretaria na escassez dos recursos naturais. Nesse processo de desocupação, medido com base em seriação do material cerâmico e na distribuição dos sítios do Médio e Alto Jacuí, Schmitz (1985) propôs que as aldeias seriam ocupadas por um período de aproximadamente 30 anos; em movimentos curtos e alternados entre as várzeas, a ocupação do espaço se daria de forma centrípeta, apresentando a movimentação de uma ou talvez duas aldeias em um determinado território de domínio, ocorrendo o deslocamento de todo o grupo de pessoas em direção a um novo local, distando não mais do que 1 km em geral. Nessa mesma linha, as ocupações Guarani no Rio Tibagi, Paraná, foram interpretadas por Chmyz et al. (2008) como cíclicas, apresentando um máximo de oito anos de permanência e posterior migração. Ribeiro (1995) estimou, por sua vez, que nas várzeas mais amplas e férteis do Rio Pardo os Guarani deveriam permanecer por um período relativamente mais extenso, com movimentos migratórios mais demorados, mas em solos menos férteis e suscetíveis de forte erosão, as mudanças de habitação deveriam acontecer com maior rapidez.
Rogge (1996), analisando sítios do Médio Jacuí e do Rio Pardo, postulou que durante a entrada nos ambientes subtropicais do Brasil meridional os Guarani teriam conseguido, por um lado, manter seu ciclo vital paralelo ao padrão amazônico, e, por outro, encontrado limitações que restringiram seu amplo desenvolvimento, tendo sido necessário ajustes locais ao modelo básico. Amparado na noção de fatores ambientais limitantes, interpretou que o processo catalizador do domínio territorial Guarani na região seriam as várzeas, uma vez que as estratégias de controle sobre essas áreas, que, apesar de férteis, eram restritas em altitudes maiores, teriam impulsionado uma intensa movimentação territorial. Dois outros fatores foram acionados pelo autor como catalizadores da movimentação das aldeias. Um deles refere-se ao tempo relativamente curto das roças, não necessariamente sobre o esgotamento dos solos, mas relacionado às dificuldades de manejo agroflorestal pós-derrubada da mata para o plantio, que exigiriam um tempo de pousio. O outro argumento refere-se à impossibilidade de permanência duradoura nas aldeias por conta da não retirada do lixo das casas. Esse mesmo argumento apresenta-se em Schmitz et al. (1990) nas pesquisas desenvolvidas no sítio Candelária I, no Rio Pardo, quando as Camadas de Solo Antropogênico com abundantes vestígios orgânicos, cerâmicos e líticos foram interpretadas necessariamente como estruturas de habitação com acúmulo de lixo doméstico. Posteriormente, Rogge (2004) incluiu no debate assertivas relacionadas às pressões interétnicas e fenômenos de fronteiras para a compreensão dos fatores da propulsão Guarani para novos territórios. O legado iniciado a partir dos escritos de Meggers (1972, 1973, 1975, 1977, 1979) para a construção acadêmica da espacialidade Guarani partiu de uma lógica relacionada à limitação ambiental, quando os deslocamentos foram previstos como migrações populacionais e as movimentações regionais pontuadas geralmente como de alta rotatividade de aldeias, seja em relação ao abandono de uma aldeia e o estabelecimento de uma nova ou em razão do retorno para as antigas. Diferente disso, Lathrap (1970),
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sob a influência de nomes como Schmidt, Nordenskiöld e Sauer, assim como resumido por Neves (2007), da linguística de Rodrigues (1964), e de forma velada, nos escritos de Metráux (1927), como sugere (Noelli, 1996), propôs que o padrão de ocupação Tupi ao longo do espaço teria se apresentado de forma radial, ou seja, como uma expansão compulsiva, lenta e gradual pelo território a partir de um ponto central, supondo-se então tratar-se da Amazônia Central (crítica com relação à área de origem em Neves (2007)). Nessa ideia, conhecida como hipótese cardíaca, a dispersão poderia ter sido o resultado de um processo de crescimento da população e colonização agrícola das várzeas férteis da Bacia Amazônica, o que teria levado, em seguida, à ocupação de outras planícies aluviais e não aluviais da América do Sul. Essas ideias influenciaram fortemente o trabalho de Brochado (1984, 1989). Para compor a popular teoria do ‘enxameamento’, o autor incluiu as assertivas do modelo cardíaco, abrindo precedentes para se pensar que os movimentos Tupi não foram exatamente migrações, no sentido de que as regiões de onde saíram não ficavam vazias, pelo contrário, a população continuava crescendo até o ponto da inevitável saída de novas vagas humanas. Nessa dinâmica compulsória chamada de ‘enxameamento’, o sistema de adjudicação e a vida cerimonial dos grupos locais Tupi só seriam efetivos para manter a coesão até certo tamanho da população, o que impulsionava a formação de novos grupos. Os deslocamentos foram conceituados como expansões, sugerindo-se que essas teriam se desenrolado em dois momentos: em um primeiro, ao longo dos principais cursos fluviais; e em um segundo, com o aumento da pressão demográfica, com a ocupação dos afluentes menores. Essas colonizações teriam, no caso Guarani, percorrido os cursos dos rios Paraná, Paraguai e Uruguai em um sentido Norte-Sul. As ideias de Lathrap (1970) e o ‘enxameamento’ de Brochado (1984, 1989) acabaram por formar um consistente eixo de interpretação do comportamento espacial Guarani. Entre os autores que seguiram essa linha de pensamento,
Noelli (1993, 1998b) apresentou notável convergência de ideias, ampliando, ainda, a noção ecológica para a ocupação dos espaços Guarani. Influenciado pelos autores citados e por trabalhos de Etnobiologia, sugeriu que os Guarani teriam exercido grande influência na paisagem quando, a partir da criação de espaços verdes antrópicos, como áreas florestais adequadas às necessidades cotidianas de construção, alimentação e manutenção simbólica da aldeia, teriam diminuído o risco de esgotamento de recursos naturais e rompido com o condicionante ambiental limitante. Da mesma forma, a partir de sistemáticos manejos agroflorestais e da inserção de espécies antrópicas na paisagem, incluindo o intercâmbio de plantas a longas distâncias, teriam modificado a vegetação dos locais ocupados e transformado socialmente o ambiente em um espaço verde compatível com o padrão socioeconômico desejado. O estudo de Bonomo et al. (2015) apontou algumas divergências com relação às rotas dispersivas e à cronologia estabelecida por Brochado (1984), porém, muitas outras questões apresentaram convergência. Apesar de as datas disponíveis indicarem até o momento que o Alto Paraná foi a área com as primeiras ocupações Guarani, Bonomo et al. (2015) ressaltam que as numerosas informações etnohistóricas e a presença de vasilhas Guarani em coleções paraguaias, somadas à falta de sítios arqueológicos Guarani datados no Paraguai e em outros locais do Brasil, como Rondônia e Mato Grosso do Sul, não permitem que a dispersão Norte-Sul estipulada por Brochado seja descartada. A cronologia obtida confirma, por outro lado, a hipótese de Brochado de que a entrada das populações Guarani teria começado a partir do leste do Rio Paraguai. Da mesma forma, os dados de deslocamentos gerados em Bonomo et al. (2015) inclinaram-se para o modelo de expansão de ‘enxameamento’ e para as ideias ecológicas de Noelli (1993, 1998b). Os resultados apresentados demonstraram que aldeias isoladas foram inexistentes, sugerindo que para cada data antiga ocorreriam datas posteriores. Nesse sentido, os deslocamentos indicariam um processo de
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expansão populacional e não de migração, demonstrando que uma vez que os primeiros assentamentos Guarani foram estabelecidos em diferentes áreas da Bacia do Prata houve continuidade de ocupação nesses lugares, com manutenção dos territórios anteriormente povoados, e, em alguns casos, até mesmo por centenas de anos.
Carreiro, Guaporé, Forqueta e Taquari-Mirim. Limita-se ao norte pela Bacia do Rio Pelotas, a oeste e ao sul pelas Bacias do Rio Pardo e do Rio Jacuí, e a leste pelas Bacias dos rios Caí e Sinos (Fepam, 2016). Ao longo dos 26.428 km2 que compõem a Bacia, este estudo limita-se a explorar o território em que evidências das populações Guarani aparecem, configurando-se em um perímetro de 10.604 km2 na porção centro-sul da Bacia (Figura 1). Ao longo desse perímetro, a geomorfologia geral insere-se no Domínio Morfoestrutural das Bacias e Coberturas Sedimentares, no qual são observadas duas regiões geomorfológicas distintas, a Depressão Central Gaúcha e o Planalto das Araucárias. O Planalto das Araucárias possui características heterogêneas, variando entre formas de relevo amplas e aplanadas até o nível mais profundo de entalhamento. Por sua vez, a Depressão Central Gaúcha, observada no extremo sul dessa porção, apresenta relevo homogêneo, sem muitas variações altimétricas, onde prevalecem formas conhecidas como coxilhas e vastas
OS GUARANI NA BACIA DO RIO TAQUARI/ ANTAS: ÁREA DE ESTUDO, CONTEXTO FITOGEOGRÁFICO E METODOLOGIA A Bacia do Taquari/Antas apresenta como principal recurso hídrico o Rio Taquari, com suas nascentes no extremo leste do Planalto dos Campos Gerais. Das nascentes até a confluência com o Rio Carreiro ainda recebe o nome de Rio das Antas, passando a partir daí a denominar-se Taquari, desembocando então no Rio Jacuí, do qual é o maior afluente. Seus principais afluentes à margem esquerda são os rios Camisas, Tainhas, Lajeado Grande e São Marcos, e pela margem direita, os rios Quebra-Dentes, da Prata,
Figura 1. Delimitação da porção centro-sul da Bacia do Taquari/Antas.
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superfícies planas, rampeadas e recobertas por colúvios (Justus et al., 1986). Em termos fitoecológicos, a porção centro-sul da Bacia insere-se no bioma Mata Atlântica. Ao norte, acompanhando o relevo de maior altitude do Planalto das Araucárias, apresenta a formação de Floresta Ombrófila Mista, com a marcante presença de Araucaria angustifolia (Bertol.) O. Kuntze, e ao sul e ao centro, acompanhando a altitude mais branda a partir da fronteira do Planalto das Araucárias e da Depressão Central Gaúcha, apresenta formação de Floresta Estacional Semidecidual e Decidual (Teixeira et al., 1986). Para a compreensão dos limites da ocupação Guarani e sua paisagem de estabelecimento nessa região realizou-se o levantamento dos sítios Guarani registrados na Bacia a partir de bibliografias (Werlang, 1981; Goldmeier, 1983; Ribeiro et al. 1989; Klamt et al., 1998; Machado, 2003, 2008; Kreutz, 2008; Fiegenbaum, 2009; Rosa, 2009; Vicroski; Trommer Thaddeu, 2010; Motta, 2011; Wolf, 2012; Kreutz, 2015) e de dados do Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (CNSA/IPHAN, c2014). Foram verificados 121 sítios arqueológicos na Bacia, dos quais 108 apresentaram coordenadas geográficas. Os sítios com coordenadas geográficas foram inseridos em um mapa hipsométrico, delimitando-se, assim, o perímetro de ocupação Guarani para a Bacia do Taquari/Antas e sua inserção na paisagem. O segundo ponto de discussão refere-se ao estabelecimento de parâmetros cronológicos para a área de ocupação Guarani na Bacia em dois aspectos: o contexto regional e o contexto intrassítio. Para a obtenção da cronologia regional foram utilizadas 12 datações em 14C, provenientes de cinco sítios arqueológicos estabelecidos em áreas estratégicas do perímetro Guarani observado na Bacia. A delimitação das áreas estratégicas partiu de uma divisão hipotética do perímetro em área ‘meridional’, ‘central’ e ‘setentrional’, a fim de se compreender o padrão cronológico relacionado com a posição geográfica dos sítios. No sul do perímetro Guarani na Bacia encontra-se datado o sítio RST-117 (uma data); na região central encontram-se datados
os sítios RS-T-101 (uma data) e o RS-T-114 (oito datas), ambos margeados pelo Rio Forqueta; e inseridos na região setentrional encontram-se datados os sítios RS-03 (uma data) e o sítio Favaretto Escavação (uma data). Com relação à data do sítio Favaretto Escavação, ressalta-se que não foi possível acessar o resultado RCYBP (1-Sigma) disponibilizado no laudo da data, estando limitada a análise dessa data apenas ao resultado calibrado parcial publicado em Machado (2008). Por sua vez, a discussão da cronologia intrassítio deu-se a partir da elaboração de uma documentação cronológica sistemática e concisa do sítio RS-T-114, localizado na margem direita do Rio Forqueta. Nesse sítio, selecionado como estudo de caso por apresentar uma preservação sui generis no contexto da área de estudo, assim como um interessante histórico de pesquisas arqueológicas, realizaram-se oito datas em 14C, das quais quatro foram obtidas de forma sequencial em uma camada única de ocupação Guarani denominada aqui como ‘Camada de Solo Antropogênico’, apresentando-se composta por terra escura, vestígios cerâmicos, líticos, arqueofauna, sementes e carvões. A análise da Camada de Solo Antropogênico, assim como da cultura material nela evidenciada, demonstrou tratar-se de uma estrutura arquitetônica (Noelli, 1993; Soares, 2004) com presença de áreas de combustão internas (Schneider, 2014). A coleta sistemática de carvões deu-se no sentido vertical, escolhendo-se um local entre o perímetro de maior preservação e o de maior incidência de carvões. Esses dois fatores coincidiram em um ponto em que a Camada apresentou 0,08 m de espessura. Para que fosse atingida de forma integral, a fim de se obter dados como o reconhecimento do histórico temporal da ocupação (período inicial, médio e final) e o ritmo de permanência nesse sítio (contínuo ou intermitente), realizaram-se coletas de amostras a cada 0,02 m de profundidade, obtendo-se, então, quatro pontos sistemáticos de datação (Figura 2). Por fim, para a discussão dos movimentos regionais ocorridos durante a ocupação territorial, especialmente referente às possíveis direções, velocidade de ocupação e ritmo dos movimentos regionais, traçou-se um paralelo interpretativo entre o mapa
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Figura 2. Perímetro de coleta de carvões para datação sistemática em 14C na Camada de Solo Antropogênico do sítio RS-T-114. Fotos: Schneider, 2014.
de distribuição dos sítios Guarani na Bacia e os resultados cronológicos obtidos para o âmbito regional e intrassítio.
de engenharia, e, em outras, de caráter estritamente acadêmico, atestaram a projeção lançada na década de 1960 de que as planícies da Bacia possuíam um interessante panorama arqueológico a ser explorado (Kreutz et al., 2014). Os 121 sítios evidenciados nesse perímetro indicaram que a concentração de ocupação Guarani ocorreu na área centro-sul da Bacia (Apêndice). Desses sítios, 59 localizam-se entre os municípios de Veranópolis, Cotiporã, Bento Gonçalves, Guaporé e Muçum, na porção norte do perímetro Guarani, em uma zona geográfica do Planalto das Araucárias em que o vale torna-se mais encaixado, assumindo a forma de V. Na região central do perímetro, em uma área em que o Planalto das Araucárias limita-se à Depressão Central Gaúcha, proporcionando o aparecimento de planícies mais extensas em um dos lados dos rios, áreas de menor altitude e fronteiras florestais, foram identificados 27 sítios inseridos nos municípios de Marques de Souza, Travesseiro, Forquetinha, Arroio do
RESULTADOS E DISCUSSÃO DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL DOS SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS GUARANI NO CONTEXTO DA BACIA Em finais da década de 1960, mapeamentos arqueológicos coordenados por Pedro I. Schmitz demonstraram os primeiros indícios da ocupação Guarani na Bacia do Taquari/ Antas, apontando a distribuição dessas populações na porção sul do Planalto das Araucárias. No mesmo período, os arqueólogos Pedro A. Mentz Ribeiro e Guilherme Naue registraram sítios Guarani na porção norte da Depressão Central Gaúcha. A partir do final da década de 1990, mapeamentos arqueológicos sistemáticos voltados algumas vezes para a realização de laudos de execução de obras
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Meio, Colinas, Teutônia, Lajeado e Estrela. Na porção sul do perímetro, já na Depressão Central Gaúcha, onde as planícies apresentam-se mais extensas, foram evidenciados 35 sítios entre os municípios de Cruzeiro do Sul, Tabaí, Taquari, Montenegro, Fazenda Vilanova e Venâncio Aires. De forma geral, os sítios encontram-se próximos a rios e arroios e geralmente em áreas inferiores a 100 metros de altitude, não se observando sítios acima de 400 metros de altitude na região (Figura 3). A ocupação Guarani evidenciada na Bacia não ocorreu isolada do processo de expansão dessas populações pelas várzeas meridionais. Ao sul e oeste do perímetro Guarani da Bacia localizam-se planícies extensas de áreas margeadas pelos rios Jacuí e Pardo, e, a leste, planícies dos rios Caí e Sinos. Essas áreas apresentaram a incidência bastante frequente de sítios Guarani (Ribeiro, 1991; Rogge, 1996; Dias, 2003), configurando o que parece ser uma faixa de ocupação que partiu do oeste em direção ao leste do estado (Rogge, 1996). Evidenciam-se sítios mais ao sul desses rios (Bonomo et al., 2015), entretanto, de uma forma que o avanço Guarani parece ter diminuído nesse sentido.
Os limites norte, noroeste e nordeste do perímetro de ocupação Guarani na Bacia parecem evidenciar, por sua vez, uma dinâmica diferente. Nessa porção os sítios apresentam-se limitados às paisagens altas em que sítios Proto-Jê tornam-se muito frequentes. Em relação a esses povos, encontram-se sítios no noroeste da Bacia, entre os rios Fão, Forqueta e Guaporé, em altitudes que variam de 400 a 700 metros (Wolf, 2012), não se registrando, nessas áreas, sítios multicomponenciais ou traços de contanto interétnico entre Guarani e Proto-Jê. Acompanhando o Rio Taquari/Antas na direção nordeste que este segue, os sítios Proto-Jê mais próximos da área Guarani encontram-se nos municípios de Flores da Cunha e Caxias do Sul (Corteletti, 2008; Machado, 2008). Fora da Bacia do Taquari/Antas, nas áreas de maiores altitudes da Bacia do Rio Caí, Corteletti (2008) destacou a ocorrência de três sítios Guarani em áreas consideradas pouco comuns para o estabelecimento dessas populações, especialmente pelo padrão hipsométrico. Tais sítios sugerem um discreto avanço Guarani para as terras altas, porém, diferente da dinâmica evidenciada no
Figura 3. Distribuição dos sítios Guarani na paisagem hipsométrica da Bacia do Taquari/Antas.
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Planalto Catarinense em relação ao avanço desses povos sobre os territórios Proto-Jê, quando a monumentalização da paisagem Jê parece denunciar uma forma de repelir o avanço Guarani (De Souza et al., 2016), o progresso dessas populações para zonas culturais limítrofes da Bacia do Taquari/Antas não se encontram próximas da resolução.
densidade de sítios nas áreas já ocupadas e forte ampliação para direções novas. Apesar disso, no quadro cronológico estabelecido por Bonomo et al. (2015), ao basearem-se no resultado de 10 datas do sítio RS-T-114 obtidas pelo método de TL (Kreutz, 2008; Kreutz et al., 2014), o início da ocupação Guarani na Bacia do Taquari/Antas aparece já no século VI, em um período anterior ao proposto para o presente artigo. Apesar de Bonomo et al. (2015) relatarem pouca variação entre os métodos de 14C e TL nos contextos revisitados, para o sítio RS-T-114, de forma específica, a realização posterior de datas pelo método de 14C não confirmou a cronologia estabelecida por TL (Fiegenbaum, 2009; Wolf, 2012; Schneider, 2014). Os resultados em TL apresentaram uma variação de nove séculos de ocupação, conferindo um período de ocupação entre os séculos VI e XIV, com um possível abandono do sítio antes mesmo da chegada dos europeus na região. Das oito datas em 14C obtidas para esse sítio, duas foram realizadas no mesmo contexto das datas em TL, fornecendo o resultado de 560 ± 40 BP e 300 ± 30 BP, esse último consideravelmente posterior (Schneider, 2014); da mesma forma, em nenhum outro contexto da Bacia datas anteriores ao século XIV foram obtidas para sítios Guarani (Machado, 2008; Wolf, 2012; Kreutz, 2015) ou indicaram a desocupação dos sítios antes
A DINÂMICA CRONOLÓGICA DA OCUPAÇÃO GUARANI NA BACIA Para a compreensão do papel da Bacia do Taquari/Antas no processo de ocupação Guarani fez-se necessário o estabelecimento cronológico do perímetro de ocupação traçado para a região. As datas em 14C calibradas, representando 95% de probabilidade, demonstraram um período de ocupação possível entre o início do século XIV e o final do século XVIII (Tabela 1). Esses resultados inserem a entrada Guarani na última onda de ocupação apresentada por Rogge (1996), quando as áreas próximas ao Planalto começaram a ser ocupadas. Os resultados coincidem ainda com o último período de expansão estipulado por Bonomo et al. (2015), quando, para esses autores, após um período de relativa estabilidade de 700 anos, entre A.D 1000-1780 teria ocorrido um segundo momento de expansão Guarani, notando-se uma crescente
Tabela 1. Datas em 14C apresentadas para os sítios Guarani da Bacia do Taquari/Antas. Sítio RCYBP (1-Sigma) Cal. A.D (2-Sigma) RS-T-114
240 ± 30 (Beta 367375)
Referência
1640-1806
Dos autores (2017)
RS-T-114
260 ± 30 (Beta 388514)
1665-1800
Schneider (2014)
RS-T-114
300 ± 30 (Beta 303993)
1490-1660
Wolf (2012)
RS-T-114
350 ± 30 (Beta 388513)
1485-1650
Schneider (2014)
RS-T-101
370 ± 30 (Beta 326926)
1450-1630
Wolf (2012)
RS-T-117
360 ± 30 (Beta 422489)
1465-1645
Kreutz (2015)
RS-03
390 ± 30 (Beta 422490)
1455-1630
Kreutz (2015)
RS-T-114
410 ± 30 (Beta 388512)
1515-1625
Schneider (2014)
RS-T-114
410 ± 30 (Beta 326927)
1440-1620
Wolf (2012)
Favaretto Escavação
(Beta 205841)
... -1470
Machado (2008)
RS-T-114
490 ± 30 (Beta 388515)
....
1420-1460
Schneider (2014)
RS-T-114
560 ± 40 (Beta 249391)
1300-1430
Fiegenbaum (2009)
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do século XVII (Schneider, 2014). As questões relacionadas à discrepância de resultados entre os métodos exigiram que se escolhesse, por ora, apenas um método de datação, estabelecendo-se então a escolha pelo 14C. As datas calibradas permitiram interpretar que o período mais ativo de estabelecimento dos assentamentos na Bacia deu-se até finais do século XVII. Das 12 datas obtidas, sete datas de quatro sítios distintos (RS-03, RS-T-114, RS-T-101 e RS-T-117) apresentam esse intervalo final em seu quadro temporal. Embora a data mais recente apresentada para o quadro cronológico, Cal. A.D 1665-1800, possa inserir a Bacia em meio ao período mais tardio de desapropriação Guarani visto no centro do Rio Grande do Sul, isto é, durante o século XVIII (Noelli, 2004; Bonomo et al., 2015), o abandono da maioria das aldeias Guarani na região parece ter ocorrido durante o século XVII. Coincidindo com esse momento, entre as décadas de 1630 e 1640 se apresenta uma tentativa de inserção de redução jesuítica na região, assim como processos de bandeiras paulistas
(Relly et al., 2008; Kreutz, 2015), eventos-chave para a desestruturação das aldeias Guarani em grande parte dos espaços meridionais do continente americano (Noelli, 2004). Independente do século exato de desapropriação dos assentamentos, o período geral de ocupação Guarani na Bacia parece corresponder a um amplo espaço de tempo que pode chegar a até cinco séculos. Além disso, a convergência entre os períodos de ocupação para os sítios Guarani (Figura 4), acrescido da data Cal. A.D 1470 publicada para o sítio Favaretto Escavação (Machado, 2008), parece demonstrar que a ocupação Guarani deu-se de maneira contemporânea na Bacia do Taquari/Antas, em uma relação contínua de ocupação regional. Além da discussão de uma continuidade regional de ocupação, o exercício de obtenção de datas sistemáticas no sítio RS-T-114 proporcionou reflexões referentes ao tempo de permanência da ocupação nas aldeias. Os resultados calibrados para esse sítio apresentaram um período de ocupação entre Cal. A.D 1420-1460 e Cal.
Figura 4. Datas em 14C apresentadas para os sítios Guarani da Bacia do Taquari/Antas.
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tabela 2. datas em 14C apresentadas para a Camada de solo Antropogênico do sítio rs-t-114.
A.d 1665-1800, correspondendo à possibilidade de uma ocupação de mais de três séculos em um mesmo contexto arqueológico (tabela 2). Entre os resultados obtidos observou-se a inversão estratigráfica entre as amostras da primeira e da terceira camadas, cujo intervalo mais recente está localizado na terceira camada e o terceiro mais antigo está localizado na primeira camada. Apesar disso, o perfil da Camada de solo Antropogênico não apresentou nenhum indício de ruptura estratigráfica, estando a inversão relacionada, muito provavelmente, com ação leve de uproontig, onde há elevação das raízes de plantas ao cair, ou por ‘faunaturbação’, ocasionada pelo revolvimento da terra por animais (Milder, 2000). Levando em conta a falta de uma ruptura estratigráfica que pudesse sugerir, por exemplo, um evento de abandono e posterior reocupação da área, foi possível perceber, a partir da correção da sequência estratigráfica (figura 5), que a ocupação não ocorreu somente de forma longa no sítio rs-t-114, mas também contínua, tratando-se de uma aldeia que foi mantida em atividade por séculos consecutivos.
Camada
rCYBP (1-sigma)
Cal. A.d (2-sigma)
referência
1 (0,02 m)
410 ± 30 (Beta 388512)
1515-1625
schneider (2014)
2 (0,04 m)
350 ± 30 (Beta 388513)
1485-1650
schneider (2014)
3 (0,06 m)
260 ± 30 (Beta 388514)
1665-1800
schneider (2014)
4 (0,08 m)
490 ± 30 (Beta 388515)
1420-1460
schneider (2014)
cruzado o rio Grande do sul pelo eixo formado pelos rios Uruguai, ijuí e Jacuí. nessa mesma linha, fiegenbaum (2009), Kreutz et al. (2014) e Kreutz (2015) sugerem que, a partir da conexão com o rio Jacuí os Guarani teriam se fixado nas planícies do rio taquari/Antas, e, ao seguirem em uma direção sul-norte, teriam ocupado os maiores afluentes desse rio, como o forqueta, e recursos hídricos de menor porte, como os arroios. Embora tal dinâmica pareça provável para o contexto da Bacia, o quadro de datas estabelecido não permite, até o momento, a confirmação de uma direção sul-norte para os deslocamentos Guarani na região. o cruzamento entre as datas e a localização dos sítios demonstrou que as mais antigas situam-se, respectivamente, no sítio rs-t-114, em uma região intermediária do perímetro de ocupação, e
DIREÇÃO, VELOCIDADE E RITMO DA MOVIMENTAÇÃO GUARANI NA BACIA rogge (2004), seguindo a ideia de que os rios de maior porte foram ocupados primeiro (Brochado, 1984, 1989), entende que em uma direção geral de oeste para leste, partindo do Baixo rio Paraná, os Guarani deveriam ter
figura 5. sequência estratigráfica corrigida para as datas em 14C obtidas para a Camada de solo Antropogênico do sítio rs-t-114.
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no sítio Favaretto Escavação, na região setentrional do perímetro de ocupação. A data mais ao sul (RS-T-117), por sua vez, situa-se em um intervalo posterior, entre o século XV e XVII. Apesar disso, muito provavelmente o estabelecimento desse quadro deu-se pela falta de uma cronologia sistemática na grande maioria dos sítios datados, ocasionando, dessa forma, uma antiguidade provisória à região central e norte do perímetro de ocupação. A presença de datas convergentes entre os sítios RS-T-117 (360 ± 30 BP), RS-T-101 (370 ± 30 BP), RS03 (390 ± 30 BP) e RS-T-114 (410 ± 30 BP) indica que, durante o século XVI, desde o sul até o norte, o perímetro Guarani estaria ocupado de forma integral (Figura 6). Partindo do pressuposto de que a direção dos deslocamentos tenha sido sul-norte, entretanto, é possível recuar ainda mais o período de dominação dos limites territoriais na Bacia. A data estabelecida para o sítio Favaretto Escavação, isto é, na área setentrional do perímetro, permite pensar que,
já no século XV, cerca de uma centena de anos depois da entrada dos Guarani na região, as áreas limites do perímetro de ocupação, cerca de 120 quilômetros em linha reta, estariam definidas. Com relação à velocidade de ocupação da Bacia, estima-se, mesmo que de forma hipotética, um deslocamento de 106 km² por ano, indicando, quando comparado aos resultados apresentados por Bonomo et al. (2015), uma ocorrência lenta. Apesar disso, levando-se em conta que o quadro de datas na área setentrional da Bacia apresenta-se limitado a duas datas e que o padrão de deslocamento apresentado por Bonomo et al. (2015) para assentamentos estabelecidos depois do A.D 1000 indica um ritmo rápido, acredita-se que a ocupação do perímetro Guarani na Bacia possa ter ocorrido de maneira ainda mais veloz. Além de pistas sobre a velocidade de ocupação, a convergência de datas entre os sítios sugere que as movimentações na Bacia tenham assumido um ritmo de expansão, assim como projetado por Lathrap (1970),
Figura 6. Localização dos sítios Guarani datados em 14C para a Bacia do Taquari/Antas.
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Brochado (1984, 1989) e Noelli (1993). Tal dinâmica ficou mais evidente a partir dos resultados cronológicos obtidos entre o sítio RS-T-114 e o sítio RS-T-101. Inseridos em um intenso contexto arqueológico onde se observa, como visto na Figura 6, o estabelecimento subsequente de quatro sítios Guarani nas planícies do Rio Forqueta, RS-T-122, RS-T-101, RS-T-110 e RS-T-114, a data de 370 ± 30 BP obtida para o sítio RS-T-101 demonstrou-se contemporânea à data 350 ± 30 BP obtida para o sítio RS-T-114. Distantes cinco quilômetros entre si, as datas convergentes entre esses sítios, assim como a presença de datas posteriores para o RS-T-114 e o fato de não se ter encontrado indícios de abandono durante o seu processo de ocupação, indicaram que, enquanto algumas levas humanas teriam saído para o estabelecimento de um novo assentamento, possivelmente em direção ao sítio RS-T101, o sítio RS-T-114 continuou ocupado, permitindo-se pensar que, no contexto do Rio Forqueta, a expansão de sedes dentro do território de domínio teria ocorrido sem que as aldeias mais antigas fossem abandonadas, em um modelo compulsório como visto no ‘enxameamento’ de Brochado (1984, 1989). Uma vez que todos os sítios datados da Bacia encontram correspondência com o quadro cronológico sistemático estabelecido para o sítio RS-T-114, o modelo de ocupação compulsória do Rio Forqueta pode ser estendido para as outras áreas da Bacia. O resultado observado na Bacia do Taquari/Antas não parece apresentar-se deslocado de uma tendência macrorregional de ocupação Guarani, uma vez que, como exposto acima, o ‘enxameamento’ de Brochado (1984, 1989) também foi encontrado na análise espacial e cronológica ampla apresentada por Bonomo et al. (2015). Além disso, o pulso inicial de expansão seguido de um momento de estabilidade observado pelos mesmos autores para as ocupações Guarani parece apresentar reflexos na dinâmica de ocupação da Bacia. Sendo assim, os primeiros 100 anos de ocupação, entre os séculos XIV e XV, sugerem um pulso inicial de ocupação e expansão, quando os limites do perímetro Guarani teriam sido
atingidos na Bacia. As ocupações longas e contínuas das aldeias denunciam, por outro lado, um segundo momento de ocupação, inserindo-se então como um período de estabilidade secular e manutenção dos assentamentos. Durante esse momento, as datações indicam que os deslocamentos para o nordeste, norte e noroeste teriam cessado. Embora uma motivação geográfica para a pausa do avanço Guarani às terras altas possa ser pensada como hipótese de trabalho, as altitudes mais elevadas não parecem ter representado, como assinalado por De Souza et al. (2016), uma barreira para a expansão Guarani. Duas outras motivações foram então pensadas para esse processo na região do estudo. Assim como previsto por Noelli (1993, 1998b), o controle ecológico exercido pelos Guarani aparenta ter um papel protagonista no processo de estabilidade e longa duração dos assentamentos. A longa e contínua ocupação teria sido possível a partir de constantes manejos agroflorestais sobre o espaço ocupado, contribuindo para que não ocorresse escassez de recursos naturais nas áreas próximas às aldeias. Para além da introdução dos cultivos de roça, que por si só já representavam uma importante modificação fitossociológica do ambiente nativo, a capacidade de alterar comunidades arbóreas com a multiplicação arbitrária de plantas, ou seja, a criação de florestas antropogênicas, não somente proporcionaria recursos úteis, mas também promoveria a diminuição da exploração das florestas primárias. Nessa dinâmica, se por um lado a ocupação de longa permanência era permitida pela transformação consciente do ambiente, por outro, a estabilidade também se apresentava como um efeito colateral do manejo agroflorestal, uma vez que este demandava um longo e laborioso tempo de execução. Além das questões ecológicas, a ocupação compulsória das terras baixas da Bacia poderia encontrar uma explicação também na forma de um controle político do território. Nessa lógica, durante o pulso inicial de expansão, as fronteiras Guarani teriam sido delimitadas com a inserção de aldeias em todas as áreas do perímetro ocupado, talvez
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organizando o que se entende como um guârá. Essas aldeias apresentariam fatores de alta permanência como um reflexo do manejo e das transformações ecológicas empreendidas, mas também poderiam se constituir como uma estratégia de controle do território e de delimitação das fronteiras. Tal estabilidade territorial teria sido ceifada, por fim, pela insurgência europeia na região.
possibilidade da presença de aldeias Guarani ainda no final do século XVIII em partes da região. A ocupação compulsória, a permanência nas aldeias e a longa duração regional estimulariam o aumento demográfico e as consequentes expansões territoriais para áreas novas. Como um efeito contínuo, Lathrap (1970) e Brochado (1984, 1989) entendem que o aumento demográfico, lento e gradual, alimentaria permanentemente a expansão ao longo dos cursos de rios com várzeas extensas. Para a Bacia, entretanto, os resultados parecem indicar que o padrão de ocupação não foi necessariamente gradual, apresentando-se em dois momentos distintos, sendo o primeiro um pulso inicial de expansão e o segundo um longo momento de estabilidade, denunciando uma complexa dinâmica espacial Guarani para a Bacia do Taquari/Antas. Em uma tentativa de interpretar tal dinâmica conjectura-se que a barreira geográfica, isto é, as altitudes elevadas, não explicaria sozinha a pausa da expansão territorial, tampouco a permanência longa e contínua em uma mesma região. Certamente o domínio do território passaria também por um controle consciente do ambiente, constituindo o poder criativo das populações Guarani diante dos espaços verdes uma poderosa estratégia de manutenção dos assentamentos. Dessa forma, se por um lado o manejo ecológico proporcionaria um maior tempo de permanência nos espaços, por outro também exigiria que as ocupações passassem por momentos de estabilidade, visto que o manejo demandaria um intenso investimento de tempo. Por fim, é possível inserir a ocupação compulsória das terras baixas da Bacia do Taquari/Antas também como uma estratégia de controle territorial, configurando-se o estabelecimento das aldeias em todos os espaços do perímetro de ocupação como uma forma consciente de manutenção política do espaço ocupado.
CONCLUSÃO A partir dos resultados obtidos, foi possível observar, em primeiro lugar, que a ocupação Guarani na Bacia do Taquari/Antas ocorreu em um perímetro centro-sul de várzeas que circundam áreas mais altas, não ultrapassando 400 metros de altitude. Essa porção insere-se em uma área de fronteira geomorfológica entre o Planalto das Araucárias, com a presença de Floresta Ombrófila Mista, e a Depressão Central Gaúcha, com Floresta Estacional Decidual e Semidecidual. Nesse perímetro, a presença Guarani na Bacia fez parte de um amplo contexto de ocupação das várzeas do Brasil meridional, em uma faixa de ocupação que partiu do oeste para o leste. Durante o último estágio de expansão Guarani, a partir do século XIV, possivelmente em uma conexão entre o Rio Jacuí e o Rio Taquari/Antas, no sul da Bacia, teria se iniciado a ocupação Guarani na região de estudo. A cronologia estabelecida demonstrou a possibilidade de uma ocupação regional longa, de até cinco séculos, assim como indicou que os sítios datados no sul, no centro e no norte do perímetro tiveram atividades contemporâneas, permitindo pensarse em uma característica compulsória de ocupação. O estudo cronológico sistemático realizado no sítio RS-T114 demonstrou que não somente a região foi ocupada de forma longa, mas também o contexto desse sítio, obtendo-se uma ocupação contínua de mais de três séculos para a mesma camada arqueológica. A desocupação dos sítios, por sua vez, parece ter ocorrido especialmente durante o século XVII, ao mesmo tempo em que jesuítas e bandeirantes adentravam nas porções florestadas da Bacia do Taquari/Antas, não se descartando, porém, a
AGRADECIMENTOS Os autores agradecem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), à
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Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e ao Centro Universitário UNIVATES, financiadores desta pesquisa por meio de editais e bolsas de estudo.
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Apêndice. Sítios Guarani registrados para a Bacia do Taquari/Antas. * Todas as coordenadas estão em sistema de projeção UTM WGS 1984 e Zona 22 S. (Continua) Sítio Coord. L* Coord. N Município Referência RS-27
412.470
6.751.863
Arroio do Meio
Goldmeier (1983)
RS-28
414.025
6.750.240
Arroio do Meio
Goldmeier (1983)
RS-29
414.300
6.749.900
Arroio do Meio
Goldmeier (1983)
RS-T-113
411.860
6.748.117
Arroio do Meio
Kreutz (2008)
Favaretto Esc.
439.061
6.786.850
Bento Gonçalves
Machado (2008)
RS-NA 21
445.208
6.787.220
Bento Gonçalves
Machado (2008)
RS-NA 28 “B”
443.613
6.786.351
Bento Gonçalves
Machado (2008)
RS-NA 28 “A”
443.500
6.786.351
Bento Gonçalves
Machado (2008)
RS-NA 36
441.431
6.786.350
Bento Gonçalves
Machado (2008)
RS-NA 33
441.579
6.785.279
Bento Gonçalves
Machado (2008)
RS-AN 18 “D”
441.640
6.785.071
Bento Gonçalves
Machado (2008)
RS-AN 46
441.462
6.786.114
Bento Gonçalves
Machado (2008)
RS-AN 18 “E”
441.727
6.785.028
Bento Gonçalves
Machado (2008)
RS-AN 18 “F”
441.645
6.784.951
Bento Gonçalves
Machado (2008)
RS-AN 18 “G”
441.765
6.784.925
Bento Gonçalves
Machado (2008)
RS-AN 18 “A”
441.628
6.784.885
Bento Gonçalves
Machado (2008)
RS-AN 18 “H”
441.740
6.784.864
Bento Gonçalves
Machado (2008)
RS-AN 18 “I”
441.676
6.784.807
Bento Gonçalves
Machado (2008)
RS-AN 18 “B”
441.608
6.784.791
Bento Gonçalves
Machado (2008)
RS-AN 18 “J”
441.623
6.784.725
Bento Gonçalves
Machado (2008)
RS-AN 18 “C”
441.078
6.784.670
Bento Gonçalves
Machado (2008)
RS-AN 19
440.051
6.786.254
Bento Gonçalves
Machado (2008)
RS-AN 35
440.140
6.787.168
Bento Gonçalves
Machado (2008)
RS-AN 42
439.061
6.786.850
Bento Gonçalves
Machado (2008)
RS-AN 39
438.291
6.789.990
Bento Gonçalves
Machado (2008)
RS-AN 38
437.379
6.790.082
Bento Gonçalves
Machado (2008)
RS-AN 44 “A”
438.528
6.788.643
Bento Gonçalves
Machado (2008)
RS-AN 44 “B”
438.527
6.789.111
Bento Gonçalves
Machado (2008)
RS-AN 27
436.244
6.789.349
Bento Gonçalves
Machado (2008)
RS-AN 34
435.990
6.788.044
Bento Gonçalves
Machado (2008)
RS-AN 09
434.269
6.785.237
Bento Gonçalves
Machado (2008)
RS-VF-03
434.599
6.785.383
Bento Gonçalves
CNSA e IPHAN (c2014)
RS-1
-
-
Bento Gonçalves
Goldmeier (1983)
RS-2
-
-
Bento Gonçalves
Goldmeier (1983)
RS-58
-
-
Bento Gonçalves
Goldmeier (1983)
RS-NA 22
445.520
6.787.870
Bento Gonçalves
Machado (2008)
53
Tempo e Espaço Guarani: um estudo acerca da ocupação, cronologia e dinâmica de movimentação pré-colonial na Bacia do Rio Taquari/Antas...
Apêndice. Sítio
(Continua) Coord. L*
Coord. N
Município
Referência
RS-NA 20
445.215
6.787.280
Bento Gonçalves
Machado (2008)
RS-T-105
415.032
6.749.893
Colinas
Kreutz (2008)
RS-T-108
415.318
6.749.193
Colinas
Kreutz (2008)
RS-T-119
411.748
6.745.266
Colinas
Kreutz (2008)
RS-AN 25 “A”
435.765
6.789.460
Cotiporã
Machado (2008)
RS-AN 25 “B”
435.780
6.789.470
Cotiporã
Machado (2008)
RS-AN 25 “E”
436.236
6.790.270
Cotiporã
Machado (2008)
RS-AN 25 “C”
436.364
6.790.400
Cotiporã
Machado (2008)
RS-AN 31
434.207
6.787.871
Cotiporã
Machado (2008)
RS-AN 41 “A”
434.674
6.786.422
Cotiporã
Machado (2008)
RS-AN 41 “B”
434.791
6.786.539
Cotiporã
Machado (2008)
RS-AN 41 “C”
434.792
6.786.732
Cotiporã
Machado (2008)
RS-AN 41 “D”
434.516
6.786.310
Cotiporã
Machado (2008)
RS-AN 08
433.585
6.785.153
Cotiporã
Machado (2008)
RS-HDG-A1-40
434.918
6.784.447
Cotiporã
Machado (2008)
RS-AN 10
435.353
6.784.681
Cotiporã
Machado (2008)
RS-T-117
408.442
6.723.936
Cruzeiro do Sul
Kreutz (2015)
RS-TQ-92
408.350
6.723.894
Cruzeiro do Sul
Kreutz (2015)
RS-TQ-60
434.408
6.722.567
Cruzeiro do Sul
Ribeiro et al. (1989)
RS-T-15
409.014
6.740.512
Estrela
Werlang (1981)
RS-84
405.618
6.732.062
Estrela
Goldmeier (1983)
RS-TQ-141
418.424
6.727.836
Fazenda Vilanova
Rosa (2009)
RS-TQ-142
417.695
6.728.015
Fazenda Vilanova
Rosa (2009)
RS-TQ-133
394.631
6.748.910
Forquetinha
Rosa (2009)
RS-82
414.704
6.806.959
Guaporé
CNSA e IPHAN (c2014)
RS-TQ-124
399.890
6.745.522
Lajeado
Machado (2003)
RS-TQ-125
399.259
6.743.614
Lajeado
Machado (2003)
RS-TQ-126
398.403
6.745.610
Lajeado
Machado (2003)
RS-T-107
400.720
6.746.478
Lajeado
Kreutz (2008)
RS-T-102
408.709
6.741.496
Lajeado
Kreutz (2008)
RS-TQ-123
400.283
6.745.434
Lajeado
Machado (2003)
RS-TQ-130
404.871
6.744.652
Lajeado
Machado (2003)
RS-TQ-131
400.898
6.745.380
Lajeado
Machado (2003)
RS-T-110
388.010
6.765.500
Marques de Souza
Kreutz (2008)
RS-T-122
389.176
6.762.234
Marques de Souza
Wolf (2012)
RS-TQ-136
384.477
6.768.106
Marques de Souza
Machado (2003)
RS-T-114
391.260
6.760.400
Marques de Souza
Kreutz (2008)
54
Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 12, n. 1, p. 31-56, jan.-abr. 2017
Apêndice. Sítio
(Continua) Coord. L*
Coord. N
Município
Referência
RS-T-101
387.436
6.763.154
Marques de Souza
Kreutz (2008)
RS-C-38
437.630
6.721.875
Montenegro
Motta (2011)
RS-03
427.846
6.776.712
Muçum
Goldmeier (1983)
RS-60
416.830
6.774.895
Muçum
Goldmeier (1983)
RS-61
426.890
6.771.316
Muçum
Goldmeier (1983)
RS-T-124
418.171
6.775.281
Muçum
Kreutz (2015)
RS-TQ-66
433.895
6.721.635
Tabaí
Ribeiro et al. (1989)
RS-TQ-52
-
-
Taquari
CNSA e IPHAN (c2014)
JTT01
423.342
6.699.650
Taquari
Fiegenbaum (2009)
RS-T-116
429.725
6.740.515
Teutônia
Kreutz (2008)
TQ.RF.TR.1
397.014
6.752.762
Travesseiro
Vicroski e Trommer Thaddeu (2010)
TQ.RF.TR.2
396.409
6.753.296
Travesseiro
Vicroski e Trommer Thaddeu (2010)
TQ.RF.TR.3
396.537
6.753.268
Travesseiro
Vicroski e Trommer Thaddeu (2010)
RS-214
-
-
Venâncio Aires
CNSA e IPHAN (c2014)
RS-94
-
-
Venâncio Aires
CNSA e IPHAN (c2014)
RS-93
-
-
Venâncio Aires
CNSA e IPHAN (c2014)
RS TQ 116
376.350
6.730.193
Venâncio Aires
Klamt et al. (1998)
RS TQ 119
381.025
6.732.556
Venâncio Aires
Klamt et al. (1998)
RS TQ 85
-
-
Venâncio Aires
CNSA e IPHAN (c2014)
RS TQ 86
396.240
6.719.648
Venâncio Aires
Klamt et al. (1998)
RS TQ 87
-
-
Venâncio Aires
CNSA e IPHAN (c2014)
RS TQ 88
395.620
6.715.967
Venâncio Aires
Klamt et al. (1998)
RS TQ 89
394.460
6.717.862
Venâncio Aires
Klamt et al. (1998)
RS TQ 91
383.700
6.719.450
Venâncio Aires
Klamt et al. (1998)
RS TQ 94
-
-
Venâncio Aires
CNSA e IPHAN (c2014)
RS TQ 95
395.620
6.722.146
Venâncio Aires
Klamt et al. (1998)
RS TQ 96
395.620
6.722.146
Venâncio Aires
Klamt et al. (1998)
RS TQ 97
-
-
Venâncio Aires
CNSA e IPHAN (c2014)
RS TQ 98
397.040
6.722.071
Venâncio Aires
Klamt et al. (1998)
RS TQ 99
397.020
6.722.063
Venâncio Aires
Klamt et al. (1998)
RS TQ 100
394.320
6.724.374
Venâncio Aires
Klamt et al. (1998)
RS TQ 101
-
-
Venâncio Aires
Klamt et al. (1998)
RS TQ 102
395.710
6.722.638
Venâncio Aires
Klamt et al. (1998)
RS TQ 103
-
-
Venâncio Aires
CNSA e IPHAN (c2014)
RS TQ 104
395.590
6.722.851
Venâncio Aires
Klamt et al. (1998)
RS TQ 105
398.150
6.722.173
Venâncio Aires
Klamt et al. (1998)
RS TQ 108
374.870
6.723.026
Venâncio Aires
Klamt et al. (1998)
55
Tempo e Espaço Guarani: um estudo acerca da ocupação, cronologia e dinâmica de movimentação pré-colonial na Bacia do Rio Taquari/Antas...
Apêndice. Sítio
(Conclusão) Coord. L*
Coord. N
Município
Referência
RS TQ 112
-
-
Venâncio Aires
Klamt et al. (1998)
RS TQ 113
-
-
Venâncio Aires
CNSA e IPHAN (c2014)
RS TQ 135
371.118
6.737.320
Venâncio Aires
CNSA e IPHAN (c2014)
RS-NA 26 “A”
441.078
6.785.036
Veranópolis
Machado (2008)
RS-NA 26 “B”
440.941
6.785.164
Veranópolis
Machado (2008)
RS-AN 24
439.626
6.787.566
Veranópolis
Machado (2008)
RS AN 29 “A”
440.140
6.787.168
Veranópolis
Machado (2008)
RS AN 29 “B”
439.838
6.787.494
Veranópolis
Machado (2008)
RS AN 45
438.812
6.788.235
Veranópolis
Machado (2008)
RS AN 43
438.761
6.789.084
Veranópolis
Machado (2008)
RS-AN 30
438.953
6.789.483
Veranópolis
Machado (2008)
56
Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 12, n. 1, p. 57-84, jan.-abr. 2017
Novas perspectivas para a cartografia arqueológica Jê no Brasil meridional New perspectives on the archaeological cartography of the Jê in Southern Brazil Francisco Silva NoelliI, Jonas Gregorio de SouzaII I
Universidade Estadual de Maringá. Maringá, Paraná, Brasil II
University of Exeter. Exeter, Inglaterra
Resumo: Os grupos Jê do Sul foram por muito tempo percebidos através da ótica do ‘modelo padrão’, que os considerava demograficamente reduzidos, isolados e nômades. Entretanto, os recentes avanços da arqueologia no Sul do Brasil tornaram possível questionar tal modelo. Neste artigo, nosso objetivo principal é demonstrar, através do mapeamento dos sítios arqueológicos e de suas datações, que podem ser identificadas áreas de alta densidade populacional com ocupações permanentes. Além disso, discutimos outras hipóteses com base na distribuição dos sítios: 1) sobre o povoamento do Sul do Brasil pelos grupos Jê; 2) sobre os processos de interação com outras populações (principalmente da família linguística Tupi-Guarani); e 3) sobre sua situação territorial no início do século XVI. Palavras-chave: Jê do Sul. Tradição Taquara/Itararé. Arqueologia regional. Sistemas de Informação Geográfica (SIG). Abstract: For a long time, the Southern Jê Amerindians were perceived through the lens of the ‘standard model’. They were considered demographically reduced, isolated and nomadic. However, recent advances in the archaeology of Southern Brazil allow us to question such model. In this paper, our main aim is to demonstrate, through the mapping of archaeological sites and their dates, that it is possible to identify areas of high population density with permanent occupation. In addition, we discuss other hypotheses based on site distribution such as the peopling of Southern Brazil by the Jê groups; the process of interaction with other populations (mainly from the Tupi-Guarani linguistic family); and about their territorial situation in the beginning of the 16th century. Keywords: Southern Jê. Taquara/Itararé Tradition. Regional archaeology. Geographic Information Systems (GIS).
NOELLI, Francisco Silva; SOUZA, Jonas Gregorio de. Novas perspectivas para a cartografia arqueológica Jê no Brasil meridional. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 12, n. 1, p. 57-84, jan.-abr. 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/ 1981.81222017000100004. Autor para correspondência: Jonas Gregorio de Souza. University of Exeter. Department of Archaeology 309 Laver Building, North Park Rd, Ex44QE. Exeter, Inglaterra (jonas.gregorio@yahoo.com.br). Recebido em 13/06/2016 Aprovado em 14/10/2016
57
Novas perspectivas para a cartografia arqueológica Jê no Brasil meridional
INTRODUÇÃO A expansão geográfica dos falantes das línguas do tronco Macro-Jê alcançou magnitude semelhante às populações Tupi, Karib e Arawak. As fontes linguísticas, históricas e etnográficas mostram diversidade e uma distribuição que abarcou, no Brasil, as regiões Nordeste, Sudeste e Sul, e partes do Centro-Oeste e do Norte, além também de porções da Bolívia, do Paraguai e da Argentina. A investigação arqueológica realizada desde o século XIX contribuiu para detalhar o quadro, com informações sobre aspectos materiais tão complexos e sofisticados quanto os verificados em termos sociais e cosmológicos pela etnologia. As informações mais completas no momento estão na região Sul do Brasil, onde foram encontrados os resultados mais eloquentes sobre os processos da ocupação Jê em termos cronológicos, de espacialidade e de inserção nas paisagens. As novas perspectivas de investigação trazem resultados que superaram a concepção predominante sobre a demografia e a distribuição geográfica dos Kaingang e dos Xokleng – de que estes formariam pequenos grupos nômades e isolados em ambientes pouco produtivos. Seu proponente seminal é Métraux (1942), autor de uma típica projeção para o passado do contexto etnográfico do começo do século XX. Assim como Viveiros de Castro (1999, p. 115), vemos que os indígenas foram considerados “criaturas do olhar objetivante do Estado nacional”, como pertencentes ao Brasil-nação, ao invés de se buscar a “atividade propriamente criadora desses povos” (Viveiros de Castro, 1999, p. 115), vendo-os situados no Brasil. No caso da Arqueologia, poucos consideraram adequadamente aspectos antropológicos ou históricos, fora da noção de aculturação. Entre 1965-1970, durante o desenvolvimento do Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (PRONAPA) no Brasil, foi adotada a
abordagem difusionista, com o pressuposto que considerava possível “tratar a cultura de uma maneira artificialmente separada dos seres humanos” (Meggers, 1955, p. 129). Tal separação ignorou elementos antropológicos na definição dos conjuntos artefatuais arqueológicos, classificados sob o conceito de tradição do histórico-culturalismo norte-americano, definido como “grupo de elementos ou técnicas, com persistência temporal” (Willey; Phillips, 1958, p. 37). Mas houve avanço, com a localização de mais de cem sítios, inicialmente divididos em três tradições arqueológicas: ‘Taquara’ (Rio Grande do Sul), ‘Itararé’ (Santa Catarina, Paraná e São Paulo) e ‘Casa de Pedra’ (Paraná), organizados conforme os fragmentos cerâmicos. Em geral, dava-se primazia a atributos tecnológicos, como tratamento de superfície e antiplástico, de tal modo que algumas fases cerâmicas foram definidas com base em amostras de 15 fragmentos (Mentz Ribeiro, 1972). Posteriormente, a partir dos mesmos pressupostos do PRONAPA, alguns argumentaram que haveria apenas um conjunto, ao invés de três distintos (Miller Jr., 1978; Schmitz, 1988). Outros, com base na geografia dos registros arqueológicos, como Chmyz (1981), não seguiram estritamente o pressuposto de Meggers (1955) e associaram a tradição Itararé aos Xokleng e a Casa de Pedra aos Kaingang. Ao desconsiderar a história Jê e ignorar que a maioria das fontes foi escrita em situação de guerra de conquista1 e de retração demográfica, foi fácil imaginá-los como agrupamentos nômades, pequenos e isolados. Afinal, os estudiosos seguiram o ‘modelo padrão’ (Viveiros de Castro, 1996). Buscando outra direção para superar as limitações do modelo, adotamos a consideração de Monteiro (1999, p. 248) sobre a história indígena no Brasil: “ainda sabemos pouco sobre a história desses povos”. Ele sugeriu ser necessário:
Guerra de conquista é o processo com: a) organização militar conquistadora agindo em nome de um rei, deus, nação; b) um povo de onde se origina o conquistador e que lhe dá identidade e direção comuns contra populações desconhecidas; c) o butim, representado pelos conquistados, seus territórios e riquezas naturais apropriados e mercantilizados; d) finalmente, a conquista, traduzida pela fixação dos vencedores nas terras dos perdedores, explorando o butim e veiculando os elementos da sua cultura através de instituições concebidas para tanto (Lima, 1995, p. 44-63).
1
58
Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 12, n. 1, p. 57-84, jan.-abr. 2017
sobre os povos Jê do Sul. A produção de fontes históricas corresponde a um quarto do período de ocupação Jê no Brasil meridional e na Província de Misiones, produzidas desde o século XVI. Só no século XIX, por força da conquista e do confinamento dos Jê nas ‘áreas indígenas’ gerenciadas pelo Estado, é que começou a produção sistemática de registros escritos.
Recuperar os múltiplos processos de interação entre [os indígenas] e as populações que surgiram a partir da colonização europeia, processos esses que vão muito além do contato inicial e dizimação subsequente dos índios, apresenta-se como tarefa essencial para uma historiografia que busca desvencilhar-se de esquemas excessivamente deterministas (Monteiro, 1995, p. 228).
A ELABORAÇÃO DO MAPA ARQUEOLÓGICO JÊ NO BRASIL MERIDIONAL Nosso objetivo é reavaliar a imagem territorial e demográfica dos Kaingang e Xokleng, juntamente com populações extintas, como os Ingáin e Kimdá, que constituem os Jê do Sul. Pesquisas atuais mostram que nos últimos 1.800 anos os processos de ocupação passaram por continuidades em algumas áreas e mudanças em outras, em termos de padrão de assentamento e de subsistência (Saldanha, 2005, 2008; Copé, 2006; De Masi, 2006, 2009; Iriarte et al., 2008, 2013). Não temos resposta conclusiva, mas houve avanços que não seriam possíveis se o modelo padrão fosse aceito acriticamente e as bases teóricas ainda estivessem assentadas no degeneracionismo e em uma versão simplista da ecologia cultural (Noelli; Ferreira, 2007). Este artigo é a primeira etapa de organização das informações, em termos geográficos, para formar um mapa da distribuição das evidências atribuídas aos ancestrais dos Kaingang e dos Xokleng, continuando uma revisão já sugerida (Noelli, 1996, 1999, 1999-2000, 2004; Silva; Noelli, 1996). Considerando que este é um projeto inicial e que há pouco espaço aqui, restringiremos a análise à distribuição espacial dos sítios arqueológicos, propondo duas hipóteses para testes e debates: 1) uma sobre o processo de colonização do Brasil meridional pelos Jê; 2) outra sobre a distribuição deles no início do século XVI. Futuramente, na continuidade da pesquisa, será apresentada uma interpretação da dinâmica da ocupação do espaço, de 2 mil anos antes do presente (A.P.) até a atualidade. Os dados históricos não serão contemplados, pois estão sendo processados em levantamentos nas fontes
PROBLEMÁTICA Estamos repensando o modelo padrão sobre a territorialidade e a demografia Jê do Sul, abandonando a imagem vigente de pequenos grupos geograficamente isolados. Deve-se abandonar a conceituação de ‘povos marginais’, resultante do determinismo ecológico e do evolucionismo de Steward (1949) e Lowie (1949). Lembramos que esta influência marcou considerações eminentes sobre os Kaingang e os Xokleng, considerados ‘povos marginais’, essencialmente caçadores-coletores, exploradores de ambientes improdutivos com tecnologia simples: Their sociopolitical units were small, somewhat unstable, and frequently nomadic, and the relations of their members to one another were governed by kinship, age, sex, and associations. The size, permanency, and composition of their groups were strongly affected by subsistence patterns, each adapted to a distinctive environment, and by special local developments, such as clans, moieties, and associations. Sociopolitically, therefore, the Marginal peoples differed from one to another as much as they differed from other South American Indians (Steward, 1949, p. 678) […] [suas unidades socio-políticas] consisted either of a single kin group or of several loosely organized kin groups. Members of the unit were differentiated on the basis of age, sex, economic activities, and sometimes associations. [...] These tribes had very similar crisis rites, shamanism, and magic, and their technology and […] generally lacked the developed agriculture, building arts, and manufacturing processes found among other South American Indians. The sociopolitical patterns, however, varied with local conditions. Because the Marginal tribes lived in areas of limited resources and had elementary exploitative devices, the size and composition of their groups and many of their institutions had to be adapted to subsistence needs (Steward, 1949, p. 672).
59
Novas perspectivas para a cartografia arqueológica Jê no Brasil meridional
Posteriormente, a maioria dos estudos sobre os Xokleng e os Kaingang foi influenciada por Henry (1941) e pela noção das áreas culturais de Galvão (1960), primeiro disseminador das ideias de Steward no Brasil. Os dados eram encaixados nas premissas do determinismo ecológico, como ocorria na Amazônia (Roosevelt, 1991; Viveiros de Castro, 1996, 1999). Outro problema é a questão da origem dos Jê meridionais. De onde vieram? Para os linguistas, desde Davis (1966, 1968), Rodrigues (2002) e Jolkesky (2010), eles vieram de fora do Brasil meridional e compartilham uma matriz cultural que define a família linguística Jê. Considera-se que, quando chegaram à região Sul, falavam uma língua oriunda do Brasil central, o proto-Jê meridional, de onde surgiu o Kaingang, o Xokleng, o Kimdá e o Ingáin (Wiesemann, 1978; Urban, 1992; Jolkesky, 2010). Contudo, a história dessas línguas deve ser pesquisada, pois eles não viveram sós, encontrando populações que viviam ali há pelo menos 12 mil A.P., bem como dividiram o processo de ocupação com os Guarani, que chegaram à região pouco depois, aproximadamente em 2.200 A.P. (Bonomo et al., 2015). Até agora, em termos arqueológicos, só uma parte das primeiras invasões Jê foi percebida no litoral do Paraná e de Santa Catarina pelos bioantropólogos (Neves, 1984), que detectaram processos de contato desde uma aparente integração social até o conflito e a expulsão das populações sambaquieiras. Em certos casos, identificou-se a afinidade entre populações Jê do litoral e interior (Neves, 1999). Tais conclusões foram refinadas, confirmando a complexidade das interações entre os Jê e sambaquieiros em diferentes partes da costa, revelando substituição de populações em algumas áreas e continuidade em outras (Okumura, 2007). Os processos de interação também notam-se na incorporação de sítios mortuários Jê do Sul à milenar paisagem sambaquieira (DeBlasis et al., 2014).
Existem marcadores biológicos, culturais e étnicos que podem mostrar as semelhanças e as diferenças entre os Jê do Sul: 1) são línguas intimamente aparentadas (Davis, 1966, 1968; Wiesemann, 1978); 2) possuem marcadores genéticos distintos, que podem indicar fluxo gênico com as populações sambaquieiras e guarani (Salzano; Sutton, 1965; Salzano; Freire-Maia, 1967); 3) compartilham elementos etnográficos, mas possuem várias diferenças (Ploetz; Métraux, 1930; Métraux, 1942; Haekel, 1952, 1953; Schaden, 1958; Hicks, 1966, 1971; Urban, 1978; Kühne, 1979, 1980; Veiga, 1994). É importante ressaltar que a diversidade das línguas Jê meridionais poderia ser maior no passado, existindo, além dos Kaingang e Xokleng, os Ingáin, os Kimdá e os Gualacho, extintos até o início do século XX (Ambrosetti, 1895; Bertoni, 1916; D’Angelis, 2003). As investigações mais recentes indicam que a proto-língua de povos agricultores Jê, chegada ao sul do Brasil, sofreu uma cisão ao redor de 840 d.C., dividindo-se nos subgrupos oriental (Kimdá e Ingáin) e ocidental (Kaingang e Xokleng) (Jolkesky, 2010). Os Kaingang e os Xokleng separam-se ao redor de 1390 d.C. (Jolkesky, 2010). Para os Gualacho, não há dados suficientes para incluí-los em um dos subgrupos. Contudo, entendemos que essa estimativa ainda pode ser calibrada com as cronologias arqueológicas, buscando a equalização entre todos os dados disponíveis. As semelhanças podem ser identificadas nos elementos comuns aos Jê, ou seja, naqueles que existem há mais tempo, compartilhados desde a matriz cultural. Um exemplo é a organização social dual, baseada em metades patrilineares e exogâmicas, conhecida entre os Kaingang (Veiga, 1994) e, possivelmente, existente no passado entre os Xokleng (Métraux, 1947). Tal padrão também ocorre nos Jê centrais e setentrionais (MayburyLewis, 1979), correspondendo a uma matriz comum ancestral2. Agora, considera-se que o dualismo está presente no registro arqueológico Jê meridional: é o
Para comparação Kaingang-Xavante, ver Soares (2008).
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que se argumenta para a decoração na cerâmica (Silva, 2001) e para a arquitetura mortuária (Iriarte et al., 2008, 2013). No último caso, demonstra-se que, no padrão dual, dimensões e alinhamentos, os complexos de aterros anelares e montículos são análogos às distinções entre as metades (Crépeau, 1994, 2002; Iriarte et al., 2008, 2013). Destacamos o formato circular das estruturas cerimoniais e mortuárias como elo de ligação com as praças e aldeias circulares dos povos Jê centrais e setentrionais (MayburyLewis, 1979). Nas raras fontes históricas, há descrições de acampamentos circulares Xokleng, com praça central, erguidos para um rito de iniciação infantil (Paula, 1924), e pelo menos um relato de estrutura anelar ainda em uso no final do século XIX (Silva; Noelli, no prelo). Quanto às diferenças, estas foram surgindo após a separação, devido aos processos históricos distintos vivenciados pelos subgrupos. Destacam-se, como exemplos dessas diferenças, as transformações pelas quais passaram os Xokleng. Normalmente citados como um caso típico de caçadores-coletores na Mata Atlântica, há relatos dos próprios Xokleng no início do século XX de que haveriam vivido no passado como sedentários e agricultores (Henry, 1941; Noelli, 1999-2000). A mobilidade parece ter sido adotada, nesse caso, como uma estratégia de resposta às pressões do sistema colonial europeu. Ao invés de considerarem os linguistas, alguns arqueólogos acreditaram por muito tempo que os Jê seriam autóctones do sul do Brasil e de Misiones. Eles seguiram a hipótese difusionista de Menghín (1957), de que os Jê meridionais seriam a continuidade das populações caçadoras-coletoras altoparanaenses3, que, ao redor de 2 mil A.P., adotaram a técnica de polir líticos, cerâmica e agricultura, transformando-se na tradição ‘eldoradense’, devido aos achados no município argentino de Eldorado. Por exemplo, associando diretamente evidências da tradição Umbu e estruturas de terra, Schmitz et al. (2009)
concluíram que os Xokleng resultaram deste contexto, sugerindo ainda que os Jê viviam no Sul antes da difusão da cerâmica (Schmitz; Rogge, 2011; Schmitz et al., 2013b). Atualmente, com poucos dados estatísticos e sem comparações bioantropológicas, é difícil distinguir diferenças nos registros arqueológicos e relacioná-los aos grupos Jê historicamente conhecidos. A semelhança entre conjuntos artefatuais, tipos de assentamentos e entre outras evidências não permite agora o estabelecimento de uma distinção clara entre os registros arqueológicos de ascendentes Jê meridionais. O cenário torna-se mais complicado quando estamos diante de um palimpsesto com diferentes níveis temporais: 1) as primeiras incursões proto-Jê; 2) os períodos em que estes se ramificaram nos grupos historicamente conhecidos; 3) as movimentações após o século XVI. Apesar das limitações, já visualizamos variações regionais mensuráveis no registro arqueológico, das quais podemos ressaltar as diferenças estilísticas significativas na cerâmica (Souza, 2011) e os padrões de assentamento distintos, notados em áreas com prospecções intensivas – e.g. sítios a céu aberto, compartilhando centros cerimoniais compostos por densas concentrações de montículos funerários no vale do Ribeira, São Paulo (Robrahn, 1988), em contraste com pequenos conjuntos de casas subterrâneas, com aterros anelares e montículos nas partes mais altas dos planaltos rio-grandense e catarinense (De Masi, 2006; Saldanha, 2005; Iriarte et al., 2013). Mas tal objetivo será alcançado com a consideração de outras perspectivas teóricas sobre migração, difusão, fronteiras e estilo. A cerâmica só recentemente foi utilizada como marcador para distinguir os registros arqueológicos Jê do Sul. Com dados etnográficos e históricos, Miller Jr. (1978) e Silva (1999) mostraram que as cerâmicas Kaingang e Xokleng possuíam padrões similares de matéria-prima, das cadeias operatórias de elaboração e das formas. Estes padrões contrastam com as sutis variações estilísticas do tratamento
No Brasil, foi denominada Tradição Humaitá (Hoeltz, 1997). Existe debate sobre a validade dessa tradição, cujos sítios poderiam corresponder a áreas de atividades de grupos ceramistas (Dias; Hoeltz, 2010).
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de superfície percebidas anteriormente (Chmyz, 1981; Brochado, 1984; Schmitz, 1988; Beber, 2004), e estilos regionais começaram a ser identificados nas comparações entre coleções (Saldanha; Copé, 1999; Souza, 2011). Os sítios arqueológicos e os seus vestígios possuem muita semelhança em termos de forma e conteúdo, de tal modo que somente projetos de alcance regional com grande nível de detalhamento definirão quem foi que os produziu e quais são (ou se existem) as diferenças sutis. Até agora, podemos citar poucas pesquisas sistemáticas sobre padrões de assentamento, cronologia e cultura material em nível regional (Araújo, 2001; Saldanha, 2005; Copé, 2006; De Masi, 2006; Robrahn, 1988; Schmitz et al., 2002, 2010; Corteletti, 2008, 2012), e estas parecem apontar para diferenças regionais. A explicação dessas semelhanças materiais pode ser compreendida a partir das conclusões da linguística ora vistas. Acreditamos que a solução aparecerá com uma análise sistemática que compare e verifique semelhanças e diferenças entre os dados disponíveis. Não basta uma simples sobreposição geográfica de registros arqueológicos, históricos e etnológicos. Deve-se adotar uma abordagem estatística das evidências materiais, junto com uma comparação crítica dos dados de fontes escritas. Portanto, o atual ‘estado da arte’ ainda impede a elaboração do mapa com uma nítida definição das ocupações Kaingang, Xokleng, Ingáin e Kimdá, forçando o uso de um rótulo genérico, Jê do Sul ou Jê meridional.
obtivemos as coordenadas (publicadas ou estimadas) de aproximadamente 75% dos sítios arqueológicos. Para dar conta dos registros sem posicionamento geográfico, o mapa de distribuição combina os pontos dos sítios com a área dos municípios (Figura 1). Usamos o ArcGIS10.2 para georreferenciamento e demais análises, apresentando a classificação preliminar dos sítios em: 1) estruturas de terra (casas subterrâneas, aterros e montículos) e 2) outras formas de ocupação, incluindo sítios superficiais, locais com arte rupestre, abrigos e reocupações de sambaquis litorâneos. Apesar de generalizada, devido à escala do mapa, essa classificação permite notar variações regionais nos tipos de sítios4. Consideramos que a combinação de pontos dos sítios com a área dos municípios contempla espaços usualmente desconsiderados, como os territórios no entorno da aldeia principal, com os assentamentos-satélites, interligados por trilhas, que também levavam a áreas de roça, caça, pesca, coleta e de outras atividades. A alimentação do banco de dados arqueológicos foi realizada com publicações feitas até o ano de 2013 (Noelli et al., 2003; Souza; Merencio, 2013). O mapa estará completo adiante, com dados de fontes históricas. As publicações são artigos, livros, teses e dissertações acadêmicas, relatórios de investigações que não passaram por comitês editoriais e o Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos (CNSA), do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/Ministério da Cultura (IPHAN/MinC), órgão público responsável pelo patrimônio arqueológico do Brasil. O levantamento não é total sobre Relatórios de Impacto sobre o Meio Ambiente (RIMAs) e laudos, fontes de difícil acesso. A quantidade de sítios por município indica registros parciais, pois os levantamentos estão longe da conclusão. Na maioria dos casos, os trabalhos de arqueologia apenas foram iniciados. Onde há muitos sítios, temos pesquisas: 1) mais intensas em termos de cobertura espacial; 2) isoladas, com baixa intensidade em termos de cobertura espacial;
O MAPA, A ANTIGUIDADE E OS PROCESSOS DA OCUPAÇÃO JÊ NO BRASIL MERIDIONAL A referência espacial do mapa é a divisão políticoadministrativa dos estados. Adotamos as divisões municipais atuais, tarefa que demandou a atualização do cadastro de sítios arqueológicos e resultou na percepção de que o nosso registro de localização difere de várias publicações originais. Além da representação por municípios, Para o estado do Paraná, ver Souza e Merencio (2013).
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Figura 1. Mapa dos municípios com sítios arqueológicos Jê do Sul.
3) com atuação contínua de uma mesma equipe; 4) e, eventualmente, um sítio subdividido em vários. O mapa de distribuição dos sítios (Figura 1) mostra continuidade espacial, considerando a vizinhança/ proximidade entre municípios. Os interstícios devem-se às lacunas da falta de investigação ou de publicação dos resultados e, raramente, à ausência de facto de evidências. A estratégia de pesquisa de campo da maioria dos levantamentos realizados também deixou lacunas, ocorrendo basicamente à beira-rio, onde se ignoram os assentamentos interfluviais e os mais afastados das margens dos cursos d’água. Por outro lado, transects nas linhas de transmissão e estradas também possuem lacunas. A ocupação na topografia mais elevada e nas encostas, à distância dos cursos d’água, parece ser a posição predominante das antigas aldeias, embora haja variações
(Reis, 1980; Robrahn, 1988; Araújo, 1995, 2001; Reis, 2002; Saldanha, 2005; Copé, 2006; Corteletti, 2012). Sabe-se que, em certas regiões, os assentamentos estão concentrados nos vales de rios (De Masi, 2006; Corteletti, 2012) e à beira-mar (Schmitz, 1988). Os vieses nas prospecções reduzem a quantidade de sítios e formam uma imagem distorcida de vários aspectos, principalmente os demográficos. Além disso, foram poucas as pesquisas realizadas para resolver problemas relacionados à explicação sobre o tamanho e a distribuição espacial dos sítios arqueológicos. Os trabalhos dedicados a tais questões apontam unanimemente para a distribuição não aleatória dos sítios no espaço, com grandes aldeias centrais dispostas em pontos estratégicos da paisagem e cercadas por sítios-satélites menores, além de monumentos funerários e centros cerimoniais como
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referências territoriais importantes (Robrahn, 1988; Araújo, 2001; Saldanha, 2005; Copé, 2006; Souza, 2012, 2015; Corteletti, 2012; Iriarte et al., 2013). Os municípios isolados também representam, em alguns casos, ocupações posteriores ao século XVII, após a descompressão demográfica massiva do holocausto Guarani. O esvaziamento Guarani no sul do Brasil proporcionou aos Jê mais possibilidades de circulação e a ocupação de territórios ‘vazios’, sem a necessidade de estabelecer redes de aldeias. Também possibilitou a oportunidade de retornar para áreas que eles ocuparam no passado, de onde foram expulsos pelos Guarani (Brochado, 1984; Noelli, 2004; Bonomo et al., 2015). A reocupação de territórios ‘vazios’, somada a uma aparente descontinuidade territorial entre os assentamentos,
manifestada pela presença de agrupamentos isolados dos Kaingang e dos Xokleng nos séculos XVIII e XIX, explicaria os sítios arqueológicos isolados (Urban, 1978; Mota, 1994, 1998; Tommasino, 1995). A baixa densidade em algumas áreas e os casos isolados, além da incipiência das pesquisas, podem representar unidades de fronteira. Embora haja poucos estudos sobre a delimitação de fronteiras em termos sincrônicos e diacrônicos, em algumas áreas é possível sugerir limites estabelecidos no passado e que parecem ter durado (Figura 1). A grande quantidade de sítios em alguns municípios abre a perspectiva para estudos sobre demografia, até agora sem qualquer tipo de desenvolvimento 5. Os municípios com mais de dez sítios arqueológicos – alguns
Figura 2. Mapa de densidade dos sítios Jê do Sul.
Reis (1980) foi a única a propor alguma estimativa de população com base no número e nas dimensões de estruturas subterrâneas no planalto catarinense.
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Se, até agora, poucos lugares foram alvos de prospecções com alta densidade6, de modo a cobrir amplas superfícies em quilômetros quadrados, esperamos que novas investigações aumentem a quantidade de sítios por município. Considerando nossa sugestão para o tamanho da área de ocupação do século XVI (Figura 3), pode-se inferir que a densidade demográfica da população foi muito maior do que a atual. Essa demonstração ainda está para ser feita, pois existe apenas um estudo de demografia histórica para o período colonial, realizado por Steward (1949, 2000), que projetou arbitrariamente números de 1940 (Henry, 1941) para o século XVI, ignorando explicitamente as fontes escritas e os processos históricos coloniais.
alcançam 61 – indicam adensamento populacional. Usamos o ArcGIS 10.2 para criar um mapa de densidade kernel, com células de 100 km 2. Como resultado, a Figura 2 apresenta o número médio de sítios a cada 100 km2. Algumas áreas despontam como locais de alta densidade de sítios: o vale do Ribeira e o adjacente planalto de Curitiba, o médio rio Tibagi, o médio rio Iguaçu e toda a borda leste do planalto catarinense e rio-grandense, no entorno das bacias dos rios Pelotas, Canoas e das Antas. É interessante notar que alguns desses locais têm algumas das mais longas histórias de ocupação Jê do Sul e seguiram ocupados por estes até o século XVI.
Figura 3. Distribuição das datações arqueológicas. Como áreas prospectadas intensamente, citamos o vale do Ribeira (Robrahn, 1988), o alto e o baixo Canoas (De Masi, 2006; Corteletti, 2012) e os municípios de São José do Cerrito (Reis, 1980; Schmitz et al., 2010), Pinhal da Serra (Saldanha, 2005; Iriarte et al., 2013) e Bom Jesus (Copé, 2006).
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Por outro lado, as datações apontam para a longa duração das ocupações regionais. Apesar da necessidade de mais datações e da revisão e do aprofundamento das pesquisas arqueológicas já realizadas, alguns sítios apresentam uma continuidade de ocupação excepcional, se considerarmos a sobreposição de camadas datadas. No mínimo, essas continuidades merecem um teste para comprovar se foram efetivamente reais ou se resultam de falhas técnicas ocorridas durante as investigações. Em 23 sítios distintos encontramos os resultados conforme são apresentados no Quadro 1 e na Figura 4. Dos sítios do Quadro 1, a maioria apresenta estruturas semi-subterrâneas, confirmando a longa
ocupação dessa forma de arquitetura doméstica. Entretanto, encontram-se também sítios com montículos funerários entre os listados no quadro, sugerindo a importância longeva dos cemitérios na estruturação dos territórios Jê meridionais (Iriarte et al., 2008, 2013). A permanência nos sítios leva a repensar o problema do tempo e da continuidade da ocupação, mesmo que as datas de certos sítios na Figura 4 aparentem claramente reocupações, e não uma presença contínua (e.g. SC-TA-04, Posto Fiscal, entre outros) (Schmitz et al., 2002, 2013b). Não é mais possível manter a interpretação de que os sítios seriam reocupados somente após um período de abandono. Por exemplo, devem-se considerar os estudos
Quadro 1. Datações representando sítios com longa ocupação (ver referências no Apêndice). Duração da ocupação Sítio Município
Estado
890 anos
Rincão dos Albinos
São José do Cerrito
SC
840 anos
RS-AN-03
Bom Jesus
RS
820 anos
RS-A-27
Vacaria
RS
750 anos
RS-127
Caxias do Sul
RS
660 anos
SC-TA-04
Taió
SC
550 anos
Posto Fiscal
Pinhal da Serra
RS
540 anos
RS-A-2
São Francisco de Paula
RS
460 anos
PR-UV-12
Bituruna
PR
440 anos
Barra do Turvo
Barra do Turvo
SP
420 anos
SC-AG-107
Anita Garibaldi
SC
390 anos
SC-AB-93
Abdon Batista
SC
330 anos
Tapera
Florianópolis
SC
280 anos
PR-UB-4
Ubiratã
PR
260 anos
SC-CL-46
São José do Cerrito
SC
260 anos
PR-CT-93
Curitiba
PR
230 anos
RS-A-29
Vacaria
RS
210 anos
SC-CL-43
São José do Cerrito
SC
200 anos
PR-CT-53
Curitiba
PR
170 anos
RS-PE-28a
Pinhal da Serra
RS
170 anos
PM-01
Eldorado
MIS
150 anos
SC-AG-12
Anita Garibaldi
SC
130 anos
Içara
Içara
SC
100 anos
RS-PE-10
Pinhal da Serra
RS
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de solo antropogênico da Amazônia para testá-las em outros contextos: estimativas sobre o tempo de formação das terras pretas variam desde 1 a 0,002 cm por ano, mas o consenso recai sobre um processo lento, resultado de longa permanência (Erickson, 2003). Devem-se considerar os novos estudos cronológicos no Brasil de sítios continuamente ocupados (Fish et al., 2000; Martins; Kashimoto, 2000); pesquisas com novas abordagens estratigráficas e mais datas estão contribuindo para definir com precisão o processo de ocupação dos sítios (Saldanha,
2005; Copé, 2006; Copé; Saldanha, 2002). É curioso que evidências de longas ocupações datadas em sítios e regiões inteiras não sejam consideradas por alguns arqueólogos atrelados ao modelo padrão (Schmitz et al., 2002, 2013b). O conjunto de datas mostra a continuidade da presença Jê em algumas áreas: para facilitar a visualização desta continuidade, organizamos as datas conforme os municípios e, dentro de cada município, desde as mais antigas até as mais recentes; os municípios com maior número de datações são listados primeiro no Apêndice (ver também a Figura 3).
Figura 4. Somas das datas calibradas nos sítios com longa ocupação. A soma foi realizada através do programa OxCal 4.2, combinando-se as distribuições de todas as datações calibradas de um mesmo sítio em uma única probabilidade (Steele, 2010; Williams, 2012). Fonte: OxCal v4.2.4 (Ramsey; Lee, 2013), r:5 SHCal13 atmospheric curve (Hogg et al., 2013).
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Novas perspectivas para a cartografia arqueológica Jê no Brasil meridional
REFLEXÕES SOBRE A OCUPAÇÃO JÊ DO BRASIL MERIDIONAL Brochado (1984) propôs a primeira versão plenamente subsidiada por dados arqueológicos da expansão Jê no Brasil meridional. Mas, como ele adotou as ideias de Menghín (1957), concebeu que a rota era apenas de difusão da cerâmica e da agricultura. Brochado (1984), como Menghín (1957), acreditava que os Jê estavam no sul antes da cerâmica e da agricultura, deixando de compreender que foi um processo de colonização humana, ao invés de difusão de cultura material. A distribuição das datações permite verificar que o processo de ocupação da região Sul começou por São Paulo, no sentido norte-sul, conforme a linguística. Para considerar essa rota, é preciso observar a distribuição dos registros linguísticos e arqueológicos fora dessa região. Também é necessário conhecer a história da pesquisa, como vimos realizando (Silva; Noelli, 1996; Noelli, 1999; Souza, 2011). O oeste paulista e o Mato Grosso do Sul contêm registros arqueológicos Jê do Sul, mas parecem representar outro momento da ocupação, mais recente, descartando o início dela pela calha do rio Paraná e metade oeste de São Paulo. Os dados arqueológicos da região de Parapuã e Tupã, localizados por Drummond e Philipson (1947) e Miller Jr. (1978), assim como outros, localizados nos municípios do quadrante noroeste do Paraná, em Porecatu e Lupionópolis, por Chmyz (1968), no médio rio Paranapanema e, mais recentemente, em Maringá e Apucarana, parecem representar as movimentações Jê entre os séculos XVII e XX, após o colapso Guarani (Tommasino, 1995; Mota, 2000; Noelli, 2004). À beira do rio Paraná, nos municípios de Mundo Novo e Guaíra, o registro arqueológico embaixo da ocupação Guarani de cerca de 2000 A.P. resultou da primeira frente de colonização Jê vinda do centro do Paraná (Noelli, 2004).
O mesmo parece ser o caso do sítio José Vieira, em Cidade Gaúcha (Laming; Emperaire, 1959), sob a base da ocupação Guarani (1380 ± 150 A.P.), onde foram encontrados fragmentos denominados “Casa de Pedra intrusiva” (Chmyz, 1968). Por outro lado, as informações do sudeste de São Paulo, especialmente do vale do Ribeira, bem como as do nordeste do Paraná, principalmente do vale do rio Itararé e alto Paranapanema, permitem concluir (Araújo, 2001, 2007; Noelli, 2004) que a metade leste de São Paulo e a do Paraná foram os principais acessos dos Jê para o sul do Brasil. As datas do Alto Taquari, em São Paulo (1540 ± 150 A.P.), e de Sengés, no Paraná (1790 ± 210 A.P.), encontram-se entre as mais antigas para a ocupação Jê do Sul e confirmam, portanto, a posição da borda leste do primeiro planalto paulista e paranaense como rota migratória (Parellada, 2005; Araújo, 2007) (Figura 5). Ainda não foram localizadas informações arqueológicas Itararé ao norte do vale do Ribeira7, mas parece que o flanco oriental do Planalto Paulista foi a região de acesso dos Jê. Considerando as relações linguísticas com a família Jê e outras do tronco Macro-Jê, situadas no Rio de Janeiro, no Espírito Santo e em Minas Gerais, mais as comparações a serem realizadas entre os vestígios arqueológicos da região Sul com os localizados ao norte da região Sudeste, é provável que ali seja descoberto o elo geográfico entre os Jê do Brasil meridional e os centrais (Brochado, 1984; Noelli, 2004; Araújo, 2007). Na área entre a Serra do Mar e um limite interiorano desconhecido da metade leste do estado de São Paulo até a fronteira com Minas Gerais, deve ocorrer o principal espaço da ocupação Jê, com recuo temporal que poderá alcançar 3 mil anos. Araújo (2007) notou uma possível continuidade entre a tradição Una8, de Minas Gerais, e a Itararé, do sul de São Paulo. Provavelmente, as evidências Itararé isoladas de São Paulo, como o sítio Topo do Guararema (Benedito;
Se a filiação Itararé do sítio Topo do Guararema (Benedito; Panachuk, 2007) for confirmada, o limite da ocupação Jê do Sul será estendido mais de 200 km para norte. 8 A tradição Una possui ampla dispersão no Brasil central e litoral do sudeste, relacionada aos ancestrais de diferentes famílias do tronco Macro-Jê (Brochado, 1984; Prous, 1992; Henriques Jr., 2006). 7
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Figura 5. Rotas de expansão dos Jê no sul do Brasil.
Panachuk, 2007) e as poucas estruturas subterrâneas conhecidas de Minas Gerais, representem exatamente pontos desta continuidade (Prous, 1992; Henriques Jr., 2006). Se confirmada a conexão entre as tradições Una e Itararé, as áreas nordeste de São Paulo e sudeste de Minas Gerais podem ter sido o local da formação da língua proto-Jê meridional, confirmando os modelos linguísticos (Urban, 1992) e parte do modelo de Brochado (1984). A expansão Jê deve ser investigada considerando também a expansão Guarani, pelo Mato Grosso do Sul e oeste paulista, e Tupinambá, para o sul, via litoral atlântico, e interior, pela divisa São Paulo-Minas Gerais (Corrêa, 2014). Os dados apontam que houve disputa pelos mesmos territórios, com os Jê chegando antes, ocupando os vales de grandes rios e a beira-mar. Essa disputa teve uma dinâmica que culminou na abertura de
brechas territoriais consideráveis entre os Jê, preenchidas pelos Guarani e pelos Tupinambá. Os Jê foram empurrados para os biomas com predomínio de campo, enquanto os dois conjuntos Tupi conquistaram as áreas do bioma Mata Atlântica (Brochado, 1984; Noelli, 2004). A densidade populacional Jê do Sul aparentemente foi menor do que a dos grupos Tupinambá e Guarani. A dinâmica social e política faccionalista dos Jê do Sul (Fernandes, 2002) enfraquecia os laços entre as aldeias e aumentava a fragilidade nas disputas territoriais com os Guarani e os Tupinambá, que se organizavam em redes de aldeias aliadas para atuar em grandes grupos, quando disputavam novos territórios. Entretanto, há algumas áreas que tiveram sucesso na resistência contra os Guarani, gerando a necessidade de se procurar perceber onde ocorreu isso (Souza; Merencio, 2013; Souza et al., 2016).
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Os Tupinambá separaram os Jê e os Macro-Jê que ocuparam partes da Serra do Mar e do litoral em São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e em algumas áreas interioranas de Minas Gerais e de São Paulo. Tal separação, no vale do Ribeira, estabeleceu o limite setentrional litorâneo dos Jê do Sul, por volta de 2 mil A.P. Os Guarani causaram recortes territoriais mais amplos, comprimindo os Jê do Sul nas áreas elevadas da Serra Geral, desde o centro-sul do Paraná até os campos do planalto do Rio Grande do Sul. Neste processo de disputa territorial, considerando as evidências arqueológicas, verifica-se que os Guarani comprimiram os territórios Jê no alto Paranapanema e médio Iguaçu a aproximadamente 1.800 A.P.: 1) os expulsaram da beira-mar do Paraná ao Rio Grande do Sul a partir de 1.200 a 1 mil A.P; 2) os comprimiram no alto rio Uruguai a aproximadamente 1.500 A.P.; 3) os empurraram para os campos de Caxias do Sul a cerca de 1. 900 A.P.; 4) separaram os territórios dos vales do Ribeira e Tibagi e alto Iguaçu a cerca de 1.500 A.P., criando dois núcleos Jê que persistiam no século XVII. A interação entre os Guarani e os Jê do Sul está documentada em pontos onde parecem ter existido fronteiras fluidas – seja pela influência nos atributos da cerâmica, seja pela presença de enclaves Guarani em áreas Jê (Chmyz, 1971; De Masi; Artusi, 1985; Mentz Ribeiro, 1991; Rogge, 2004; Volcov, 2011). Entretanto, em certos pontos-chaves da ocupação Jê meridional nas terras altas, a reação à compressão dos territórios pelos Guarani parece ter variado. No estado do Paraná, tais áreas incluem o médio Iguaçu e o baixo Piquiri, onde a concentração de casas subterrâneas e montículos funerários aponta para uma ocupação densa, permanente e não facilmente conquistável pelos Guarani nas áreas onde há campos naturais (Souza; Merencio, 2013). Mais recentemente, Souza et al. (2016) demonstraram que as áreas comprimidas pelos Guarani, especialmente a leste da confluência do Canoas e do Pelotas, formadores do Uruguai, são aquelas onde proliferaram monumentos funerários Jê do Sul, onde há transição da Mata Atlântica
para os campos de cima de Serra. Se considera tais monumentos como correlatos de intensa marcação territorial e maior nível de organização regional, o que conferiria vantagens na resistência aos forasteiros aos Jê dessas áreas (Souza et al., 2016). As evidências arqueológicas interpretadas a partir das informações históricas mostram que os Jê do Sul concentravam-se nos territórios mais elevados acima do nível do mar, onde predominam as temperaturas mais baixas e as áreas de campo intercaladas com a mata de araucária. A porção superior de boa parte dos vales que terminam no litoral atlântico estava ocupada pelos Jê, enquanto que a planície costeira das regiões Sul e Sudeste era domínio Tupinambá (ao norte da ilha do Cardoso) e Guarani (ao sul de Antonina). A região de Misiones possui poucas datas (Apêndice), e estas se estendem desde o século XIII até o século XVI – posteriores, portanto, à expansão Guarani no rio Paraná. Por fim, a dinâmica socioeconômica contribuiu para o contínuo crescimento populacional Guarani ainda no século XVI, longe de existir uma estabilização demográfica até o início do colapso demográfico. Os Guarani ocupavam, na fronteira de diversos territórios Jê, no limite das florestas subtropicais e da Mata Atlântica, incluindo ambientes de baixa temperatura, como a região de Curitiba e de Castro, as porções meridionais de Caxias do Sul e de São Francisco de Paula e o alto vale do rio Uruguai, sem contar outros nichos extremos para a sua policultura agroflorestal. A Figura 6 foi elaborada com essas informações, como hipótese para os territórios de ocupação dos Jê do Sul no século XVI, envolvidos e comprimidos pelos Guarani e pelos Tupinambá nas suas fronteiras. Algumas áreas periféricas Jê parecem se estender mais para oeste, no estado do Paraná, onde os jesuítas constataram Gualachos e Guayanás no século XVII (Cortesão, 1951; Chmyz, 1976), corroborando datações do período histórico. Algumas datas indicam enclaves Jê em áreas sem informações históricas do século XVI, como Misiones e o oeste do Rio Grande do Sul.
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Figura 6. Concentração dos povos Jê no Brasil meridional, no início do século XVI.
As dinâmicas territoriais e demográficas aproximaram e comprimiram as populações Jê do Sul, Guarani e Tupinambá em certas áreas, oportunizando a existência de trocas e conflitos. O resultado desses contatos pode ser verificado no ‘léxico Kaingang’, onde se encontram várias palavras Guarani para a cultura material. Também é possível que nos relacionamentos sociais e políticos houvesse contato, pois nas fontes históricas há casos de casamentos interétnicos.
com a necessidade de ser realizada e debatida pelo conjunto de investigadores da colonização humana do Brasil. A continuação dos levantamentos arqueológicos é o tópico mais central em um rol de temas importantes, sem esquecer da grande necessidade das abordagens regionais. Como são ao menos 2 mil anos de história contínua, há muito para fazer, especialmente sobre os processos regionais e locais. Existem muitas questões: 1) Qual o tipo de adaptação ao ambiente?; 2) Quais os tipos de contato interétnico? Algumas sínteses já produzidas demonstram o potencial dos estudos sobre interação na arqueologia sul-brasileira; 3) Quais os tipos de troca cultural?; 4) Como foram os conflitos com as populações chamadas tradições Umbu e Humaitá, e com as populações concorrentes na luta pelo espaço, como os Guarani
CONSIDERAÇÕES FINAIS E SUGESTÕES A criação do mapa arqueológico dos Jê do sul é um desafio, atualmente com mais perguntas e lacunas do que com certezas. Este trabalho é uma pesquisa em construção, inteiramente aberta a novos dados e a outras interpretações,
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e os Tupinambá? Esse tema tem despertado interesse recentemente, chamando a atenção para a possibilidade de os arqueólogos identificarem fronteiras políticas através de sua materialização na paisagem (Iriarte et al., 2008; Souza; Merencio, 2013; Souza et al., 2016); 5) Quais as mudanças e as continuidades que podem ser identificadas pela abordagem histórica?; 6) Qual o impacto ambiental? Sabemos, por exemplo, que há uma íntima relação entre as populações Jê do Sul e as florestas de araucária. Portanto, é preciso investigar se houve ação humana na dispersão da espécie (Noelli, 1999-2000, 2000; Bitencourt; Krauspenhar, 2006; Iriarte; Behling, 2007; Iriarte et al., 2014; Cardenas et al., 2015); 7) Quais as demografias regionais? Como vimos, muitas dessas perguntas estão ainda por responder. Também é necessário ampliar a quantidade de datações para que os processos históricos locais e regionais sejam conhecidos, assim como é preciso obter mais dados para as análises de bioantropologia. Os estudos demográficos, arqueológicos e históricos precisam ser iniciados nos padrões mais contemporâneos, pois inexistem. A pesquisa histórica deve ser ampliada nas áreas de interesse arqueológico, para o reconhecimento de populações e de eventos documentados. Existe vasta quantidade de fontes publicadas e inéditas com informações virgens, com potencial para contribuir na renovação historiográfica sobre a formação da ‘sociedade brasileira’ colonial, da sua economia, cultura, demografia etc. Há uma lacuna no campo das comparações entre os Jê. Há alguns trabalhos preliminares, especialmente linguísticos e etnológicos, que precisam de atualização e ampliação. Dado o volume de informações, é um campo aberto, praticamente uma ‘terra incógnita’ em termos acadêmicos, esperando por mais e novos pesquisadores interessados. Por fim, é muito importante que as novas pesquisas passem a observar os debates teóricos e metodológicos que estão em curso no âmbito das abordagens mais atuais na Arqueologia, Etnologia Indígena e História Indígena, cujos vários tópicos deveriam inspirar exemplos. Acreditamos
que eles devam ser estritamente incorporados, pois contêm os elementos e as indicações para uma renovação dos estudos Jê do Sul.
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78
Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 12, n. 1, p. 57-84, jan.-abr. 2017
Apêndice. Datações dos sítios arqueológicos Jê do Sul (para localização, ver Figura 4). Legenda: * = datas de TL. (Continua) Sítio Datação A.P. Número de laboratório Município Fonte Número na Figura 4 SC/CL/70
1400 ± 40
Beta-297431
São José do Cerrito
Schmitz et al. (2013a)
1
SC/CL/71
1360 ± 30
Beta-319363
São José do Cerrito
Schmitz et al. (2013a)
1
SC/CL/71
1330 ± 30
Beta-319370
São José do Cerrito
Schmitz et al. (2013a)
1
SC/CL/70
1320 ± 40
Beta-293588
São José do Cerrito
Schmitz et al. (2013a)
1
SC/CL/70
1320 ± 40
Beta-293589
São José do Cerrito
Schmitz et al. (2013a)
1
SC/CL/71
1310 ± 30
Beta-319374
São José do Cerrito
Schmitz et al. (2013a)
1
SC/CL/71
1290 ± 30
Beta-319372
São José do Cerrito
Schmitz et al. (2013a)
1
SC/CL/71
1270 ± 30
Beta-319371
São José do Cerrito
Schmitz et al. (2013a)
1
SC/CL/71
1260 ± 30
Beta-329373
São José do Cerrito
Schmitz et al. (2013a)
1
SC/CL/70
1250 ± 40
Beta-297430
São José do Cerrito
Schmitz et al. (2013a)
1
SC/CL/70
1190 ± 40
Beta-293590
São José do Cerrito
Schmitz et al. (2013a)
1
SC/CL/70
1110 ± 40
Beta-293591
São José do Cerrito
Schmitz et al. (2013a)
1
SC/CL/70
1080 ± 30
Beta-297429
São José do Cerrito
Schmitz et al. (2013a)
1
SC/CL/46
910 ± 30
Beta-357352
São José do Cerrito
Schmitz et al. (2013b)
1
SC/CL/50
910 ± 30
Beta-351740
São José do Cerrito
Schmitz et al. (2013b)
1
SC/CL/52
870 ± 30
Beta-351742
São José do Cerrito
Schmitz et al. (2013b)
1
SC/CL/52
860 ± 30
Beta-357350
São José do Cerrito
Schmitz et al. (2013b)
1
SC/CL/56
830 ± 40
Beta-242151
São José do Cerrito
Schmitz et al. (2013b)
1
SC/CL/71
830 ± 30
Beta-316467
São José do Cerrito
Schmitz et al. (2013a)
1
SC/CL/94
770 ± 40
Beta-275576
São José do Cerrito
Schmitz et al. (2013b)
1
SC/CL/43
640 ± 40
Beta-275575
São José do Cerrito
Schmitz et al. (2013b)
1
SC/CL/46
610 ± 30
Beta-357351
São José do Cerrito
Schmitz et al. (2013b)
1
SC/CL/43a
590 ± 40
Beta-242152
São José do Cerrito
Schmitz et al. (2013b)
1
SC/CL/46
580 ± 30
Beta-351739
São José do Cerrito
Schmitz et al. (2013b)
1
SC/CL/46
510 ± 30
Beta-357346
São José do Cerrito
Schmitz et al. (2013b)
1
SC/CL/43
470 ± 50
Beta-256216
São José do Cerrito
Schmitz et al. (2013b)
1
SC/CL/70
470 ± 50
Beta-297432
São José do Cerrito
Schmitz et al. (2013a)
1
SC/CL/43
370 ± 40
Beta-285996
São José do Cerrito
Schmitz et al. (2013b)
1
SC/CL/71
370 ± 30
Beta-316464
São José do Cerrito
Schmitz et al. (2013a)
1
SC/CL/51
320 ± 30
Beta-351741
São José do Cerrito
Schmitz et al. (2013b)
1
SC/AG/19
2510 ± 40
Beta-190307
Anita Garibaldi
De Masi (2005)
2
SC/AG/76
1050 ± 40
Beta-190308
Anita Garibaldi
De Masi (2005)
2
SC/AG/75
980 ± 40
Beta-190309
Anita Garibaldi
De Masi (2005)
2
SC/AG/107
970 ± 60
Anita Garibaldi
Müller (2007)
2
SC/AG/76
940 ± 40
Anita Garibaldi
De Masi (2005)
2
SC/AG/107
880 ± 70
Beta-190310
Anita Garibaldi
Müller (2007)
2
SC/AG/107
750 ± 40
Anita Garibaldi
Müller (2007)
2
79
Novas perspectivas para a cartografia arqueológica Jê no Brasil meridional
Apêndice. Sítio
Datação A.P.
Número de laboratório
(Continua) Número na Figura 4
Município
Fonte
Anita Garibaldi
Müller (2007)
2 2
SC/AG/107
720 ± 60
SC/AG/12
690 ± 40
Beta-185443
Anita Garibaldi
De Masi (2005)
Beta-190304
Anita Garibaldi
De Masi (2005)
2
Anita Garibaldi
Müller (2007)
2
SC/AG/12
600 ± 40
SC/AG/107
510 ± 40
SC/AG/12
470 ± 40
Beta-185444
Anita Garibaldi
De Masi (2005)
2
SC/AG/12
430 ± 40
Beta-185442
Anita Garibaldi
De Masi (2005)
2
SC/AG/107
420 ± 60
Anita Garibaldi
Müller (2007)
2
SC/AG/77
420 ± 40
Beta-190311
Anita Garibaldi
De Masi (2005)
2
SC/AG/100
390 ± 50
Beta-226124
Anita Garibaldi
Müller (2008)
2
SC/AG/108
350 ± 40
Beta-226125
Anita Garibaldi
Müller (2008)
2
SC/AG/98
350 ± 40
Beta-175188
Anita Garibaldi
Müller (2008)
2
SC/AG/18
180 ± 40
Beta-190306
Anita Garibaldi
De Masi (2005)
2
SC/AG/40
180 ± 40
Anita Garibaldi
Saldanha (2005)
2
RS/A/27
950 ± 72*
Vacaria
Schmitz et al. (2002)
3
LVD-624
RS/A/27
870 ± 60
Beta-144246
Vacaria
Schmitz et al. (2002)
3
RS/A/27
870 ± 50
Beta-144244
Vacaria
Schmitz et al. (2002)
3
RS/A/27
830 ± 64*
LVD-623
Vacaria
Schmitz et al. (2002)
3
RS/A/27
723 ± 55*
LVD-625
Vacaria
Schmitz et al. (2002)
3
RS/A/29
710 ± 60
Beta-178090
Vacaria
Schmitz et al. (2002)
3
RS/A/29
680 ± 80
Beta-153842
Vacaria
Schmitz et al. (2002)
3
RS/A/27
520 ± 60
Beta-144245
Vacaria
Schmitz et al. (2002)
3
RS/A/27
386 ± 31*
LVD-627
Vacaria
Schmitz et al. (2002)
3
RS/A/29
380 ± 60
Beta-153843
Vacaria
Schmitz et al. (2002)
3
RS/A/29
370 ± 50
Beta-178089
Vacaria
Schmitz et al. (2002)
3
RS/A/27
348 ± 30*
LVD-621
Vacaria
Schmitz et al. (2002)
3
RS/A/27
166 ± 15*
LVD-620
Vacaria
Schmitz et al. (2002)
3
RS/A/27
40 ± 60
Beta-144247
Vacaria
Schmitz et al. (2002)
3
RS/A/27
30 ± 50
Beta-144243
Vacaria
Schmitz et al. (2002)
3
RS/P/12
1810 ± 85
SI-813
Bom Jesus
Schmitz; Brochado (1972)
4
RS/AN/03
1070 ± 70
Beta-178135
Bom Jesus
Copé (2006)
4
RS/AN/03
1000 ± 40
Beta-166588
Bom Jesus
Copé (2006)
4
RS/P/27
950 ± 80
SI-812
Bom Jesus
Schmitz; Brochado (1972)
4
RS/AN/03
880 ± 40
Beta-183020
Bom Jesus
Copé (2006)
4
RS/AN/03
870 ± 50
Beta-183022
Bom Jesus
Copé (2006)
4
RS/AN/03
780 ± 60
Beta-178136
Bom Jesus
Copé (2006)
4
RS/AN/03
690 ± 60
Beta-183021
Bom Jesus
Copé (2006)
4
RS/AN/03
550 ± 40
Beta-166584
Bom Jesus
Copé (2006)
4
80
Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 12, n. 1, p. 57-84, jan.-abr. 2017
Apêndice. Sítio
(Continua) Número na Figura 4
Datação A.P.
Número de laboratório
Município
Fonte
RS/AN/03
370 ± 50
Beta-166584
Bom Jesus
Copé (2006)
4
RS/AN/03
250 ± 50
Beta-178134
Bom Jesus
Copé (2006)
4
RS/AN/03
80 ± 50
Beta-166586
Bom Jesus
Copé (2006)
4
SC/AB/95b
1230 ± 40
Beta-190302
Abdon Batista
De Masi (2005)
5
SC/AB/93d
840 ± 40
Beta-190300
Abdon Batista
De Masi (2005)
5
SC/AB/93
690 ± 40
Beta-190301
Abdon Batista
De Masi (2005)
5
SC/AB/93
650 ± 40
Beta-190297
Abdon Batista
De Masi (2005)
5
SC/AB/48
450 ± 40
Beta-190294
Abdon Batista
De Masi (2005)
5
SC/AB/04
400 ± 40
Beta-190292
Abdon Batista
De Masi (2005)
5
SC/AB/04
370 ± 40
Beta-190293
Abdon Batista
De Masi (2005)
5
SC/AB/96
360 ± 40
Beta-190303
Abdon Batista
De Masi (2005)
5
SC/AB/93d
340 ± 40
Beta-190299
Abdon Batista
De Masi (2005)
5
SC/AB/93c
300 ± 40
Beta-190298
Abdon Batista
De Masi (2005)
5
SC/AB/92
190 ± 40
Beta-190296
Abdon Batista
De Masi (2005)
5
Posto Fiscal
1070 ± 40
Beta-303594
Pinhal da Serra
Iriarte et al. (2013)
6
RS/PE/28a
650 ± 55
SI-6563
Pinhal da Serra
Ribeiro; Ribeiro (1985)
6
RS/PE/26a
635 ± 45
SI-6561
Pinhal da Serra
Ribeiro; Ribeiro (1985)
6
RS/PE/29
490 ± 40
Beta-242869
Pinhal da Serra
Souza; Copé (2010)
6
RS/PE/10a
465 ± 40
SI-6558
Pinhal da Serra
Ribeiro; Ribeiro (1985)
6
RS/PE/28a
420 ± 55
SI-6562
Pinhal da Serra
Ribeiro; Ribeiro (1985)
6
RS/PE/10a
390 ± 50
SI-6556
Pinhal da Serra
Ribeiro; Ribeiro (1985)
6
Posto Fiscal
370 ± 40
Beta-309037
Pinhal da Serra
Iriarte et al. (2013)
6
RS/PE/10b
355 ± 50
SI-6559
Pinhal da Serra
Ribeiro; Ribeiro (1985)
6
RS/PE/21
350 ± 40
Beta-242868
Pinhal da Serra
Souza; Copé (2010)
6
RS/PE/29
340 ± 40
Beta-242860
Pinhal da Serra
Souza; Copé (2010)
6
Posto Fiscal
330 ± 40
Beta-304479
Pinhal da Serra
Iriarte et al. (2013)
6
RS/40
1520 ± 90
SI-607
Caxias do Sul
Schmitz (1969)
7
RS/127
1480 ± 70
SI-603
Caxias do Sul
Schmitz (1969)
7
RS/127
1330 ± 100
SI-605
Caxias do Sul
Schmitz (1969)
7
RS/127
1140 ± 40
SI-602
Caxias do Sul
Schmitz (1988)
7
RS/127
840 ± 60
SI-606
Caxias do Sul
Schmitz (1969)
7
RS/127
630 ± 70
SI-604
Caxias do Sul
Schmitz (1988)
7
RS/68
620 ± 90
SI-608
Caxias do Sul
Schmitz (1988)
7
PR/UV/47
1635 ± 100
SI-5014
Bituruna
Chmyz et al. (2009)
8
PR/UV/48
1420 ± 50
Beta-22647
Bituruna
Chmyz et al. (2009)
8
PR/UV/12
810 ± 90
SI-892
Bituruna
Noelli (1999-2000)
8
PR/UV/11
680 ± 70
SI-1010
Bituruna
Noelli (1999-2000)
8
81
Novas perspectivas para a cartografia arqueológica Jê no Brasil meridional
Apêndice. Sítio
(Continua) Número na Figura 4
Datação A.P.
Número de laboratório
Município
Fonte
PR/UV/12
623 ± 120
SI-691
Bituruna
Schmitz (1988)
8
PR/UV/12
255 ± 100
SI-692
Bituruna
Schmitz (1988)
8
PR/CT/93
940 ± 70
Beta-180907
Mandirituba
Chmyz et al. (2003)
9
PR/CT/93
850 ± 50
Beta-180907
Mandirituba
Chmyz et al. (2003)
9
PR/CT/93
680 ± 70
Beta-180905
Mandirituba
Chmyz et al. (2009)
9
PR/CT/93
660 ± 60
Beta-180904
Mandirituba
Chmyz et al. (2003)
9
PR/CT/93
580 ± 60
Beta-180903
Mandirituba
Chmyz et al. (2003)
9
PR/WB/03
636 ± 43*
Lacivid-USP/TL
Arapoti
Chmyz et al. (2008)
10
PR/WB/05
654 ± 43*
Lacivid-USP/TL
Arapoti
Chmyz et al. (2008)
10
PR/WB/01
706 ± 47*
Lacivid-USP/TL
Arapoti
Chmyz et al. (2008)
10
PR/WB/16
504 ± 40*
Lacivid/USP
Arapoti
Chmyz et al. (2008)
10
PR/SA/02
504 ± 40*
Lacivid-USP/TL
Curiúva
Chmyz et al. (2008)
11
PR/RP/10
560 ± 60*
Lacivid-USP/TL
Curiúva
Chmyz et al. (2008)
11
PR/SA/08
735 ± 50*
Lacivid-USP/TL
Curiúva
Chmyz et al. (2008)
11
PR/SA/06
837 ± 60*
Lacivid-USP/TL
Curiúva
Chmyz et al. (2008)
11
PM/01
760 ± 60
Beta-221418
Eldorado
Iriarte et al. (2008)
12
PM/01
760 ± 40
Beta-237106
Eldorado
Iriarte et al. (2008)
12
PM/01
720 ± 40
Beta-237105
Eldorado
Iriarte et al. (2008)
12
PM/01
480 ± 60
Beta-221417
Eldorado
Iriarte et al. (2008)
12
PR/SM/16
1150 ± 40
Beta-256211
São Mateus do Sul
Chmyz et al. (2009)
13
PR/SM/17
1030 ± 50
Beta-256210
São Mateus do Sul
Chmyz et al. (2009)
13
PR/SM/17
920 ± 40
Beta-256209
São Mateus do Sul
Chmyz et al. (2009)
13
PR/SM/14
490 ± 40
Beta-256208
São Mateus do Sul
Chmyz et al. (2009)
13
SC/TA/04
1390 ± 50
Beta-247953
Taió
Schmitz et al. (2009)
14
SC/TA/04
1220 ± 50
Beta-228165
Taió
Schmitz et al. (2009)
14
SC/TA/04
1180 ± 40
Beta-229856
Taió
Schmitz et al. (2009)
14
SC/TA/04
650 ± 50
Beta-214107
Taió
Schmitz et al. (2009)
14
Tapera
1140 ± 180
SI-245
Florianópolis
Chmyz (1976)
15
Tapera
1030 ± 180
SI-246
Florianópolis
Schmitz (1988)
15
RS/A/2
1515 ± 105
SI-805
S. Fco de Paula
Noelli (1999-2000)
16
RS/A/2
1385 ± 95
SI-806
S. Fco de Paula
Noelli (1999-2000)
16
RS/A/2
970 ± 95
SI-808
S. Fco de Paula
Schimtz (1988)
16
PR/UB/4
855 ± 95
SI-2193
Ubiratã
Chmyz (1978)
17
PR/UB/4
735 ± 95
SI-2194
Ubiratã
Chmyz (1981)
17
PR/UB/4
470 ± 95
SI-2192
Ubiratã
Chmyz (1978)
17
Bonin 1
640 ± 40
Beta-298215
Urubici
Corteletti (2012)
18
Bonin 1
610 ± 50
Beta-298216
Urubici
Corteletti (2012)
18
82
Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 12, n. 1, p. 57-84, jan.-abr. 2017
Apêndice. Sítio
(Continua) Número na Figura 4
Datação A.P.
Número de laboratório
Município
Fonte
SC/CL/10
330 ± 90
SI-597
Urubici
Schmitz (1988)
18
Barra do Turvo
1270 ± 100
LVD-181
Barra do Turvo
Afonso; Morais (2002)
19
Barra do Turvo
800 ± 100
LVD-182
Barra do Turvo
Afonso; Morais (2002)
19
PR/CT/53
848 ± 70
Beta-22644
Campo Largo
Chmyz (1995)
20
PR/CT/53
558 ± 50
Beta-22646
Campo Largo
Chmyz (1995)
20
Fazenda Marrecas IV
890 ± 180
Doutor Ulysses
Parellada (2005)
21
Walgimiro de Matos I
730 ± 150
Doutor Ulysses
Parellada (2005)
21
BS19
595 ± 50
Gsy-10040
Iporanga
DeBlasis (1996)
22
Torre de Pedra
270 ± 60
Gsy-10041
Iporanga
DeBlasis (1996)
22
Gasbol 8
1540 ± 150*
LVD-339
Ribeirão Branco
Araújo (2007)
23
Müzel
1530 ± 170*
Lacivid-40115
Nova Campina
Araújo (2007)
23
Quatis
1160 ± 100*
LVD-340
Apiaí
Araújo (2007)
23
Arlindo Cruz
1000 ± 100*
Lacivid-40114
Guapiara
Araújo (2007)
23
Arlindo Cruz
890 ± 130*
Lacivid-40112
Guapiara
Araújo (2007)
23
Arlindo Cruz
620 ± 40*
Lacivid-40113
Guapiara
Araújo (2007)
23
RS/S/359
1740 ± 65
SI-2344
Sto Ant. da Patrulha
Noelli (1999-2000)
24
RS/S/328
1655 ± 65
SI-2345
Sto Ant. da Patrulha
Dias (2003); Noelli (1999-2000)
24
SC/CL/?
1920 ± 50
SI-811
São Joaquim
Noelli (1999-2000)
25
SC/CL/?
1117 ± 80
SI-810
São Joaquim
Schmitz; Brochado (1972)
25
RS/C/14
745 ± 65
SI-1198
S. Sebastião do Caí
Mentz Ribeiro (1974)
26
RS/C/12
630 ± 205
SI-1201
S. Sebastião do Caí
Mentz Ribeiro (1974)
26
RS/VZ/43
830 ± 60
SI-598
Tenente Portela
Miller (1969)
27
RS/VZ/44
160 ± 70
SI-599
Tenente Portela
Miller (1969)
27
PR/UV/17
1475 ± 65
SI-2197
União da Vitória
Chmyz (1981)
28
PR/UV/1
800 ± 50
SI-141
União da Vitória
Chmyz (1968)
28
SC/IÇ/01
1580 ± 60
Beta-72196
Içara
Schmitz (1996)
29
SC/IÇ/01
1470 ± 60
Beta-72197
Içara
Schmitz (1996)
29
SC/U/35
975 ± 95
SI-825
Concórdia
Schmitz; Brochado (1972)
30
PR/MN/04
595 ± 60
SI-6396
Mangueirinha
Chmyz et al. (2008)
31
PR/SA/34
1130 ± 60*
Lacivid-USP/TL
Ortigueira
Chmyz et al. (2008)
32
RS/PF/01
1300 ± 70
SI-601
Passo Fundo
Schmitz (1988)
33
RS/VZ/25
400 ± 100
SI-600
Porto Lucena
Miller (1969)
34
PR/UV/38
190 ± 75
SI-5013
Porto Vitória
Chmyz (1981)
35
RS/RP/164b
915 ± 145
SI-4066
Sta Cruz do Sul
Ribeiro (1980)
36
83
Novas perspectivas para a cartografia arqueológica Jê no Brasil meridional
Apêndice. Sítio
(Conclusão) Número na Figura 4
Datação A.P.
Número de laboratório
Município
Fonte
Marechal Luz
880 ± 100
M-1202
S. Francisco do Sul
Bryan (1965)
37
RS/A/8
700 ± 60
SI-2343
S. José dos Ausentes
Schmitz (1988)
38
RS/S/282
1380 ± 110
SI-414
Sapiranga
Brochado et al. (1969)
39
Abrigo da Janela
1790 ± 210
ANU-19227
Sengés
Parellada (2005)
40
RS/S/61
1190 ± 100
SI-409
Taquara
Brochado et al. (1969)
41
84
Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 12, n. 1, p. 85-100, jan.-abr. 2017
Cauixi em cerâmica arqueológica da região de Lagoa Santa, Minas Gerais: inclusão de esponjas processadas ou exploração de depósitos sedimentares com espículas? Cauixi sponge in archaeological pottery from the Lagoa Santa region, Minas Gerais, Brazil: inclusion of processed sponges or exploitation of sedimentary deposits with spicules? Igor Morais Mariano RodriguesI, Cecilia Volkmer-RibeiroII, Vanessa de Souza MachadoIII I II
Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil
Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil III
Faculdade Monteiro Lobato. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil
Resumo: Este artigo apresenta a primeira identificação do cauixi em cerâmica arqueológica na região de Lagoa Santa, Minas Gerais. Trata-se de um estudo zooarqueológico que aborda as escolhas pretéritas feitas pelos ameríndios no que tange à presença de espículas de esponjas dulcícolas no processo de produção cerâmica. A partir dos elementos faunísticos detectados na coleção do sítio Vereda III, juntamente com informações obtidas de registros etnográficos e de pesquisas arqueológicas que tratam da presença do cauixi em cerâmica, é discutido se a presença desse elemento no material é fruto de coleta de esponjas dulcícolas, preparo e inclusão na pasta, ou se ele advém da exploração de depósitos sedimentares com espículas. O trabalho aponta para uma necessária revisão do material cerâmico arqueológico da tradição Aratu-Sapucaí em Minas Gerais, em que a identificação do cauixi e a sua proveniência devem ser consideradas. Palavras-chave: Zooarqueologia. Cauixi. Cerâmica arqueológica. Tradição Aratu-Sapucaí. Lagoa Santa. Abstract: This article presents the first identification of cauixi sponge material in archaeological pottery from the Lagoa Santa region, Minas Gerais, Brazil. This zooarchaeological study addresses whether the presence of spicules of freshwater sponges in this pottery was a conscious choice on behalf of ancient potters. Based on faunal elements detected in the collection of the Vereda III site and information obtained from ethnographic records and archaeological research on the presence of cauixi in pottery, we discuss whetherits presence in the material results from the inclusion of processed freshwater sponges in the clay or if it derives from the exploitation of sedimentary deposits with spicules. As one of the outcomes, this articlepoints to a necessary revision of the archaeological pottery material of the Aratu-Sapucaí tradition in Minas Gerais where the identification of cauixi and its origin should both be considered. Keywords: Zooarchaeology. Cauixi sponge. Archaeological pottery. Aratu-Sapucaí tradition. Lagoa Santa.
RODRIGUES, Igor Morais Mariano; VOLKMER-RIBEIRO, Cecilia; MACHADO, Vanessa de Souza. Cauixi em cerâmica arqueológica da região de Lagoa Santa, Minas Gerais: inclusão de esponjas processadas ou exploração de depósitos sedimentares com espículas? Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 12, n. 1, p. 85-100, jan.-abr. 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981. 81222017000100005. Autor para correspondência: Igor Morais Mariano Rodrigues. Rua Gustavo da Silveira, 1035 – Santa Inês. Belo Horizonte, MG, Brasil. CEP 31080-010 (igor_mmrodrigues@hotmail.com). Recebido em 30/03/2016 Aprovado em 15/07/2016
85
Cauixi em cerâmica arqueológica da região de Lagoa Santa, Minas Gerais
INTRODUÇÃO Cauixi, termo de origem tupi-guarani que significa “mãe da coceira”1 (Volkmer-Ribeiro; Viana, 2006, p. 311), é utilizado na Arqueologia em referência às espículas de esponjas dulcícolas encontradas nos fragmentos cerâmicos. Esse tipo de fauna é abundante na região neotropical, particularmente no Brasil, habitando lagoas ou margens de rios, onde fica presa à vegetação inundada (VolkmerRibeiro; Pauls, 2000; Volkmer-Ribeiro; Viana, 2006). O contato com grande quantidade de espículas pode provocar diversas espongioses, como reações alérgicas, inflamações (Magalhães et al., 2011), lesões oculares e até cegueira (Volkmer-Ribeiro et al., 2006; Cruz et al., 2013). Essas espículas têm sido identificadas, recorrentemente, em cerâmicas arqueológicas amazônicas, sendo um dos antiplásticos considerados diagnósticos na definição de tradições e fases diversas. Fora da Amazônia também há registros de cauixi em cerâmica arqueológica, na região Centro-Oeste, como em Mato Grosso, Mato Grosso do Sul (Wüst, 1991; Volkmer-Ribeiro; Viana, 2006; Migliacio, 2006; Volkmer-Ribeiro; Gomes, 2006) e Goiás (Oliveira, 2009, 2014; Viana et al., 2011). Este artigo, inserido no âmbito da zooarqueologia (Lima, 1989), apresenta a primeira identificação do cauixi em cerâmica arqueológica em Minas Gerais, compreendendo uma variedade de cinco espécies de esponjas. A partir dos elementos faunísticos detectados no estudo, juntamente com informações obtidas de registros etnográficos e pesquisas arqueológicas que tratam da presença do cauixi em cerâmica, são abordadas as escolhas pretéritas feitas pelos ameríndios no que tange à presença de espículas de esponjas dulcícolas no processo de produção cerâmica. Mais especificamente, discute-se se o elemento biosilicoso observado no material cerâmico da coleção do sítio Vereda III, região de Lagoa Santa, Minas Gerais, é fruto de coleta de esponjas dulcícolas, preparo e inclusão na pasta, ou se ele advém da exploração de depósitos sedimentares com espículas.
CAUIXI EM CERÂMICA: INFORMAÇÕES ETNOGRÁFICAS E ARQUEOLÓGICAS Há poucos registros etnográficos sobre a utilização do cauixi na produção cerâmica de grupos ameríndios nas terras baixas sul-americanas. De acordo com o mapeamento de zonas de mistura artificial de espículas de esponja de água doce no barro de oleiro, elaborado em 1937 pelo zoólogo alemão Walther Arndt e reproduzido no artigo de Moraes (1944), a ocorrência de cauixi em cerâmica foi registrada no alto rio Orinoco; na foz do rio Xingu; na foz do Tapajós; em tributários do rio Madeira, tais como na confluência dos rios Mamoré e Guaporé, e no baixo curso do rio Ji-Paraná; no médio curso do rio Araguaia; e, mais ao sul, no médio e no baixo curso do rio Uruguai. Todavia, não há informações a respeito dos grupos indígenas que utilizavam esse recurso. Tampouco há dados sobre sua forma de aquisição: se através de coleta de esponjas ou exploração de depósitos sedimentares com espículas. Willey (1986) menciona que o uso de espongiários na cerâmica é feito pelos grupos Karajá e Canichana, respectivamente, no Brasil e na Amazônia boliviana. A utilização do cauixi como tempero, feita pelos Karajá na região do Araguaia, também é mencionada em outros trabalhos (Moraes, 1944; Machado, 1947 apud Oliveira, 2014; Hilbert, 1955), embora existam informações de que, posteriormente, passaram a adotar o caraipé (Wüst, 1975; Lima, 1986). De acordo com um levantamento de informações etnográficas sobre cerâmica indígena no Brasil (Lima, 1986), entre os 64 grupos que até aquele momento faziam cerâmica, somente dois – os Txapakúra, na região do Guaporé, e os Waujá, no alto Xingu – coletavam espongiários para utilizá-los como tempero, após processamento no fogo e peneiramento. Segundo Barcelos Neto (2005-2006), para os Waujá do alto Xingu, a resistência de panelas e torradores depende da quantidade exata de cinzas com espículas, resultantes da queima de
Segundo Volkmer-Ribeiro e Viana (2006, p. 311), cauixi ou cauxi advém de cauí e cy, que, respectivamente, significam coceira e mãe.
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esponjas2, adicionadas à argila. Se houver excesso de cinzas com espículas, a superfície de um recipiente poderá apresentar pequenas rachaduras, provocadas por uma rápida secagem. Por outro lado, se a quantidade misturada for inferior à ideal, a peça não suportará a pressão nas etapas de raspagem e de lixamento. A mistura ideal é percebida por eles através do tato, “a plasticidade da argila pura (fria por definição) torna-se ‘quente’, ou seja, adquire a plasticidade ideal para modelagem” (Barcelos Neto, 2005-2006, p. 366). Na região de Oriximiná, Pará, Hilbert (1955) observou que grupos caboclos3 reconheciam que o processo de secagem e de queima de cerâmicas com cauixi era mais seguro em relação às temperadas com caraipé, posto que os potes com cauixi queimam mais uniformemente, além de serem mais sólidos. Mesmo assim, esses artesãos preferiam o uso do segundo tipo de tempero, pois, segundo eles, a preparação da pasta com o cauixi provocava inchaço nas mãos e, caso se alimentassem em potes contenedores de espículas, havia a possibilidade de desarranjos estomacais. Na década de 1940, Luciano Jacques de Moraes observou a utilização de espongilitos4, por grupos não indígenas,na fabricação de telhas, tijolos, entre outros objetos de cerâmica na região do Triângulo Mineiro (Moraes, 1944). Os oleiros da região usavam jazidas locais por reconhecerem a boa qualidade do material resultante da produção. Essas jazidas eram conhecidas como ‘pó de mico’ ou ‘pinico’5. O reconhecimento de qualidades acerca do uso de esponjas ou de jazidas com espículas para a produção de cerâmica, por parte dos oleiros em geral aqui referenciados, é corroborado por alguns autores, que indicam a possibilidade de a presença de cauixi em recipientes cerâmicos fornecer resistência aos choques térmico e mecânico e aumentar
a porosidade, além de proporcionar leveza aos potes (Machado, 2005-2006; Volkmer-Ribeiro; Viana, 2006). Em pesquisa comparativa recente (Natalio et al., 2015), a reprodução de cerâmicas em laboratório feitas com a técnica do rolete, contendo diferentes inclusões de areia, fibras de vidro e espículas de esponjas, indicou o cauixi como o tempero que melhor evita a retração excessiva da argila, além de dificultar a propagação de rachaduras na cerâmica e aumentar significativamente a rigidez do material. Deixando de lado essas características específicas do uso do cauixi na cerâmica, por meio das informações levantadas, nota-se que a presença desse elemento no material cerâmico advém da coleta de esponjas, sobretudo para os casos de grupos ameríndios e ‘caboclos’. A aquisição do espongiário dulcícola inclusive é feita através do mergulho pelos Waujá (Barcelos Neto, 2005-2006). Por outro lado, a exploração de jazidas de argila com espículas ou a exploração de espongilitos poderá ser a possível explicação para a presença de cauixi em algumas cerâmicas, porém não há registros etnográficos de que esta prática tenha sido adotada por grupos indígenas. No caso das cerâmicas arqueológicas, de acordo com a bibliografia, não há evidências contundentes de exploração pré-colonial de jazidas com espículas de esponjas, ainda que esta possibilidade não seja descartada por alguns autores (Volkmer-Ribeiro; Viana, 2006; Oliveira, 2014). As únicas evidências arqueológicas disponíveis correspondem à coleta de esponjas, ao processamento por meio da queima e à inclusão na pasta argilosa, visto a observação de espículas trituradas e com marcas de exposição ao fogo (Volkmer-Ribeiro; Gomes, 2006; Volkmer-Ribeiro; Viana, 2006).
Os Waujá denominam de akukutai os espongiários lacustres, já as cinzas resultantes da queima dos espongiários são chamadas de akukupe (Barcelos Neto, 2005-2006, p. 366). 3 Utiliza-se o termo “caboclo” reproduzindo o que foi empregado por Hilbert (1955). Todavia, sabe-se que esse termo apresenta um conjunto denso de significados, incluindo sentidos pejorativos, que são fruto da ocupação histórica europeia da Amazônia. Para maiores detalhes sobre o assunto, ver Lima (1999). 4 Espongilitos são, em linhas gerais, rochas sedimentares inconsolidadas, compostas por espículas de esponjas de água doce, depositadas junto com argila e areia. 5 Do verbo pinicar. 2
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Destaca-se que estudos zooarqueológicos são fundamentais para o avanço da discussão sobre a proveniência das espículas observadas no material arqueológico, pois contribuem para a identificação das espécies de esponjas dulcícolas, assim como informam sobre seu habitat (Gomes, 2002; Volkmer-Ribeiro; Viana, 2006). Essa abordagem possibilita inferências sobre os prováveis lugares de coleta de determinadas espécies, bem como o tratamento dado às esponjas antes de sua inclusão na pasta (Volkmer-Ribeiro; Gomes, 2006; VolkmerRibeiro; Viana, 2006). A identificação das espécies, bem como o habitat ou, no caso de depósitos sedimentares com espículas, quando possível, o reconhecimento do período de vivência das espécies tornam-se potentes ferramentas para inferir a proveniência de exemplares de esponjas, cujas espículas foram identificadas no material arqueológico.
espiculares, de acordo com Volkmer-Ribeiro e Viana (2006), podem ser categorizados em: 1) megascleras: espículas maiores, que compõem o esqueleto das esponjas; 2) microscleras: espículas menores, geralmente encontradas na superfície da esponja; 3) gemoscleras: revestem os corpúsculos esféricos da reprodução assexuada (clonagem), denominados ‘gêmulas’; é a espícula que oferece possibilidade mais segura para identificação de espécie.
ESPONGILITOS EM MINAS GERAIS Espongilitos são rochas sedimentares inconsolidadas, compostas predominantemente (+50%) por espículas silicosas, oriundas de espongiários de ambiente lacustre, de águas doces e calmas. Essas rochas geralmente estão associadas a argila, areia, matéria orgânica e, em alguns casos, carapaças de diatomáceas (Volkmer-Ribeiro; Motta, 1995; Almeida et al., 2009, 2011). No Brasil, há duas áreas conhecidas de formação de espongilitos. Uma delas se localiza na região Nordeste, atrás de cinturões de dunas. A outra, chamada de província de espongilitos, compreende o Triângulo Mineiro, o norte de São Paulo, o nordeste do Mato Grosso do Sul e o sudeste de Goiás (Volkmer-Ribeiro; Motta, 1995; Volkmer-Ribeiro et al., 1998). Essas duas áreas diferem entre si pelo fato de que, na primeira, as espículas ocorrem junto aos diatomitos, enquanto a segunda corresponde a “verdadeiros espongilitos” (Volkmer-Ribeiro et al., 1998). Atualmente, a área da mencionada província foi ampliada até o noroeste de Minas Gerais (Almeida et al., 2009). O primeiro registro da existência de espongilitos no Triângulo Mineiro se deu durante o decênio de 1940, no município de Conceição das Alagoas, Minas Gerais, em pelo menos sete lagoas sazonais (Moraes, 1944). De modo geral, as lagoas apresentam de 600 a 800 m de comprimento, por 400 a 500 m de largura, sendo que o espongilito ocorre entre 3 e 4 m de profundidade, com espessuras que variam de 0,50 a mais de 1 m. Na lagoa de Dourados, observou-se que o espongilito estava assentado sobre arenitos cretáceos (Moraes, 1944). Moraes também
ESPÍCULAS DE ESPONJAS DE ÁGUA DOCE As esponjas dulcícolas apresentam corpo formado por esqueleto composto por diversas espículas silicosas, ligadas por espongina, elementos que contribuem para a sustentação e o suporte de comunidades de células que agem nos processos de filtração, clonagem e reprodução dos indivíduos. Oriundas de esponjas marinhas, paulatinamente adaptadas ao ambiente de água doce ao longo de milênios, as esponjas dulcícolas são seres filtradores e sésseis, que habitam desde os fundos rochosos de rios e suas margens até lagoas, estando presas nas rochas, na vegetação marginal inundada ou nas macrófitas (Volkmer-Ribeiro; Pauls, 2000). Fatores como disponibilidade de sílica e nutrientes, temperatura, iluminação, oxigenação e reduzida ou ausente turbidez das águas são fundamentais para sua ocorrência e proliferação. Em função disso, esponjas podem ser usadas como indicadores de condições ambientais, assim como jazidas com espículas podem ser usadas também para estudos paleoambientais e paleoclimáticos (Almeida et al., 2009; Machado et al., 2014). O estudo taxonômico das espécies é feito por meio da morfologia da estrutura esqueletal, cujos componentes
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registrou notícias de outras lagoas localizadas na margem esquerda do rio Uberaba. No decênio de 1990, novas pesquisas foram feitas na região do Triângulo Mineiro, abrangendo os municípios de Conceição das Alagoas e Santa Vitória (Volkmer-Ribeiro; Motta, 1995). No primeiro município, foram alvos de pesquisa a lagoa Sem Noite, a lagoa da Olaria dos Datos e o brejo da fazenda Boa Vista. Em Santa Vitória, foi estudada a lagoa do Degredo. Todas as lagoas apresentaram espongilito, além de sedimentos diversos, com teor reduzido de espículas. Já as análises no brejo da fazenda Boa Vista revelaram que o material não corresponde, de fato, a um espongilito, e, sim, a um depósito de argila, areia e turfa, com espículas de esponjas (Volkmer-Ribeiro; Motta, 1995). A camada superficial desse depósito é mais escura em relação às camadas inferiores, de coloração acinzentada. Nas lagoas com presença de espongilitos, em linhas gerais, as camadas superficiais de turfa com espículas são mais escuras, sendo que as camadas inferiores gradativamente apresentam quantidade menor de turfa, com coloração cinza e acinzentada-clara, com porções quase brancas. O primeiro trabalho a apresentar datações para essas jazidas com espongilitos (Almeida et al., 2009) indicou idade entre o Pleistoceno tardio e o Holoceno, confirmando a previsão de Volkmer-Ribeiro e Motta (1995), de que os sistemas lênticos em que essas comunidades de esponjas viveram seriam holocênicos e, ainda, com clima distinto do atual. Na província de espongilitos, seis espécies de esponjas foram responsáveis pela produção dos depósitos: Metania spinata, Dosilia pydanieli, Trochospongilla variabilis, Radiospongilla amazonensis, Corvomeyenia thumi e Heterorotula fistula (Volkmer-Ribeiro; Motta, 1995; Volkmer-Ribeiro et al., 1998). A formação do espongilito, bem como das jazidas com espículas, nas lagoas da província se deu preteritamente, em função de apresentar clima distinto ao do cerrado atual, com chuvas mais frequentes abastecendo as lagoas com sílica, elemento crucial para a formação das espículas (Almeida et al., 2009).
Machado et al. (2014) ampliaram a lista com Corvoheteromeyenia australis para essas comunidades de esponjas, que tipificam lagoas atuais do bioma cerrado. Foram ainda detectadas no depósito espongilítico do paleolago Cemitério, em Catalão, Goiás (Machado et al., 2014), como raras e provenientes de efluente lótico espículas das espécies Corvospongilla seckti, Oncosclera navicella e Eunapius fragilis. Este depósito, até então, é o mais antigo do Brasil Central, datado de 27500 ± 4000 anos AP até 51780 ± 400 anos AP, por 14C. Pesquisas sobre espongilitos e sobre sedimentos com algum teor de espículas associadas em lagos naturais em Minas Gerais ainda são escassas (Almeida et al., 2009), não havendo, até o momento, pesquisas na região de Lagoa Santa. Não obstante, as informações expostas nesta seção são importantes para pensar a presença de cauixi na cerâmica arqueológica do sítio Vereda III. No mínimo, essas pesquisas evidenciam a disponibilidade de cauixi na forma de depósitos sedimentares com espículas em Minas Gerais, ocorrendo em lagoas ou brejos, em uma profundidade que não ultrapassa os quatro metros. Ademais, os dados indicam as idades de formação dos depósitos, bem como a coloração dos sedimentos.
MÉTODOS E TÉCNICAS DE RECONHECIMENTO DE ESPÍCULAS E IDENTIFICAÇÃO DE ESPÉCIES Pesquisadores que trabalham com cerâmicas arqueológicas percebem, durante o manuseio, a presença de cauixi na pasta através das típicas coceiras. Nas cerâmicas da coleção do sítio Vereda III, entretanto, o cauixi não provocou comichões. Além disso, sua ocorrência era inesperada, já que não há referência alguma sobre a existência desse tipo de antiplástico/tempero em cerâmica arqueológica no território mineiro. As espículas foram identificadas, em um primeiro momento, com a utilização de estereoscópio binocular, com aumento de até 40x, e com microscópio ótico. A prova visual confirmatória só foi obtida com o estudo ao Microscópio
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Eletrônico de Varredura (MEV) da área interna da parede de um fragmento manualmente seccionado (Figura 1). No segundo momento, o procedimento iniciou-se com uma raspagem em amostras de fragmentos cerâmicos. O pó resultante foi colocado em tubo de ensaio e fervido com ácido nítrico, para retirada dos resíduos orgânicos. Seguiramse lavagens em água corrente e centrifugação. O pó silicoso depositado no tubo foi agitado, para entrar em suspensão na água, sendo pipetado sobre lâmina e posto para secar.
Depois de seco, foi coberto com Entellan e uma lamínula, para ser estudado em microscópio ótico, possibilitando a classificação taxonômica das espécies de esponjas pelas espículas presentes (Volkmer-Ribeiro; Gomes, 2006).
A PRESENÇA DE CAUIXI NA COLEÇÃO DO SÍTIO VEREDA III O cauixi está presente em vestígios cerâmicos do sítio Vereda III, tais como em fragmentos de potes,
Figura 1. Registro feito com microscópio ótico de fragmento de cerâmica do sítio Vereda III (A e B) e feito com microscopia eletrônica de varredura (C e D): A) os pequenos ‘fios’ correspondem às espículas – observar a inclinação do fragmento necessária para visualização; B) os pequenos ‘fios’ correspondem às espículas (aumento de 60x); C) os ‘tubos’ compridos correspondem às espículas (aumento de 200x); D) os ‘tubos’ compridos correspondem às espículas (aumento de 500x). Fotos (A e B): Igor Rodrigues. Imagens de MEV (C e D): Departamento de Engenharia Mecânica da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ).
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em rodelas de tortual de fuso e em uma ‘bolota’ de argila não queimada, com aproximadamente 17 cm de comprimento por 12 cm de largura, encontrada in situ na escavação (Rodrigues, 2011). Duas das três categorias de pastas discriminadas nos artefatos cerâmicos identificados apresentaram espículas, contudo, em proporções diferentes. As categorias de pasta foram estabelecidas com base na análise quantitativa, com observação dos antiplásticos/ temperos, sua quantidade (frequência)6 e granulometria, com o uso de estereoscópio binocular com aumento de até 40x. A análise compreendeu 1.771 fragmentos cerâmicos, dos quais 58% foram usados na remontagem parcial de 24 potes (Rodrigues, 2011). Complementarmente, realizaram-se análises qualitativas, em exemplares de cada tipo de pasta, por meio de difratometria de raios X (DFRX) e Microscopia Eletrônica de Varredura (MEV)7. As características de cada tipo de pasta estão informadas no Quadro 1.
As três categorias de pasta podem ser assim resumidas: pasta A (muito cauixi + pequenos cacos moídos); pasta B (pouco cauixi + grandes cacos moídos); pasta C (mineral). Como se nota, o tipo de pasta C é completamente diferente dos demais, já os tipos A e B são semelhantes quanto aos elementos constituintes do conjunto de antiplástico/ tempero. Não obstante, esses dois tipos de pasta diferem entre si pela presença de loveringita e carbono no tipo A, além de diferenças significativas em relação ao tamanho e proporção de caco moído e cauixi que ambos apresentam (Figuras 2 e 3). Os dois tipos também diferem pelo fato de a pasta A ser um pouco mais porosa do que a pasta B (Quadro 1). Em todo caso, o que mais se destaca na diferença entre essas pastas é a maior quantidade de caco moído grande (> 3 mm) em fragmentos da categoria B e maior quantidade de cauixi na categoria A. A ‘bolota’ de argila encontrada durante as escavações é uma fonte arqueológica importante para refletir sobre as possibilidades de proveniência das espículas de esponjas
Quadro 1. Resumo das características das três categorias de pasta. Tipo de pasta
Antiplásticos/temperos constituintes da pasta
Granulometria dos elementos não plásticos
Quantidade de elementos não plásticos
Elementos apontados por DFRX
Porosidade da pasta
A
Caco moído < 3 mm; cauixi; matéria orgânica; quartzo < 3 mm; argila vermelha; caco moído ≥ 3 mm; quartzo ≥ 3 mm
Fina (< 3 mm)
5%
Óxido de sílica; carbono; óxido de alumínio; gismondina; loveringita
24%
B
Caco moído < 3 mm; quartzo < 3 mm; caco moído ≥ 3 mm; matéria orgânica; cauixi; argila vermelha; quartzo ≥ 3 mm
Fina e grossa (< 3 mm e ≥ 3 mm)
5 a 10%
Óxido de sílica; óxido de alumínio; gismondina
19%
C
Quartzo < 3 mm; feldspato; matéria orgânica; quartzo ≥ 3 mm
20 a 30%
Óxido de sílica; tazheranita; gismondina; silicato de sódio; alumínio hidratado; halloysita
15%
Fina (< 3 mm)
Para a definição da quantidade (frequência) dos elementos não plásticos, adaptou-se o esquema de Orton et al. (1997), cuja menor partícula quantificada mede 0,5 mm. Deste modo, não foram consideradas para frequência as espículas de cauixi, na medida em que a maior espícula identificada tem aproximadamente ¼ de mm de comprimento. 7 As análises de DFRX e MEV foram realizadas no Departamento de Ciências Naturais, na área de Física e Química de Materiais, e no Departamento de Engenharia Mecânica, da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). 6
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Figura 2. Porcentagem relativa dos elementos antiplásticos/temperos constituintes da pasta A.
Figura 3. Porcentagem relativa dos elementos antiplásticos/temperos constituintes da pasta B.
identificadas em cerâmicas feitas com os tipos de pastas A e B. Nela, por DFRX, foram identificados óxido de sílica e gismondina, elementos também encontrados nas categorias de pastas A e B. Assim como nestas, há quartzo, caco moído e cauixi na ‘bolota’. A correspondência entre os seus constituintes e os tipos de pasta A (muito cauixi + pequenos cacos moídos) e pasta B (pouco cauixi + grandes cacos moídos) pode indicar que a ‘bolota’ é um testemunho de matéria-prima utilizada na produção desses dois tipos de pasta. Isso não significa dizer que uma única ‘bolota’ serviu para a produção de dois tipos de pasta. Visto que ela apresenta antiplásticos/temperos, entre outros elementos apontados por DFRX, correspondentes aos observados nas categorias de pasta A e B, entende-se que é um vestígio de receita para a produção de pastas argilosas temperadas, que pode ser tanto o tipo A quanto o tipo B. Outras implicações da semelhança entre os seus constituintes e esses dois tipos de pasta, bem como das características das espículas identificadas no material arqueológico em estudo, serão abordadas na seção seguinte. Além disso, discutir-se-ão as hipóteses explicativas da presença do cauixi no material.
A PROVENIÊNCIA DO CAUIXI NA COLEÇÃO DO SÍTIO VEREDA III Pelo fato de não estar queimada, isto é, fundida, a ‘bolota’ possibilitou a identificação de dois tipos de argila, um vermelho e outro cinza, com partes alaranjadas entre eles, que, provavelmente, correspondem à mistura das duas argilas. As análises de MEV na ‘bolota’ de argila não queimada permitiram notar que as espículas concentram-se somente na argila cinza (Figura 4). Isto é um forte indicativo de que esponjas não foram coletadas, processadas e adicionadas à pasta, mas que espículas já estavam presentes na própria argila coletada. Caso fossem adicionadas na pasta como um todo, como foi o caso do caco moído, não faria sentido estarem presentes, exclusivamente, em uma das argilas, a menos que fossem adicionadas somente na argila cinza, de modo a preparar uma pasta específica, que seria posteriormente misturada à argila vermelha. Isso certamente dificultaria ainda mais a homogeneização das espículas na pasta como um todo. Acredita-se que a homogeneização deveria ser desejada, visto a capacidade de melhora na queima de um pote que o cauixi oferece, conforme informações obtidas por Hilbert (1955).
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Figura 4. Registro feito em campo e laboratório referente a material coletado no sítio Vereda III: A) ‘bolota’ de argila não queimada, evidenciada in situ, parcialmente danificada por raiz; B) ‘bolota’ de argila não queimada – visualização da parte preservada. Registro feito com microscópio ótico referente a material coletado no sítio Vereda III: C) fragmento da ‘bolota’ de argila não queimada – observar a mistura de dois tipos de argila (vermelho e cinza) (aumento de 17x); D) fragmento de ‘bolota’ de argila não queimada – observar a mistura de dois tipos de argila (vermelho e cinza) (aumento de 32x). Registro feito com microscopia eletrônica de varredura, referente a material coletado no sítio Vereda III: E) os ‘tubos’ compridos correspondem às espículas – observar a concentração de espículas na argila de cor escura, que corresponde à argila cinza (aumento de 100x); F) detalhe da concentração de espículas (‘tubos’) na argila de cor escura, que corresponde à argila cinza (aumento de 200x). Escalas: 5 cm (A e B). Fotos: Rogério Tobias Jr. (A); Igor Rodrigues (B, C e D); Departamento de Engenharia Mecânica da UFSJ (E e F).
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Ademais, a homogeneização poderia contribuir para outras “características de performance” (Schiffer; Skibo, 1997), tais como porosidade, resistência, entre outras apresentadas por diversos autores (Moraes, 1944; Machado, 20052006; Volkmer-Ribeiro; Viana, 2006; Natalio et al., 2015). Desse modo, acredita-se que a diferença de proporção de espículas entre os tipos de pasta A e B pode ser compreendida como resultado de conscientes escolhas tecnológicas (Lemonnier, 1992) na mistura de argila cinza e argila vermelha para o preparo desses dois tipos de pastas, isto é, mais argila com espículas para o tipo A e menos argila com espículas para o tipo B. Uma vez que a ‘bolota’, testemunho de receita de produção de pastas, apresenta cacos moídos pequenos e muito cauixi, é possível que seja representativa do tipo de pasta A. Em todo caso, trata-se de uma boa categoria de vestígio arqueológico para pensar o processo de produção dos tipos de pastas A e B: útil para refletir sobre a intencionalidade na mistura proporcional de argilas diferentes. Com relação às espécies de esponjas dulcícolas, foram identificadas espículas correspondentes a cinco espécies no material arqueológico: Heterorotula fistula (Volkmer-Ribeiro; Motta, 1995), Radiospongilla amazonensis (Volkmer-Ribeiro; Maciel, 1983), Dosilia pydanieli (VolkmerRibeiro, 1992), Trochospongilla variabilis (Bonetto; Ezcurra de Drago, 1973) e Metania spinata (Carter, 1881) (Figura 5). Essas espécies são típicas e caracterizam lagoas do bioma cerrado, conforme Machado et al. (2014), correspondendo às mesmas encontradas nos depósitos estudados em João Pinheiro, Minas Gerais, datados entre 28 mil e 3 mil AP (Almeida et al., 2009), e nos depósitos na região do Triângulo Mineiro, não datados, mas possivelmente antigos, em função das características ambientais necessárias para a proliferação das esponjas (Volkmer-Ribeiro; Motta, 1995; Volkmer-Ribeiro et al., 1998). Destaca-se que, nos supramencionados trabalhos, as espículas ocorrem na forma de jazidas com argila e areia, associadas ou não aos espongilitos. Até o momento, não há datações para o sítio arqueológico Vereda III. No entanto, tendo em vista que o
material de lá está associado à tradição Aratu-Sapucaí (Neves et al., 2004; Rodrigues, 2011) e que as datas disponíveis para sítios dessa tradição não ultrapassam 1200 AP, conforme revisão de datas realizada por Fernandes (2011), constata-se que o período de vivência dos grupos ceramistas conhecido é posterior ao período de deposição dos sedimentos contendo as espículas de esponjas identificadas. Como visto, a identificação de espécies de esponjas típicas em jazidas de lagoas do Cerrado, presentes somente na argila cinza que compõe a ‘bolota’ de argila arqueológica, corrobora a ideia de exploração de uma jazida com espículas, ao invés de coleta de esponjas, processamento e adição na pasta. Ressalta-se que, através de análises específicas, foram observadas espículas inteiras, ou seja, não trituradas. Ademais, a coloração cinza da
Figura 5. Fotos ao microscópio ótico das espículas encontradas nas amostras de cerâmica do sítio Vereda III: A) gemosclera de Metania spinata; B) gemosclera longa de Heterorotula fistula; C) megasclera de Heterorotula fistula; D) microsclera de Dosilia pydanieli; E) gemosclera de Trochospongilla variabilis; F) gemosclera de Radiospongilla amazonensis. Fotos e composição da imagem: Vanessa de Souza Machado.
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argila com espículas identificada na ‘bolota’ assemelha-se àquela dos sedimentos contendo espículas nas jazidas descritas por Volkmer-Ribeiro e Motta (1995), na região do Triângulo Mineiro, convergindo também para a hipótese de exploração de uma jazida com espículas. Portanto, por meio da visualização de espículas inteiras, da correspondência entre as suas espécies presentes nos depósitos conhecidos e no material arqueológico, de localização delas somente na argila cinza, em período que antecede as datas disponíveis para a tradição Aratu-Sapucaí, acredita-se que a exploração de sedimentos com espículas explica melhor a presença de cauixi no material cerâmico do sítio Vereda III. É sabido que a região da Área de Proteção Ambiental (APA) Carste de Lagoa Santa, local em que o referido sítio está situado, é repleta de lagoas e brejos. Todavia, até o momento, não há jazidas com espículas já identificadas e estudadas na região em questão, para comparação de espécies e comprovação. Isso deverá ser realizado futuramente. Em todo caso, a coleta de matéria-prima para a produção oleira em depósitos lacustres é algo comum, além de mencionado em obras de referência para o estudo de cerâmica (Shepard, 1985; Rye, 1981; Rice, 1987).
em cerâmicas arqueológicas amazônicas. Diante disso, realizou-se uma pequena análise em um total de 52 fragmentos cerâmicos dos seguintes sítios: Pastinho (11 fragmentos), situado em Lagoa Santa; Jaguara (15 fragmentos) e Santo Antônio do Mocambo (dez fragmentos), localizados em Matozinhos; fazenda Santa Margarida (16 fragmentos), localizada em Jaboticatubas. A análise consistiu basicamente na observação dos tipos de antiplásticos/temperos contidos nas peças, através do estereoscópio binocular, com aumento de 40x, e com microscópio ótico. Como o material foi estudado anteriormente, aproveitaram-se os fragmentos analisados e separados. O objetivo não foi realizar uma reanálise de todo material, mas, sim, verificar o que foi identificado como amianto, pois na referida publicação de Junqueira e Malta (1978) não estão descritos os equipamentos e procedimentos realizados para sua identificação. No material cerâmico do sítio Pastinho, Junqueira e Malta (1978, p. 129) observaram “incidências de amianto”. Com relação aos antiplásticos identificados no material do sítio Jaguara, os autores afirmam que “há ainda o amianto que está desassociado da rocha, seus filamentos agulhados estão soltos dentro da pasta e curiosamente todos voltados num só sentido” (Junqueira; Malta, 1978, p. 131). Nas cerâmicas do sítio fazenda Santa Margarida, o amianto ocorre em “altas incidências” (Junqueira; Malta, 1978, p. 126). No sítio Santo Antônio do Mocambo, por sua vez, não foi identificado amianto, somente “quartzo rolado em pouca proporção” (Junqueira; Malta, 1978, p. 134). Considerando que as cerâmicas com cauixi do sítio Vereda III também apresentam pouco quartzo como antiplástico (Rodrigues, 2011), selecionou-se o material do sítio Santo Antônio do Mocambo para averiguação. Ao invés de amianto, no material dos sítios Pastinho, Jaguara e Santo Antônio do Mocambo, identificou-se a presença de cauixi em grande quantidade, demonstrando que a existência desse elemento no material do sítio Vereda III não corresponde a um fato isolado na região de Lagoa Santa. Já no material do sítio fazenda Santa Margarida
CAUIXI EM CERÂMICA ARQUEOLÓGICA NA REGIÃO DE LAGOA SANTA, MINAS GERAIS No decênio de 1970, foi realizado um estudo preliminar sobre cerâmicas arqueológicas de 29 sítios da região de Lagoa Santa, indicando semelhanças do material com a tradição Aratu-Sapucaí (Junqueira; Malta, 1978). Neste estudo, não foi identificado o cauixi, porém, no material de três sítios, foi observado amianto como antiplástico, elemento não identificado na cerâmica do sítio Vereda III. Além da referida publicação de Junqueira e Malta (1978), é desconhecida qualquer outra menção ao amianto como antiplástico em cerâmicas arqueológicas encontradas no Brasil, cabendo lembrar que, na época de sua publicação (1978), o cauixi era basicamente reconhecido apenas
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observou-se a presença do caraipé 8, registrado pela primeira vez em cerâmica arqueológica na região central de Minas Gerais9 (Figura 6). O amianto descrito por Junqueira e Malta (1978) na cerâmica dos sítios Pastinho e Jaguara, portanto, corresponde ao cauixi. Com relação ao material do sítio fazenda Santa Margarida, acredita-se que o amianto também foi
confundido, mas não com o cauixi, e, sim, com caraipé. Talvez isso explique a diferença percebida pelos autores entre as concentrações de ‘amianto’ no material desse sítio e as dos outros dois, pois, se na cerâmica dos sítios Pastinho e Jaguara o ‘amianto’ ocorre em incidências e solto na pasta, no material do sítio fazenda Santa Margarida ele aparece em ‘altas incidências’. Como dito, foram analisados materiais
Figura 6. Registro feito com microscópio ótico: A) cauixi identificado no material cerâmico do sítio arqueológico Jaguara (Matozinhos, Minas Gerais); B) cauixi identificado no material cerâmico do sítio arqueológico Pastinho (Santa Lagoa, Minas Gerais); C) cauixi identificado no material cerâmico do sítio arqueológico Santo Antônio do Mocambo (Matozinhos, Minas Gerais); D) caraipé identificado no material cerâmico do sítio arqueológico fazenda Santa Margarida (Jaboticatubas, Minas Gerais). Os pequenos ‘fios’ em A, B e C correspondem às espículas. Observar o quartzo rolado ao fundo em B. Fotos: Elber Glória. Caraipé, ou cariapé, é um tempero que resulta de cinzas obtidas pela queima do córtex de árvores ricas em sílica, do gênero Licania, muito comum na Amazônia e no Brasil Central (Mendonça de Souza, 1997; Carneiro, 2009). 9 A presença de caraipé em cerâmicas da tradição Aratu-Sapucaí foi observada no Triângulo Mineiro (Chymz et al., 2009), assim como em Goiás, Mato Grosso e Tocantins (Schmitz et al., 1982; Robrahn-González, 1996; Oliveira, 2005; Rodrigues, 2011). 8
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deste sítio que já tinham sido analisados por Junqueira e Malta (1978). Do total de 16 fragmentos selecionados, observou-se a presença do caraipé em metade da amostra, sendo que, na outra metade, observou-se somente o caco moído. Ao que tudo indica, tanto a espícula quanto o aglomerado de ‘tubos’ silicosos, que formam um fragmento de caraipé, foram interpretados como ‘amianto’. Até no material cerâmico em que ele não foi observado, como exemplificado através das amostras do sítio Santo Antônio do Mocambo, há cauixi. Seja qual for o motivo da não identificação de cauixi e caraipé, e de sua confusão com o amianto, esse fato indica a necessidade de revisão do material cerâmico arqueológico da região de Lagoa Santa, Minas Gerais, de modo análogo ao constatado por Oliveira (2014) sobre a necessidade de revisão do material cerâmico dos sítios da fase Aruanã, tradição Uru, na região do rio Vermelho, em Goiás.
com ampla dispersão pelo Brasil Central e Nordeste, a descoberta da existência de cauixi, aqui apresentada, pode contribuir para ampliar o quadro descritivo e/ou fomentar uma releitura do material dessa tradição, sobretudo nos aspectos tecnológicos. Cabe lembrar que a cerâmica dessa tradição é descrita, em geral, como extremamente homogênea e simples, apresentando poucas decorações, geralmente associadas à influência de outras tradições ceramistas, como indicado por Rodrigues (2011). As informações levantadas a partir de registros etnográficos sobre cauixi em cerâmicas indígenas mencionam unicamente a coleta de esponjas, processamento e inclusão na pasta (Willey, 1986; Lima, 1986; Barcelos Neto, 2005-2006). Os estudos realizados por VolkmerRibeiro e Viana (2006) e Volkmer-Ribeiro e Gomes (2006) sobre os materiais arqueológicos do Mato Grosso apontam também neste sentido. Por sua vez, a hipótese deste artigo sugere, com base em diversas evidências, a exploração de jazidas com espículas em Minas Gerais. Assim, apesar de a presente pesquisa focar a coleção do sítio Vereda III, juntamente com o reconhecimento do cauixi em cerâmicas de outros três sítios da região de Lagoa Santa, espera-se que a hipótese defendida possa contribuir para estudos com cerâmicas encontradas no âmbito do Cerrado, nos quais o cauixi seja observado. Outra contribuição diz respeito à identificação de cauixi em cerâmica fora da Amazônia. Como apontou Oliveira (2014), a expressiva presença do cauixi na Amazônia, tanto no ambiente quanto nas cerâmicas arqueológicas, contribuiu para que arqueólogos, no decênio de 1990, diante da presença de espículas em cerâmicas fora da Amazônia, sempre recorressem a artifícios explicativos, tais como contatos, trocas e influências. Posteriormente, estudos interdisciplinares sobre esponjas dulcícolas fora da referida região contribuíram para uma revisão do endemismo amazônico do cauixi (Volkmer-Ribeiro; Viana, 2006). O presente artigo corrobora este ponto de vista, destacando
CONSIDERAÇÕES FINAIS Os resultados apresentados neste artigo possibilitam diversas reflexões. A identificação da mistura de argilas no registro arqueológico do sítio Vereda III por si só é relevante, além de ser raro encontrar uma ‘bolota’ de argila não queimada que permita visualizar essa mistura de argilas. A primeira observação de cauixi em cerâmica arqueológica de Minas Gerais, especialmente em um material associado à tradição Aratu-Sapucaí, é extremamente relevante. A identificação do caraipé na região central de Minas Gerais, embora não seja o foco do presente trabalho, é uma novidade que também merece ser destacada. Considerando a suposição de que as tradições Aratu-Sapucaí e Uru são entendidas enquanto cerâmicas Proto-Jê, isto é, estão associadas a grupos falantes do tronco linguístico Macro-Jê (Schmitz et al., 1982; Brochado, 1991; Prous, 1992), as recentes identificações de cauixi em cerâmicas dessas tradições ceramistas 10 indicam a necessidade de estudos interdisciplinares sobre suas coleções. No caso da tradição Aratu-Sapucaí, em particular,
Tanto no presente estudo para a tradição Aratu-Sapucaí, quanto no estudo de Oliveira (2014) para a tradição Uru.
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a importância de pesquisas interdisciplinares. No caso aqui apresentado, que considera o cauixi constante da cerâmica proveniente de exploração de depósitos sedimentares com espículas cujas espécies são típicas de lagoas do Cerrado, a possível influência amazônica fica difícil de ser sustentada. Ademais, a hipótese deste artigo indica outro método de produção cerâmica com presença de cauixi. Diferentemente da coleta de esponjas, a busca por jazidas com espículas não necessariamente implica um reconhecimento, por parte dos produtores, de que as jazidas contenham espículas de esponjas, sobretudo quando se considera que as dimensões das espículas variam de aproximadamente 160 a 12 µm de comprimento. Acredita-se que a exploração das jazidas de cauixi era realizada com base no conhecimento tradicional das características específicas que o material propicia à cerâmica. Seriam as coceiras um fator determinante? Um exemplo ilustrativo, já mencionado, se dá no Triângulo Mineiro, onde os oleiros realizavam a exploração de espongilitos em função da qualidade do produto, sabendo reconhecer os depósitos pelas coceiras provocadas pelo “pó de mico” (Moraes, 1944). Em todo caso, um método é coletar esponjas para utilização de suas espículas como tempero em uma pasta argilosa. Outro método é utilizar uma fonte com qualidades específicas, ainda que esta seja misturada a outro tipo de argila. Isto leva a uma distinção fundamental nos estudos de cerâmica arqueológica: a distinção conceitual entre tempero e antiplástico. Embora antiplástico e tempero sejam elementos não plásticos, quando possível, devem ser diferenciados em estudos arqueológicos. Tempero é fruto de acréscimo intencional na pasta argilosa, realizado pela ação humana11, ao passo que antiplástico é um elemento que já existe naturalmente nas jazidas de argila escolhidas para a produção oleira. No presente estudo de caso, duas das três categorias de pastas discriminadas no material do sítio Vereda III podem ser entendidas como temperadas. Indiscutivelmente, os cacos moídos são temperos adicionados às pastas A e B,
em tamanho pequeno, na primeira, e tamanho grande, na segunda. Por sua vez, a presença do cauixi, considerando a hipótese deste artigo, não poderia ser vista como um tempero, o qual, neste caso, seria a argila cinza com presença natural de espículas de esponjas, que foi misturada, em diferentes proporções, com argila vermelha para a preparação dos tipos de pasta A e B, como dito. De acordo com Shepard (1985) e Rye (1981), é comum a mistura de diferentes argilas na olaria, sendo geralmente uma mais plástica e outra menos plástica. O método de produção que tempera uma pasta através da coleta e processamento de esponjas dulcícolas, portanto, é bem diferente de outro, que tempera uma pasta com um tipo de argila de qualidade específica, ainda que, ao menos teoricamente, a presença de espículas na pasta, independentemente de sua proveniência, contribua para melhorar a queima dos potes, bem como outras características já mencionadas. Por fim, pretende-se chamar atenção para às possibilidades de identificação de cauixi em cerâmicas arqueológicas na região da província de espongilitos proposta por Volkmer-Ribeiro e Motta (1995). Isso inclui também a região do Vale do Paraíba Paulista, visto a identificação de espongilitos por Moraes (1944) no município de Caçapava.
AGRADECIMENTOS O primeiro autor agradece à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), pelas bolsas concedidas durante a realização do mestrado, bem como ao professor André Prous, por todo apoio logístico para a realização das pesquisas de campo. Agradece também ao professor Marco Antônio Schiavon e a Willians Fernandes, da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), pela colaboração com as análises de DFRX e MEV, assim como a Sarah Hissa, Gustavo Souza e Camila Jácome, pelas críticas ao texto, e Elber Glória, pelo auxílio nas análises e nas fotografias
Segundo Shepard (1985, p. 25), “to temper means to add this material to clay”.
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das cerâmicas da região de Lagoa Santa. Todos os autores agradecem aos pareceristas anônimos pelos comentários críticos à primeira versão do manuscrito, permitindo o aperfeiçoamento das discussões apresentadas.
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Museu Nacional de História Natural. Paris, França
Resumo: O grande número de sítios existentes na região da Cidade de Pedra, localizada no município de Rondonópolis, Mato Grosso, aliado à variedade formal, temática e de técnicas aplicadas nas construções dos painéis rupestres, marcam fortemente a paisagem da região. Neste artigo, será analisado, mais detalhadamente, o sítio rupestre da Falha sob o viés da Arqueologia Cognitiva, reforçando a importância da relação estrutural entre suporte/registro gráfico na construção de uma linguagem simbólica. Unindo a materialidade do sítio da Falha com as propostas teóricas das ciências do conhecimento, será apresentada uma discussão sobre os registros rupestres socialmente organizados, que refletem as crenças e escolhas culturais do grupo pretérito responsável pela sua organização, em estreita relação com o suporte, como parte essencial da construção da mensagem, tornando-se uma categoria semântica em conjunto com os grafismos. Palavras-chave: Arte rupestre. Cidade de Pedra. Simbolização. Estrutura. Abstract: The large number of archaeological sites at Cidade de Pedra/Rondonópolis (MT) and the formal variety, themes and techniques that characterize its rock art strongly mark the landscape of the region. In this article,the Conjunto da Falha rock art site is analyzed in relative detail from the perspective of Cognitive Archaeology, reinforcing the importance of the structural relation between support/graphic records in the construction of a symbolic language. Putting together the materiality of the Conjunto da Falha rock art site with theoretical proposals from the cognitive sciences, a discussion of socially organized rock art records is presented here. Rock art reflects cultural beliefs and choices of past groups who were responsible for its organization. In close relationship with the material media, as essential part in the construction of the message, those beliefs and choices constitute a semantic category together with the painted units. Keywords: Rock art. Cidade de Pedra. Symbolization. Structure.
GUEDES, Carolina; VIALOU, Denis. Símbolos na arte rupestre sob o olhar da Arqueologia Cognitiva: considerações analíticas sobre o sítio Conjunto da Falha, Cidade de Pedra, Rondonópolis, Mato Grosso. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 12, n. 1, p. 101-123, jan.-abr. 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222017000100006. Autora para correspondência: Carolina Guedes. Avenida Professor Almeida Prado, 1466. São Paulo, SP, Brasil. CEP 05508-070 (cmguedes@gmail.com). Recebido em 16/05/2016 Aprovado em 08/09/2016
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INTRODUÇÃO o sítio do Conjunto da falha está inserido em um contexto de aproximadamente 170 sítios rupestres prospectados, registrados e estudados durante o programa de pesquisas “Pré-história e Paleoambiente da Bacia do Paraná”, coordenado pela Prof.ª dr.ª Agueda Vilhena Vialou. Localizada no município de rondonópolis, no Mato Grosso, a 210 km da capital do estado, Cuiabá (figura 1), a região da Cidade de Pedra apresenta uma enorme riqueza,
tanto no que se trata da quantidade de sítios rupestres, cerâmicos e líticos, quanto ao que se refere à variedade das características geomorfológicas. de acordo com silva (2005, p. 13), a região, situada em uma porção da Bacia do rio Vermelho, está inserida:
figura 1. Localização do município de rondonópolis – Mato Grosso.
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[...] em uma área de transição entre o planalto e a planície do Pantanal Matogrossense, no contexto do rio Vermelho, afluente dos rios são Lourenço e Cuiabá, insere-se numa paisagem ruiniforme de morros-testemunhos areníticos, que se estendem por vários quilômetros.
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Pela sua característica singular, lembrando edifícios, a região foi nomeada de ‘Cidade de Pedra’ (Figuras 2A e B). Este artigo apresenta os resultados de uma articulação entre o corpo teórico da Arqueologia Cognitiva e os dados coletados em campo no sítio da Falha, onde realizamos os últimos trabalhos no ano de 2011, sob a coordenação do Prof. Dr. Denis Vialou, responsável pelo programa “Arte Rupestre”, dentro do projeto de pesquisa “Pré-história e Paleoambiente da Bacia do Paraná”. Essa pesquisa foi desenvolvida sob a perspectiva de que as manifestações gráficas registradas nos suportes rochosos pelos homens e mulheres pretéritos é tanto testemunho das crenças e escolhas sociais de um grupo, quanto dos processos cognitivos dos responsáveis por essa forma de comportamento simbólico, processo que demonstra a interrelação entre mente e cultura. Dentro desse quadro, o suporte foi considerado como parte essencial da construção da mensagem. Uma vez que o suporte rochoso é indissociável do registro gráfico, ele se torna uma categoria semântica, em conjunto com os registros rupestres. De maneira semelhante à utilização da semântica sobre as palavras, em um sítio rupestre seu significado está ligado a um contexto específico. Assim, a organização de um dispositivo rupestre marca materialmente significados, crenças e escolhas culturais e, nesse sentido, os esquemas iconográficos adquirem significados específicos, em função da sua utilização através
da materialização de um determinado tipo de conhecimento, gerado culturalmente e praticado cotidianamente. Nesse contexto, a semântica representa a porção culturalmente específica na qual a construção simbólica se dá, através da interação dialética entre suporte e os registros gráficos (Sauvet, 1993). O sentido, assim, é criado a partir da relação interna de três elementos: suporte, registro e cultura. Dentro desse quadro, adotamos uma abordagem cognitiva considerando uma compreensão das estruturas que organizam a distribuição dos painéis do sítio da Falha. Trabalhamos com as propostas de Leroi-Gourhan (1958, 1966) e Sauvet (1993), que, inspirados pela escola estruturalista dos linguistas, propõem uma leitura dos painéis buscando compreender as ligações e as organizações internas estabelecidas entre as diversas unidades gravadas e pintadas e o suporte, ou seja, uma abordagem estruturalista, visando à análise dos grafismos através das relações existentes entre eles e entre os painéis e o suporte. Para tanto, foram consideradas questões sobre a percepção do ambiente, para gravar e reproduzir conhecimento, e sobre a percepção da seleção temática, para registrar um tipo de “linguagem visual” (Anati, 2003, p. 96). Uma linguagem que instrui simbolicamente, informa e, principalmente, contém sentido. Um significado construído socialmente, elaborado contextualmente, que reflete escolhas, gostos, crenças, formas de organização e
Figura 2. (A) e (B). Paisagem característica da Cidade de Pedra. Fotos: Carolina Guedes, 2011.
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expressão, além de visões de mundo do grupo pretérito responsável por esse tipo de cultura material.
DISCUSSÃO TEÓRICA A linguagem visual, materializada e organizada nos dispositivos rupestres, fornece ao pesquisador não somente uma compreensão sobre os traços estilísticos e formais dos registros. Através das construções gráficas presentes nos sítios rupestres, também, temos acesso a ideologias e conceitos imateriais, tais como sistemas de crenças, marcas sociais, organização territorial etc. (Schaafsma, 1985). Além disso, a arte rupestre proporciona, em certa medida, um vislumbre sobre o nosso aparato cognitivo, ou, em outras palavras, sobre a estrutura básica do pensamento humano. Como o pensar abarca diversas faculdades do intelecto humano, trabalhamos com o conceito de cognição, que, por si só, sugere os diversos modos e artifícios utilizados por nosso cérebro para produzir e reproduzir conhecimento, comunicação e manifestações simbólicas. De acordo com Segal (1994), pensar cognitivamente objetos de ordem simbólica implica pensar nas ações cognitivas utilizadas na produção de registros gráficos. Implica pensar nas escolhas, codificações, estruturações, classificações, conhecimentos partilhados, enfim, aportes mentais necessários para a produção daqueles objetos. Dentro desse contexto, conforme Wilson (1999), o fascinante de nossa mente não é só o poder de copiar e recriar imagens de momentos que vivemos e gravamos na nossa memória, mas, fundamentalmente, o poder de dar sentido a essas imagens (Wilson, 1999). O nosso cérebro é diferente do de outros animais, não apenas por possuir uma complexidade própria, mas pela coexistência da mente. Por esse motivo, somos únicos, pela nossa capacidade de simbolizar e dar significado e sensações específicas ao nosso mundo e às nossas lembranças. Compreender esses elementos é importante para avaliarmos as construções simbólicas dos sítios rupestres, uma vez que nos dá base para compreendermos a estrutura de funcionamento do processo criativo.
Portanto, trabalhamos com uma categoria material que se apresenta para nós através de construções simbólicas. São manifestações inteiramente abstratas, que carregam significados culturais. Trata-se de construções estruturadas de discursos socialmente construídos e praticados, que, de acordo com Pinker (2007), são uma maneira de conectar sentido e forma (Pinker, 2007), baseada em tradições e em culturas. Dentro desse quadro, a abordagem estruturalista de Leroi-Gourhan (1958, 1966) é, em parte, mantida aqui. O referido pré-historiador, seguindo a tradição de análises estruturalistas das grutas paleolíticas da Europa inaugurada por Raphaël (1945), apresentou uma nova maneira de compreender e analisar a arte parietal. Apesar de sua proposta interpretativa sobre a presença de uma estrutura dualista, principalmente em função da dialética masculino/ feminino ter sido há muito criticada e revisada, as propostas advindas de seus métodos ainda inspiram muitas pesquisas realizadas atualmente. É importante salientar que essas construções devem ser analisadas levando em consideração os contextos em que os sítios se encontram. Ou seja, avaliar o processo de construção e formação de um sítio rupestre, avaliar a sua construção simbólica, deve necessariamente considerar o contexto no qual ele está inserido, uma vez que estamos imersos em um mundo construído por pensamentos simbólicos, culturalmente significativos. Nesse viés, consideramos a existência de uma estrutura particular, inerente à construção de cada sítio, responsável pela organização simbólica e pela criação de sentido através de associações específicas. Em um sítio rupestre, a natureza (humana e meio ambiente) e a cultura se encontram; elas coexistem e o sentido é criado em uma conjunção dessas variantes. Tais conjunções são produtos únicos da interação entre cérebro e a cultura (Lewis-Williams; Pearce, 2005). Em conjunção com a abordagem estruturalista, utilizamos as propostas da Arqueologia Cognitiva nas análises do conjunto da Falha. Renfrew (1995, p. 3) definiu
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a Arqueologia Cognitiva como “o estudo das formas pretéritas de pensamento inferidas a partir dos vestígios materiais”. Em linhas gerais, a Arqueologia Cognitiva propõe ser possível compreender processos imateriais responsáveis pela criação de vestígios materiais. Surgindo dos debates entre os processualistas e pós-processualistas, a Arqueologia Cognitiva desenvolveu ferramentas de análise e meios de inferências para a compreensão dos diversos aspectos do comportamento humano, entre eles as manifestações simbólicas. A proposta foca sobretudo na compreensão do processo pelo qual as manifestações sociais foram construídas. É a diferença entre a procura do significado ‘o que?’ e a compreensão do comportamento ‘como?’; “para o arqueólogo cognitivo-processual, é suficiente obter conhecimentos sobre como as mentes das comunidades em questão trabalhavam e na maneira a qual esse trabalho moldou suas ações” (Renfrew, 1995, p. 6). A proposta analítica ora utilizada se deu através da interpretação não baseada ‘em que’ os homens e mulheres pretéritos pensaram, mas, diferentemente, baseada em ‘como’ eles expressaram seus pensamentos e suas ideologias. Ao se preocupar com esses problemas, a Arqueologia Cognitiva tenta unir as categorias que, ao longo dos tempos, foram separadas, notadamente a relação entre homem e cultura material, tentando criar formas de análise que permitam ao arqueólogo acessar os processos de construção dos comportamentos sociais. Nessa linha, é possível inferir, a partir dos vestígios materiais, as ações do comportamento de grupos sociais na produção da cultura material. A composição total de um vestígio arqueológico está imbuída de uma carga de ações, escolhas, pensamentos e tradições. Para compreender essas ações, utilizamos, na análise do sítio rupestre da Falha, dois conceitos analíticos: percepção e escolha. É através da compreensão sobre a articulação entre forma, organização das unidades e suporte que podemos compreender a organização simbólica e, portanto, cultural dos dispositivos rupestres.
O SÍTIO DA FALHA DENTRO DO CONTEXTO DA CIDADE DE PEDRA Nas proximidades da Falha se encontram três sítios rupestres. Um ao sul, a uma distância de pouco mais de uma dezena de metros, chamado sítio Cogumelo, que contém apenas um sinal em forma de cacho simples e alguns traços vestigiais. O segundo sítio, Alvorada, está localizado a uma centena de metros ao norte do sítio da Falha, e oferece uma sequência de painéis, com grande quantidade de sinais e de raras representações figurativas esquemáticas (animais). Grandes sinais com preenchimentos lineares e pontilhados e outros circulares evocam fortemente os presentes no Painel 5 do sítio da Falha, situado precisamente sobre o flanco orientado em direção ao sítio Alvorada. As ligações gráfico-simbólicas entre esses painéis de sinais vermelhos complexos são diretas. A uma distância de aproximadamente 200 metros do sítio da Falha, em direção ao sudoeste, encontra-se um terceiro sítio, Abelha, em uma pequena cavidade baixa, que conserva uma dezena de representações, nas quais duas remetem, novamente, ao sítio da Falha: em primeiro lugar, um sinal em forma de 8 alongado; depois, uma pintura de um animal em vista superior que pode ser comparado ao ‘lagarto’ pintado sobre o teto baixo de uma abertura em fenda sobre o flanco oeste do sítio da Falha, precisamente aquele orientado em direção ao sítio rupestre Abelha. As conexões simbólicas entre os quatro sítios vizinhos são evidentes tanto sobre o plano de escolha temática, quanto sobre o plano de implantações orientadas a direções recíprocas. Um microterritório rupestre original é assim constituído. Dentro do contexto da Cidade de Pedra, que se estende sobre 350 km2, o sítio da Falha e seus satélites se situam sobre um limite geográfico bem perceptível, separando a microbacia do abrigo de Ferraz Egreja, a leste, e a microbacia central da Cidade de Pedra, a oeste (Figura 3).
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Figura 3. Cartografia dos sítios arqueológicos na região da Cidade de Pedra. Mapa: Eduardo Vilhena de Toledo; Jean-Roch Houllier, 2013.
O sítio da Falha aparece ao topo no horizonte, desde a zona mais elevada a oeste de relevos areníticos, bordeando essa zona central da Cidade de Pedra a partir da borda igualmente elevada da chapada, à margem direita do rio Vermelho. As representações gráficas abstratas complexas (os sinais) pertencentes aos dez sítios rupestres da microbacia central são globalmente diferentes das encontradas no sítio da Falha e seus satélites. Os mais de quarenta sítios rupestres, situados mais a oeste da região, oferecem, em sua maioria, sinais complexos diferentes daqueles da microbacia central, compreendendo os do sítio da Falha e associados, os da microbacia de Ferraz Egreja e os sítios rupestres próximos ao rio Vermelho. Na margem esquerda, próximo ao rio, o sítio Mano Aroe conserva um dispositivo parietal notável, denso, quase exclusivamente composto de sinais, alguns simples – e portanto correntes – e outros complexos. Trata-se notadamente de sinais circulares, ovalados, com preenchimentos lineares elaborados.
A comparação entre ele, o sítio Alvorada e o Painel 5 do sítio da Falha evidencia parentescos simbólicos. Trata-se de diversos sinais complexos, igualmente presentes no abrigo Ferraz Egreja (a menos de 2 km à leste da Falha), e também dos sinais complexos do Morro Solteiro, à margem direita do rio Vermelho. Esse imenso morro, próximo ao bordo da chapada, é composto de diversos locus rupestres, onde os painéis e as longas sequências lineares reúnem principalmente os sinais complexos, em grande parte aparentados àqueles da Falha-Alvorada, Ferraz Egreja e Mano Aroe. A estruturação espacial em diversos locus rupestres do Morro Solteiro oferece um paralelismo com a Falha. Trata-se igualmente de uma integração pensada e construída de dados topográficos e morfológicos parietais na construção simbólica do sítio, em toda a sua amplitude. Como na Falha, o deslocamento e o movimento do criador, e depois do observador, são indispensáveis para a percepção e a leitura interpretativa das representações.
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O dispositivo parietal assim dividido se revela em uma dimensão diacrônica, e não sobre uma instantaneidade de um olhar apressado. Vemos, assim, como o sítio da Falha se insere e se relaciona com outros sítios em diversos aspectos, na rica iconografia rupestre da região da Cidade de Pedra: um mosaico de territórios rupestres estreitamente correlacionados com as diferentes paisagens da região, divididas entre os grandes picos dos relevos, das cavidades dos múltiplos abrigos difíceis de cruzar e percorrer e entre o eixo do rio de uma circulação fácil e aberta ao sul, sobre o planalto, em direção a oeste para a depressão do Pantanal.
PESQUISAS ANTERIORES SOBRE O SÍTIO DA FALHA As primeiras informações sobre o sítio rupestre da Falha são provenientes dos relatórios1 das campanhas inseridas no projeto de pesquisa anteriormente citado, e dos trabalhos realizados por Keroualin (1988, 2006). As informações publicadas sobre esse sítio (Keroualin, 2006) tratam de uma análise do aspecto formal dos registros rupestres e da construção simbólica dos painéis, avaliando as relações entre a variabilidade/unidade das expressões gráficas. Em sua abordagem, Keroualin (2006, p. 71) trabalha com um “estudo detalhado das figuras”, considerando vários eixos de análises, como temas, técnicas picturais e dados tipológicos. O autor apresenta uma abordagem sistemática das unidades gráficas através de oito quadros de entrada dupla, gerando dados para discussão sobre as particularidades e a variabilidade das formas e técnicas utilizadas na construção dos diversos elementos gráficos, sistematizando em categorias os diversos registros rupestres presentes no sítio. De maneira geral, as propostas de análises de Keroualin (2006) se assemelham às apresentadas neste artigo. Porém, enquanto no presente artigo focamos na apresentação integral dos painéis rupestres como
elementos da nossa análise, Keroualin (2006) focou no aspecto quantitativo das unidades gráficas. Em ambos os casos, a proposta geral das análises foi a compreensão sistemática sobre a construção simbólica dos diferentes painéis do sítio da Falha. Independentemente se a observação se apóia em uma análise sobre o “impacto visual” (Keroualin, 2006, p. 74) da organização das unidades gráficas, ou na relação entre o conjunto gráfico e seu suporte, ambas as propostas visaram a compreensão sobre a construção simbólica do sítio em sua totalidade. Podemos afirmar, com base na publicação de Keroualin (2006), nas leituras dos relatórios de campo e nas nossas visitas ao sítio, que o Conjunto da Falha engloba importantes traços culturais regionalmente específicos, alternando a elaboração de sinais complexos – e, portanto, indicadores culturais – com sinais simples e, portanto, universais. Notamos que essa universalidade se refere tão somente ao aspecto formal. Em outras palavras, a forma se repete, não o significado. Trabalhamos aqui com duas descrições gerais dos grafismos, os chamados ‘simples’ e os ‘complexos’. Designamos de ‘simples’, sobretudo, os grafismos construídos com poucos traços, como é o caso de círculos, pontos e bastonetes, normalmente vazios ou com preenchimentos pouco elaborados. Já os grafismos ‘complexos’ apresentam maior elaboração visual, com preenchimentos mais complexos ou agrupamentos mais elaborados, por exemplo o agrupamento de pontos do Painel 7, descrito no tópico seguinte.
ELEMENTOS DA CONSTRUÇÃO GRÁFICA O sítio em questão é denominado ‘Conjunto’ da Falha por apresentar um total de sete painéis distintos, distribuídos por diversas formações areníticas. Trata-se de diversos afloramentos distintos pela sua formação topográfica. Os painéis estão localizados em diferentes porções desses afloramentos, de forma única, seja pela localização,
Não publicados.
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seja pela temática geral tratada. Consideramos aqui que a própria topografia do sítio orientou de alguma forma as construções simbólicas dos painéis rupestres. Dentre os muitos afloramentos presentes nessa área, um total de quatro foi utilizado como suporte para os painéis rupestres. As características dos suportes variam morfologicamente, apresentando especificidades. O primeiro suporte, um grande afloramento arenítico, possui área homogênea na porção central, proporcionando um local conveniente para a realização das pinturas. Com uma superfície no geral irregular, a área selecionada se apresenta de maneira homogênea, porém com presença de desplacamentos. O segundo suporte, onde estão dispostos os Painéis 2, 3 e 4, é um grande afloramento de aproximadamente 15 m de extensão. Nele, cada painel ocupa um local com características próprias, no que se refere à localização (teto/parede) e ao espaço utilizado (escondido ou em plena vista). Enquanto os Painéis 2 e 4 estão dispostos nas laterais desse grande afloramento, com paredes regulares e com nichos de relevo relativamente homogêneos, o Painel 3 foi disposto sobre o teto em uma abertura a 1,70 m do solo. Ainda que existam alguns desplacamentos e pequenas variações no relevo natural do suporte, de
maneira geral a área ocupada pelo painel apresenta-se bastante regular. O Painel 5 foi disposto sobre o teto de uma grande fenda, localizada no alto do afloramento, a uma distância de 6 m do solo, com extensão total de 7,10 m. A parte interna da abertura apresenta um declive suave até o ponto em que o teto e o chão se unem. Na parte mais externa, a abertura mede aproximadamente 1,80 m. Todas as pinturas estão localizadas sobre o teto, que, de maneira geral, apresenta homogeneidade no relevo. O Painel de número 6 está localizado sobre parede reclinada, em uma abertura de um grande afloramento, a uma distância de 0,60 m do solo. Enquanto sua fachada externa é bastante heterogênea, o relevo da parede se apresenta bem liso e regular. O sétimo e último painel está localizado na parte mais afastada de todo o conjunto. Localizado sobre o teto, em baixa abertura de um liso afloramento arenítico, sua altura máxima atinge apenas 1,05 m. O conjunto de afloramentos apresenta grande destaque na paisagem, podendo ser observado de longas distâncias e a partir de outros sítios da região da Cidade de Pedra (Figura 4). Um dos seus grandes morros é separado por uma lacuna, sendo, por esse motivo, denominado de Falha (Figura 5).
Figura 4. Vista geral dos afloramentos rochosos que compõem o Conjunto da Falha. Foto: Patrick Paillet, 2011.
Figura 5. Detalhe da falha do afloramento que deu o nome ao sítio. Foto: Carolina Guedes, 2011.
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Em função da vegetação circundante, o acesso a esse painel é feito por um caminho aberto recentemente, o que permite uma observação do sítio em fases consecutivas e organizadas, ou seja, o primeiro painel está situado nas proximidades desse caminho atual. Esse fato foi crucial também para a organização numérica dos painéis, sendo o Painel de número 1 (Figura 6) o mais próximo à entrada atual e o de número 7 o mais afastado. As pinturas em vermelho dominam quase totalmente a paleta de cores, com nuanças no tom, devido ao desgaste natural dos registros. No entanto, alguns tons violáceos e marrom-amarelados estão presentes em algumas unidades, implicando uma escolha deliberada do autor ou autores.
Figura 6. Vista geral do painel 1 à direita. Nota-se ao fundo um segundo afloramento onde se localizam os painéis 2 e 3. Foto: Carolina Guedes, 2011.
Como na maioria dos sítios da região, no sítio da Falha como um todo há presença de grande número de registros geométricos simples, os sinais, representados principalmente pelo ponto, círculo e traço e suas diversas declinações, como retângulos, com diversas formas de preenchimento, traços em paralelo, que formam novas unidades gráficas.
AS REPRESENTAÇÕES RUPESTRES Com um total de 83 unidades gráficas, o Conjunto da Falha é um sítio extremamente complexo no que se refere à organização e à criação dos painéis e das unidades, bem como aos locais e dispositivos utilizados. Composto em sua maioria por registros não figurativos, a simplicidade de algumas unidades contrasta com a complexidade exibida na distribuição e associação dos registros. PAINEL 1 O primeiro painel está situado em um paredão, onde as pinturas estão dispostas em uma altura máxima de 3 metros e mínima de 30 centímetros do solo. Esse dispositivo apresenta pinturas figurativas e não figurativas, dentre elas, figuras geométricas circulares, retas e preenchimentos. O primeiro painel é o que mais apresenta pinturas figurativas, alguns animais, como cervídeos e borboleta, e figuras humanas esquemáticas. Ainda que algumas unidades sejam vestigiais, podemos perceber uma temática bem dividida entre os figurativos e não figurativos (Figuras 6, 7 e 8). No prolongamento da parede alta e retilínea do Painel 1, o afloramento se alarga. À direita, abre-se verticalmente a falha; à esquerda, se encontra um recanto abrigado, conformado por uma parede inclinada na qual estão desenhados alguns motivos. Sobre a superfície muito inclinada, pouco visível e de difícil acesso do grande rochedo localizado no centro desse recanto, encontra-se uma pintura em cor amarelo-marrom (por volta de 30-40 cm de altura), que evoca um animal com duas longas orelhas desenhadas sobre a cabeça, pescoço longo, corpo filiforme e grandes patas (Figuras 9 e 10).
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Figura 7. Detalhe do Painel 1 (A) e (B) Imagem geral do painel. (C) e (D) Imagens aproximadas do painel rupestre. Nota-se as pinturas de forma vestigial em tom vermelho na parte inferior do dispositivo. Imagem manipulada digitalmente – Photoshop. Foto: Carolina Guedes, 2011.
Figura 8. Painel 1 – Plano diretor escalado. Imagem vetorizada: Carolina Guedes, 2011.
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Sob a figura, ocorrem manchas de escorrimento e de resíduos de pigmentos, dificultando a leitura. Essa figura fantástica escapa a toda tentativa de identificação naturalista. Além disso, ela se encontra isolada e, de alguma forma, escondida, contrariamente às representações dos Painéis 1 e 2.
PAINEL 2 O segundo painel está localizado em uma porção inclinada do segundo afloramento rochoso, a uma distância de aproximadamente 1,70 metros do solo (Figura 11). Esse conjunto apresenta uma composição totalmente diferente do primeiro, ainda que esteja a poucos metros do Painel 1. A singularidade das unidades pintadas é bastante característica, pois, apesar de seu número reduzido; são figuras bem estruturadas e podem se encaixar na categoria de motivos proposta por Vialou (2006). Trata-se de elementos verdadeiramente únicos nesse sítio (Figuras 12 e 13).
Figura 9. Detalhe animal isolado. Foto: Denis Vialou, 1997.
PAINEL 3 O terceiro conjunto, de pouca visibilidade à distancia, encontra-se sob o teto do mesmo afloramento apresentado anteriormente (Figura 14). Nesse painel rupestre, pode-se perceber a presença de elementos geométricos bastante singulares, como a composição sinuosa evidente no plano diretor apresentado (Figura 15).
Figura 10. Detalhe animal isolado: Nota-se à esquerda da imagem vetorizada uma falha decorrente da preservação do suporte rochoso deixando a pintura incompleta. Vetorização digital realizada através de software livre Inkscape. Imagem vetorizada: Carolina Guedes 2016; Foto: Denis Vialou, 1997.
Figura 11. Vista geral do painel 2. Foto: Carolina Guedes, 2011.
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Figura 12: Pinturas figurativas e não figurativas. A imagem (A) mostra o grafismo de forma vestigial, como observado em campo. A imagem (B) mostra o grafismo após o tratamento através do software DStretch (LRE). Foto: Carolina Guedes, 2011.
Figura 14. Vista geral do painel 3. Foto: Carolina Guedes, 2011.
As pinturas desse painel encontram-se bastante vestigiais, excetuando-se o lagarto (Figuras 15B e 16), muito bem conservado, apesar de demonstrar alguns sinais de deterioração. Sua cor violácea é indício importante da construção simbólica do painel, uma vez que a maioria das unidades são de tons vermelhos.
Figura 13. Painel 2 – Plano diretor escalado. Imagem vetorizada: Carolina Guedes, 2011.
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Figura 15. Detalhe do painel 3. (A) pintura não-figurativa em tom violáceo. (B) Detalhe de unidade gráfica. Elemento figurativo em tom violáceo. Fotos: Carolina Guedes, 2011.
Figura 16. Plano diretor escalado com a localização das pinturas: figurativos e não-figurativos. Imagem vetorizada: Carolina Guedes, 2011.
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PAINEL 4 O quarto painel está localizado em uma área de grande visibilidade, porém seus traços são apenas vestigiais. Foram realizados com bastões de hematita, diretamente sobre a rocha, técnica conhecida como crayon (Figuras 17 e 18). Trata-se de duas composições, distantes apenas um metro, realizadas com a mesma técnica de desenho. São sinais compostos de traços horizontais e verticais (Figura 19).
variação a partir de três unidades não figurativas simples, o ponto, o traço e o círculo (Figuras 21, 22A, B e D e 23D). Estão presentes também nesse painel algumas unidades figurativas (Figuras 22C, 23A, B e C).
PAINEL 5 No quinto conjunto, localizado em uma abertura a 6 metros do solo (Figura 20), os registros estão dispostos sobre o teto, contendo uma dispersão espacial que ocupa grande parte do suporte, aproximadamente 7 metros. Os sinais conformam a temática principal desse painel. São figuras ovaladas e arredondadas, que se diferenciam como em uma declinação de formas, uma
Figura 17. Painel 4 – Vista geral do painel. Foto: Carolina Guedes, 2011.
Figura 18. Detalhe do painel 4 – (A) e (B) Detalhes do desenho em crayon. 18A imagem manipulada digitalmente – Photoshop. Foto: Carolina Guedes, 2011.
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Figura 19. Plano diretor escalado com a localização dos crayons. Imagem vetorizada: Carolina Guedes, 2011.
Figura 20. Painel 5: (A) Vista geral; (B) Detalhe da abertura. As pinturas estão localizadas sob o teto, vê-se acima, à direita, uma pintura em tom vermelho. Fotos: Carolina Guedes, 2011.
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Figura 21. Painel 5 – Plano diretor escalado. Imagem vetorizada: Carolina Guedes, 2011.
Figura 22. Detalhe do painel 5. (A), (B) e (D): Pinturas não-figurativas; (C): Pinturas figurativas. Fotos: Carolina Guedes, 2011.
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Figura 23. Detalhe do painel 5. (A), (B) e (C): Pinturas figurativas; D: Pinturas não-figurativas. Fotos: Carolina Guedes, 2011.
PAINEL 6 O sexto painel apresenta poucas unidades, sendo uma delas um antropomorfo extremamente vestigial (Figura 24). Porém, como nos demais painéis, os sinais são responsáveis pela temática central (Figuras 25 e 26).
PAINEL 7 O sétimo e último painel é também o mais distante da entrada principal do sítio. Os registros pintados encontramse sobre o teto de uma pequena abertura, bem próximo ao chão, aproximadamente a 1,05 m (Figura 27). Trata-se, na sua maioria, de construções elaboradas de sucessão de pontos (Figuras 28 e 29).
Figura 24. Painel 6 – Vista geral. Foto: Carolina Guedes, 2011.
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Figura 25. Detalhe do painel 6. (A) e (B) pintura não-figurativa quadrangular. (C) Detalhe pintura em tom alaranjado. Fotos: Carolina Guedes, 2011.
Figura 26. Painel 6 – Plano diretor escalado. Pintura figurativa vestigial (à esquerda) e não-figurativas. Imagem vetorizada: Carolina Guedes, 2011.
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Figura 27. Painel 7. (A) Vista geral do painel; (B) Detalhe do teto onde se localizam as pinturas em tom vermelho. Nota-se à direita a unidade estruturada por pontos. Fotos: Carolina Guedes, 2011.
Figura 28. Painel 7. Pinturas não-figurativas. As figuras (A) e (C) mostram os grafismos como observado em campo. As figuras (B) e (D) mostram os grafismos após o tratamento através do software DStretch (YDR). Fotos: Carolina Guedes, 2011.
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Figura 29. Plano diretor escalado com a localização das pinturas. Imagem vetorizada: Carolina Guedes, 2011.
CONSIDERAÇÕES SOBRE OS SUPORTES E AS PINTURAS A análise do sítio gerou dados para a compreensão de algumas questões pertinentes aos estudos de arte rupestre, tais como: como ocorreu a distribuição dos registros? De quais maneiras o suporte foi utilizado? Qual a relação entre temática e local? De que forma podemos compreender a organização desses suportes? Existe uma organização entre escolha do suporte, local de representação e temática? Podemos perceber a formação de um código visual? Podemos compreender a articulação de um discurso parietal? Considerando esses questionamentos, podemos perceber no Painel 3 que a mudança de tonalidade observada é indicativo de uma construção simbólica intencional. Junta-se a isso sua seleção no suporte rochoso, já que o complicado acesso associado a uma
representação figurativa é um importante indicativo de sua construção simbólica. O animal está associado ao local e vice-versa, juntos eles fazem sentido. Já a alta visibilidade do Painel 4 contrasta com a simplicidade dos seus grafismos, sendo percebidos apenas de forma vestigial. Por sua vez, o Painel 5 se apresenta como o local de acesso mais complicado e sua construção simbólica parece estar diretamente relacionada a esse fato, quer dizer, a complexidade de acesso se reflete na complexidade do painel e das unidades nele presentes. Nesse painel, percebemos a utilização das irregularidades do suporte, o que apóia a proposta da construção dialética da mensagem no espaço parietal. Vemos presente a intrínseca relação entre o suporte rochoso e os registros gráficos na organização dessa ‘linguagem simbólica’. Notamos, na construção simbólica do Painel 6, visível diferenciação entre uma unidade principal e
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as demais unidades. É o caso da figura quadrangular preenchida por traços paralelos, apresentado nas Figuras 25A e B. Nesse caso, existe uma relação semântica entre a escolha da cor e a representação e o seu local (Vialou, 1999, p. 214). Nesse painel, ela figura claramente como sinal principal da composição. Ainda que seja uma declinação formal, ou seja, nesse mesmo sítio encontramos representações similares, sua cor e seu tamanho são indicativos de uma construção simbólica singular. O Painel 7, o mais afastado da entrada atual, está completamente escondido, indicando uma importante escolha. Ele parece ter sido feito para não ser visto, fato esse que parece, mais uma vez, estar intrinsecamente relacionado com o tratamento simbólico do local. A combinação de unidades simples, nesse caso o ponto, formou registros elaborados, como mostram as Figuras 27B e 28C e D. É o resultado da articulação de uma forma simples que ocasionou unidades complexas. É perceptível a existência, nesse sítio, de uma dialética, uma relação intrínseca, entre os dispositivos rupestres e os suportes rochosos, ou seja, entre a temática concebida e a totalidade do sítio. Analisando a influência do suporte natural na concepção dos painéis, não apenas os registros foram objeto de inferência sobre o processo cognitivo, mas também a relação existente entre as pinturas, os desenhos e a utilização do suporte. Portanto, compreender as estruturas de formação simbólica do Conjunto da Falha nos permitiu reconhecer áreas específicas de diálogo entre os diversos elementos que o constituem. O que se notou foi a especificidade de cada nicho. A totalidade de unidades gráficas, em torno de 83 figuras, foi organizada em sete painéis, localizados em nichos específicos, com temáticas originais. Cada local escolhido apresentou um conjunto particular, inteiramente diferente do outro. De maneira geral, não há um relevo semelhante ao outro, assim como não há um painel semelhante ao outro. Isso indica uma originalidade importante e uma articulação
única entre a topografia do local selecionado, o suporte rochoso e a temática tratada. Nesse contexto, a utilização do espaço parietal não poderia ser mais heterogênea, na qual a relação entre o espaço e o dispositivo parietal parece seguir uma única regra: a diversidade. Se os painéis, de maneira geral, são distintos uns dos outros, o mesmo não pode ser afirmado quando analisamos as unidades gráficas separadamente. Como exposto anteriormente, é perceptível a recorrência de tipos específicos de sinais entre a Falha e outros sítios da região. A partir dessas recorrências, podemos compreender a existência de um código visual regional. As mesmas marcas simbólicas estão sendo dispostas em variados locais, sinalizando a paisagem e organizando os dispositivos rupestres. Quando analisamos os painéis rupestres sob o viés de uma temática geral (os sinais geométricos), as escolhas pelos locais de representação não seguiram nenhum padrão definido, uma vez que encontramos painéis em áreas de fácil e de difícil visualização e acesso. Porém, ao nos questionarmos sobre a relação suporte/registro gráfico, vemos evidenciada uma constante na construção simbólica do sítio. Essa constante aparece na forma de uma organização dual entre os seguintes elementos: fácil acesso/simplicidade versus difícil acesso/complexidade, fato esse bem ilustrado pelos Painéis 4 e 6, para a primeira, proposição e pelos Painéis 5 e 7, para a segunda. A relação entre fácil e difícil acesso foi estabelecida considerando o esforço necessário realizado tanto pelo pintor quanto pelo observador para construir/visualizar os painéis rupestres. A dificuldade de acesso envolve, sobretudo, a necessidade de escalar o afloramento e/ou se arrastar em pequenas entradas para conseguir chegar ao local sem essas ações, não é possível visualizar por completo ou mesmo construir esses painéis específicos. Por outro lado, os painéis de acesso fácil são prontamente visualizados pelos caminhos existentes no sítio.
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Podemos, talvez, excetuar dessa interpretação o Painel 1. Dentro dessa proposta analítica, esse painel parece se destacar pela originalidade temática, apresentando a maior quantidade de elementos figurativos. Considerando que esse complexo painel se localiza em plena vista, a relação temática/local foi construída de maneira original. Ao não respeitar a dualidade acima proposta, esse painel se coloca como uma terceira forma de organização de um discurso social, marcando o espaço pela sua diferença. Portanto, é perceptível que os locais foram estrategicamente escolhidos e a intenção da escolha está diretamente relacionada com o diálogo, com a articulação de uma mensagem criada a partir da interrelação do suporte e das temáticas. Compreendemos, assim, que existe, na construção do código visual desse sítio, uma dialética entre continuidade comunitária (sinais complexos repetidos), estrutura (sinais simples) e inovação (sinais originais presentes apenas nesse sítio). Dessa forma, quando analisados em contexto, esses dados permitem evidenciar comportamentos sociais, através das expressões cognitivas dos grupos responsáveis por sua criação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Este artigo explorou, por meio do viés da Arqueologia Cognitiva, uma análise estrutural sobre o comportamento simbólico de homens e mulheres do pretérito, que transitaram e marcaram a região da Cidade da Pedra, no Mato Grosso. As análises dos conjuntos de painéis evidenciaram a importância do suporte na construção das mensagens. Isso significa que podemos perceber a articulação do discurso parietal com o suporte, que se apresentou como regulador e como influenciador da elaboração dos discursos. Esse tipo de estudo permitiu uma compreensão sobre a forma de organização de discursos específicos, marcados por cada painel, que, em sua totalidade, foram organizados sob uma mesma abordagem.
Essas observações, além de serem fundamentais para compreendermos a partir de que formas homens e mulheres pretéritos simbolizavam sua experiência, conhecimento, crenças, também nos deixou inferir sobre o processo de construção desse tipo de representação simbólica, um universo temático com grande quantidade de figuras geométricas e, em menor número, de unidades figurativas, como o lagarto e algumas unidades humanas vestigiais, singularizadas pela localização dentro do sítio. É através da articulação desses elementos com o suporte rochoso que entendemos a “codificação simbólica” (Paillet, 2006, p. 95) do sítio da Falha, evidenciada pela proposta da dualidade na organização do discurso. A nossa pesquisa tratou de alguns aspectos do comportamento, guiados por dois elementos do universo cognitivo humano: a percepção (do local) e a seleção (temática). Partindo dessas duas bases do comportamento, formulamos questões sobre a organização do código visual presente no sítio da Falha. As variações sobre as organizações estruturais nos painéis rupestres são evidentes, trata-se de construções conscientes de mensagens específicas, elaboradas em comunidade. A seleção das formas declinadas do Painel 5 é um exemplo de como podemos perceber uma semântica na seleção e na organização dos discursos. Esses registros são importantes exatamente pela sua semelhança. No entanto, um desdobramento de formas se apresentou, articulando os registros gráficos em uma proposta temática emoldurada pela topografia dos suportes rochosos. O discurso parietal foi gravado nessa interseção dialética. Os caminhos relativamente estreitos, que ligam os diversos afloramentos, funcionaram como guias de nosso percurso pelo conjunto total do sítio. Compreendemos que esse entorno foi fator importante na construção simbólica do local, com variações entre a visibilidade e sua face escondida, ainda que as vias utilizadas pelos homens e mulheres pretéritos fossem distintas das utilizadas atualmente.
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AGRADECIMENTOS Agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pelo financiamento integral da pesquisa de doutoramento, da qual originou o presente artigo. REFERÊNCIAS ANATI, E. La genèse de l’art. In: ANATI, E. (Ed.). Aux origines de l’art. Traduit de l’italien par Jérôme Nicolas. Paris: Libraire Arthème Fayard, 2003. KEROUALIN, F. M. Conjunto da Falha. In: VIALOU, A. (Ed.). Préhistória do Mato Grosso: Cidade de Pedra. São Paulo: EDUSP, 2006. p. 71-83. v. 2. KEROUALIN, F. M. Contribution à l’étude d’un site d’art rupestre Morro da Falha (Mato Grosso) Brésil: Maitrise de Préhistoire. Paris: Sorbonne, 1988. 144 p. LEROI- GOURHAN, A. Réflexions de méthode sur l’art paléolithique. Bulletin de la Société Préhistorique Française, Paris, tome 63, n. 1, p. 35-49, 1966. LEROI-GOURHAN, A. La fonction des signes dans les sanctuaires préhistoriques. Bulletin de la Société Préhistorique Française, Paris, tome 55, n. 5-6, p. 307-321, 1958. LEWIS-WILLIAMS, D.; PEARCE, D. The consciousness contract. In: LEWIS-WILLIAMS, D.; PEARCE, D. (Ed.). Inside the Neolithic mind. London: Thames & Hudson, 2005. p. 37-59. PAILLET, P. Os abrigos vermelhos. In: VIALOU, A. (Ed.). Préhistória do Mato Grosso: Cidade de Pedra. São Paulo: EDUSP, 2006. p. 91-123. v. 2.
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Sítios com pinturas rupestres em Buíque, Venturosa e Pedra, Pernambuco, Brasil, no contexto da geopaisagem Rock art sites in Buíque, Venturosa and Pedra, Pernambuco, Brazil, in the context of the landscape Marília Perazzo Valadares AmaralI, Carlos Celestino Rios e SouzaI, Ricardo José Ribeiro PessoaI I
Universidade Federal de Pernambuco. Recife, Pernambuco, Brasil
Resumo: O artigo tem como objetivo relacionar a geopaisagem e os sítios arqueológicos com pinturas rupestres dos municípios de Venturosa, Pedra e Buíque, a partir da análise e interpretação de dados geológicos, geomorfológicos, morfoestratigráficos e da distribuição espacial. A relação entre a paisagem dos espaços estudados, tendo em vista as transformações ocorridas ao longo do tempo com os sítios arqueológicos, permite ao pesquisador compreender a dinâmica da adaptação do homem ao meio ambiente e da escolha dos sítios, o que pode estar relacionada aos aspectos da paisagem. Esta análise busca expor a lógica de apropriação do meio natural pelos grupos humanos que habitaram aquelas regiões em tempos pretéritos. Palavras-chave: Geopaisagem. Distribuição espacial. Sítios arqueológicos. Abstract: This article aims to relate landscapes and archaeological sites containing rock paintings at Venturosa, Pedra and Buíque based on the analysis and interpretation of geological, geomorphological, morpho-stratigraphical dates and spatial distribution. The relation between landscape and spaceconsidering the changes that occurred through time at the archaeological sites, give support to the understandingof the dynamics of adaptation in relation to environment and choice of sites in relation to aspects of the landscape. This analysis seeks to understand the logic of appropriation of the natural environment by human groups that lived in ancienttimes. Keywords: Landscape. Spatial distribution. Archaeological sites.
AMARAL, Marília Perazzo Valadares; RIOS E SOUZA, Carlos Celestino; PESSOA, Ricardo José Ribeiro. Sítios com pinturas rupestres em Buíque, Venturosa e Pedra, Pernambuco, Brasil, no contexto da geopaisagem. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 12, n. 1, p. 125-133, jan.-abr. 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222017000100007. Autora para correspondência: Marília Perazzo Valadares Amaral. Universidade Federal de Pernambuco. Rua Acadêmico Hélio Ramos, S/N - Cidade Universitária. Recife, PE, Brasil. CEP 50670-901 (mariliaperazzo@hotmail.com). Recebido em 01/06/2016 Aprovado em 19/09/2016
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INTRODUÇÃO As primeiras pesquisas arqueológicas realizadas na região do Agreste de Pernambuco, com ênfase na microrregião de Arcoverde, nos municípios de Buíque, Venturosa e Pedra, foram efetuadas por Martin et al. (1983); Aguiar (1986); Nascimento et al. (1996); Martin (2005, 2008). Em 2005, com base nas pesquisas já realizadas na área, foram iniciados trabalhos relativos à análise de sítios com pinturas rupestres, relacionando-os à geopaisagem da área. O presente artigo é parte de pesquisa desenvolvida desde 2005 acerca dos sítios de registros rupestres em Pernambuco, no contexto da geopaisagem, cujos resultados preliminares compuseram um trabalho acadêmico de mestrado (Amaral, 2007). No atual desenvolvimento dos trabalhos, está sendo ampliado o número de sítios e de dados relacionados, obtendo-se, dessa forma, novas perspectivas de análise arqueológica. O conceito de geopaisagem abrange aspectos naturais dos sistemas físicos e bióticos, como a morfologia do relevo, topografia, litologia, estrutura geológica, hidrografia, clima e cobertura vegetal. Considera-se, portanto, a paisagem natural com o homem efetivamente dependente dela. Nesse sentido, o ambiente é entendido como agente que limita o cumprimento das necessidades, conduzindo o homem a se adaptar às diferentes situações. Ao se tomar o conceito de paisagem usado por Bigarella et al. (1975) 1, pode-se entender que as mudanças sucessivas e variadas do ponto de vista climático, que ocorreram nos variados domínios fisiográficos (cerrado, caatinga, campo, florestas), estão refletidas na composição da paisagem atual, que constitui o resultado das transformações ocorridas. Levando em consideração as particularidades de cada domínio e os diferentes impactos que a variável climática pode
provocar, trabalhou-se o domínio fisiográfico da caatinga, observando a sua evolução nos últimos 8.000 anos2. Dessa forma, compreender o cenário natural permite ao pesquisador entender a estrutura à qual os homens que habitaram os espaços pesquisados estavam submetidos e como poderiam se adequar a esta (Butzer, 1984). A área analisada neste artigo compreende dois compartimentos geograficamente separados, os quais constituem, também, duas unidades de geopaisagem distintas, que interessam particularmente ao estudo arqueológico.
ASPECTOS GEOLÓGICOS VERSUS SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS Os municípios de Venturosa e Pedra apresentam feições geologicamente semelhantes, entretanto, contrastantes com as feições geológicas do domínio de Catimbau (Buíque – PE). Os contrastes são fundamentalmente decorrentes da evolução geológica distinta, em função de diferenças litológicas e geomorfológicas nos dois domínios. Nas áreas de Venturosa e Pedra, a morfologia do relevo se caracteriza por amplas áreas planas e rebaixadas topograficamente, que se contrapõem com áreas de relevo acidentado na forma de colinas e de serras, de vertentes, em geral, íngremes, e altitudes variando de 450 m a 900 m (Beltrão et al., 2005). No espaço da região de Catimbau, as formas de relevo se caracterizam por dois compartimentos. O primeiro é definido por uma seção dominantemente plana, horizontal a pouco ondulada, constituindo áreas de baixios. O segundo se apresenta desenhando uma morfologia plana elevada (pediplano de cimeira) e de vertentes medianamente suaves a escarpadas. A fisionomia dessa paisagem física decorre das variáveis climáticas, ditadas na história evolutiva do relevo e, ademais, das naturezas litológica e estrutural
Paisagem no sentido da natureza, como elemento natural que envolve processos geológico-biológicos na sua formação (Bigarella et al., 1975). 2 A referência temporal de 8.000 anos A.P. é feita devido aos poucos estudos relacionados ao paleoclima e ao paleoambiente realizados em Pernambuco. Obtiveram-se apenas informações referentes a esse período pelos estudos de Ribeiro (2002). 1
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da Formação Tacaratu3. A sequência sedimentar dessa formação compõe-se predominantemente de arenitos conglomeráticos, arenitos grosseiros a finos e frequentes intercalações sílticas e argilosas. As variações composicionais dos estratos e a estratificação horizontal, bem como os sistemas de fraturamentos e os grupos de estratificação cruzada, são feições que determinaram diferentes respostas aos agentes de erosão e de intemperismo (físico e químico), estruturando, desse modo, formas tabulares, ruiniformes e cavernícolas em diferentes cotas altimétricas e locais. Mesas, morros testemunhos, patamares e o cânion de Catimbau são outras formas resultantes das injunções por herança geológica (fraturas, litologia, estratificação) e por mecanismos morfoclimáticos, conforme exemplificado na Figura 1. No domínio dos terrenos sedimentares da região de Catimbau, as cotas altimétricas variam de 700 m a 1.100 m. Em tais espaços altimétricos, predominam condições úmidas a subúmidas no contexto do Agreste pernambucano, caracterizando, assim, áreas de exceção dentro do quadro do semiárido nordestino4. Muito embora essas unidades (ou domínios) estejam inseridas na região fisiográfica do Agreste pernambucano, especificamente na microrregião de Arcoverde, encerram particularidades de geopaisagem decorrentes das feições geológicas – em primeira ordem, como identidade de herança e geomorfológicas mediante os mecanismos morfoclimáticos. Na região que compreende os municípios de Venturosa e Pedra, o terreno geológico está representado por rochas pré-cambrianas, com predomínio de gnaisses
Figura 1. Estruturas cavernícolas no primeiro plano à esquerda, entre as quais se destaca o sítio Caiana. Em segundo plano, observa-se, da esquerda para a direita, formas tabulares, em patamares, morro testemunho. Catimbau-PE. Foto: Marília Perazzo, 2016.
e granitos diversos. As rochas gnáissicas exibem estruturas que se orientam, preferencialmente, na direção nordestesudoeste. Essas estruturas planares são medianamente empinadas (da ordem de 40o a 50 o) a subverticais. Os corpos graníticos, de modo geral, são alongados, seguindo a direção nordeste. Além da gnaissificação5, como estrutura planar, as rochas gnáissicas, como as graníticas, apresentam vários sistemas de fraturas. Na unidade Catimbau, o terreno geológico é formado por rochas sedimentares areníticas, as quais se dispõem com estratificação horizontal predominante. Em decorrência disso, as organizações morfoestrutural e morfoescultural são diferentes das apresentadas na unidade Venturosa-Pedra.
“Esta formação aflora de forma bastante contínua na borda oriental e sul da Bacia do Jatobá, que se estende desde a porção sul da cidade de Inajá até as proximidades da cidade de Arcoverde, no extremo NE da área estudada. No interior da bacia, alguns altos estruturais também constituem afloramentos desta unidade, como a Serra do Manarí e Serra do Quiri D’Alho, assim como morros testemunhos que ocorrem nas proximidades de Arcoverde. Morfologicamente, compõe um relevo bastante acidentado, com encostas abruptas, em função da sua composição psamito-psefítica, com forte diagênese, ou localmente, extremamente silicificados, principalmente em zonas de falha, onde a ação do intemperismo esculpe formas inusitadas, de aspecto ruiniforme, característica marcante desta formação, como pode ser bem observado na região do Catimbau e nas proximidades do povoado de Moxotó, porções leste e sudeste da bacia, respectivamente” (CPRM; UFPE, 2007, p. 5-6). 4 Segundo Lins (1989), as áreas de exceção do Agreste de Pernambuco são caracterizadas pelos espaços úmidos e subúmidos, que apresentam formas diversificadas de uso, que as diferenciam das dominantes nos demais subespaços (como é o caso do semiárido). “São áreas onde o atributo da excepcionalidade se apresenta não apenas nas feições fisiográficas, mas também nos quadros econômicos, sociais e demográficos” (Lins, 1989, p. 20-21). 5 Estrutura planar desenvolvida por metamorfismo e deformação de rochas. 3
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Em função das estruturas fortemente marcadas nos terrenos de Venturosa-Pedra, bem como pelas diferenças de resistibilidade das rochas aos processos de erosão-intemperismo, os sistemas orográfico e hidrográfico orientam-se, essencialmente, segundo a direção nordeste-sudoeste. Desse modo, em grande parte da região de Venturosa e Pedra, configura-se um modelado periódico do relevo, com elevações interpondo-se aos baixios onde estão instalados os cursos d’água. Tal configuração é muito evidente na região leste de Venturosa. As elevações típicas, tais como Serra do Buco, Serra da Caatinga Branca e Serrote do Barbado, interpõem-se aos cursos fluviais principais, representados pelos riachos Chã de Souza, dos Bois, das Cabaceiras, da Luiza e Magé. As elevações, ao modo de serras, podem ser contínuas – a exemplo da Serra do Buco – ou descontínuas, como unidades morfológicas ‘ilhadas’ (Serrote do Barbado, Serrote da Pedra Furada). Na região ao sul de Venturosa, bem como em Pedra, onde estão situados os sítios de pintura rupestre, esse padrão geomorfológico se mantém, sendo, portanto, uma feição dominante. De modo geral, as vertentes não são abruptas, ao modo de escarpas, mas discretamente íngremes. Em tais vertentes, destacam-se, com grande regularidade em toda a área, matacões6 fixos ou como elementos deslocados de porções mais elevadas. Os matacões são formas comuns na paisagem e relevantes do ponto de vista arqueológico, uma vez que 90% dos sítios pesquisados na área estão inseridos nesse tipo de feição morfológica – à exceção do Sítio Pedra Furada. Por outro lado, a importância desses elementos, de ordem morfoestrutural-morfoescultural, fica demonstrada pela constatação de que 64% dos sítios de pinturas rupestres investigados se constituem de abrigos sob rochas em matacões7.
Muito embora esses corpos rochosos, fixos ou rolados, predominem nas vertentes, são também encontrados nos topos das elevações, nas partes inferiores das encostas ou, ainda, em regiões baixas e planas com destaque na paisagem. Frequentemente, apresentam estruturas cavernícolas, constituindo abrigos sob rochas. Essas estruturas cavernícolas são decorrentes de processos naturais de erosão e intemperismo, que atuam ao longo das estruturas planares (gnaissificação, fendas), nas superfícies expostas das rochas, bem como em arestas e vértices de blocos originalmente angulosos. As fraturas nas rochas representam superfícies de fraquezas, de modo que uma porção da rocha pode desabar por razão do seu peso. Nas condições em que planos de descontinuidades – como fendas e gnaissificação – apresentam declividades medianas (da ordem de 20º a 40º), as estruturas de abrigo possuem maiores dimensões e resultam, sobretudo, de tombamentos de blocos do teto por ação da gravidade, em combinação com processos de alteração (intemperismo químico) ao longo desses planos. Outro aspecto importante na formação dos abrigos sob rocha é a variação térmica, que, em associação com as alterações químicas exercidas sobre as rochas, tendem a modelar formas arredondadas (esfoliação esferoidal) e superfícies de exposição, na maioria das vezes, de contextura lisa e polida. No processo, participam variações térmicas e alterações químicas de minerais agindo na superfície da rocha, ao longo de fendas e da gnaissificação. O resultado é a instabilidade de partes do matacão com desmoronamento de blocos, os quais são geralmente observados no piso dos abrigos. Os processos intempéricos interferem de modo contundente nos painéis rupestres dos sítios, conforme se observa na Figura 2. Existem esfoliações nas rochas dos abrigos, nos paredões a céu aberto que comprometem
Resultam de erosão e intemperismo de rochas. Formas com tendência ao arredondamento. Alguns autores aplicam o termo ‘matacão’ para fragmentos de rochas destacados ou deslocados, outros consideram a formação sem deslocamento (in situ). 7 Sítios Peri-Peri I e II, Sítio do Barbado, Pedra da Buquinha I e II, Pedra do Chapéu e Pedra do Caboclo. 6
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Figura 2. Áreas de desplacamentos do suporte rochoso atingindo as pinturas rupestres. Sítio do Veado, Buíque – PE. Foto: Marília Perazzo, 2016.
diretamente as pinturas rupestres, uma vez que, com a descamação das porções mais externas da rocha, as pinturas que as sobrepõem são parcial ou fortemente destruídas. Tal processo é observado nos três municípios estudados, sendo mais intenso nas rochas da região de Catimbau. A natureza das rochas tem papel essencial para que ocorra a degradação das pinturas por descamação e/ou por dissolução por águas pluviais e, eventualmente, por ação eólica. Em contrapartida ao conjunto dessas estruturas (gnaissificação, fendas) que resultaram em abrigos e paredões favoráveis à ocupação pelos grupos de caçadores-coletores, há fontes d’água (bicas ou olhos d’água) nas proximidades dos sítios.
Tais fontes se relacionam ao acúmulo de água nas fendas das rochas e podem ou não ser perenes. Entretanto, foram observados ‘cacimbões’ ou ‘caldeirões’, os quais são frequentes nos terrenos pré-cambrianos do Nordeste brasileiro. No domínio Catimbau, por circunstâncias geológicas, com respostas morfoesculturais da paisagem de relevo, as posições, distribuições, geometrias, dimensões e frequências de estruturas cavernícolas contrastam com o cenário observado no domínio de Venturosa-Pedra. Em toda a sequência de arenitos aflorantes na região, a estratificação é regionalmente horizontal, porém com frequentes ‘sets’ de estratificação cruzada. Ocorrem níveis ou horizontes estratigráficos composicionalmente e texturalmente
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Sítios com pinturas rupestres em Buíque, Venturosa e Pedra, Pernambuco, Brasil, no contexto da geopaisagem
(composição mineralógica, variação granulométrica) diferenciados, os quais têm menor resistência aos agentes de erosão e intemperismo. Completa o quadro a presença comum de fendas oblíquas e empinadas em relação aos estratos. Foram em tais conjuntos de fatores que se desenvolveram as estruturas em abrigo e paredões côncavos a céu aberto. Tais estruturas se encontram nas encostas escarpadas em pontos elevados, no nível do solo e nas paredes verticais de ‘morros testemunhos’. Em decorrência do posicionamento horizontal da estratificação de toda a sequência de arenitos da Formação Tacaratu, as exposições de arenitos ocupam extensa área e os processos de modelado do relevo esculturaram formas singulares, definindo posições, formas e dimensões das estruturas cavernícolas e superfícies rochosas, como nos sítios arqueológicos Concha I e II. De todos os sítios pesquisados e constituindo estruturas em abrigo, essas cavidades se encontram nas bordas das encostas íngremes (escarpadas, como no sítio Toca do João), nas vertentes do cânion ou em ‘morros testemunhos’.
Com base no número de sítios de pinturas rupestres estudados, o modo de ocupação da paisagem demonstra diferenciação nos dois domínios ou unidades de geopaisagem anteriormente definidos. Foram trabalhados 25 sítios com registros rupestres posicionados, conforme o Quadro 1 a seguir: Quadro 1. Sítios com registros rupestres localizados em Buíque, Venturosa e Pedra (PE).
ANÁLISE ESPACIAL DOS SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS A estruturação da geopaisagem, discutida na seção precedente, e, sobretudo, considerando os seus aspectos físicos, constitui-se em um suporte importante para o entendimento da distribuição espacial dos sítios arqueológicos. A paisagem natural é um sistema amplo e complexo, envolvendo os aspectos de subsistemas físico, biótico (flora e fauna) e do homem – dependente desses subsistemas. Nesse sentido, a distribuição espacial dos sítios arqueológicos pode ser lida como a ocupação ou apropriação do espaço como sistema produtorfornecedor de recursos às necessidades dos grupos humanos que habitavam a região. Os elementos do espaço físico e biótico, como abrigos, suportes rochosos, flora e fauna, estão arranjados em decorrência de fatores geológico-geomorfológicos, constituindo, na totalidade, a geopaisagem.
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Município – nome do sítio
UTM (m2)
Buíque 1
Homem sem Cabeça
693.196
9.057.210
2
Serrinha
693.214
9.057.194
3
Sítio do Veado
693.345
9.056.276
4
Furtuoso II
691.291
9.055.332
5
Serra Branca
693.331
9.055.178
6
Pedra da Concha I
692.789
9.053.712
7
Pedra da Concha II
693.037
9.053.748
8
Sítio Pititi
693.479
9.053.610
9
Toca do João
693.476
9.050.198
10
Casa de Farinha
694.483
9.053.652
11
Caiana
694.597
9.054.580
12
Alcobaça
698.786
9.055.534
13
Dedos de Deus I
698.995
9.055.856
14
Dedos de Deus II
699.044
9.055.838
741.280
9.033.694
Pedra 1
Pedra Redonda
2
Pedra do Caboclo
732.868
9.036.880
3
Poço da Figura
739.833
9.032.962
4
Prata
735.151
9.038.756
Venturosa 1
Pedra Furada
739.273
9.051.678
2
Peri-Peri I
738.425
9.054.746
3
Peri-Peri II
738.513
9.054.722
4
Pedra da Buquinha I
741.848
9.048.836
5
Pedra da Buquinha II
741.952
9.048.880
6
Pedra do Chapéu
744.790
9.047.116
7
Sítio do Barbado
741.333
9.052.416
Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 12, n. 1, p. 125-133, jan.-abr. 2017
Dos 25 sítios pesquisados, 56% correspondem a abrigos sob rocha, sendo seis abrigos na região de Venturosa, um em Pedra e sete em Catimbau. Na região de Venturosa-Pedra, os sítios pesquisados seguem uma distribuição linear de orientação noroeste-sudeste, portanto, transversalmente às direções orográficas e hidrográficas dominantes na região. As Figuras 3 e 4 ilustram a correlação entre a distribuição espacial dos sítios e os elementos da paisagem física. No perfil da Figura 4, pode-se observar que os sítios se posicionam nas encostas das elevações e próximos aos
cursos ou fontes de água. As cotas altimétricas se situam entre 650 m e 700 m. Em tais cotas, os matacões não apenas são mais abundantes, como também são mais próximos aos suprimentos de água. Na região de Catimbau, os sítios pesquisados se encontram nas bordas das encostas íngremes, nas vertentes do cânion ou ‘em morros testemunhos’. Naquela área, 93% se distribuem aproximadamente no entorno do cânion de Catimbau, sendo a exceção o Sítio Toca do João. Essa distribuição tem uma conformação média aproximada de uma curva de concavidade voltada para o cânion.
Figura 3. Trecho leste da Folha Venturosa ilustrando segmento do perfil representado na Figura 4. Fonte: Base cartográfica modificada da folha SC-24-X-B-V, 1:100.000, 1986. Ministério do Interior-Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), Divisão de Recursos Naturais- Divisão de Cartografia. Amaral (2007).
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Sítios com pinturas rupestres em Buíque, Venturosa e Pedra, Pernambuco, Brasil, no contexto da geopaisagem
Figura 4. Representação em perfil da posição de sítios com pinturas rupestres em relação às cotas altimétricas e acidentes fisiográficos, região leste de Venturosa (PE). Fonte: Perfil morfológico elaborado com base na folha SC-24-X-B-V, 1:100,000, 1986. Ministério do InteriorSuperintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), Divisão de Recursos Naturais- Divisão de Cartografia. Amaral (2007).
Identifica-se, também, que 86% dos sítios estão nas vizinhanças de riachos e apenas dois (sítios do Veado e Caiana) se localizam a cerca de 400 m a 1 km do riacho mais próximo. Embora esses cursos d’água sejam intermitentes, supõe-se a existência de fontes (ou bicas) em suas proximidades e que o suprimento desse recurso se encontre no sopé da escapa do cânion ou no vale, onde estão os riachos do Brejo e Salgado. No que diz respeito às cotas altimétricas de posição dos sítios, observa-se uma diferença da ordem de 200 m, sendo o sítio mais elevado no terreno com cota de 940 m e o de cota mais baixa no entorno de 750 m. Essas diferenças na altimetria podem ser atribuídas às variações de resistibilidade das camadas de arenito, quando da atuação dos processos de erosão-intemperismo na construção de estruturas cavernícolas e/ou de superfícies de exposição (ao modo de painéis).
CONSIDERAÇÕES FINAIS No discurso deste trabalho, a geopaisagem foi conceituada e considerada nas diversas fases, nos seus
atributos físicos, envolvendo um complexo geológicogeomorfológico. Desse modo, os dados arregimentados e as informações geradas permitiram definir dois domínios de geopaisagem distintos e pertinentes ao tema deste artigo. As diferenças desses dois domínios são consideradas como fundamentais, talvez mesmo determinantes, para o modo de apropriação desses espaços de geopaisagem pelos grupos humanos que habitaram a região. As diferenças são relevantes porque cada domínio tem, agregado a si, todo um complexo sistema físico-biótico, que funcionou como produtorfornecedor dos recursos nas áreas de escolha. Dessa forma, não se considera que houve um único elemento da paisagem como critério de escolha na localização dos sítios pelos grupos humanos. No caso dos suportes rochosos com pintura rupestre, sejam os localizados em superfícies côncavas, planas ou nas superfícies a céu aberto, não se determinou elementos decisivos para falar em escolha, mas somente as presenças dessas superfícies julgadas apropriadas para a realização da prática gráfica.
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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 12, n. 1, p. 125-133, jan.-abr. 2017
Nas áreas da cobertura sedimentar de Catimbau, os alvos prospectivos para novos sítios – sobretudo de estruturas em abrigo – são preferencialmente ‘morros testemunhos’, nas escarpas, em morfoesculturas de cânion ou desfiladeiros. No domínio de Venturosa-Pedra, admite-se que novos sítios devem ser agregados ao acervo através de prospecções sistemáticas de superfície, conduzidos transversalmente às organizações orográficas e hidrográficas regionais. Na região interposta aos domínios VenturosaPedra e Catimbau, não se dispõe, até o momento, de informações acerca da presença de sítios arqueológicos. Esse hiato pode ser explicado pela falta de pesquisas, fazendo-se necessária a intensificação de estudos na região, o que permitirá observar, de forma mais específica, o comportamento dos sítios nos dois domínios de paisagem e suas relações, do ponto de vista macroambiental, com as características das demais regiões. Nesse contexto, ao relacionar posição topográfica dos sítios de pinturas rupestres por domínio geológico estudado, verificou-se que: a) no domínio cristalino, há prevalência de sítios posicionados nas baixa e média vertentes das elevações, entre cotas altitudinais de 600 m e 700 m; b) no domínio sedimentar, os sítios posicionamse de forma dominante nas média e alta vertentes das elevações, entre cotas altimétricas de 700 m e 950 m. Desse modo, a distribuição espacial dos sítios nas vertentes das elevações e dos vales pode estar relacionada às características geológica e geomorfológica das áreas, seguindo sua dominância.
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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 12, n. 1, p. 135-155, jan.-abr. 2017
Sepultamentos secundários com manipulações intencionais no Brasil: um estudo de caso no sítio arqueológico Pedra do Cachorro, Buíque, Pernambuco, Brasil Secondary burials with intentional manipulation in Brazil: a case study on the archaeological site Pedra do Cachorro, Buíque, Pernambuco, Brazil Ana SolariI, Sérgio Francisco Serafim Monteiro da SilvaI I
Universidade Federal de Pernambuco. Recife, Pernambuco, Brasil
Resumo: Este artigo apresenta o estudo de caso de um sepultamento secundário escavado no sítio Pedra do Cachorro, 760 ± 30 A.P., Buíque, em Pernambuco, Brasil, contendo remanescentes ósseos humanos de um indivíduo adulto, masculino, cuja análise bioarqueológica revelou sinais de descarnamento ativo do cadáver e outras evidências de manipulação intencional em ossos frescos, como cortes, fraturas, golpes e esmagamento. A metodologia de análise adotada para a identificação das manipulações perimortem nos ossos permite a reflexão acerca da complexidade desta prática funerária e do seu contexto em relação a outros achados arqueológicos da pré-história brasileira. Palavras-chave: Sepultamentos secundários. Manipulações intencionais. Bioarqueologia. Nordeste brasileiro. Pedra do Cachorro. Abstract: This article reports on a case study of a secondary burial excavated at the site Pedra do Cachorro, 760 ± 30 B.P., Buíque, Pernambuco, Brazil. This site contains human bone remains of an adult male individual, whose bioarchaeological analysis revealed signs of active defleshing of the body and other evidence of intentional manipulation of fresh bones, such as cuts, fractures, blows and crushing. The methodology of analysis used to identify perimortem manipulation of bones, may help to understand the complexity of this funerary practice and its context in relation to other archaeological finds from Brazilian prehistory. Keywords: Secondary burials. Intentional manipulation. Bioarcheology. Brazilian Northeast. Pedra do Cachorro.
SOLARI, Ana; MONTEIRO DA SILVA, Sérgio Francisco Serafim. Sepultamentos secundários com manipulações intencionais no Brasil: um estudo de caso no sítio arqueológico Pedra do Cachorro, Buíque, Pernambuco, Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 12, n. 1, p. 135-155, jan.-abr. 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222017000100008. Autora para correspondência: Ana Solari. Universidade Federal de Pernambuco. Departamento de Arqueologia. Av. Prof. Moraes Rego, 1235 – Cidade Universitária. Recife, PE, Brasil. CEP 50670-901 (anasolari74@gmail.com). Recebido em 02/06/2016 Aprovado em 20/07/2016
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Sepultamentos secundários com manipulações intencionais no Brasil: um estudo de caso no sítio arqueológico Pedra do Cachorro...
INTRODUÇÃO A recente descoberta e escavação de uma deposição funerária em cova do tipo secundário simples, com evidências de manipulação intencional em um sítio arqueológico do Nordeste brasileiro, possibilitaram a reflexão sobre a existência e extensão desse tipo de prática nos contextos arqueológicos pré-históricos brasileiros, possibilitando também a reflexão sobre os modos de tratamento e disposição do corpo, que caracterizam esta forma de tratamento mortuário. Nesse sentido, este trabalho pretende discutir uma prática funerária específica, os sepultamentos secundários, e, em particular, busca aprofundar-se na metodologia de análise de casos envolvendo o descarnamento ativo do cadáver e outras formas de manipulação intencional do corpo. Para isso, foram revisadas algumas definições que auxiliam no reconhecimento desse tipo de prática funerária no contexto arqueológico e suas evidências em alguns sítios do Brasil. Em seguida, focando na metodologia de identificação de manipulações perimortem nos ossos, apresentamos um caso particular do Nordeste brasileiro, escavado no sítio Pedra do Cachorro, município de Buíque, estado de Pernambuco. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE OS ENTERRAMENTOS SECUNDÁRIOS A partir das aproximações da Antropologia, Etnologia, História e Arqueologia, sabe-se que existem distintos modos mediante os quais as sociedades humanas do passado se ocuparam de seus mortos. Isso inclui uma ampla variedade de práticas funerárias, com numerosos modos de tratamento e deposição dos cadáveres, determinada por múltiplas dimensões, como as ambientais, sociais, culturais, econômicas, religiosas e ideológicas (Ucko, 1969; Hertz, 1960; Metcalf, 1981; Saxe, 1970; Carr, 1995; Tainter, 1978; Brown, 1981). Nesse contexto, estão inseridas as práticas mortuárias envolvendo procedimentos que podem deixar sinais
detectáveis nos ossos, com o objetivo de acelerar o processo de decomposição do corpo, como o descarnamento ativo. Tais práticas resultam em deposições ósseas desarticuladas e fragmentadas, incluindo indicadores da presença de pelo menos uma deposição inicial e outra final, classificados como sepultamentos do tipo secundários ou compostos, que são o foco do presente trabalho. Apesar de certa falta de consenso terminológico, são muitos os autores que estudam a classificação das formas de deposição funerária, em particular sobre os sepultamentos primários e secundários (Duday, 2009a, 2009b; Duday et al., 1990; Huntington; Metcalf, 1979; Metcalf, 1981; Miles, 1965; Parker Pearson, 1999; Schroeder, 2001; Sprague, 1968, 2005; Ubelaker, 1989; Ucko, 1969). Especificamente, neste estudo, optou-se pelas definições empregadas por Ubelaker (1989), Duday et al. (1990), Duday (2009a, 2009b), Schroeder (2001) e Sprague (2005), que se complementam para permitir adequados reconhecimento e interpretação dos sepultamentos do tipo secundário em um contexto arqueológico. A respeito deste assunto, Ubelaker (1989) define os enterros secundários como coleções ou agrupamentos de ossos não articulados no contexto de uma escavação arqueológica, que seriam o resultado de um complicado tratamento do cadáver, envolvendo dois ou mais estágios, incluindo a remoção da carne, com uso de ferramentas ou por decomposição natural; o agrupamento ou desenterro dos ossos depois de um período de tempo; e o enterro definitivo, de forma individual ou coletiva. Por sua parte, para Duday et al. (1990), os sepultamentos secundários, também conhecidos como sepultamentos em dois ou mais tempos, são aqueles onde o depósito de remanescentes humanos é precedido por uma fase de descarnamento (ativo ou passivo), que se desenvolve necessariamente em outro lugar. Entre os principais argumentos defendidos por esses autores para demonstrar a existência de sepultamentos secundários, estariam: 1) a presença de marcas de corte como testemunho de um descarnamento ativo do cadáver,
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compreendendo a remoção dos tecidos moles com ferramentas cortantes; 2) a ausência de ossos e o caráter incompleto dos esqueletos, por uma separação voluntária de alguns ossos selecionados para seu enterramento definitivo ou pelo esquecimento, perda ou destruição de pequenos ossos no local de descarnamento ou durante o transporte de um lugar para outro, conquanto essa ausência não seja decorrente de causas tafonômicas naturais de destruição do tecido ósseo; e 3) uma ‘desordem’ aparente na disposição dos remanescentes humanos, em oposição a um esqueleto articulado, ainda que algumas conexões anatômicas persistentes possam ser observadas. Entretanto, quando considerada isoladamente, a desarticulação anatômica do esqueleto por si só não é conclusiva para demonstrar o caráter secundário de um sepultamento, pois se sabe que, em sepultamentos primários, algumas articulações podem ser perdidas por fatores formativos do depósito, enquanto, nos sepultamentos secundários, podem persistir conexões mesmo após os processos redutivos intencionais do corpo. Ainda, o critério relacionado à presença de marcas nos ossos, associadas ao descarnamento ou maceração, pode não ser efetivo para identificar enterros secundários, pois elas podem estar associadas a outros comportamentos mortuários diferentes, como trepanações, lesões por traumas e canibalismo, que nem sempre estão associadas ao ciclo funerário. Por esses motivos, a identificação de enterramentos secundários é geralmente feita com dificuldade, devido ao caráter heterogêneo do comportamento funerário relacionado com esses tipos de enterros (Duday, 2009a). Também, de acordo com Duday (2009b), os sepultamentos secundários são definidos com critérios opostos aos usados para caracterizar os sepultamentos primários, dados pela conexão anatômica das articulações lábeis e persistentes – mesmo considerando as mudanças causadas pelo processo de decomposição do cadáver, como o achatamento da caixa torácica, o deslocamento parcial da coluna vertebral e o colapso da cintura pélvica –, e as suas
intensidades, conforme os espaços internos e do exterior do corpo, no recipiente ou na cova. A complexidade de identificação dos sepultamentos secundários aumenta nas deposições múltiplas e nos enterramentos coletivos com processos naturais e culturais formadores do depósito arqueológico já instalados. Ao mesmo tempo, de acordo com Schroeder (2001), a disposição secundária dos mortos é um tipo específico de ritual funerário, onde se produz um novo enterramento intencional dos remanescentes humanos. Nos enterramentos secundários, o corpo é depositado inicialmente, de alguma maneira, após a morte, para depois, em uma segunda sequência de tratamento mortuário e após um determinado lapso de tempo culturalmente determinado, os restos serem removidos de seu lugar de deposição inicial, para, finalmente, serem dispostos no mesmo ou em outro lugar distinto. Por último, em relação à forma de deposição dos mortos, as deposições compostas, segundo Sprague (2005), envolvem ao menos dois processos: de redução do corpo e o depósito secundário ou final dos seus remanescentes. O processo de redução pode incluir, para esse autor, o enterro e subsequente exumação, descarnamento por exposição ao ar livre, fermentação por armazenamento em contenedores, exposição do cadáver a animais, descarnamento mecânico, cremação e decomposição química. Posteriormente ao processo redutivo, é dada sequência a uma deposição secundária ou final. De acordo com a literatura sobre o tema vemos que, em definitivo, é o antropólogo biólogo ou arqueólogo quem, no presente, deve reconhecer os traços de intencionalidade na deposição final observada e, ao mesmo tempo, deve perceber os sinais das etapas precedentes da deposição transitória, incluindo a redução do corpo nos casos de um descarnamento ativo. A partir dessas considerações, torna-se possível diferenciar os sepultamentos secundários dos contextos primários perturbados ou de outros tipos de depósitos não secundários, que sejam produto da ação de diversos fatores tafonômicos culturais e/ou naturais.
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Sepultamentos secundários com manipulações intencionais no Brasil: um estudo de caso no sítio arqueológico Pedra do Cachorro...
OS SEPULTAMENTOS SECUNDÁRIOS NO BRASIL No Brasil, a forma de classificar as deposições funerárias varia conforme a orientação teórica e metodológica dos arqueólogos. Autores fazem referência a conceitos em arqueologia funerária e descrições etnográficas de sepultamentos secundários, procurando compreender os contextos arqueológicos escavados conforme os parâmetros escolhidos. Torna-se evidente a carência de uma metodologia e de técnicas de campo que sejam satisfatórias para a interpretação das deposições compostas ou secundárias nos sítios arqueológicos brasileiros, como também o fato de haver uma heterogeneidade dissonante de terminologias e conceitos, relativos às instâncias operacionais das práticas mortuárias e sua observação nos diversos contextos arqueológicos, dificultando a reunião e o estudo científico comparativo, integrado e amplo dos dados mortuários. Entretanto, alguns dos parâmetros para a distinção das deposições funerárias, secundárias ou compostas, no contexto arqueológico incluem: desarticulação do esqueleto, ausência de pequenos ossos, desarranjo no recipiente ou cova e sinais de manipulação perimortem ou postmortem, como redução do corpo (cortes, decomposição acelerada, exposição ao fogo) e tratamento dos ossos pela pigmentação ou outros meios. Igualmente, fatores tafonômicos naturais ou culturais podem mascarar sepultamentos primários que, durante a escavação arqueológica, são erroneamente classificados, algumas vezes, como secundários por causa da presença de ossos desarticulados ou dificuldade de reconhecimento in situ. Por isso, a presença de instâncias operacionais com sinais de intencionalidade antrópica é fundamental nessa distinção dos tipos secundários de inumação. No âmbito dos estudos antropológicos, são descritas as formas de deposição funerária composta ou sepultamentos secundários enquanto estruturas que implicam a presença de uma etapa de preparação do corpo, resultando na sua redução por descarnamento, desmembramento, queima ou rearticulação dos ossos em uma cova permanente
(Silva, 2005). Esse tipo de sepultamento, descrito por Baldus e Willems (1939), Cruz (1944), Hensel, R. e Hensef, Reinhold (1869) e Boggiani (1930), é recorrente na bibliografia antropológica. Relatos etnográficos sobre as formas de deposição composta dos cadáveres entre os povos indígenas do Brasil – e América do Sul – estão presentes em Hensel, R. e Hensef, Reinhold (1869), Kroeber (1927), Boggiani (1930), Métraux (1947), Ramos (1951), Baldus (1954), Lowie (1963), Carneiro da Cunha (1978), Lévi-Strauss (1993) e Gaspar (1994-1995), por exemplo, incluindo-se, neste conjunto, o texto sobre os enterros em urnas dos Guarani, escrito por César (1972). Segundo este último, “há autores que falam tão só de enterros diretos e indiretos, significando com isso os primários e secundários em urnas” (César, 1972, p. 27). Para César (1972, p. 28), os enterros em urnas poderiam ser primários, quando o corpo é depositado “sem demora” – inteiro e com carnes – no recipiente cerâmico, ou secundários, quando os ossos, uma vez desenterrados, são depositados no recipiente de uso funerário. Este autor considera secundárias as deposições de ossos queimados ou de suas cinzas diretamente em covas no solo ou em vasilhames cerâmicos, e os atribui aos Mundurucu, Curuaia, Oiampi e Aicauá. Os sepultamentos secundários foram atribuídos aos Ature (norte do Amazonas), Rucuyenne (Brasil Central) e aos Carajá e Camacã, da Bahia (César, 1972). Na região da Amazônia, a memória, a alteridade e o tratamento diversificado dado aos mortos, incluindo o uso dos ossos e as suas formas e lugares de deposição, são objeto de estudo de Chaumeil (2007), que também trata brevemente das inumações secundárias. Segundo Müller e Souza (2011a), que analisaram dois casos de vasilhas Guarani com função funerária e os tipos de deposições nelas realizadas, para esta cultura estão descritas, na bibliografia arqueológica, a presença de enterros primários e de enterros secundários (Prous, 1992; Noelli, 1993). Todavia, o estado de conservação ruim dos ossos nesses vasilhames cerâmicos prejudicou a interpretação sobre a presença de articulação ou não entre eles. Esse aspecto
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também ficou danificado pelas alterações tafonômicas, que resultaram na reacomodação, no esmagamento parcial ou no deslocamento dos ossos. Os sepultamentos, quando não secundários, apresentavam esqueletos com alguns ossos principais semiarticulados ou parcialmente articulados. Ainda, a presença europeia na região do rio Pardo, no Sul do Brasil, teria propiciado o aparecimento dos enterros secundários guaranis em vasilhames cerâmicos, modificando as formas de deposição simples anteriores ao período do contato (Ribeiro, 1978, p. 7-38 apud Müller; Souza, 2011a, p. 213). Nesse sentido, a perspectiva de análise dos remanescentes ósseos humanos quanto à identificação e à interpretação da sua forma de deposição deve seguir a perspectiva metodológica da Bioarqueologia, tanto para os estudos dos sepultamentos secundários, quanto das cremações (Müller; Souza, 2011b). Ao mesmo tempo, uma revisão preliminar da literatura arqueológica mostra que, apesar da predominância dos sepultamentos primários, ainda têm sido registrados diversos casos de sepultamentos secundários em contextos pré-históricos de caçadorescoletores, horticultores e ceramistas em várias regiões do Brasil. Entre eles, destacam-se alguns apresentando diferentes sinais de manipulação intencional nos corpos. Sem pretender esgotar o assunto, só serão apresentados no presente trabalho, de forma sintetizada, alguns exemplos que permitem refletir sobre a extensão desta prática na pré-história brasileira e que servem de marco geral para o caso discutido seguidamente. Assim, na região de Lagoa Santa, em Minas Gerais, o sepultamento 3 de Lapa das Boleiras (Neves et al., 2002), datado entre 8.000 e 9.000 anos A.P., estava composto por diversos ossos longos, dispostos paralelamente entre si, formando um feixe, que teriam sido colocados dentro de uma calota craniana. As características e a disposição dos ossos mostraram evidências de procedimentos complexos de secundarização, envolvendo a manipulação do corpo, por meio da remoção intencional dos ossos, assim como: sinais de fraturas intencionais, aplicação de pigmento ocre e ação do fogo.
Na mesma região de Lagoa Santa e com datações entre 8.700 e 690 A.P., destaca-se o sítio de Lapa do Santo, pelos elaborados rituais mortuários usando os corpos dos falecidos como símbolos, de acordo com Strauss (2010, 2014, 2016). No que se refere ao registro arqueológico, nos sepultamentos do padrão 2 (8.700 a 8.200 A.P.), essas práticas expressaram-se na forma de múltiplas evidências de manipulação intencional perimortem dos corpos, com ossos desarticulados, compostos por: crânios individualizados; fardos de ossos com múltiplos indivíduos; marcas de corte; chanfros; extração de dentes; seleção de partes anatômicas; separação de diáfises e epífises de ossos longos; exposição ao fogo; e aplicação de pigmento ocre-avermelhado (Strauss, 2016). No padrão 3 (7.500 a 6.000 A.P.), os sepultamentos caracterizaram-se por ser enterramentos individuais em covas rasas cobertas por blocos, contendo ossos desarticulados, desordenados, evidenciando ossos longos com fraturas intencionais no tecido ósseo ainda fresco (Strauss, 2016). Também em Minas Gerais, no abrigo Santana do Riacho, com ocupações humanas datadas entre 11.900 e 2.500 A.P. (Prous, 1992-1993 apud Strauss, 2014), foram observados ossos fora da conexão anatômica ou partes ausentes, que poderiam ter sido resultado de manipulações intencionais do corpo durante o processo funerário, devido a algumas condutas rituais que envolviam algum grau de redução do corpo (Junqueira, 1984 apud Strauss, 2014). Em particular, na ocupação de Santana do Riacho 1, possivelmente existem sinais de manipulação e de redução de corpos, indicadas pela presença de sepultamentos de pés isolados – possivelmente amputados – e um sepultamento contendo partes seccionadas de um esqueleto. Outros indicadores desse processo redutivo são a queima, a aplicação de pigmento ocre e a ausência de ossos em alguns sepultamentos. Por outra parte, um entre os oito sepultamentos evidenciados na ocupação de Santana do Riacho 3 era secundário, com ossos longos dispostos intencionalmente uns sobre os outros. Ainda foram localizadas concentrações de dentes humanos inumados em
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duas deposições, estando uma delas com contas de colar, sob líticos e em matriz de sedimento vermelho. Na região mineira de Diamantina, o sítio Lapa do Caboclo apresentou sepultamentos em fossas do tipo secundário simples (individuais), com redução ou descarnamento passivo dos cadáveres, datados entre 730 a 1.260 A.P. (Solari et al., 2012). As estruturas funerárias de forma cilíndrica, feitas de cascas de árvores do cerrado e de couro animal, continham os esqueletos de uma criança e de um adulto desarticulados e manipulados intencionalmente com pigmento vermelho (na criança) e cera ou resina avermelhada (no adulto), e apresentavam alguns ossos fraturados peri/postmortem, além do achado de outros depósitos funerários perturbados, que também poderiam ter sido parte de sepultamentos primários e/ou secundários, mas, pelo grau de perturbação, não foi possível sua identificação. Na região das terras baixas do Amazonas, também podemos fazer menção ao sítio Hatahara, onde, em associação a montículos artificiais pertencentes à fase Paredão (séculos VII a XII), foram registrados, além dos sepultamentos primários, sepultamentos do tipo secundário, individuais e múltiplos, apesar de apresentar grande dificuldade na sua identificação, devido ao seu estado de conservação e perturbação na matriz arqueológica (Rapp Py-Daniel, 2009, 2010), motivo pelo qual não se têm maiores informações sobre os mesmos. Além destes cenários mortuários, os sambaquis destacam-se, apesar das poucas informações acerca de suas diversificadas práticas funerárias. Enquanto Uchôa (1973) não identificou sepultamentos secundários em Piaçaguera e Tenório, litoral paulista, Gaspar et al. (2008 apud Strauss, 2014) localizaram inúmeros sepultamentos secundários no sambaqui Jabuticabeira II, em Santa Catarina, o que julgaram ser a regra nesse sítio. Nesses casos, os esqueletos estavam desarticulados e incompletos, com pigmentação ocre, com remoção e/ou acréscimo de ossos e com acompanhamentos funerários de artefatos em conchas e líticos. A presença de sepultamentos secundários, ou de deposições mortuárias compostas, em sítios sambaquis
(1.000 a 10.000 A.P.) tem sido mencionada por autores como Silva (2005), Gaspar et al. (2008), entre outros, muito embora haja poucos casos descritos em detalhes. No sítio conchífero Mar Virado (Silva, 2001, 2005; Uchôa, 2009), situado em São Paulo, na ilha de mesmo nome e datado em cerca de 3.000 A.P., foram escavados quatro sepultamentos com características de deposições compostas. Duas dessas deposições ocorreram em covas circulares, com ossos queimados e misturados de adultos masculino e feminino, classificados como cremações secundárias. Na inumação feminina, observa-se a ausência do crânio, retirado antes da queima dos demais ossos. No terceiro caso, foi escavado um sepultamento secundário duplo com ossos de adulto, dispostos em feixe, e ossos de outro indivíduo, queimados e misturados, todos sob uma carapaça dorsal de quelônio, apoiada por grandes seixos de traquito. No quarto caso, os ossos desarticulados de um subadulto estavam depositados sob ossos de um mamífero marinho. Na região de Saquarema, no Rio de Janeiro, alguns sítios sambaqui contendo sepultamentos foram estudados por Kneip e Machado (1993). No sambaqui da Pontinha, as autoras identificaram sete deposições compostas ou secundárias (sepultamentos 1, 4, 5, 6, 10, 12 e 16), entre 19 deposições funerárias, as quais estavam representadas por sepultamentos secundários cremados. Já no sambaqui da Beirada, entre 29 deposições funerárias, duas eram do tipo secundário (sepultamentos 6 e 7), onde os ossos apresentavam sedimentos e concreção vermelha. Entre os sítios arqueológicos com evidências de enterramentos humanos no Nordeste brasileiro, Cisneiros (2004) e Castro (2009) mencionam alguns onde teriam sido identificadas práticas funerárias do tipo secundárias, incluindo ossos desarticulados, fraturados, com sinais de queima e pigmentação ocre-avermelhada, entre eles: Cemitério do Caboclo (Pernambuco), Alcobaça (Pernambuco), Pedra do Alexandre (Rio Grande do Norte), Justino (Sergipe) e São José II (Alagoas). Na área arqueológica de Xingó, município de Canindé do São Francisco, no estado da Bahia, divisa com
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Alagoas, o sítio Justino (Vergne, 2002, 2005, 2007) foi caracterizado como uma grande ‘necrópole’, composta de quatro cemitérios, com vestígios das práticas funerárias associadas a grupos ceramistas (cemitérios A, B e C) e a caçadores-coletores (cemitério D, mais profundo e antigo), com datações entre 1.280 ± 45 A.P. a 8.950 ± 70 A.P. (Vergne, 2007). A maioria dos enterramentos era primária, com sepultamentos “totalmente articulados” e, em menor quantidade, estavam os “secundários com ossos cuidadosamente arrumados em torno ou partindo de um, até três crânios” (Vergne, 2007, p. 45). Do total de 148 deposições funerárias, Vergne (2002, 2005, 2007) distinguiu 38 deposições compostas (sepultamentos secundários). Entre os grupos ceramistas, foram registrados 106 sepultamentos primários e 37 secundários. Para os caçadores-coletores, Vergne (2002, 2005, 2007) identificou quatro sepultamentos primários e um secundário. Também no Nordeste, no abrigo cemitério Pedra do Alexandre, no Rio Grande do Norte, se sucederam as duas formas rituais de enterramentos primários e secundários ao longo do tempo, entre 9.400 e 2.600 anos A.P. Entre eles, destaca-se o sepultamento 1, datado entre 4.000 a 4.700 anos A.P., secundário, contendo ossos sem conexão anatômica de quatro indivíduos (um adulto jovem, duas crianças e um feto a termo), pintados com pigmento vermelho, em uma cova rodeada de lajes de pedra. Também a inumação secundária dupla número 15, que não foi datada, de dois adultos jovens masculinos, continha os ossos longos agrupados e os crânios colocados acima, e alguns adornos, como colares e contas. Destaca-se ainda o sepultamento 3, do tipo secundário, contendo os ossos de uma criança de cinco anos, que apresentou a datação mais antiga do sítio (Martin, 1994, 1995-1996). Pelas informações ora apresentadas, vê-se que, embora sejam menos frequentes em comparação aos enterramentos primários, as evidências de práticas funerárias do tipo secundário se mostram distribuídas em várias regiões do Brasil e desde tempos muito antigos na pré-história brasileira, qualquer que seja a sua tipologia
relacionada à subsistência dos grupos responsáveis. Com diferenças nos modos e no tratamento dos corpos e depósitos, os grupos humanos teriam realizado esse tipo de prática funerária de forma relativamente ampla e estendida, ainda que os processos ativos de redução do corpo sejam mais difíceis de reconhecer e menos comuns. Nesse sentido, um novo achado em um sítio arqueológico do Nordeste brasileiro, na Pedra do Cachorro (Buíque, Pernambuco), soma-se aos já existentes para gerar novas e mais detalhadas informações sobre este particular comportamento mortuário durante o Holoceno no Brasil.
PEDRA DO CACHORRO NO CONTEXTO ARQUEOLÓGICO REGIONAL O sítio arqueológico conhecido como Pedra do Cachorro foi descoberto em 2010, quando alguns ossos humanos começaram a aflorar em superfície e foram coletados assistematicamente por habitantes da localidade, que acionaram o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em Pernambuco (IPHAN-PE). O estudo preliminar em laboratório do esqueleto humano parcialmente completo mostrou a presença de chamativas marcas de corte e fraturas do tipo intencional antrópico (Solari et al., 2015). Tal achado motivou a realização de trabalhos de prospecção e escavação arqueológicas pela primeira vez no local em 2015, feitos por uma equipe do Departamento de Arqueologia, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com o apoio do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Arqueologia, Paleontologia e Ambiente do Semiárido do Nordeste do Brasil (INAPAS), objetivando caracterizar o potencial do sítio e contextualizar cronoestratigraficamente os achados. A Pedra do Cachorro localiza-se no município de Buíque, Pernambuco, a 295 km da capital Recife (Figura 1). O sítio está inserido em uma mesorregião do agreste pernambucano, na transição entre o agreste e o sertão, no interior do Parque Nacional do Catimbau, administrado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), na coordenada UTM 24L 692959E - 9051647N (WGS-84), defronte à serra de Jerusalém.
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Figura 1. Mapa com a localização do sítio arqueológico Pedra do Cachorro, Buíque, Pernambuco. Fonte: Laboratório de Arqueologia Biológica e Forense (LABIFOR), Departamento de Arqueologia, UFPE.
O sítio arqueológico encontra-se em um abrigo, na lateral oeste de um afloramento rochoso homônimo, dada sua semelhança ao perfil de um cão. Sua área abrigada, semicoberta, mede aproximadamente 350 m² e está sendo objeto de trabalhos arqueológicos. A partir da localização e da escavação – até o momento – de três sepultamentos humanos, apresenta potencial como espaço de uso funerário na região (Figura 2). O Parque Nacional do Catimbau e entorno do sítio apresentam numerosos abrigos rochosos, onde foram identificados sítios arqueológicos com pinturas e gravuras rupestres, além de outras evidências de ocupação préhistórica, chegando a ser considerado o segundo maior parque arqueológico do país, depois do Parque Nacional
Serra da Capivara (Piauí). Na área, foram identificados cerca de 30 sítios arqueológicos, que oferecem informações sobre as ocupações pré-históricas da região, com amplos horizontes culturais e temporais, muitos dos quais associados com a tradição rupestre Agreste, difundida no Nordeste (Albuquerque; Lucena, 1991; Martin, 2005; Oliveira, 2006). As evidências de ocupações humanas por grupos caçadores-coletores durante o Holoceno no vale de Catimbau concentram-se principalmente nas covas e nos abrigos areníticos, com datações compreendidas entre 6.000 e 2.000 A.P. Os sepultamentos localizados no sítios da região (Alcobaça, Gruta do Padre, Furna do Estrago, Cemitério do Caboclo, Peri-Peri ou Morro do Osso, entre outros) mostram a variabilidade do padrão funerário,
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Figura 2. Inserção do abrigo Pedra do Cachorro na paisagem regional do vale de Catimbau. Foto: Laboratório de Arqueologia Biológica e Forense (LABIFOR), Departamento de Arqueologia, UFPE.
com presença de inumações e cremações, sepultamentos primários e secundários, com os corpos e membros depositados em variadas posições e orientações, com ou sem acompanhamentos funerários, incluindo diversos tipos de materiais associados, com e sem presença de pigmentos corporais etc. (Albuquerque; Lucena, 1991; Castro, 2009; Cisneiros, 2004; Martin, 2005; Oliveira, 2006). Nesse contexto, o abrigo rochoso Pedra do Cachorro insere-se como um novo sítio da região com presença de sepultamentos humanos primários e secundários datados – até o momento – entre 2.0701 a 760 A.P.
O SEPULTAMENTO 1 DO SÍTIO PEDRA DO CACHORRO A escavação arqueológica na área onde havia surgido os ossos humanos – que inicialmente foram coletados de forma assistemática – permitiu a recuperação dos ossos restantes do mesmo indivíduo, os quais ainda estavam enterrados no local, e, afortunadamente, possibilitou o registro de parte da deposição funerária in situ, sem perturbações tafonômicas naturais ou antrópicas modernas.
Durante o trabalho de campo, foi constatado um agrupamento de ossos humanos desordenados, desarticulados, fraturados, com ausência de elementos ósseos (vértebras, ossos de mãos e pés), que se acharam concentrados em uma área aproximada de 40 cm de diâmetro e 30 cm de profundidade. O conjunto ósseo apresentava claros indícios de intencionalidade no tratamento e na formação da deposição funerária. Esse achado permitiu confirmar que estávamos diante de um sepultamento em cova do tipo secundário ou composto (Duday et al., 1990; Duday, 2009a, 2009b; Schroeder, 2001; Sprague, 2005), contendo os remanescentes ósseos de um único indivíduo adulto masculino, com claros sinais de manipulação intencional humana (Binford, 1981; Botella et al., 2000; White, 1992), sem acompanhamentos mortuários ou estruturas funerárias associadas, o qual apresentou uma antiguidade de 760 ± 30 A.P.2, pelo método de datação direta a partir de colágeno extraído em osso, com a técnica de Espectrometria de Massas com Aceleradores (AMS) (Figura 3).
A datação de 2.070 ± 30 A.P foi feita em carvões associados ao sepultamento primário de uma criança (sepultamento 2), mas ainda vai ser feita uma datação direta em osso, para confirmar a antiguidade do sepultamento. 2 Beta-424624: idade radiocarbônica medida: 640 ± 30 A.P.; idade radiocarbônica convencional: 760 ± 30 A.P.; calibração (2 sigma): Cal A.D. 1265 a 1305 (Cal A.P. 685 a 645) e Cal A.D. 1365 a 1375 (Cal A.P. 585 a 575). 1
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Figura 3. Parte do contexto secundário, in situ, do sepultamento 1 com sinais de manipulação intencional. Foto e desenho: Laboratório de Arqueologia Biológica e Forense (LABIFOR), Departamento de Arqueologia, UFPE.
Logo após a curadoria, o inventário e a análise bioarqueológica em laboratório dos remanescentes humanos do sepultamento 1, pudemos verificar que se trata de um esqueleto parcialmente completo de um único indivíduo adulto, com idade aproximada entre 35 e 45 anos, de acordo com os métodos de estimação de idade em adultos3 da quarta costela (Loth; Iscan, 1989) e da sinostose das suturas cranianas (Masset, 1989; Meindl; Lovejoy, 1985); de sexo masculino, por características morfológicas do crânio e da pélvis (Bass, 2005; Buikstra; Ubelaker, 1994; Ferembach et al., 1979; Ubelaker, 1989; White; Folkens, 2005); de afinidade biológica indígena americana (Bass, 2005; Gill, 1998); e uma estatura aproximada de 1,63 m (Genovés, 1967; Bass, 2005). Também foi possível observar que, fundamentalmente, o esqueleto destaca-se por apresentar uma série de sinais de manipulação intencional perimortem ou em ossos frescos, incluindo marcas de corte, fraturas, golpes e esmagamento (Botella et al., 2000; Binford, 1981; White, 1992), vinculadas à prática mortuária de um sepultamento secundário, com descarnamento ativo do cadáver.
A METODOLOGIA DE IDENTIFICAÇÃO DE SINAIS DE MANIPULAÇÕES INTENCIONAIS Os atributos selecionados para análise das modificações intencionais foram observados macroscopicamente em cada espécime ósseo, e se centraram na identificação, na preservação e no registro dos sinais de manipulação: fraturas, marcas de corte, golpes e esmagamento. Para tal análise, foi utilizada uma adaptação dos critérios metodológicos propostos por White (1992), Binford (1981) e Botella et al. (2000), integrando técnicas e métodos de análise e observação da zooarqueologia, da antropologia física/ biológica e da tafonomia, o que resulta em uma aproximação mais adequada para o estudo de sinais de manipulações intencionais em ossos humanos e/ou de animais. FRATURAS Entendemos as fraturas como a perda de continuidade da substância óssea (Adams, 1974; Compere et al., 1959; De Palma, 1966). De acordo com a etiologia, podem ser produzidas por um traumatismo brusco, por fadiga, por sobrecarga repetida e/ou por patologias ósseas. Nos casos
Os métodos de estimação de idade para indivíduos adultos têm menor margem de precisão porque se baseiam na degeneração do esqueleto e, portanto, estão sujeitos à variabilidade individual e ambiental, ao contrário dos métodos para estimação de idade em indivíduos subadultos, baseados na maturação do esqueleto ou na calcificação e erupção dentária, sujeitos a condições genéticas. Neste caso, o método de Loth e Iscan (1989) apresenta uma margem de erro crescente e significativa a partir da segunda década de vida. Da mesma forma, a sinostose das suturas cranianas (Masset, 1989; Meindl; Lovejoy, 1985) está sujeita a uma grande variabilidade individual, devendo ser usada com cuidado.
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de traumatismo brusco, são provocadas pela aplicação de uma força que excede os limites da resistência do osso. As forças que produzem as fraturas podem ser diretas ou indiretas: a força direta resulta do impacto, enquanto as forças indiretas são produzidas por mecanismos de torção, tração ou flexão. O tipo de fratura está determinado pela direção e pela violência causal, além da intensidade dessa força. Outros fatores intrínsecos que influenciam são a idade do indivíduo, a resistência do osso e a sua natureza (se compacto ou esponjoso). As fraturas se designam mediante termos descritivos segundo a forma da superfície fraturada. Com respeito ao problema de diferenciar os agentes responsáveis pela fratura, humanos ou não humanos, é importante reforçar que o tipo de fratura não identifica o agente causador. Múltiplos agentes podem produzir o mesmo padrão de fratura, incluindo os casos da morfologia espiralada, que podem ser tanto o resultado da ação humana, como de outros fatores ou agentes tafonômicos naturais, abarcando mordeduras de animais carnívoros, exposição à intempérie ou pisoteio de animais (Agenbroad, 1989; Binford, 1981; Haynes, 1983; Hill, 1976; Myers et al., 1980; White, 1992). O que melhor permite reconhecer o ser humano como agente responsável é a observação de marcas deixadas por instrumentos (líticos, metálicos etc.) utilizados para produzir a fratura intencional do osso, também o reconhecimento de um padrão de dano intencional do osso, não aleatório e diferente de outros fatores ou agentes não humanos. Quanto à antiguidade da fratura, o principal interesse está em distinguir aquelas que são perimortem, ou produzidas em ossos frescos, ou seja, contendo substância orgânica (colágeno), daquelas que foram produzidas postmortem em ossos secos e sem conteúdo orgânico (Turner II; Turner, 1990; Sauer, 1998; Villa; Mahieu, 1991; Ubelaker; Adams, 1995; Wieberg; Wescott, 2008). Apesar de que, em alguns casos, essa distinção possa ser problemática – em particular, em ossos planos e com pouca espessura cortical, como do quadril, costelas e escápulas –, geralmente não resulta difícil para o olhar de
um observador treinado. Assim, os tipos de morfologia da fratura, sua coloração e textura superficial resultam diferentes umas das outras quando se trata de ossos frescos e secos (Botella et al., 2000; Larsen, 1997; Walker, 2001; White, 1992). Segundo Larsen (1997) e Walker (2001), é fundamental para a interpretação do trauma observado o reconhecimento a respeito do traumatismo, se foi sofrido antes da morte (antemortem), próximo ao momento da morte (perimortem) ou depois da morte (postmortem). Para estes autores, as fraturas antemortem são as únicas que apresentam sinais de remodelação óssea, geralmente em forma de um calo de osso novo que se cria ao redor da fratura, e que persiste durante muito tempo depois de que se produziu o traumatismo. Pelo contrário, as fraturas perimortem e postmortem não apresentam sinais de remodelação óssea e se diferenciam entre si, basicamente, pela tipologia e, às vezes, pela coloração. As fraturas perimortem produzidas em ossos frescos apresentam as mesmas características que os sujeitos vivos, enquanto as fraturas postmortem, feitas em ossos em estado seco, são comumente ocasionadas por processos pós-deposicionais ou durante a escavação. Igualmente, é importante esclarecer que no que concerne a fraturas perimortem em ossos frescos, pode ser impossível determinar, com precisão, se as mesmas ocorreram pouco antes da morte, no momento ou pouco tempo depois, tendo em conta que os ossos podem permanecer ‘frescos’ durante muito tempo depois da morte, inclusive anos, dependendo do ambiente deposicional, e não propriamente do tempo transcorrido (Lyman; Fox, 1989).
CORTES A discussão sobre o reconhecimento de marcas de corte em superfícies ósseas é de longa data dentro da comunidade acadêmica arqueológica e paleontológica internacional. Principalmente durante as décadas de 1980 e 1990, esteve ligada à identificação da ação humana como responsável pelas marcas encontradas em ossos
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de animais, para inferir a origem de atividades de caça e processamento em nossos ancestrais hominídeos do continente africano (Binford, 1981; Bunn; Kroll, 1986; Bunn et al., 1980; Lupo; O’Connel, 2002; Potts; Shipman, 1981; Selvaggio, 1994; Shipman; Rose, 1983). A questão aqui, como no caso das fraturas, é que, muitas vezes, identificar o agente humano como o responsável pelos sinais observados nas superfícies ósseas não é tão simples, uma vez que, também nestes casos, vários agentes tafonômicos (carnívoros, roedores, abrasão, pisoteio de animais, raízes, entre outros) podem ocasionar alterações na superfície óssea semelhantes às marcas de cortes intencionais, produzidas por diversos instrumentos de corte (Behrensmeyer et al., 1986; Binford, 1981; Bunn, 1981; Olsen; Shipman, 1988; Potts; Shipman, 1981; Shipman; Rose, 1983, 1984; Walker; Long, 1977; White, 1992). Nessa mesma época, alguns autores sugeriram que a solução para o diagnóstico das marcas de corte estava em se fazer uma abordagem com o uso de microscópio de varredura eletrônica (Scanning Electron Microscope - SEM) (Potts; Shipman, 1981; Shipman; Rose, 1983, 1984), enquanto outros consideravam que a observação macroscópica era suficiente para seu reconhecimento (Binford, 1981; Bunn, 1981, 1991; Bunn; Kroll, 1986; Lupo; O’Connell, 2002; Selvaggio, 1994; White, 1992). Na realidade, o que esses autores procuravam apontar era que, mais importante do que o reconhecimento individualizado das marcas por suas propriedades formais de uma única marca discreta, o modo mais apropriado para a identificação de agentes humanos reside na percepção das características gerais definidoras dos sinais de corte em si mesmas e, principalmente, na compreensão do padrão geral de danos observáveis na superfície óssea, a partir da localização e da distribuição dos mesmos, a fim de inferir a respeito das atividades relacionadas (Binford, 1981; White, 1992). Por isso, consideramos que, para o reconhecimento de marcas de corte, resulta adequado fazer uso da seguinte definição de Haynes e Stanford (1984, p. 226 apud White, 1992, p. 145):
Cut marks should be found on parts of bones where a sharp edge would have been necessary to separate meat from bone, bone from bone, or hide from carcass. Cut marks should be clean incisions with V-shaped cross sections. True cut marks should be discontinuous or conformable on bone surfaces where the topography is uneven, because inflexible tool edges skip over minor depressions when applied to bone surfaces. It must be kept in mind that cut marks are the result of plausible, practical human motor actions such as sawing, scraping, or slicing. Most butchering cut marks are sets of a few short, parallel, linear incisions.
Ao mesmo tempo, a distribuição e a localização das marcas de corte sobre o relevo ósseo superficial, conforme suas características anatômicas, são fundamentais para identificação das atividades responsáveis em gerar esses sinais, ou seja: esfolamento, descarnamento, desarticulação e raspagem (Botella et al., 2000). Neste sentido, conforme Botella et al. (2000), as marcas de esfolamento trata-se de sinais que ficam registrados no osso como consequência do corte da pele para separá-la do resto do corpo. Por ser um tipo de marca que só é observável quando a pele está em proximidade com o osso, é no crânio onde se apreciam as marcas mais claras, que se consideram do esfolamento. Além do que, o esfolamento do esqueleto pós-craniano normalmente deixa poucos sinais, já que é possível retirar a pele com poucos cortes, e sem afetar o osso. A maioria das marcas de esfolamento que se encontram no crânio é observada como incisão fina e retilínea, de comprimento variável. Varia também em termos de profundidade e espessura, dependendo do instrumento utilizado durante o procedimento. Naquelas zonas do crânio com morfologia irregular e maior número de ligamentos e músculos, tais incisões tendem a ser múltiplas e irregulares. Os sinais de desarticulação, segundo Botella et al. (2000), são as incisões que ficam marcadas nos ossos como consequência do corte das partes moles, para separar diferentes segmentos corporais pelas articulações ou juntas. Para serem consideradas como tais, deve-se sempre observar as zonas periarticulares; localizadas nas epífises
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dos ossos longos, próximo da borda articular ou nas regiões correspondentes às inserções musculares. A desarticulação procura conseguir a separação dos membros corporais nas articulações, e realiza-se por meio de cortes, ainda que também se possa aplicar tração, rotação e golpes, quando resulta ser difícil acessar, com o instrumento cortante, a zona articular para deslocar as partes. As marcas de desarticulação consistem frequentemente em incisões transversais, paralelas à superfície articular e perpendiculares ao eixo maior do osso. Podem ser únicas e longas, ou múltiplas e curtas, sempre com secção em ‘V’. A espessura e a profundidade variam de acordo com o tipo de instrumento empregado e o ângulo do fio. Também afetam sua morfologia a força aplicada no corte e a articulação do esqueleto em questão. Por sua vez, o descarnamento, para Botella et al. (2000), é o processo de extração das massas musculares. As marcas de descarnamento resultam como consequência do corte das partes moles, quando o fio do instrumento se apoia sobre o osso, e deixa a sua marca em forma de incisões. Podem localizar-se em qualquer segmento do osso, exceto nas zonas articulares. Trata-se de incisões lineares, que mostram uma seção em ‘V’, com uma profundidade e espessura variável, de acordo com o tipo de instrumento e a força empregada no corte. Esses autores propõem que o interesse da manobra reside na retirada da carne, e não em marcar o osso, por isso as marcas se encontram geralmente aí, onde o gume do instrumento golpeia contra o osso, naquelas regiões que sobressaem conforme a morfologia geral do osso ou onde o músculo se estreita e há menos cobertura por tecidos moles. Também, normalmente, o corte da carne se realiza insistindo sobre a massa muscular, até conseguir finalmente separá-la de seu suporte ósseo, pelo qual as marcas de descarnamento tendem a ser múltiplas e paralelas, dispostas em sentido perpendicular ou longitudinal na mesma direção e escalonadas. Por último, as marcas de raspagem, Botella et al. (2000), caracterizam-se por estrias numerosas, de traço
irregular, identificadas sobre a superfície externa de algumas porções de ossos. São produzidas, fundamentalmente, pela remoção do periósteo, ou pela limpeza das áreas com inserções musculares e ligamentosas, especialmente amplas e fortemente aderidas. Os sinais consistem em conjuntos de finas marcas lineares e múltiplas, com secções em ‘V’, rasas e pouco extensas. São observadas agrupadas, inclusive sobrepostas e entrecruzadas, denotando a repetição do gesto no mesmo lugar.
GOLPES Considerando, que morfologicamente, os sinais de golpes são equivalentes às marcas de percussion pits (White, 1992, p. 139) e chop marks (White, 1992, p. 146), estes dois tipos de marcas foram agrupados pela sua similitude morfológica, apesar de sua funcionalidade diferencial. Conforme White (1992), elas são produzidas em ações de percussão e ocorrem quando um instrumento cortante ou curto-contundente é usado para golpear perpendicularmente a superfície óssea. A morfologia das chop marks e as percussion pits são as mesmas, sendo indistinguíveis morfologicamente. A distinção que o autor faz entre elas é de acordo com sua funcionalidade. No caso das percussion pits, o objetivo dos golpes é fraturar o osso e, geralmente, as marcas são observadas nas proximidades das bordas das fraturas; já no caso das chop marks, o objetivo dos golpes é a remoção dos tecidos moles. ESMAGAMENTO O último dos critérios avaliados foi o fato descrito por White (1992) como esmagamento (crushing), referindo-se ao esmagamento ou deslocamento do osso cortical para o interior do espaço ocupado pelo osso esponjoso. Esse fenômeno ocorre, geralmente, nas áreas metafisárias articulares de ossos longos, ainda que também possa ser observado em ossos de crânio ou do esqueleto axial. É um dos vários critérios apontados por White (1992) relacionados com os produtos de fraturas por percussão, que ajudam no reconhecimento dessa atividade.
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RESULTADOS: AS MANIPULAÇÕES NO SEPULTAMENTO 1 A partir dessa proposta metodológica, foi possível observar que os ossos do sepultamento 1 mostraram os seguintes sinais de trauma ou manipulação intencional do tipo perimortem: fraturas, marcas de corte (esfolamento, descarnamento, desarticulação e raspagem), golpes e esmagamento, como pode ser representado de forma esquemática na Figura 4 e ilustrado nas Figuras 5, 6 e 7.
No esqueleto do sepultamento 1, foi possível observar que o crânio, a maioria dos ossos longos e as costelas estavam fraturados, enquanto alguns ossos, como ulnas, rádios e ossos dos quadris, achavam-se completos e sem fratura. A maioria dos ossos quebrados apresentava características morfológicas das fraturas do tipo perimortem em ossos frescos, produzidas por percussão e vinculadas ao processo redutivo in situ dentro da prática funerária secundária, na sua etapa final de deposição no local de enterramento definitivo (Figura 5). Ao comparar com
Figura 4. Esquema dos ossos presentes e os sinais de manipulação intencional identificados no esqueleto do sepultamento 1. Fonte: Laboratório de Arqueologia Biológica e Forense (LABIFOR), Departamento de Arqueologia, UFPE.
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outros sítios arqueológicos, vemos que Lapa das Boleiras (Neves et al., 2002), Lapa do Santo (Strauss, 2010, 2014, 2016) e Lapa do Caboclo (Solari et al., 2012) também mostraram padrões similares de fratura intencional dos ossos como parte das práticas funerárias em contextos de sepultamentos secundários.
Por outra parte, os mesmos ossos do sepultamento 1 que apresentaram fraturas perimortem também exibiram uma série de marcas longitudinais, retilíneas e paralelas sobre a superfície cortical externa, sendo classificadas como marcas de corte intencionais. Por sua morfologia e localização, foram identificados sinais de cortes resultantes de atividades de esfolamento e raspagem no crânio e na mandíbula, assim como ações de desarticulação e descarnamento de alguns ossos do esqueleto póscraniano, produto de um descarnamento ativo do cadáver em uma etapa inicial, vinculada a acelerar o processo de decomposição/redução do cadáver e ajudar na limpeza do esqueleto dentro da prática funerária secundária (Figura 6). Todavia, ao comparar o sepultamento 1 de Pedra do Cachorro com outros sítios arqueológicos, somente o padrão 2 de Lapa do Santo (Strauss, 2010, 2014, 2016) apresentou um registro inquestionável de marcas de corte em alguns de seus sepultamentos secundários com manipulação intencional dos cadáveres. No entanto, não descartamos que outros sítios pré-históricos brasileiros
Figura 5. Úmero com fratura fresca (perimortem) e detalhe do ponto de impacto por percussão. Escala: 5 cm. Foto: Laboratório de Arqueologia Biológica e Forense (LABIFOR), Departamento de Arqueologia, UFPE.
Figura 6. Tipos de marcas de corte observadas no sepultamento 1: A) esfolamento; B) desarticulação; C) descarnamento; D) raspagem. Escalas: 1 cm. Fonte:Laboratório de Arqueologia Biológica e Forense (LABIFOR), Departamento de Arqueologia, UFPE.
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Figura 7. Tipos de golpes observados no sepultamento 1: A) percussion pits; B) chop marks. Escalas: 1 cm. Fonte: Laboratório de Arqueologia Biológica e Forense (LABIFOR), Departamento de Arqueologia, UFPE.
com sepultamentos secundários já escavados poderiam também conter marcas de corte, mas que talvez não tenham sido examinadas por especialistas e simplesmente passaram desapercebidas pelos arqueólogos. Ao mesmo tempo, na maioria dos ossos do sepultamento 1 com sinais de fraturas e cortes, foi observada uma série particular de marcas com seção mais ampla e profunda do que as marcas de corte, que foi identificada como golpes – incluindo as duas funções das percussion pits e chop marks segundo White (1992) – para remover os tecidos moles na limpeza do esqueleto e fraturar os ossos na conformação da deposição final (Figura 7). Por último, no esqueleto do sepultamento 1, foi possível observar sinais de esmagamento em alguns ossos (White, 1992), vinculados com a desarticulação do corpo e associados às fraturas por percussão como parte do tratamento funerário (Figura 8).
CONSIDERAÇÕES FINAIS As práticas funerárias referem-se às ações realizadas na preparação do cadáver e no destino final do corpo, de acordo com a maneira como determinado grupo enfrenta o fenômeno da morte dos seus próprios membros. Analisar os contextos mortuários em um sítio arqueológico e tentar reconstruir as etapas do ritual funerário (tratamento do cadáver, local e forma do enterramento, uso de
Figura 8. Fêmur com sinais de esmagamento. Fonte:Laboratório de Arqueologia Biológica e Forense (LABIFOR), Departamento de Arqueologia, UFPE.
acompanhamentos funerários etc.) são modos de nos aproximar dos aspectos simbólicos, culturais, sociais e ideológicos vinculados com a morte nos grupos estudados, pelo fato de que tais práticas transmitem e comunicam crenças, valores, identidades, tradições e memórias do grupo em questão. Mesmo em uma proporção menor do que os sepultamentos primários, os enterramentos secundários caracterizam-se como resultantes de práticas funerárias relativamente comuns e estendidas entre as populações pré-históricas brasileiras. A disposição dos ossos em
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feixes, o uso de pigmento ocre-avermelhado e os ossos queimados têm sido indicadores desse tipo de prática, a qual parece vincular-se a uma decomposição natural do cadáver na maioria dos casos ou que não deixou marcas intencionais durante a redução dos corpos, no âmbito do ciclo funerário tradicional. Menos comuns são os casos de enterramentos secundários com descarnamento intencional ou outros tipos de manipulações corporais, como é o caso apresentado aqui no sepultamento 1 de Pedra do Cachorro, ou como nos outros casos mencionados dos sepultamentos dos sítios Lapa das Boleiras (Neves et al., 2002), Lapa do Santo (Strauss, 2010, 2014, 2016) e Lapa do Caboclo (Solari et al., 2012). Ainda que em fase inicial das escavações no sítio arqueológico Pedra do Cachorro, o achado deste sepultamento e as manipulações intencionais perimortem que os ossos exibem ajudam a conhecer melhor a variabilidade dos rituais funerários das sociedades passadas no Brasil. Com o uso de uma metodologia adequada para o reconhecimento de manipulações intencionais antrópicas, no esqueleto do sepultamento 1, foram identificadas marcas de corte, resultado de atividades de esfolamento e raspagem no crânio e na mandíbula, assim como desarticulação e descarnamento em muitos dos ossos longos. Também foram observadas marcas de golpes intencionais com duas finalidades, para fraturar os ossos e para remoção de tecidos moles, assim como alguns sinais de esmagamentos, associados às desarticulações do corpo e às fraturas por percussão. Todas estas marcas e as atividades associadas estariam vinculadas a um descarnamento ativo para ajudar e/ou acelerar o processo de putrefação do cadáver, em uma primeira etapa do ritual funerário secundário. Além disso, o esqueleto do sepultamento 1 apresentou a maioria dos ossos quebrados intencionalmente, mostrando características e morfologias próprias de fraturas perimortem ou em ossos frescos, e sinais de golpes e esmagamentos associadas às fraturas por percussão. Nesse caso, foi possível inferir que a fraturação dos ossos
esteve vinculada à conformação do depósito final dos remanescentes na última etapa do ritual funerário, que resultou na sua deposição secundária. Por sua parte, o contexto arqueológico desses remanescentes ósseos in situ permitiu observar: a completa ausência de conexão anatômica entre os ossos, um agrupamento dos mesmos de forma desordenada e uma ausência intencional de segmentos ósseos (faltavam as vértebras, assim como os ossos de mãos e pés). Em suma, a observação das manipulações antrópicas intencionais sobre o esqueleto, associadas ao contexto arqueológico, permitiu definir o achado como um sepultamento secundário com ações de redução corporal e descarnamento ativo do cadáver, uma prática mais ou menos comum em contextos pré-históricos brasileiros, mas dificilmente observada mostrando tão claramente os sinais de manipulação nos ossos, como este caso em particular mostrou. Por fim, coincidindo com as reflexões de Strauss (2010, 2016) para o sítio Lapa do Santo – além das diferenças na quantidade de sepultamentos e complexidade dos sítios –, cremos que também em Pedra do Cachorro, na ausência de estruturas funerárias sofisticadas ou ricos acompanhamentos mortuários, a prática dos sepultamentos secundários com sinais de manipulações intencionais dos cadáveres igualmente implica a elaboração de rituais complexos, nos quais os corpos teriam sido usados como símbolos, refletindo aspectos da própria cosmovisão daqueles grupos, por mais que a maioria desses significados fique inacessível para nós no presente.
AGRADECIMENTOS Os autores agradecem o apoio institucional do Departamento de Arqueologia da Universidade Federal de Pernambuco (DARQ-UFPE) e o financiamento do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Arqueologia, Paleontologia e Ambiente do Semiárido do Nordeste do Brasil (INCT-INAPAS), especialmente à professora Dra. Gabriela Martin, por amparar e incentivar todas as nossas atividades de pesquisa no sítio. Em particular, Ana Solari
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agradece ao Programa Nacional de Pós Doutorado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (PNPD-CAPES), pela bolsa de pós-doutorado, na qual se insere esta pesquisa. Finalmente, os autores agradecem aos vários arqueólogos e alunos da UFPE que participaram das atividades arqueológicas em campo e em laboratório, pela ajuda e pela colaboração.
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Philological evidence for phonemic affricates and diachronic debuccalization in Early Terena (Arawak) Evidências filológicas de africadas fonêmicas e debucalização diacrônica em Terena antigo (Arawak) Fernando O. de Carvalho Universidade Federal do Amapá. Macapá, Amapá, Brasil
Abstract: This paper argues that early Terena (‘Guaná’) had a contrast between fricative and affricate consonants that has been lost in modern Terena. Evidence for this claim comes from the examination of late 19th century and early 20th century documents on the language. The existence of the relevant phonemic contrast is revealed not only by an analysis of the transcriptions employed in these early sources but, more importantly, by a demonstration that fricatives and affricates were treated differently in the history of the language. It is proposed that, after the early Terena voiceless fricatives were debuccalized, merging with early Terena h, the affricates started to include fricative realizations in their allophonic range. This scenario is consistent with descriptions of modern Terena that stress the ‘archaic’ character of affricate realizations of /ʃ/. Keywords: Terena. Arawak languages. Sound change. Philology. Resumo: O trabalho aqui apresentado argumenta que o Terena antigo (Guaná) possuía um contraste entre consoantes fricativas e africadas, o qual se perdeu no Terena moderno. Evidências para essa afirmação vêm do exame de materiais sobre a língua datados da segunda metade do século XIX e do início do século XX. A existência do contraste em questão é revelada não só por uma análise das transcrições utilizadas nessas fontes, mas, em especial, pela demonstração de que fricativas e africadas tiveram comportamento distinto no desenvolvimento histórico da língua. Propõe-se que, após a debucalização das fricativas do Terena antigo e sua fusão com h, as africadas passaram a ocorrer como fricativas em parte do seu espaço de realização fonética. O cenário descrito é compatível com descrições do Terena moderno, nas quais se acentua o caráter ‘arcaico’ das realizações africadas de /ʃ/. Palavras-chave: Terena. Línguas Arawak. Mudança sonora. Filologia.
CARVALHO, Fernando O. Philological evidence for phonemic affricates and diachronic debuccalization in Early Terena (Arawak). Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 12, n. 1, p. 157-171, jan.-abr. 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222017000100009. Autor para correspondência: Fernando O. Carvalho. Universidade Federal do Amapá. Campus Marco Zero. Macapá, AP, Brasil. CEP 68902-280 (fernaoorphao@gmail.com). ORCID: http://orcid.org/0000-0002-2115-7416. Recebido em 05/10/2016 Aprovado em 19/12/2016
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Philological evidence for phonemic affricates and diachronic debuccalization in Early Terena (Arawak)
INTRODUCTION In one of its accepted definitions, philology is concerned with subjecting “records to examination and interpretation in order to gain information about the languages in which these records are cast” (Goddard, 1976, p. 73)1. In the context of the native indigenous languages of the Americas, very few languages, were, like Quechua, Aymara, Nahuatl or Guaraní, singled out as the object of grammatical description and compilation of vocabularies in early colonial times (Campbell, 1997, p. 30). As a consequence, most native languages of the Americas have no written testimonies to which this kind of philological investigation can be applied in the search for additional historical insights. Perhaps for this reason – and for the emphasis placed on the urgent need to subject living yet rapidly disappearing languages to documentation and description (Goddard, 1976, p. 74-75) –, a rather self-defeating bias emerged in the study of the indigenous languages of the Americas: the belief that examination of early documentary evidence on these languages, where it exists, can be dismissed as virtually uninformative (see Goddard, 1976, p. 74; Wolfart, 1982, p. 403; Campbell, 1997, p. 8 for early diagnostics of this trend). Fortunately, recent work on the historical linguistics of South American languages has countered this trend and has relied extensively and fruitfully on older documents collected by travelers, missionaries or anthropologists, whose data often contribute critically to the understanding of historical developments and to the reconstitution of the early ethnolinguistic diversity characterizing specific areas or particular language groups (see Ramirez, 2001; Viegas Barros, 2013; Michael; O’Hagan, 2016 and Birchall et al., 2016 for some fine examples). This brief paper addresses existing documentary evidence on early Terena (also called ‘Guaná’ or ‘Chané’; see Carvalho, 2016), which was either the ancestor, or a dialect closely related to the ancestor of Terena (modern Terena), an Arawak language spoken to this day by more than 5,000 people in the Brazilian state of Mato Grosso do Sul2. I will in no sense exhaust the potential these sources may have for further enlightening our understanding of the history of these languages. Instead, I will concentrate on a single aspect of the historical phonology of Terena that emerges quite conspicuously from a comparison of these early documents to the data on the modern language. I will show that early Terena had a contrast between fricative and affricate consonants that has been lost in modern Terena. The existence of the relevant phonemic contrast is revealed not only by an analysis of the transcriptions employed in these early sources but, more importantly, by a demonstration that the two phonological classes were treated differently in the history of the language. I will also bring in comparative evidence from closely related Arawak languages, in particular the Mojeño varieties (Ignaciano and Trinitario), to give a clearer and more comprehensive picture of the historical developments discussed and of what are its implications to our understanding of the Terena diachrony.
I assume here Goddard’s (1976, p. 73) concept of philology when describing the analysis of such early documents provided by “external observers” (i.e. non-native speakers) even if other definitions of what counts as “proper” philological analysis abound (say, definitions that focus on the study of cultures through texts, with no particular concern for the language(s) of these texts as an end in itself). Perhaps the term “metaphilology”, used by Wolfart (1982), is more appropriate for what is intended here, but I will set these questions aside in the present paper. 2 When working with early, documentary material on a speech variety that is closely related to a modern, extant language, there is understandably an impulse to jump into the conclusion that these stand in an ancestor-descendant relationship. I will explicitly avoid this unsubstantiated (perhaps, indemonstrable) claim, assuming only, as seems to be obviously shown by the existing evidence, that these Guaná documents show a language that is virtually identical to Terena. Some amount of dialectal variation surely existed and aspects of this variation may have been reflected on the existing sources (see Aguirre, 1898 [1793], p. 502; Taunay, 1875) though the extent or nature of these differences remains unknown. Most of the explicit remarks given in Taunay (1868) on the matter of dialectal variation concern lexical differences, in particular those resulting from the adoption of loanwords (say, from Guaraní) by particular Guaná factions or groups (see Carvalho, 2016 for some discussion). 1
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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 12, n. 1, p. 157-171, jan.-abr. 2017
The Terena data in this paper come from my own fieldwork at the Cachoeirinha reservation, Mato Grosso do Sul, unless noted otherwise. The sources for the early Terena data, Taunay (1868) and Schmidt (1903), are discussed in greater detail in section entitled “Taunay (1868) and Schmidt (1903): sources on Early Terena”. The paper is organized as follows: in the next section I offer a brief overview of the phonology of modern Terena, noting, among other things, that the language lacks a contrast between fricatives and affricates. Following this discussion of the phonology of the modern language is a presentation of the sources on early Terena data, focusing on the representation of fricative and affricate segments. The section “Phonemic affricates and the loss of fricatives in early Terena” constitutes the core of the paper, where I examine the early Terena data in Taunay (1868) and Schmidt (1903) and show that a comparison of these documents with modern Terena forms presents evidence for the diachronic correspondences s, ʃ > h, resulting in a (partial) merger with early Terena h, and ʧ > ʃ, which is arguably related and possibly fed by s, ʃ > h. A sub-section is devoted to some residual issues in the interpretation of the Taunay (1868) and Schmidt (1903) data, in particular the open issue of whether early Terena also had an alveolar affricate ts. Finally, the article ends with a brief presentation of conclusions and implications of the analyses.
TERENA PHONOLOGY: A BRIEF OVERVIEW I start this section with a few words on Terena prosody, even though this is a complex and yet poorly understood subject still in need of detailed treatment3. Two diacritic marks, the circumflex mark ‘^’ and the acute mark ‘´’, are usually employed in presenting Terena data (see e.g. Ekdahl; Butler, 1969, 1979; Eastlack, 1967, 1968). Though instrumental and acoustic investigations are necessary to cast further light in the complex prosodic system ‘decoded’ by these diacritics, the following seems to be accepted: these two marks indicate ‘greater prominence’ on the syllable they occur, plausibly interpretable as greater loudness (intensity) as a correlate of main word stress placement. The two diacritics differ, however, in terms of their pitch (tonal) and duration properties. Circumflex accent indicates greater length of the vowel where it occurs, in addition to a descending pitch curve (tâki [ˈta᷆ ːki] ‘his/her arm’). The acute accent has no particularly salient pitch contour, and its lengthening effect is realized on the following consonant, not on the vowel above which it occurs (ásurupi [ˈasːuɾupi] ‘guts, intestines’). The system is complex in that it has interactions with the morphology and with phrase-level and intonational phenomena, which may cause changes in the ‘basic’ accentual profile of individual words and calls for the identification of a number of ‘melodies’ (e.g. pâho ‘his/her mouth’, but pahóti ‘someone’s mouth’). Moving now to the segmental phonology, the Terena consonantal inventory assumed here is given in Table 1. The inventory is broadly consistent with those proposed in published sources on the language (e.g. Harden, 1946; Ekdahl; Butler, 1979; Silva, 2008; Martins, 2009, p. 42) and with my own work in the field. The following points need comment: the opposition between n and ɲ is marginal, though is included here in view of pairs such as kêɲo ‘ear’ and éno ‘(his/her) mother’. Martins (2009) phonemicizes [w] and [v] as allophones of /v/, not of /w/. Though the difference is immaterial to the following discussion, I opted here for employing /w/ as the underlying segment. The language is at times described as having a restricted tone system, with the occurrence of a falling contour tone triggering surface vowel lengthening (cf. e.g. Aikhenvald, 1999, p. 79, footnote 7). Alternatively, the language has been described as a stress language in which main stress placement may condition both vowel and consonant lengthening (Harden, 1946, p. 60; Eastlack, 1967) or as a language in which apparent tonal contrasts may be explained as the effects of accentual shifts (cf. Martins, 2009, p. 67). The reader should consult Bendor-Samuel (1961) for the most comprehensive description of Terena prosody to date.
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Philological evidence for phonemic affricates and diachronic debuccalization in Early Terena (Arawak)
Evidence for this segment being /w/ instead of /v/ comes from its behavior in cases of nasal spreading, associated with the exponence of 1sg in both verbs and nouns. In particular, the segment in question patterns like a sonorant in being transparent to nasal spread: iwatako ‘he sat’, ĩw̃ãdako ‘I sat’ (cf. Ekdahl; Butler, 1979, p. 25). The language’s vowel inventory appears in Table 2. Table 1. Terena consonants. Labial
Alveolar
p
Stop
Velar
t
Fricative m
Nasal
Palatal
Glottal
k
s
ʃ
n
ɲ
Ɂ h
l
Lateral
ɾ
Rhotic w
Glide
j
Table 2. Terena vowels. Front
Central
Back
High
i
u
Mid
e
o a
Low
A conspicuous feature of Terena speech is the fact that both front and back mid vowels are frequently realized as mid-open [ɛ] and [ɔ], respectively. I will, however, follow most existing sources and employ e and o for representing the relevant phonemes. Harden (1946, p. 61) postulates two back unrounded vowels that she symbolizes as ï and ë. Since these are restricted to occur next to a glottal fricative h, I assume that Harden’s back unrounded vowels correspond to tokens of [ɨ] noted elsewhere in the literature to occur in this exclusive context (cf. Martins, 2009). Souza (2008) found a complementary distribution between [i] and [ɨ] in the Kinikinau variety4, thus treating both as allophones of /i/. The status of the restricted occurrences of [ɨ] in Terena – or even whether there is single phone [ɨ] as opposed to the two backed allophones described in earlier sources such as Harden (1946) – remains uncertain. As nothing in the present discussion or in the argument presented here depends on this issue, I will assume the general opinion that the language has no such segment in its phonological inventory (cf. Payne, 1991, p. 421, comment on etymology for ‘tail’; also Ekdahl; Butler, 1979, p. 13; Silva, 2008; Martins, 2009; Rosa, 2010, p. 66)5. The Terena continuant obstruents will turn out to be particularly important for the argumentation that follows and merit, for this reason, a more detailed discussion. The language has two oral fricatives, a coronal-alveolar (or more ‘Kinikinau’ appears in some sources as the name of a language distinct from Terena (cf. e.g. Aikhenvald, 1999). A comparison of Terena forms with the Kinikinau material presented in Souza (2008) and in earlier sources gives a clear impression that both constitute close dialectal varieties of what is one and the same language (see Carvalho, 2016 for discussion). 5 Though not directly relevant to the present paper, I note that both the non-low central vowels, ï and ë in Harden (1946), and the nasal stop ɲ, seem to be intermediate between fully contrastive (hence, unpredictable) and fully allophonic (hence, fully predictable) phonological elements. These marginally contrastive segments have not been treated adequately in the existing literature and even their phonetic description seems to be relatively inadequate. Their synchronic and diachronic nature is a matter currently under investigation by the author. 4
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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 12, n. 1, p. 157-171, jan.-abr. 2017
anterior) fricative s and a coronal-palatal (or more posterior) ʃ (Harden, 1946, p. 62; Ekdahl; Butler, 1979, p. 13; Martins, 2009, p. 35). Their contrast is exemplified by forms such as: (1) Evidence for a s-ʃ contrast in Terena sêno ‘woman’ ʃêne ‘path’ sopóɾo ‘maize’ ʃopikóloti ‘sickle’ A characteristic that sets these fricatives apart from each other consists in a pattern of ‘free’ alternation: while ʃ alternates freely with an affricate realization ʧ, s doesn’t participate in a similar pattern (Harden, 1946, p. 62; Martins, 2009, p. 38). That is, all sources agree that while [ʧ] exists in surface, phonetic forms in Terena, it is a ‘free allophone’ of ʃ (e.g. Harden, 1946, p. 62, footnote 4; Silva, 2008; Martins, 2009, p. 38; Nascimento, 2012, p. 41). The glottal fricative has a restricted distribution in many Arawak languages, often occurring as a boundary marker (Aikhenvald, 1999, p. 79) and *h has a relatively uncertain status as a PA segment (at least in part of its distribution; cf. Payne, 1991, p. 455). In Terena, however, the glottal fricative is clearly part of the phononological inventory: (2) Examples of the distribution of h in Terena (author’s field data) pôhi ‘duck’ -hiko ‘a lot, many’ kohé ‘moon’ hêwe ‘his/her foot’ ihaku ‘container’ háʔa ‘his/her father’ pâho ‘his/her mouth’ hóʔo ‘saliva’ Both oral and glottal fricatives will be at the center of the issues dealt with in the present paper. Before moving on, it is also necessary to discuss briefly an allophonic process of contextual obstruent voicing and an allomorphy pattern, both related to non-concatenative morphological processes in Terena, since early documentary data often show the effects of these morphophonological adjustments in ways that are not obvious from a simple inspection of accompanying glosses. As seen in Table 1, voicing is not a contrastive feature in Terena phonology. Nevertheless, obstruent consonants are contextually voiced in some contexts, the most important of these being related to the exponence of 1sg subjects (in verbs) and possessors (in nouns). The exponence of 1sg in Terena can be analyzed in terms of a floating [nasal] feature, or a ‘nasal prosody’ (see Bendor-Samuel, 1961; Eastlack, 1968, p. 4) that attaches to the left edge of a word and spreads rightward unless blocked by an obstruent consonant. In (3) below the root -éno ‘mother’ displays full rightward spread of nasality, while -kêɲo ‘ear’ displays the effect of the [nasal] feature being blocked by an obstruent, in this case the velar stop k. Note the creation of a short nasal on-glide plus the allophonic voicing of k as [g]. (3) Realization of 1sg and 2sg possessors/subjects in Terena (author’s field data) -éno ‘mother’ -kêɲo ‘ear’ ŋ ẽnõ ‘my mother’ gêɲo ‘my ear’ jéno ‘your mother’ kîɲo ‘your ear’ Also exemplified above is the realization of a 2sg possessor. In a vowel-initial word, as in -êno ‘mother’ above, 2sg is marked by a prefix j-; in a consonant-initial word, however, an ablaut patter affects the vowel of the leftmost syllable
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Philological evidence for phonemic affricates and diachronic debuccalization in Early Terena (Arawak)
having a vowel other than i, in this case raising the vowel e to i. We are now in a position to start discussing the existing early Terena sources in some detail.
TAUNAY (1868) AND SCHMIDT (1903): SOURCES ON EARLY TERENA The different sources on early Terena, or Guaná, have been subject to comparison in the past, though this has consisted, in most cases, in the mere juxtaposition of semantically-matched forms (see in particular Schmidt, 1903 and Baldus, 1937). Carvalho (2016) tackles the Guaná data in a more linguistically-informed way, showing that the existing Guaná corpus represents a language not significantly distinct from the modern Terena language and provides, therefore, a certain support to the premise of the present work, that is, that the Guaná documents can be profitably and interestingly compared to Terena (and for the alternative labeling of ‘Guaná’ as ‘early Terena’)6. As I demonstrate here, however, the existing documents on early Terena – some of which were not addressed in Carvalho (2016), such as Schmidt (1903) – are far richer as to the insights they offer to an understanding of Terena diachrony. The two early Terena sources can be described as follows: (4) Early Terena sources (a) Alfredo d’Escragnolle Taunay (TN). The Guaná records of Alfredo d’Escragnolle Taunay (18431899) provide the most extensive documentation of the language’s vocabulary. Taunay was a Brazilian aristocrat, writer, politician and a military engineer of the Brazilian army during the Paraguay war (18641870). His Guaná documents were published first in 1868 as part of this book “Scenas de viagem” and later in 1875. As discussed to a certain extent in Carvalho (2016), his data go beyond that of the usual vocabulary lists, offering additional and interesting evidence on morphophonological and grammatical patterns of early Terena.
(b) Max Schmidt (MS). The celebrated German ethnologist Max Schmidt (1874-1950), author of fundamental contributions to the ethnohistorical study of South American indigenous peoples (cf. Baldus, 1951), and to our knowledge of the Southern Arawak peoples in particular, published in 1903 a vocabulary of the Guaná language along with some observations on the grammar of the language. He gathered these data near Cuiabá in 1901. While his data are perhaps not as extensive as those of Taunay, his transcriptions seem to be phonetically more accurate and consistent and his observations on the grammar of the language are considerably more sophisticated than those of Taunay.
When presenting Guaná forms from any of these sources I will give these in the original transcription, between angled brackets < > according to standard conventions (Trask, 2000, p. 22), and with an indication of the source by the use of the abbreviations above. The core goal of Carvalho (2016) was simply that of casting doubt on what look like overestimates of linguistic diversity in the southern Arawak periphery. Many existing sources list as many as four different Arawak languages in the Upper Paraguay region (Chané, Guaná, Terena and Kinikinau). Analysis of the existing sources (at times reduced to a short vocabulary, as in the case of Chané) reveals, however, a degree of differentiation typical of co-dialects of a single language. It goes without saying that this has nothing to do with past or present ethnic boundaries and identities existing among the peoples of the region.
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PHONEMIC AFFRICATES AND THE LOSS OF FRICATIVES IN EARLY TERENA Although sources on modern Terena unanimously agree that the palatal (or alveo-palatal) affricate [ʧ] occurs in free variation with the (alveo-) palatal fricative [ʃ], and that the latter should be singled out as the the ‘characteristic allophone’ of this phoneme, /ʃ/, this does not seem to be the case in the early Terena sources analyzed here. Both TN and MS employ, consistently, different graphemes for these segments. The MS transcription system is quite straightforward to deal with, as Schmidt provides an explicit phonetic transcription key to the script he employs in writing his early Terena (‘Guaná’) forms. Schmidt (1903, p. 332) notes that <š> stands for [ʃ] (“französisches ch”). The symbol <tš> also appearing in MS is clearly interpretable as [ʃ] preceded by a stop phase matching that of <t>, that is, [ʧ]. TN does not provide any transcription key, but his <ch> can be confidently established as representing [ʃ] on the basis of correspondences with both the MS and the modern Terena forms (see below), and given known conventions in writing Brazilian Portuguese that applied at his time. Note that differently from Spanish (Castillan), Portuguese <ch> does not stand for an affricate. Like <x>, <ch> stands for the fricative [ʃ], as ʧ and ʃ were merged as ʃ in Portuguese around the XVII century (see Teyssier, 1997, p. 64-66). Since <ch> was in regular use for Portuguese, Taunay’s native language (and script), it is natural to suppose that <tch>, alien to Brazilian Portuguese writing conventions, was likewise employed to represent a phone which was equally alien to the language, while at the same time having a clear relation to <ch> = [ʃ]. The hypothesis that TN’s <tch> = [ʧ] is, therefore, plausible. For the early Terena fricatives, matters are perhaps simpler. MS notes explicitly that his <s> = [s] (“französisches ç”; Schmidt, 1903, p. 332). For TN, arguments such as those above establish quite clearly that <s> = [s], though, preceding <i> and <e>, [s] is represented by <c> or <ç> in his script, again obviously based on conventions for writing Brazilian Portuguese, even if these conventions are inconsistently applied (cf. e.g. <sêni> ‘jaguar’(TN)). After this preliminary yet necessary discussion of the transcription conventions adopted in TN and in MS, it is now possible to address the linguistic and historical significance of these documents. Note that one might argue that the discussion so far has failed to establish conclusively that early Terena had a contrast between an affricate ʧ and the fricative ʃ. Early recordings of this kind, produced by non-linguists, often approximate what one could call a systematic phonetic transcription. If all the MS and TN data show is the occurrence of surface [ʧ] = <tch> = <tš> in addition to surface [ʃ] = <ch> = <š>, this would be hardly surprising, in view of our knowledge of modern Terena phonology. However, correspondences existing between MS, TN and modern Terena forms shows that the transcription is systematic and consistent, and this is a first important deviation from the pattern of ‘free variation’ relating [ʧ] and [ʃ] in modern Terena. These agreements, between early Terena sources in comparison to one another, and between these and modern Terena data, should be considered in separate, for they have different meanings and implications. The systematic correspondences MS <š> : TN <ch>, and MS <tš> : TN <tch> offer additional support to the phonetic interpretations advanced in the paragraphs above, constituting, in effect, an application of the ‘phonetic triangulation’ applied whenever multiple early sources are available for the reconstitution of a language (see Broadbent, 1957; Goddard, 1976; Dench, 2000). The fact that two independent sources show such a consistent agreement makes it very unlikely that early Terena fricatives and affricates were related to each other as free variants, as seems to be the case in modern Terena. Examination of each of the sources in separate reveals the existence of a number of nearly-minimal pairs contrasting fricatives and affricates (e.g. TN: <uchetí> ‘tasty’ versus <cátche> ‘sun’ Taunay (1868, p. 136, 142); MS:
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Philological evidence for phonemic affricates and diachronic debuccalization in Early Terena (Arawak)
<tšoremoneke> ‘ashes’ versus <šoopeno> ‘bird’; Schmidt, 1903, p. 564, 580). Though an exhaustive listing of such forms could suffice to demonstrate the existence of contrast, I have chosen here a different path of analysis, one that has direct implications to an understanding of the historical development of Terena. The systematic correspondences relating these early Terena consonants with their modern Terena reflexes offer interesting evidence for the phonemic opposition between ʧ and ʃ in early Terena, as these were treated as separate by sound change (see the next section for the status of s). Below, in Table 3, I present evidence that early Terena ʃ and s (cf. ‘yellow’) have been subject to a debuccalization change yielding h in modern Terena7. Matching segments in this and the following tables are given in underline, and each early Terena form is followed by a reference to the page number of the original work where it is attested. The only exception to the debuccalization change is the form for ‘black’ recorded by Taunay, showing <h> matching modern Terena h and Schmidt’s Guaná <š>. This could be seen as evidence either of dialect borrowing (see footnote 3) or of lexical diffusion of the debuccalization change as it was starting to gain footing in a few forms. Given the evidence for the development ʃ, s > h from early to modern Terena, it is legitimate to question about the origins of the fricatives s and ʃ attested in modern Terena (see (1)). Again, early Terena evidence turns out to be revealing. As shown in Table 4, the fricatives of modern Terena correspond to affricates in the TN and MS data, and in some cases this is supported as well by evidence from other Arawak languages, represented here by the Ignaciano variety of Mojeño, Chamicuro, Matsigenka (of the Campa branch) and by Proto-Arawak forms, as reconstructed in Payne (1991)8.
Table 3. Early Terena evidence for fricative debuccalization. Gloss Taunay (1868)
Schmidt (1903)
Terena
Tasty
<uchetí> (p. 136)
-
úheti
Be born
<ipuchicá> (p. 139)
-
ipuhíko wahikapu
Bathe
<uachicapú> (p. 138)
vašikovotí (p. 585)
I want
<gâcha> (p. 141)
gaša (p. 588)
Foot
<djêvé> (p. 140)
ševeetĭ (p. 335)
hêwe
Fingernail
<djiipó> (p. 143)
šipootí (p. 336)
hʲipo
gáʔaha
n
White
-
šopuiti (p. 584)
hopúʔiti
Black
<hahóóti> (p. 139)
šašaotí (p. 584)
haháʔiti
Yellow
-
siaiti (p. 584)
hijáʔiti
Fish
<chojé> (p. 140)
šoooé (p. 576)
hôe
Bird
<chohopennó> (p. 140)
šoopenó (p. 580)
hoʔopéno
Note that the forms for ‘foot’ and ‘fingernail’ in Taunay (1868) show the effects of the obstruent voicing process resulting from the realization of the [nasal] feature marking a 1sg possessor, as discussed in reference to the data in (3). The forms elicited by Taunay are thus more correctly glossed as ‘my foot’ and ‘my fingernail’. See Carvalho (2016) for the identification of these morphophonological patterns in the early Terena data in Taunay (1868). 8 I thank one of the reviewers of this paper for pointing out the relevance of the Campa forms presented in Table 4. I have declined, however, from including Matsigenka katsink- in the comparisons above, as it is far from clear to me that it is a cognate of the Terena form kásati, though they may share the cognate ‘Attributive’ prefix k(a)-, often found in ‘adjectival’ forms or stative predicates throughout the Arawak language family. 7
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Table 4. Evidence for the origin of Terena fricatives in early affricates. Terena
Other Arawak
Early written evidence
ʃúpu
-
<tchupú> Taunay (1868, p. 131) <tšupŭ> Schmidt (1903, p. 575)
Tobacco
ʃáʔi
-
<tchâhim> Taunay (1868, p. 136)
Arrow
ʃûme
-
<tšumĕ> Schmidt (1903, p. 566)
Flute
hûʃo
-
<hutšooti> Schmidt (1903, p. 569)
Breast
ʃêne
Proto-Arawak: *tenɨ (Payne, 1991, p. 397)
<džēné> Schmidt (1903, p. 336)
Manioc
Chest
ʃáʔa
-
<džaá> Schmidt (1903, p. 336)
Jaguar
sîni
iʧini (Ignaciano, Ott; Ott, 1983, p. 633)
<tsiini> Schmidt (1903, p. 578)
Son-in-Law
sîna
ʧina (Ignaciano, Ott; Ott, 1983, p. 643)
<tšiiná> Schmidt (1903, p. 578)
Son, child
ʃeʔéʃa
ʧeʧakama ‘baby’ (Chamicuro, Parker, 1987, p. 54)
<tšeetšá> Schmidt (1903, p. 571) <tchétchá> Taunay (1868, p. 136)
Brother
eʃówi
éʧavi (Ignaciano, Ott; Ott, 1983, p. 566)
<eetšoví> Schmidt (1903, p. 572)
Grandmother
ose
aʦe (Ignaciano, Ott; Ott, 1983, p. 468)
<ootsé> Schmidt (1903, p. 572)
Grandfather
oʃu
aʧu (Ignaciano, Ott; Ott, 1983, p. 468)
<ootšú> Schmidt (1903, p. 572)
Man, person
ʃâne
aʧane (Ignaciano, Ott; Ott, 1983, p. 569)
<tšaanĕ> Schmidt (1903, p. 570)
Woman
sêno
Proto-Arawak: *ʧɨna- (Payne, 1991, p. 426), tsinane (Matsigenka, Snell, 1998, p. 249)
<tseno> Baldus (1937, p. 539) <tseenŏ> Schmidt (1903, p. 570)
Path
ʃêne
aʧene (Ignaciano, Ott; Ott, 1983, p. 623)
<oʧene> Baldus (1937, p. 539)
Sun
káʃe
saʧe (Ignaciano, Ott; Ott, 1983, p. 625)
<katšĕ> Schmidt (1903, p. 562) <cátche> Taunay (1868, p. 142)
Cloud
kapási
-
<kapatsí> Schmidt (1903, p. 564)
Cold
kásati
-
<katšatí> Schmidt (1903, p. 583)
Clean, pure
sasáʔiti
-
<tšatšaiti> Schmidt (1903, p. 583)
Hunt
opósiko
patima- (Matsigenka, Snell, 1998, p. 182)
<iapatsika> Schmidt (1903, p. 587)
Give
poriʃoa
-
<boritšoá> ‘Ich gebe’ Schmidt (1903, p. 586) <pêrétchá> Taunay (1868, p. 134)
Given the preceding commentary on the plausible values assigned to MS <tš> and TN <tch>, the data above is virtually self-explanatory. The following comments are necessary, however. On the phonetic aspects of the comparisons, the affricate character of the consonant in Baldus’ <tseno> ‘woman’ is confirmed explicitly by Baldus (1937, p. 529) who comments that his <ʦ> is similar to German <z> (“gleicht dem deutschen z” – that is, similar to the German <z>). Of morphological relevance note that word-initial voiced stops, as in the forms for ‘chest’ and ‘breast’ in MS, where <dž> is found (cf. Schmidt, 1903, p. 332: “ž = französisches j”), indicate that the forms in question actually mean ‘my chest’ and ‘my breast’, allophonic voicing being an effect of the realization of 1sg possessors or subjects, as discussed in relation to the data in (3). Compare these forms with the form of the verb ‘give’ in the MS data: it is a 1sg form, explicitly given as such by the gloss ‘Ich gebe’ (‘I give’) and, accordingly, it shows a word-initial voiced
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Philological evidence for phonemic affricates and diachronic debuccalization in Early Terena (Arawak)
obstruent <b>. The word-final vowel, <a>, is actually an ‘object marker’ (alternatively glossed as a ‘3sg object suffix’), as in modern Terena mboriʃoa ‘I give (it)’ (see Eastlack, 1968, p. 4 and Ekdahl; Butler, 1979, p. 35 on this). The TN form, on the other hand, shows a 2sg, Imperative form: this is indicated by fronting of the vowel of the first syllable from o to e (cf. the MS form for the base <o>), expressing a 2sg subject (see the modern Terena data in (3)), and by change of every o in the verb form to a, a mechanism used in Terena to indicate Irrealis or ‘Potential’ mood (see Eastlack, 1968, p. 5 and Ekdahl; Grimes, 1964, p. 262-263 on these issues). This latter point is also relevant for MS <iapatsika> ‘hunt’, which arguably includes the j- allomorph of the 2sg prefix (see the discussion of the data in (3) and Eastlack, 1968, p. 4) plus the effects of o to a ablaut that express the Potential mood, also involved in the expression of imperatives (see Ekdahl; Grimes, 1964, p. 262-263). Finally, for some modern Terena forms for which TN and MS provide no equivalents, it is possible to demonstrate a likely source in a stop consonant with comparative evidence, as in sêne ‘urine’ (cf. PA *ʧɨnɨ, Payne, 1991, p. 424) and ásurupi ‘guts’ (cf. Ignaciano -turupi, Ott; Ott, 1983, p. 636). Rounding up the discussion so far, the crucial insight is that the early Terena evidence in Tables 3 and 4 demonstrates, on the one hand, a regular correspondence between oral fricatives in the MS and TN data matching glottal fricatives in modern Terena (e.g. <siaiti> : hijáʔiti ‘yellow’; <šoopenó> : hoʔopeno ‘bird’), and, on the other hand, affricates that match modern Terena (oral) fricatives (e.g. <tsiini> : sîni ‘jaguar’; <eetšoví> : eʃówi ‘brother’). It is plausible to suppose that Terena once had a contrast between fricatives and affricates – which is attested in all the closest relatives of Terena within the Arawak family: Baure (Danielsen, 2007, p. 39) and Mojeño (Rose, 2014, p. 377) – but that fricatives were merged with h (more on this below) and the remaining affricates were then free to ‘drift’ articulatorily, including fricatives in their realization range. This proposed scenario finds support in Harden’s (1946, p. 62, footnote 4) observation that the realization of ʃ as affricate [ʧ] is particularly common, or more frequent, in the speech of older individuals. This relative chronology, in which ʃ, s > h applied first, and only then the affricates start to overlap with the previous realization range of the early Terena fricatives is of course far from self-evident, even granting the correctness of the early observations on the greater frequency of affricate realization in the speech of older speakers in the early decades of the 20th century, which suggests a rather late date to the generalization of the [ʃ] realizations of ʧ. It could be the case, for instance, that early Terena ʃ and ʧ began to overlap in part of their distribution, with [ʃ] realizing either ʃ or ʧ, and that only later ʃ > h took place. If this were the case, it is expected that some early Terena ʧ (realized as ʃ in at least a few forms/contexts) would correspond to Terena h, but I have so far not encountered any pattern of this kind (see the following section for more on this). I conclude, for the time being, that debuccalization of fricatives applied first (I in (5) below), and only then the affricates started to show fricative realizations (II). (5) Tentative relative chronology of the changes identified Early Terena I II
ʃ <š> <ch>
>
h
ʧ <tš> <tch>
>
ʃ [ʃ] ~ [ʧ]
Modern Terena As a final note, I would like to address the relation between the glottal fricatives derived from the debuccalization of the early Terena oral fricatives (change I in (5) above) and other glottal fricatives that do not participate in the same
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correspondences. As already discussed (see (2)) the glottal fricative h is bona fide member of the Terena inventory of consonants. It is not the case, however, that all tokens of h are reflexes of the fricative debuccalization change; many of these can be traced back to early Terena glottal fricatives, as shown in Table 5. What the evidence shows is that, as a result of the debuccalization of the early Terena fricatives, a merger was effected: these were no longer distinct from the reflexes of early Terena h. Though exploring this matter in detail would divert us from the more parochial concerns of this paper, I note that the merger in question was only partial. Only the voiceless allophones of the early Terena fricatives were subject to debuccalization. The voiced allophones, which appear only in some nominal and verbal forms marked for a 1sg possessor or subject (see (3)), were preserved as such. As a consequence, modern Terena has a number of morphophonemic alternations that remain as concrete traces of this early primary split (the two early Terena forms below, between angled brackets, are from Schmidt, 1903, p. 335, 576)9. (6) Morphophonemic alternations in modern Terena <ševeetĭ> > hewêti ‘(somebody’s) foot’ n ʒêwe ‘my foot’ but: <šoooé> > hôe ‘fish’ n ʒôena ‘my fish’ but: The point of the data in Table 5 is simply that of showing how this early written evidence helps cast light on the fact that s, ʃ > h yielded a merger with early Terena h. The modern Terena data in (6) above demonstrate that this merger was only partial. A fuller picture of these alternations, including internal reconstruction for modern Terena data and the tracing of the ‘life-cycle’ of the relevant changes, from their origins in allophonic variation to their eventual morphologization, is dealt with in Carvalho (in press). Table 5. Evidence for h before the operation of s, ʃ > h. Gloss Taunay (1868)
Schmidt (1903)
Terena
Mouth
<bahó> (p. 132)
<pahotí> (p. 332)
pâho
Palm tree spp.
<hêrena> (p. 133)
-
herena
Forest, woods
-
<hooí> (p. 564)
hôi
Star
<hêquêrê> (p. 135)
-
hékere
Morning, dawn
-
<aharóte> (p. 565)
ihároti
Scabies
<uahati> (p. 142)
-
wáhati
Spindle
-
<hopae> (p. 566)
hupâe
Man
-
<hoiéno> (p. 570)
hójeno
Red
-
<hararaiti> (p. 584)
hararáʔiti
Speak, say
-
<iokoiuhó> (p. 588)
kojúho
The suffix -ti is a marker of ‘general possession’ used with inalienable nouns. It is possibly a reflex of the Absolute marker *-ʧi reconstructed by Payne (1991) to Proto-Arawak. The possessed form ‘my fish’ in (6) carries the genitive suffix -na, used whenever independent (alienable) nouns occur in possessive structures.
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Philological evidence for phonemic affricates and diachronic debuccalization in Early Terena (Arawak)
TWO RESIDUAL ISSUES: MS <ts> AND tn <dj> Before ending, I will deal briefly with two issues raised by a detailed consideration of the data in Tables 3 and 4. First, in Table 3, note that two TN forms have <dj>, arguably representing the voiced affricate homorganic of <tch>, that is, [ʤ], but comparison with the MS and modern Terena forms would predict the occurrence of a fricative instead. One explanation for this pattern relies on the cross-linguistically recurrent process of post-nasal occlusivization (or hardening) that commonly targets continuant consonants in the context of a preceding nasal segment (Lavoie, 2001, p. 41-42; Silverman, 2012, p. 48-49). As discussed above (in relation to Table 4; see also Carvalho, 2016) inalienable nouns often show up in the TN data (slightly less commonly in MS) with a word-initial voiced obstruent, which in turn corresponds to a voiceless obstruent in modern Terena and often also in some other early Terena source. These are plausibly 1sg possessive forms, where obstruent voicing results from the nasalization feature that realizes these person-number features and includes, in its realization, the creation of a short nasal stop consonant transition preceding the oral obstruent (e.g. modern Terena pâho ‘his/her mouth’, mbâho ‘my mouth’; tâki ‘his/her arm’, ndâki ‘my arm’). The second issue concerns MS <ts>. The discussion in the preceding section has established quite clearly that an opposition between ʃ (= <ch>, <š>) and ʧ (= <tch>, <tš>) existed in early Terena. It is just natural to suppose that s was matched as well by an affricate, perhaps ts, in the same language. However, the same arguments put forward in support of the opposition ʃ : ʧ do not back up as clearly the existence of a comparable s : ts contrast. Note first that MS <ts> corresponds to TN <s> : <tsiini> ‘jaguar’ (TN <sêni>, Taunay, 1868, p. 140), <kapatsí> ‘cloud’ (TN <capací>, Taunay, 1868, p. 139), <tseenŏ> ‘woman’ (<senó>, Taunay, 1868, p. 139). In all these cases, the modern Terena form also has s – sîni ‘jaguar’, kapási ‘cloud’ and sêno ‘woman’ – and, as noted before, ts is not attested as an allophone of s in the modern language. In addition, it is quite unlikely that MS, being produced by a native speaker of German, would fail to distinguish s and ts and employ a single symbol for both. It is, therefore, safe to assume that <ts> and <s> did in effect represent two separate phones in MS. Beyond that, the data in MS show quite clearly that <s> and <ts> contrast, rather than being simple variants of a single phoneme (see Table 6). The data in Table 6 is revealing for two reasons. It shows, first, the occurrence of both <s> and <ts> in the context of a following front vowel, <e> (cf. ‘woman’ and ‘wash’) or <i>. This makes it quite plausible that early Terena had a contrast between s and ts. Looking at the forms for ‘play’, however, shows an instance of early Terena ts corresponding Table 6. Evidence for <s> - <ts> contrast in MS. Schmidt (1903)
Modern Terena
Woman
<tseenŏ> (p. 570)
sêno
Yellow
<siaiti> (p. 584)
hijáʔiti
Vagina
<utsiti> (p. 560)
ûsi-ti
Anus
<hotsisiigé> (p. 560)
osósiko
Cloud
<kapatsí> (p. 564)
kapási
Come
<simoa> (p. 597)
sîmo ‘come, arrive’
Play
<comotsití> (p. 588)
komóhiti
Hunt
<iapatsika> (p. 587)
opósiko
Wash
<kiposeati> (p. 584)
kipóhea-ti
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to modern Terena h. This could be interpreted as evidence that the contrast between ts and s was not very robust and that some amount of phonemic overlapping existed. That is, fluctuation of ts and s could explain the odd outcome seen in this form, the sole case of an early Terena affricate corresponding to modern Terena h. Thus, some evidence exists for the existence of a contrast between s and ts, parallel to that between ʃ and ʧ, in early Terena, though matters are not completely clear. The later development of early Terena also reveals some interchange between the two fricatives, which helps making the whole picture even murkier: modern Terena ‘dream’ for instance, with 3sg hópuʃo, appears in the 1sg form with either alveolar or alveopalatal fricatives, nʒópuʃo or nzópuʃo for ‘I dream’, even though earlier sources show only ʃ (e.g. <chaputchôné> (TN) ‘did you dream?’; Taunay, 1868, p. 142). Some rare and isolated instances show MS <ts> corresponding to TN <tch>, as in <tsaí> ‘tobacco’ (Schmidt, 1903, p. 575), <tchâhim> (Taunay, 1868, p. 136). Though a comparison with modern Terena ʃaʔi ‘tobacco’ suggests <tchâhim> as the likely early Terena etymon, the MS form with <ts> cannot be simply dismissed.
CONCLUSION The present paper has established, on the basis of a comparison between two independent attestations of an early chronological stratum of Terena (‘early Terena’ or ‘Guaná’), that the language had a contrast between an alveo-palatal affricate ʧ, represented as <tch> and <tš>, and a fricative ʃ, represented as <ch> and <š>. Regular and systematic correspondences between the forms in these documents and their modern Terena reflexes (or cognates, if no direct ancestor-descendant relation is assumed) show, moreover, that this opposition was lost in the modern language as a consequence of the debuccalization of the fricative, ʃ > h, a change whose consequence was to allow for ʧ to be realized as ʃ. The debuccalization change was, in terms of the traditional typologies of phonological change, further characterized as a primary-split, as it merged most, though not all tokens of early Terena ʃ with the reflexes of early Terena h. ACKNOWLEDGEMENTS I am grateful to two anonymous reviewers for their observations and suggestions. All remaining shortcomings are my own. REFERENCES AGUIRRE, Juan Francisco. Etnografía del Chaco. Boletin del Instituto Geográfico Argentino, Buenos Aires, tomo XIX, p. 464-510, 1898 [1793]. AIKHENVALD, Alexandra. The Arawak language family. In: DIXON, R. M. W.; AIKHENVALD, A. (Ed.). The Amazonian languages. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. p. 65-106. BALDUS, Herbert. Max Schmidt 1874-1950. Revista do Museu Paulista, Nova Série, v. 5, p. 253-260, 1951. BALDUS, Herbert. Tereno-texte. Anthropos, Viena, v. 32, p. 528-544, 1937. BENDOR-SAMUEL, John. An outline of the grammatical and phonological structure of Terêna. Brasília: Summer Institute of Linguistics, 1961. (Arquivo Lingüístico, n. 90). BIRCHALL, Joshua; DUNN, Michael; GREENHILL, Simon. A combined comparative and phylogenetic analysis of the Chapakuran language family. International Journal of American Linguistics, v. 82, n. 3, p. 255-284, 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1086/687383. BROADBENT, Sylvia M. Rumsen I: methods of reconstitution. International Journal of American Linguistics, v. 23, n. 4, p. 275-280, 1957.
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De doença da civilização a problema de saúde pública: câncer, sociedade e medicina brasileira no século XX From disease of civilization to public health problem: cancer, society and the Brazilian medical profession in the 20th century Luiz Alves Araújo NetoI, Luiz Antonio TeixeiraI I
Casa de Oswaldo Cruz. Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
Resumo: Este artigo analisa o enquadramento do câncer pela medicina brasileira em três diferentes momentos do século XX, com o objetivo de verificar a transformação do câncer de uma enfermidade ligada à ideia de civilização a um problema de saúde pública, vinculado a precárias condições de vida e às dificuldades de acesso e funcionamento dos serviços de saúde. A partir de artigos científicos e discursos de médicos nacionais reputados, procura-se mostrar como as visões acerca da relação entre câncer e sociedade mudaram. Argumenta-se que essa transformação se relaciona principalmente a dois diferentes aspectos: o processo de estruturação dos saberes e práticas da medicina e o cruzamento dos conhecimentos médicos sobre a doença com interpretações sobre o desenvolvimento do país em diferentes momentos. Palavras-chave: Câncer. Civilização. Desenvolvimento. Saúde pública. Abstract: This article analyzes perspectives on cancer by the Brazilian medical professionat three different moments in the 20th century. The aim is to analyze the transformation of the concept of cancer from a civilization-related disease to an issue of public health that is associated with precarious living conditions and with difficulties of access to – and operation of – health services. Based on scientific papers and speeches of reputed Brazilian physicians this article seeks to show how views concerning the relationship between cancer and society have changed. Such transformation arguably relates mainly to two different aspects: the process of organization of medical knowledge and the practice and crossing of medical knowledge with interpretations of Brazil’s development at different moments. Keywords: Cancer. Civilization. Development. Public health.
ARAÚJO NETO, Luiz Alves; TEIXEIRA, Luiz Antonio. De doença da civilização a problema de saúde pública: câncer, sociedade e medicina brasileira no século XX. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 12, n. 1, p. 173-188, jan.-abr. 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222017000100010. Autor para correspondência: Luiz Alves Araújo Neto. Casa de Oswaldo Cruz. Fundação Oswaldo Cruz. Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. Avenida Brasil. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. CEP 21045-900 (luizalvesan@hotmail.com). Recebido em 13/05/2016 Aprovado em 30/09/2016
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INTRODUÇÃO A partir da segunda metade do século XX, intensificaram-se as preocupações com o câncer na sociedade brasileira. Tal processo o transformou em uma presença marcante na vida cotidiana e em uma vigorosa preocupação social. Recentemente, seu progressivo impacto epidemiológico e a necessidade de maior cobertura das ações, visando ao seu controle, principalmente pelo Sistema Único de Saúde (SUS), têm colocado a doença no centro das discussões sobre medicina e saúde pública no Brasil. Nesse contexto, é importante analisar a historicidade dessas preocupações sociais e seus aspectos menos evidentes. O estatuto atual do câncer se relaciona diretamente ao incremento de sua incidência e à prevalência nas diversas regiões do país, bem como às tecnologias, às iniciativas médicas e às políticas públicas surgidas para o seu controle. Muitos estudos voltaram-se para esses aspectos, mostrando que, de forma parecida ao ocorrido em outras formações sociais, o envelhecimento da sociedade e a transformação nos hábitos de vida, relacionados ao processo de urbanização, fizeram com que a doença se tornasse mais presente e visível, fator importante na sua transformação em flagelo social (Pinell, 1992; Pickstone, 2007; Cantor, 2004; Teixeira; Fonseca, 2007). Embora a alta incidência e a mortalidade por meio do câncer sejam centrais à maneira como a sociedade com ele interage e o representa, esse ‘enquadramento’1 se liga também a uma série de negociações entre medicina, saúde pública e sociedade. Estas, ao longo do século XX, deram origem a uma representação, que relacionou o câncer ao grau de civilização e ao desenvolvimento da nação e, de certa maneira, ajudaram a formatar e dar sentido ao processo de significação do câncer hoje existente.
Neste artigo, aborda-se essa dimensão do processo de enquadramento do câncer no século XX. Objetiva-se refletir, a partir do discurso médico, a respeito de sua transformação de uma doença diretamente ligada a uma ideia de civilização (europeia, urbanizada, industrializada) em um problema de saúde pública, associado a precárias condições de vida e às dificuldades de acesso e de funcionamento dos serviços públicos de saúde. O argumento central é de que tal mudança está ligada principalmente a dois diferentes aspectos: o processo de estruturação dos saberes e práticas da medicina em torno do câncer, a partir da constituição de ‘redes’2 de profissionais interessados em seu controle, e o cruzamento dos conhecimentos médicos sobre a doença com interpretações sobre o desenvolvimento do país em diferentes momentos. Para essa discussão, estabelece-se diálogo com autores e perspectivas dos Estudos Sociais das Ciências e da História da Medicina, sobretudo os trabalhos do sociólogo Bruno Latour e do historiador da medicina Charles Rosenberg. No que diz respeito à documentação, o artigo tem como base revistas médicas, teses de faculdades de medicina, anais de congressos, discursos de médicos e políticos e livros publicados por profissionais da medicina sobre câncer no século XX.
A DOENÇA DESCONHECIDA A CAMINHO DO BRASIL: O CÂNCER NAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX Os primeiros trabalhos médicos sobre o câncer como problema coletivo no Brasil remetem ao início do século XX. Em 1904, o artigo ‘A frequência do câncer no Brasil’, de Azevedo Sodré, publicado na revista ‘Brasil Médico’, alertava para a dificuldade de conhecer melhor
O enquadramento (framing) é um conceito desenvolvido pelo historiador Rosenberg (1992), o qual propõe uma análise acerca das negociações entre medicina, poder público e sociedade a respeito dos significados das doenças. 2 As redes, segundo Latour (2000), são os caminhos através dos quais a atividade científica transita entre diversas localidades, com a circulação de pessoas, instrumentos, técnicas e ideias. A partir da conformação das redes, é possível a construção de fatos científicos e artefatos técnicos, ou seja, os cientistas são capazes de legitimar sua prática e elaborar consensos. 1
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a doença, devido à inexistência de dados epidemiológicos (Sodré, 1904). Ao longo das décadas seguintes, outros profissionais mostraram preocupações com o tema, iniciando, de forma tímida, uma mobilização pelo controle da doença. Nos anos 1920, instituições especializadas em tratamentos radiológicos e cirúrgicos foram criadas em alguns estados da federação. Em 1922, em Belo Horizonte, foi inaugurado o Instituto do Radium, sob a direção de Borges da Costa, funcionando em associação com a Faculdade de Medicina do Estado de Minas Gerias. Em 1929, no âmbito da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, entrou em funcionamento o Instituto Dr. Arnaldo, instituição filantrópica direcionada exclusivamente ao tratamento dos cancerosos. Na concepção de Teixeira (2009), esse processo se relacionou, principalmente, ao interesse de algumas lideranças do campo médico em se aproximar das discussões e ações direcionadas à doença, que vinham ocorrendo na Europa e nos Estados Unidos. No entanto, essas iniciativas não chegaram a caracterizar um movimento mais amplo e organizado de ações contra a doença no âmbito de saúde pública. Nesse período, a importância dada às ações anticâncer na organização dos serviços sanitários brasileiros estava bastante abaixo da atribuída a outras doenças, como as verminoses e as doenças infecciosas. No início da década de 1920, por exemplo, fora criada a Inspetoria de Lepra e Doenças Venéreas, na alçada do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP). Embora o regulamento do DNSP indicasse que essa diretoria deveria se responsabilizar também pelas ações de controle do câncer, as atividades nesse campo foram residuais em relação às doenças transmissíveis, que dominavam as discussões sobre saúde, estruturação sanitária e higiene pública, como a hanseníase e a sífilis (Teixeira, 2009). Dois fatores auxiliam na compreensão dessa configuração: o primeiro diz respeito ao cenário epidemiológico do período, o qual indicava que as doenças transmissíveis eram as maiores ameaças à saúde da população, especialmente nas regiões mais afastadas
dos grandes centros; o segundo concerne à existência de uma forma de pensar que colocava em relação direta clima, organização social e câncer, enquadrando-o como problema de países de clima temperado e de populações mais ricas. Como aponta Gaudillière (2006), desde o fim do século XIX, começou a ser detectado, na Europa, aumento na incidência de câncer em cidades com maiores contingentes populacionais e economicamente mais desenvolvidas, sobretudo por conta da industrialização. A observação dessa incidência diferenciada associou o aparecimento da doença às melhores condições de vida dessas regiões, que permitiam o envelhecimento das pessoas, aumentando as chances de elas sofrerem de câncer. No Brasil, as preocupações com o câncer foram decorrentes da maior informação médica sobre a doença a partir da participação de médicos em encontros internacionais e, posteriormente, nos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial (Teixeira; Fonseca, 2007). Tais inquietações reforçaram as discussões sobre a associação da doença ao nível de civilização das diferentes regiões. Essa afirmação pode ser observada na conferência do médico Eduardo Rabello, diretor da Inspetoria de Lepra e Doenças Venéreas, proferida no II Congresso Brasileiro de Higiene, realizado em Belo Horizonte, em 1924. Sua apresentação se recobre de maior importância por ele ocupar o cargo de diretor da inspetoria que, à época, era responsável pela organização de ações relativas à doença no órgão central da saúde pública. Vale notar também que os Congressos Brasileiros de Higiene eram encontros promovidos pela Sociedade Brasileira da Higiene – instituição que congregava a elite dos sanitaristas do período –, com o objetivo de fomentar a discussão de propostas para a saúde pública brasileira (Pykosz, 2007). Com o título de ’O problema do câncer’, a comunicação de Rabello (1928) caracteriza a doença como um problema dos países civilizados, resultado dos avanços da medicina e das condições de vida das populações urbanas. Para ele, era necessário organizar uma verdadeira guerra contra esse novo flagelo, que se
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caracterizava como uma triste realidade noutros países, e que, progressivamente, nos ameaçaria (Rabello, 1928). Tomando como patamar as estatísticas produzidas nas principais capitais europeias, que evidenciavam o aumento na mortalidade pela doença, Rabello (1928) ressaltava a necessidade de se atentar para o câncer no país, ainda que não o considerasse um problema de grande magnitude social naquele momento. Segundo ele: No Brasil, tomado o território em toda sua extensão, não é ainda um problema dos mais importantes ao lado, por exemplo, do da tuberculose que, em seu conjunto, a todos sobrepuja; já vae, entretanto, caminhando para sêlo se providencias não forem tomadas, pois nos últimos quinquênios a cifra tende a subir [...] (Rabello, 1928, p. 118).
O discurso que representava o câncer como um porvir, uma ameaça futura à população do país, era bastante recorrente nesse período e, na maioria dos casos, relacionava-se à noção de que o risco de ser por ele acometido atrelava-se diretamente ao grau de civilização dos indivíduos e da sociedade. Para Rabello (1928), bem como para outros médicos do período, uma noção mais ‘realista’ do impacto do câncer no país, com levantamentos estatísticos mais aprimorados, revelariam como travar a luta contra “a doença a caminho do Brasil” (Rabello, 1928, p. 123). Outro importante médico, engajado na criação de instituições de pesquisa e assistência à doença, o paulista Antônio Prudente, comungava da mesma opinião. Em 1934, o cirurgião paulista, fundador da Associação Paulista de Combate ao Câncer, lançou um livro/manifesto com o título “O câncer precisa ser combatido”3. Logo no preâmbulo do trabalho, ele utiliza uma retórica fatalista para se referir à doença como uma ‘ameaça do futuro’.
Nas palavras de Prudente (1934, p. V): “A mortalidade pelo câncer alarma a sociedade moderna! O número de óbitos, causado por ele, cresce ininterruptamente! Tem-se a impressão de que é o maior flagelo da humanidade atual, o destino obrigatório da humanidade do futuro”. O livro possuía o objetivo claro de divulgar a doença, que se mostrava desconhecida à população e aos próprios médicos brasileiros. No capítulo ‘Câncer das raças e da civilização’, Prudente (1934) discorria sobre o papel da composição racial e do ‘grau de civilização’ na incidência da doença nas populações. Quanto ao segundo tópico, o cirurgião afirmava haver uma relação de proporcionalidade entre civilidade e o número de óbitos pela doença, pois “a maior porcentagem do câncer nos países civilizados explica-se pelo maior número de fatores externos de propriedades cancerígenas existentes nos meios mais adiantados” (Prudente, 1934, p. 46). No quesito ‘raça’, Prudente (1934) faz referência à literatura que afirma haver uma maior recorrência de cânceres em pessoas brancas, remetendo à maior sensibilidade da pele, à exposição ao sol e a outras lesões. O médico também indicava que a organização da ‘luta anticancerosa no Brasil’ estava em estágio muito inicial e encontrava grande dificuldade, devido aos diferentes graus de civilização entre os estados federativos. Por isso, sustentava que a organização de uma campanha contra a doença em nível nacional era necessária (Prudente, 1934, p. 168). Em 1935, em comemoração ao seu cinquentenário, a Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro organizou o I Congresso Brasileiro de Câncer. Além do aspecto comemorativo, o evento, de grande envergadura, tinha entre os principais objetivos conseguir apoio do governo federal para um projeto de construção de um hospital especializado em câncer no Rio de Janeiro4. Suas
Antônio Prudente era um afamado cirurgião paulista dedicado a cirurgias de câncer. Além de fundar a Associação Paulista de Combate ao Câncer, foi responsável pela criação do maior hospital filantrópico de tratamento da doença, na década de 1950, o então chamado Hospital A. C. Camargo. Prudente chegou a dirigir o Serviço Nacional do Câncer em dois diferentes momentos (Teixeira; Fonseca, 2007). 4 Na década de 1920, uma articulação entre Carlos Chagas e Guilherme Guinle deu início ao esforço pela criação de um centro de cancerologia, mantido pela Fundação Oswaldo Cruz (Sanglard, 2008). Embora o projeto de hospital para cancerosos não tenha obtido êxito, serviu de base para as movimentações da ‘Liga brasileira contra o câncer’, visando à criação da instituição, considerada o primeiro passo para uma campanha contra o câncer no país (Teixeira, 2009). 3
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mesas congregaram os mais conhecidos membros da elite médica brasileira que trabalhavam com câncer. Entre eles, destacam-se o cirurgião Mário Kroeff, que havia elaborado uma tese de livre-docência sobre a utilização da eletrocirurgia em cirurgias de câncer e aplicava essa técnica no Serviço Cirúrgico da Santa Casa do Rio de Janeiro; o já citado Antônio Prudente; e João de Barros Barreto, então diretor do Departamento de Saúde, do Ministério da Educação e Saúde Pública do governo Getúlio Vargas. O evento se mostra como um momento privilegiado para a observação da forma como os médicos enquadraram o câncer nas primeiras décadas do século XX. De modo geral, os trabalhos apresentados no congresso tinham o objetivo de mostrar o câncer como mazela social, argumento que abria caminho para que se pensassem as possibilidades de organização de uma ação nacional para o seu controle. Para tanto, era necessário maior conhecimento sobre a doença. Assim, o certame foi aberto com uma seção direcionada aos aspectos epidemiológicos do câncer. Na primeira mesa, foi discutido o relatório oficial sobre a incidência da doença, elaborado e apresentado por Elder Jansen de Mello. Esse relatório ressaltava o contínuo crescimento da incidência do câncer nas capitais brasileiras e atentava para a importância do refinamento dos estudos estatísticos que pudessem dar conta dos diversos grupos com maior mortalidade. Para o autor, “as variações do coeficiente espelham mudanças na composição específica da população [...], com aumento ou diminuição dos grupos mais afetados; nesses casos, os coeficientes para a comparação de diferentes épocas ou locais deverão ser ajustados ou padronizados” (Mello, 1936, p. 28). A preocupação do autor com a elaboração de taxas ajustadas de mortalidade por câncer se relacionava à busca de maior conhecimento sobre os grupos populacionais mais propícios a desenvolver a doença. A preocupação de Melo (1936) residia na possibilidade de diferentes grupos raciais apresentarem níveis específicos de suscetibilidade ao câncer. Essa preocupação é facilmente observada pelo fato de ele tomar como base de sua
discussão um trabalho publicado pelo médico João de Barros Barreto, então diretor do Departamento Nacional de Saúde, sobre o câncer. Nele, Barreto discutia uma comunicação apresentada por outros dois importantes médicos, Eduardo Rabello e Sérgio de Azevedo, no II Congresso Brasileiro de Higiene, na qual afirmavam que a crescente mortalidade pela doença no Sul do país poderia ser decorrente da maior concentração de estrangeiros provenientes da Europa (Barreto, 1935). A primeira comunicação apresentada após o relatório de Jansen de Mello foi feita por Antônio Prudente, o qual discutiu a frequência e a mortalidade por câncer em São Paulo. Ele alertava que a frequência do câncer aumentava dia a dia, enquanto os índices de outras doenças, como a tuberculose, vinham diminuindo consideravelmente (Prudente, 1936). Para compreender esse movimento, Prudente (1936) buscava aproximações com casos de cidades europeias, como Viena, apontando que: O aumento da frequência do câncer é mais acentuado entre os povos mais civilizados; esse facto pode ser constatado na observação dos seguintes dados: na Inglaterra, em 1911, havia, em cada 15 óbitos, 1 por câncer, em 1926, 1 para cada 8 óbitos; na Alemanha, a letalidade por câncer atinge hoje mais de dez por cento da mortalidade geral; o mesmo aumento se observa na França e na Itália, sendo que, neste país, segundo Lutrario, a mortalidade por câncer, no período de 1887 a 1923, passou de 427 a 714 por milhão de habitantes (Prudente, 1936, p. 34).
O ponto central do argumento de Prudente (1936) era que, em países civilizados, o câncer começou a ser uma causa de morte maior do que as principais doenças, em especial a tuberculose. Além disso, sua intenção, ao abordar o câncer como uma ‘doença da civilização’, era aludir à necessidade de maior atenção aos levantamentos estatísticos sobre as diversas formas da doença e os grupos que ela mais atingia, pois, segundo ele, os dados existentes estavam longe de sugerir um cenário próximo da realidade. De forma semelhante ao relatório de Mello (1936), Prudente (1936) afirmava que o câncer atingia
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mais fortemente a população estrangeira, e postulava a necessidade de ampliação dos estudos epidemiológicos sobre a doença para melhor conhecimento dos grupos com maior suscetibilidade: [...] os estrangeiros em geral oferecem uma porcentagem quase sempre acima de 10% da letalidade geral, enquanto para os brasileiros essa porcentagem é apenas de 1,62%. Esse fato é, em parte, justificado pela mortalidade infantil que praticamente não existe para o elemento estrangeiro, o qual emigra quase sempre já adulto. Mas, mesmo considerando tal fato, mantém-se a desproporção exagerada, pois em 1928 e 1929 morreram mais italianos vitimados pelo Câncer em São Paulo do que brasileiros, apesar do número de brasileiros adultos ser seguramente cinco vezes maior do que o de italianos (Prudente, 1936, p. 41).
As comunicações sobre a incidência e a mortalidade provocada pelo câncer indicam que os participantes do congresso compartilhavam a compreensão da doença como um problema oriundo das ‘nações mais civilizadas’. A percepção do nível diferenciado de sua frequência entre elementos nacionais e estrangeiros também aponta que essa ideia se apresentava de forma ambígua, mesclando uma visão que identificava a doença com a sociedade onde ela parecia estar mais presente em relação à outra, relacionada à raça ou à herança genética dos que vieram dessas regiões. Independentemente das incongruências dessas formas de pensar, a principal atividade a ser incentivada era a ampliação dos conhecimentos epidemiológicos sobre a doença, de modo a possibilitar o seu controle. A associação entre doenças e ‘civilização’, segundo Rosenberg (2007), era recorrente desde meados do século XIX na Europa, com a indicação de que os processos de urbanização e industrialização traziam consigo benesses à população, mas também criavam novas enfermidades. No Brasil, essa relação entre civilização e câncer encontrava um cenário ambíguo. Por um lado, os médicos investiam em argumentos sobre o aumento da incidência da doença nas capitais dos estados e na importância de quantificá-la de forma mais precisa.
Por outro, a imagem que se impunha no pensamento sanitário – e social – brasileiro era de um país que ainda lidava com o problema das endemias rurais e as marcas do atraso social e econômico, sintetizado duas décadas antes na frase ‘o Brasil é um imenso hospital’, proferida pelo médico Miguel Pereira (Hochman; Lima, 1996). Todavia, pensar o câncer como uma doença ‘estrangeira’ não representava indicar que ela não ocorresse em nosso país, nem que era desnecessário pensar em estruturas para o seu controle. Como foi indicado, desde a década de 1920, vinham surgindo iniciativas de criação de espaços específicos para tratar os doentes de câncer de forma adequada. No I Congresso de Câncer, a possibilidade de ampliação dessas instituições e sua transformação em uma ação coordenada no campo da saúde ganharam um lugar de destaque, a partir de diferentes propostas para a criação de uma campanha nacional contra o câncer. Uma das propostas nesse sentido foi a de João de Barros Barreto, diretor do Departamento Nacional de Saúde Pública e figura influente no círculo médicoprofissional. Sua comunicação mostrava-se como a publicização da ‘agenda’ do DNSP em relação à doença e previa que o controle do câncer se faria de forma conjunta pela iniciativa estatal e filantrópica – modelo de organização do controle de doenças crônicas à época. Assim, caberia ao governo federal organizar, dar as diretrizes, fiscalizar e colaborar com os fundos necessários para suprir as instituições existentes ou a serem criadas. Além disso, também deveria se responsabilizar pela implantação de um centro especializado no Distrito Federal. Os governos estaduais deveriam criar postos de diagnóstico por todo o país, além de centros de maior complexidade em alguns estados mais populosos. À sociedade civil caberia organizar diversas ligas que se responsabilizariam pela execução de uma grande campanha para a obtenção de fundos visando à construção de hospitais dedicados aos doentes e, também, a criação de comitês de popularização das medidas de prevenção (Teixeira et al., 2012).
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Apesar do interesse pelo câncer, os médicos brasileiros imaginavam que ele ainda era um problema de pequena monta no país, se comparado às dificuldades que produzia na Europa. Para a compreensão desse aspecto, é preciso levar em conta o cenário da saúde brasileira no período. Em meados da década de 1930, nossas estatísticas sanitárias ainda eram dominadas pelo poder destruidor de doenças infecciosas e parasitárias, como a malária, a tuberculose e a febre amarela. Em um país onde a realidade da maior parte da população produtiva se debatia com problemas de ordem sanitária, que poderiam ser debeláveis por ações preventivas, debater problemas historicamente relacionados ao envelhecimento do corpo parecia uma veleidade. O câncer era, finalmente, uma doença a caminho do Brasil, mas que chegava a passos lentos.
UM NOVO PROBLEMA DO BRASIL: O CÂNCER COMO DOENÇA DO DESENVOLVIMENTO A partir da década de 1940, as agendas dos médicos dedicados ao controle do câncer no Brasil ganharam maior ressonância, devido, entre outras coisas, a um novo cenário político e institucional que se desenhava no país. Durante a ditadura de Vargas, o processo de estruturação da saúde pública teve como um dos pontos marcantes a criação de serviços nacionais dedicados a doenças específicas, como o Serviço Nacional de Tuberculose e o Serviço Nacional de Malária5. Em 1941, foi criado o Serviço Nacional de Câncer (SNC), com o objetivo de promover a pesquisa, a educação sanitária e a assistência aos cancerosos. A criação do SNC atendia aos interesses apresentados pelos médicos no congresso de 1935, com a demarcação de um espaço institucional específico para o controle da doença no país. O ingresso do câncer na órbita dos serviços nacionais se relacionou também a dois diferentes aspectos. Por um lado, o desenvolvimento técnico no campo da cirurgia,
em particular com o aperfeiçoamento da eletrocirurgia, e de técnicas de prevenção e diagnóstico precoce de alguns cânceres (colo de útero e mama) potencializou as preocupações médicas com a doença. Por outra parte, a atuação de personagens importantes no campo médico, com grande influência na criação de políticas públicas, como Antônio Prudente e Mario Kroeff, favoreceu ainda mais essa ampliação. Com a fundação do SNC, presenciou-se o surgimento de novas ligas, sociedades e instituições de assistência a cancerosos nos estados da federação, claramente com o intuito de serem agregadas à campanha nacional contra a doença. Essa inserção abria a possibilidade de reconhecimento por parte dos pares e, principalmente, de recursos públicos federais para as pesquisas e, sobretudo, para as atividades de assistência. Por outro lado, a criação de um aparato institucional e a expectativa de recursos e novas possibilidades no campo profissional levaram a uma mobilização dos médicos pela conformação de sua prática nos moldes de uma especialidade. Em 1946, criou-se a Sociedade Brasileira de Cancerologia (SBC), ligada aos fundadores do SNC e voltada para a organização da prática médica, com a proposta de elaborar cursos de formação em cancerologia e outras ações para o direcionamento dos profissionais (Teixeira; Fonseca, 2007). No âmbito do SNC e da SBC, foi lançada a Revista Brasileira de Cancerologia (RBC), uma publicação, a princípio trimestral, com o objetivo de “tornar conhecidos os trabalhos elaborados no SNC” (RBC, 1947, p. 7), visando também a estabelecer diálogos com experiências de outros estados. Nos momentos iniciais da publicação, a RBC foi um importante veículo para os médicos defenderem a noção do câncer como uma ‘mazela social’, repensando um novo enquadramento para a doença no país.
A criação dessas seções no âmbito do Ministério da Educação e Saúde marcou o chamado modelo vertical, em que a atenção à saúde da população era direcionada a doenças específicas, em detrimento de uma linha mais ampla de cuidados. Sobre a estruturação da saúde pública estatal nesse período, ver Fonseca (2007).
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Em 1951, Mário Kroeff, então diretor do Serviço Nacional de Câncer, publicou um artigo intitulado ‘O câncer como flagelo’, no qual faz uma análise comparativa da situação do câncer no Brasil e em outros países, como os Estados Unidos. O trabalho segue uma tendência de outros artigos que atentavam para o estatuto do câncer como mazela social, procurando apontar diversas estatísticas de frequência e mortalidade pela doença nas capitais brasileiras. Segundo o cirurgião: Como já tivemos ocasião de salientar, a população da América Latina vive menos do que vivem os americanos do Norte. Nossa gente morre no caminho, antes de chegar à idade do câncer, que é dos 40 em diante. Assim, nosso baixo índice de incidência por câncer não significa sinal de civilização, mas de atraso sanitário (Kroeff, 1951, p. 70).
A observação de Kroeff (1951) sobre o câncer se aproxima do que foi apontado para a década de 1930: a ideia de uma doença associada à ‘civilização’, a um estado superior de organização social e que teria ‘superado’ as doenças transmissíveis. Porém, é importante atentar para um novo termo que surge na fala do cirurgião, o ‘atraso sanitário’. Essa expressão traz consigo uma série de significados para o câncer em uma época na qual as visões em torno das ações em saúde e do próprio conhecimento médico se transformavam. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, a discussão em torno do papel da ciência e da medicina na sociedade ganhou novos tons, em parte impulsionados pelos avanços tecnológicos, como a quimioterapia e a radiação por cobalto. Contrapondo-se ao clima de tensão social remanescente dos conflitos, ganha forma uma visão
positiva em torno da capacidade do conhecimento médico em solucionar os problemas de saúde das populações. No mundo médico brasileiro, essa visão positiva da saúde esteve diretamente relacionada ao processo de intensificação da urbanização e de emergência da industrialização no país, no contexto de vigência do ideal desenvolvimentista6. Tratava-se, então, de utilizar o poder da ciência e da medicina para erradicar diversas doenças, com novos recursos tecnológicos e terapêuticos (como o diclorodifeniltricloroetano – DDT, os antibióticos, os inseticidas etc.). Associadas a essa forma de pensar o controle das doenças, estavam as proposições, então em debate, de que o desenvolvimento socioeconômico era um pré-requisito para a melhoria da saúde e de que investir na saúde da população era investir no progresso e no desenvolvimento do país (Hochman, 2009). Nessa perspectiva, o discurso que via o Brasil como um país atrasado, por conta das endemias rurais, onde o câncer parecia estar presente de forma ainda muito tímida, se defrontava com a ideia do país em franco desenvolvimento, em que as ações de saúde proveriam as condições para o avanço socioeconômico7. Assim, o câncer assumia um novo enquadramento, sendo cada vez mais identificado como um problema de grande importância, agora relacionado ao intenso processo de desenvolvimento vivenciado ou esperado. Desde o final do século XIX, a associação do câncer com fatores urbanos e industriais ganhou maior relevância nos estudos da etiologia da doença (ImbaultHuart, 1985). O conceito de carcinogênese, relacionado ao processo de constituição dos tumores, contribuiu para uma noção menos vaga do que poderia estar relacionado
Em linhas gerais, o desenvolvimentismo propunha a complementaridade entre Estado e mercado, defendendo a adoção de uma estratégia estatal de transformação produtiva que permitisse potencializar o processo de industrialização e de crescimento e compatibilizá-lo com uma melhor distribuição de renda (Pereira, 2011). 7 Nesse período, havia uma intensa discussão em torno da relação entre doença e desenvolvimento socioeconômico. Alguns médicos e intelectuais defendiam que a melhoria das condições sociais era a maneira de resolver o problema das endemias rurais. Outros acreditavam que esse desenvolvimento tinha essas doenças como obstáculos e propunham seu imediato controle. Evidentemente, essas concepções estavam envoltas em questões de cunho político. Para a compreensão das visões sobre a relação saúde/riqueza e doença/pobreza, ver Hochman (2009, 2015). 6
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ao surgimento de células cancerosas no corpo humano (Löwy, 2010). Essas associações compreendiam desde elementos físicos até aspectos diretamente ligados à vida urbana e ao mundo industrial, como a contaminação por derivados do alcatrão (Cantero, 1952). Nesse cenário, a doença foi gradativamente configurada como um problema urbano e industrial, sendo o aumento de sua incidência um resultado direto da ampliação das cidades e das fábricas, além das mudanças nos hábitos cotidianos. Aliado a isso, o desenvolvimento de novas tecnologias, ligadas ao tratamento e ao diagnóstico do câncer, tornou a enfermidade cada vez mais relacionada à prática médica de ponta, com intervenções que iam além do espaço clínico e da habilidade do cirurgião. O avanço da quimioterapia e dos tratamentos de radiação, desenvolvidos após a Segunda Guerra, fez com que as atenções para a pesquisa médica e o uso das novas técnicas ganhassem importância cada vez maior. Em casos de cânceres específicos, como o de colo do útero, as técnicas de detecção ganhavam maior destaque, como, por exemplo, o exame colposcópico e a citologia (Teixeira, 2015a, 2015b). Foi em meio a esse desenvolvimento de novas tecnologias e das mudanças institucionais favoráveis ao controle do câncer, que se iniciou um processo mais intenso de conformação de redes de médicos dedicados ao câncer, intitulando-se de cancerologistas. Enquadrado como um problema de saúde urbanoindustrial e objeto das novas tecnologias científicas, o câncer (como outras doenças crônicas) foi alçado ao estatuto de um ‘sinal de desenvolvimento’. Nesse sentido, a baixa incidência da doença no país era interpretada pelos médicos como um indicativo de ‘atraso sanitário’, ou seja, prevaleciam as endemias rurais e o Brasil seguia majoritariamente pobre e rural. A partir do impulso desenvolvimentista e da mobilização pela organização da cancerologia e do controle do câncer no país, a perspectiva da doença como uma realidade nacional passou a vigorar de forma mais constante. No programa para a área da saúde, Juscelino Kubitschek, candidato à presidência em 1955, apontava o câncer como um ‘novo problema nacional’, que seria
derrotado pelo ‘poder da ciência médica’ (Kubitschek, 1955). De acordo com o candidato mineiro, tratava-se de “um novo problema de saúde que não é apenas nosso, mas de todos os países civilizados” (Kubitschek, 1955, p. 28). Assim, a doença servia de elemento retórico para reposicionar o país, sugerindo que o aumento de sua incidência era resultante da ampliação do grau de desenvolvimento socioeconômico do Brasil. O uso retórico da doença, nesse sentido, ajuda a compreender a maior importância a ela atribuída e sua nova forma de se vincular às representações sobre a sociedade brasileira. Em 1954, um dos eventos de maior reconhecimento no campo da cancerologia foi realizado em São Paulo. O VI Congresso Internacional de Câncer foi organizado pela Union Internationale Contre le Cancer, instituição criada para compartilhar os conhecimentos e as ações para o controle da doença entre diversos países. Contando com a participação de 586 médicos, dos quais 199 eram brasileiros, a edição do congresso foi estruturada em sessões temáticas, conferências, exibições de filmes, discursos de autoridades públicas e visitas a instituições de controle do câncer. Parte do material apresentado no congresso foi publicada nos números da Revista Brasileira de Cancerologia, e o conjunto de resumos das comunicações, além de informações gerais sobre o evento, foi publicado em um livro de anais (RBC, 1954; CIC, 1955). O evento foi sediado em São Paulo, provavelmente devido à atuação do então diretor do Serviço Nacional de Câncer, o paulista Antônio Prudente. Mais do que representar um marco importante para a legitimação da cancerologia, o VI Congresso Internacional de Câncer também reforçou junto às autoridades a necessidade de maior atenção para a doença. Além disso, a realização de um evento desse porte no Brasil indicava um maior nível de organização da área médica em torno da doença e o fortalecimento da rede de cancerologistas. No discurso inaugural do congresso, o então governador de São Paulo, Lucas Nogueira Garcez, sintetizou a perspectiva apresentada em outras falas
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oficiais acerca do câncer, qualificando-o como uma doença relacionada à industrialização, à urbanização e ao avanço do conhecimento científico: Sua importância decorre, paradoxalmente, dos progressos da Medicina, que, ampliando a duração média da vida, oferece oportunidades maiores para o seu aparecimento, conhecida que é sua predileção pela velhice. O aperfeiçoamento do diagnóstico é outro responsável pelo relevo com que hoje figura o câncer nas estatísticas da mortalidade. Mas é indubitável que isso só não explica proporções de calamidade que essa doença está assumindo, ceifando vidas em todas as idades, enraizando-se em todas as latitudes com a enfermidade típica do século, ou melhor, da civilização que a Ciência, a técnica, a indústria e a democracia estão edificando no mundo dos nossos dias (Garcez, 1954, comunicação oral).
Se o câncer era apresentado como a ‘doença da civilização’, era fundamental identificar a sua incidência no território brasileiro, a fim de dimensionar o problema (e qualificar a enfermidade como tal). Nesse sentido, Jorge de Marsillac, chefe da Seção de Organização e Controle do Serviço Nacional de Câncer, apresentou, juntamente com o sanitarista Naim Merched, um estudo amplo sobre as estatísticas de câncer no país. Segundo o médico, “as observações estatísticas demonstram, sem dúvida alguma, a importância que o mesmo vem assumindo em nosso país, fazendo-se traduzir, a exemplo do que ocorre em todo o mundo, pela ascensão progressiva da mortalidade pelo terrível flagelo” (Marsillac; Merched, 1954, p. 41). Marsillac e Merched (1954) sugeriam que o câncer havia ingressado no rol de problemas sanitários nacionais, ainda que houvesse inúmeras limitações na quantificação dos casos. Para os autores, já se podia prever que, em um futuro próximo, “a doença ocupará os primeiros postos no obituário, a exemplo do que já ocorre em outros países mais adiantados” (Marsillac; Merched, 1954, p. 42). É interessante observar, na análise de Marsillac e Merched (1954), a relação entre o aumento da mortalidade por câncer, o sucesso no controle das doenças transmissíveis e a melhoria nos padrões de vida, decorrente
do desenvolvimento das técnicas de prevenção de diversas doenças e do desenvolvimento em geral. Entre os primeiros estão incluídos a maior longevidade do homem na atualidade e principalmente a maior facilidade do que se dispõe hoje para o diagnóstico da doença. À medida que o homem é melhor defendido contra as infecções e infestações de toda natureza, que a sua alimentação é melhor balanceada e que a medicina preventiva ocupa o lugar que deve, o gênero humano aumenta gradativamente a média de vida (Marsillac; Merched, 1954, p. 42).
No momento em que se organizava a campanha contra a bouba no Brasil (Muniz, 2013), o combate à doença de Chagas (Kropf, 2009), as ações pela erradicação da malária (Campos, 2006), entre outras ações sanitárias dirigidas a doenças vinculadas à pobreza, o argumento de que o país progredia e, com isso, passava a encarar problemas de saúde típicos de nações desenvolvidas pode parecer contraditório, mas encontrou aceitação na esfera pública, bem como legitimidade entre os médicos, à medida que parecia indicar que estava em marcha a superação das doenças que nos acorrentavam a um passado de atraso. Para os cancerologistas, o país finalmente começava a fazer parte do conjunto de nações confrontadas com os problemas do desenvolvimento. Essa situação reforçava sua posição profissional, justificava a mobilização pela criação de novas instituições de assistência a cancerosos e pela ampliação da campanha nacional contra a doença, cada vez mais considerada um problema social relevante. Avaliado como uma doença do desenvolvimento, da urbanização, da indústria, agora assentada no país, o câncer teve mais espaço na agenda da saúde pública nacional.
DE PROBLEMA DE SAÚDE PÚBLICA À DOENÇA TROPICAL: O CÂNCER COMO DOENÇA DO SUBDESENVOLVIMENTO Na abertura da III Jornada Brasileira de Cancerologia, realizada em Recife (PE), em outubro de 1963, o presidente da Sociedade Brasileira de Cancerologia, Ivo Roesler,
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proferiu um discurso no qual, ao versar sobre os problemas de saúde do Nordeste, propunha a reconsideração do cenário epidemiológico local, apontando que, mesmo em porções mais atrasadas desse território, o quadro nosológico estabelecido na Primeira República já não mais servia às ações do poder público. Segundo o médico: As doenças de massa, infecciosas e parasitárias, estão sendo vencidas pela educação sanitária e pelos modernos recursos terapêuticos, diminuindo gradativamente entre nós a sua incidência, enquanto se avoluma cada vez mais o número de pacientes com câncer. Esta afecção está hoje como uma das principais causas de mortalidade nos países mais desenvolvidos, e à medida que se acelera o progresso econômico-social deste país, aumenta a sua casuística, seja pelo aumento da vida média dos brasileiros, seja pelo aprimoramento dos métodos de detecção precoce. Infelizmente, nem todas as regiões do país possuem já facilidades hospitalares para o seu tratamento em grande escala, e em nosso Estado, apenas 20% dos pacientes com câncer podem ser devidamente tratados, perdendo-se, assim, um considerável número de vidas ainda numa idade de plena capacidade de trabalho (Roesler, 1963, comunicação oral).
Apesar de descrever um cenário demasiado positivo, no qual as ‘doenças de massa’ (Roesler, 1963, comunicação oral) estariam sendo ‘derrotadas’ pelo progresso médico – o que, certamente, não condiz com a realidade social do Nordeste no período, quando a seca, a exploração latifundiária e as endemias levavam várias pessoas a migrarem para grandes cidades –, o presidente da SBC apresenta um argumento importante para compreender o cenário da doença naquele momento: a falta de condições socioeconômicas de uma região é considerada um entrave para o pleno funcionamento do controle do câncer. Uma observação que pode parecer óbvia, no entanto, inverte a equação câncer e desenvolvimento, até então apresentada. No discurso do médico, a associação entre os avanços da sociedade e o aumento da mortalidade pelo câncer havia se consolidado. Porém, se até os anos 1950 essa relação formatava a doença como um ‘sintoma de civilização’, a partir da década de 1960, ganha força essa nova interpretação que
atribuía a maior dificuldade para o controle de diversos tipos de canceres à falta de assistência aos setores mais pobres da população. No encerramento da III Jornada Brasileira de Cancerologia, Moacyr Santos Silva, diretor do Instituto Nacional de Câncer, recorre ao mesmo argumento: E não pensem os menos avisados que o problema do câncer não seja importante no Nordeste assolado pela fome e pelas doenças do subdesenvolvimento. Segundo o que se observa no Serviço da Cátedra de patologia do prof. Barros Coelho e segundo me foi referido pelo Dr. Adonis Carvalho, ilustre e operoso secretário geral desse Congresso, o câncer do aparelho genital feminino na cidade do Recife já contribui mais que a eschistossomose como causa de morte da mulher pernambucana. E nesse ponto, o câncer pode e tem que ser considerado doença ligada ao subdesenvolvimento (Silva, 1963, comunicação oral).
Nesse discurso, fica clara a associação entre câncer e pobreza, praticamente invertendo a chave interpretativa predominante até os anos 1950: o câncer não era mais um sinal de desenvolvimento ou civilização e, sim, a marca do atraso. E, nesse ponto, havia também o interesse dos cancerologistas em elevar a doença ao estatuto de problema de saúde pública, apontando a mortalidade como o índice, e a pobreza como a causa. A observação do câncer como causa mortis superior à esquistossomose é relevante, pois essa verminose figurava entre os principais temas discutidos na região desde a década de 1940, quando passaram a ser organizados os Congressos Médicos do Nordeste Brasileiro (CMNB, 1953). Nos anos seguintes à III Jornada, o Brasil passaria por mudanças sociais e políticas profundas e a área da saúde se depararia com um novo cenário instalado pelos governos militares. O fortalecimento da medicina previdenciária e o total desmantelamento do Ministério da Saúde, nos primeiros anos após 1964, determinaram a ampliação da visão governamental a respeito do câncer e de outras doenças crônicas, como doenças individuais, a serem tratadas pela medicina curativa de base previdenciária, filantrópica ou privada.
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Frente a esse cenário, o médico Adonis de Carvalho8 publicou, em 1967, na Revista Brasileira de Cancerologia, um denso trabalho intitulado ‘Câncer como problema de medicina tropical’. Fruto de comunicações apresentadas nas III e IV Jornadas Brasileiras de Cancerologia, seu trabalho apresenta um argumento extremamente refinado em relação às noções de câncer como uma doença do subdesenvolvimento, defendidas por seus pares nos congressos anteriores e em outros trabalhos mencionados pelo autor. A proposta do patologista era pensar não somente um novo lugar da doença na sociedade, mas também um novo estatuto para ela na ciência médica. Há alguns anos atrás, pareceria absurdo um artigo sobre câncer como problema de Medicina Tropical. Esse absurdo deriva do fato de que os tradicionais centros de ensino médico localizam-se na Europa. A patologia ‘normal’ desses centros é a patologia das doenças comumente vistas por lá. A maioria desses países colonialistas tinha interesse no conhecimento das doenças que grassavam nas colônias, principalmente visando à proteção dos seus colonos. Em verdade, as afecções encontradas nas populações nativas, como sabemos hoje, dependem muito mais de condições precárias de vida, em ambientes hostis não dominados pelo homem, do que de circunstâncias outras climáticas ou ligadas à geografia da região (Carvalho, 1967, p. 67).
A Medicina Tropical é uma área tradicional do conhecimento biomédico, cujas origens remontam ao contexto colonialista da Europa no século XIX. Seu objeto seriam as doenças transmissíveis, provenientes das regiões mais quentes, muitas delas difundidas a partir da ação de vetores. Entretanto, uma discussão mais aprofundada sobre o conceito de ‘doenças tropicais’, realizada pela historiografia da medicina, aponta para os aspectos sociais da construção dessa noção, mostrando a predominância de um argumento social para a definição da enfermidade como tropical, em
contraponto à determinação climatológica e geográfica. Ou seja: as doenças seriam dos trópicos porque aqui há condições socioeconômicas precárias para o seu controle, não porque o clima determina a recorrência dessas enfermidades9. O próprio Adonis de Carvalho indica que a imprecisão do conceito de Medicina Tropical vinha sendo discutida pelos médicos do período, que passavam a associá-la aos trópicos o subdesenvolvimento, e não à climatologia (Carvalho, 1967). O autor propunha que se pensasse em uma ‘Cancerologia Tropical’, a fim de dar conta das particularidades do problema do câncer nessa região. Para tanto, procurou demonstrar em seu trabalho a elevada incidência da doença na região Nordeste do Brasil, que, segundo ele, melhor representaria um lugar de condições socioeconômicas precárias, particularmente em Recife, lugar de fala do médico e espaço onde desenvolveu suas pesquisas clínicas. Seu trabalho enumera os principais tipos de tumores recorrentes em países de clima tropical e nos estados brasileiros, levando-o ao argumento de que certos tipos de câncer seriam mais comuns em regiões pobres (lábio, língua, boca, faringe, esôfago, estômago, laringe, útero e pele), outros em regiões ricas (cólon, intestino delgado, mama e ovário), enquanto alguns seriam indiferentes a fatores econômicos (reto, pulmões e próstata) (Carvalho, 1967). Assim, haveria um grupo de canceres característicos das regiões tropicais que poderiam ser objeto de estudos de uma ‘Cancerologia Tropical’, que se dedica-se, principalmente, aos tumores ocorridos em tecidos de revestimento, os quais, segundo o autor, eram os principais das regiões subdesenvolvidas. Para a perspectiva analítica aqui adotada, o estudo de Carvalho (1967) coloca-se como produto de um novo enquadramento da doença, então vista como um problema com especificidades próprias no Brasil, e não mais como um sintoma de um estágio de civilização a que o país almejava chegar ou pensava ter chegado. Agora, o
Adonis de Carvalho, mencionado na citação de Moacyr Santos Silva, era um importante nome da medicina em Pernambuco, ocupando a cátedra de Anatomia e Fisiologia Patológica da Faculdade de Medicina, da Universidade Federal de Pernambuco, além de ser o patologista-chefe da Clínica de Câncer do Recife. 9 Tal questão é bem discutida em relação à hanseníase no estudo de Pumar (2009). 8
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câncer era relacionado às mazelas e precariedades, frutos de uma desigualdade social historicamente construída. Em seus comentários, Carvalho (1967) chega a classificar alguns tumores como ‘doenças de massa’, indicando a necessidade de se encarar a doença como um problema médico e social alarmante; no caso, a solução defendida pelo médico é a criação de uma Cancerologia Tropical como uma área da ciência biomédica, de modo similar à Medicina Tropical. A proposta de Adonis de Carvalho não gerou consequências práticas; no entanto, ela não pode ser vista como fruto de uma observação isolada do problema do câncer no Brasil, mas, sim, como uma mudança na interpretação da doença, que paulatinamente crescia no país. (Carvalho, 1967). A partir de meados da década de 1970 – quando o intenso crescimento econômico se conectou à progressiva busca dos governos militares de ampliação da cobertura das ações de saúde, como concessões a demandas sociais que lhes poderiam garantir o mínimo apoio social (Escorel, 2012) –, o câncer voltou a ter maior visibilidade. Com a criação do Plano Nacional de Combate ao Câncer, em 1973, a doença passou a ocupar ainda mais espaço nas pautas da saúde pública, tornando-se cada vez mais uma questão socialmente reconhecida. A partir da década de 1980, o maior desenvolvimento do Instituto Nacional do Câncer trouxe uma nova perspectiva para o controle da doença. A elaboração de ações integradas entre o Instituto e o Ministério da Saúde e a mobilização em torno da educação sanitária e da detecção precoce colocavam o câncer em um novo patamar de importância. Nesse contexto, as iniciativas nacionais para a detecção de tumores específicos, como o de colo do útero e o de mama, e as ações para o controle do tabaco ganharam maior dimensão, ampliando ainda mais a visibilidade da doença (Teixeira; Fonseca, 2007). A associação entre condições socioeconômicas precárias e as dificuldades em detectar e tratar o câncer
foram se consolidando nas décadas seguintes. A observação da relação entre alguns cânceres – como o de colo e o de pulmão – com pobreza, nível educacional e carência de informações fortaleceu esse processo (Salvatore, 1976). Em relação ao câncer de colo, a partir da década de 1960, o consenso médico sobre a ampliação dos riscos da doença em mulheres tabagistas, com grande número de parceiros sexuais e/ou vivendo sob condições de higiene inadequadas ampliou as preocupações com a doença, até então vista como um mal democrático, que atingia todas as mulheres indiscriminadamente. No final da década de 1970, a descoberta da associação desse câncer ao vírus HPV (Human papillomavirus) fortaleceu a compreensão de o maior risco de contrair a doença estar entre as populações mais pobres e desassistidas, aspecto que proporcionou, duas décadas mais tarde, a criação do primeiro programa nacional para a prevenção da doença – o Viva Mulher (Teixeira, 2015b). No que tange ao câncer de pulmão, as evidências científicas sobre a gigantesca ampliação do risco de contraí-lo em função do uso do tabaco vinham se acumulando desde a década de 1960 e, aos poucos, passaram a ser preocupações dos médicos brasileiros. Ações educativas e tentativa de criação de leis que freassem o grande consumo do produto foram buscadas por associações médicas, em particular pela Associação Brasileira de Cancerologia, que, em 1979, liderou um conjunto de associações científicas e instituições ligadas à saúde, com o objetivo de elaborar um Programa Nacional Contra o Fumo (Jaques, 2010). De forma semelhante ao câncer de colo, a observação da relação entre câncer de pulmão, uso de tabaco e pobreza foi um dos motores para a ampliação da mobilização contra o tabaco, que possibilitou ao país tornar-se um dos primeiros signatários da Convenção Quadro para Controle do Tabaco, em 2003, e, a ela, aderir, formalmente, em 200510.
A Convenção Quadro para Controle do Tabaco é um tratado internacional de saúde pública, proposto e realizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) a partir de 1999. Negociado por 194 países, tem como objetivo a adoção, por seus diversos membros, de medidas de restrição ao consumo de cigarros e outros produtos derivados do tabaco (Jaques, 2010).
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De doença da civilização a problema de saúde pública: câncer, sociedade e medicina brasileira no século XX
Os exemplos acima mostram que a concepção da doença exteriorizada por Carvalho (1967) manteve-se relevante nas décadas finais do século XX. O câncer não podia ser mais encarado como uma doença da civilização ou sintoma do progresso. Deveria ser visto como um problema de saúde (pública) do Brasil, envolvido pelos aspectos sociais e culturais diversos existentes no país.
CONCLUSÃO A análise da associação entre doença e sociedade ao longo de várias décadas revela como esses aspectos foram vistos pelos atores sociais de uma época, a partir de seus interesses e visões de mundo. No caso do câncer, a ideia de uma doença vinculada à civilização e ao desenvolvimento socioeconômico marcou os primeiros anos de organização das ações para o seu controle no país. Essa concepção estava diretamente ligada aos projetos de nação elaborados desde a Primeira República, que se baseavam na noção de que o Brasil tinha como destino o estatuto de país civilizado, com grandes cidades ao estilo europeu, onde se estabeleceriam novos hábitos e estilos de vida, em contraste com o atraso que ainda imperava, em especial nas zonas rurais. Na década de 1930, no ambiente de reestruturação da saúde pública do governo Vargas, a ideia de que seria possível ‘salvar a raça pela medicina’ (Hochman; Lima, 1996), oriunda do movimento sanitarista dos anos 1920, direcionava as ações públicas ao combate às enfermidades transmissíveis, sobretudo as verminoses e as infecções. Ainda assim, no ambiente das grandes cidades, em que a urbanização e a industrialização apontavam para novos problemas e possibilidades da vida cotidiana e do mundo do trabalho, a preocupação de grupos específicos com as doenças consideradas ‘da civilização’ trouxe à luz o câncer e suas implicações como mazela social. Nos anos 1950, por sua vez, foi ampliada a capacidade propositiva dos grupos relacionados ao controle da doença compostos por médicos, filantropos, políticos e pessoas da elite de modo geral. Tal processo vinculou-se à criação
de aparatos institucionais para o controle do câncer, tanto em nível local quanto nacional, bem como pelo impulso da ideologia desenvolvimentista no país, que trouxe ideais de modernidade e de consumismo, e o acirramento do processo de industrialização nas grandes cidades brasileiras. Nesse cenário, o câncer não era mais encarado como a doença específica de uma zona ‘civilizada’ do mundo ou de alguma composição étnico/genética relacionada a essas regiões, mas, sim, ingressava no rol de preocupações da população brasileira, como um sinal de que o país progredira em seu projeto de nação. Finalmente, no período da ditadura civil-militar – momento de desenvolvimento econômico e ampliação de desigualdades sociais –, os médicos passaram a ver a doença por outro viés, pensando nas limitações de abrangência dos serviços de saúde e nas condições de subsistência que ampliavam o risco de contrair certos tipos de câncer. A observação da iniquidade social e sua relação com alguns tipos de câncer potencializaram uma nova concepção da doença, agora vista como um problema com forte impacto em países subdesenvolvidos, principalmente pelas dificuldades de subsistência e de acesso a serviços médicos vividas por grande parte da população. O longo período discutido nas páginas precedentes sugere como o quadro mais amplo das interpretações sobre a sociedade brasileira articulou-se aos conhecimentos médicos, à organização institucional da medicina e às demandas mais gerais da saúde pública na conformação de novos sentidos para o câncer. Apesar de colocar a discussão em termos biomédicos e da organização da medicina em nível profissional e acadêmico, os médicos articularam diversos elementos de interpretação da sociedade para criar ou, pelo menos, buscar consensos sobre uma doença que, mesmo rodeada por novos conhecimentos e técnicas, seguia cercada de grandes incógnitas para a medicina. Na perspectiva dos trabalhos de Rosenberg (1992, 2007), é possível afirmar que as transformações no processo de ‘enquadramento’ da doença se deram em
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meio a questões que extrapolaram o campo médico. De doença da civilização a problema de saúde pública, o câncer foi significado de diversas formas pela medicina brasileira, atendendo não somente a demandas e disputas do campo médico, mas também às preocupações e às tensões em torno da nação que se construía ao longo do século XX.
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Cenas de violência na tessitura entre imigrantes italianos e brasileiros no interior do Espírito Santo Scenes of violence between Italian immigrants and Brazilians in the interior of Espírito Santo, Brazil Maria Cristina Dadalto Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória, Espírito Santo, Brasil
Resumo: Este artigo tem por objetivo discutir as relações conflituosas estabelecidas entre um grupo de imigrantes italianos e trabalhadores brasileiros no distrito de Barracão de Petrópolis, interior da então comarca de Santa Teresa, Espírito Santo, no final do século XIX, que resultaram em uma sequência de crimes. Como suporte analítico, utilizam-se o inquérito policial-criminal instaurado e as notícias publicadas em jornais da época. De acordo com as testemunhas do inquérito, na noite de 2 para 3 de novembro de 1897, foram assassinadas 11 pessoas e incendiados prédios públicos e residências. Os crimes teriam acontecido como uma reação dos brasileiros ao assassinato de um conhecido por um italiano. O caso foi encerrado sem culpabilidade definida. Palavras-chave: Imigrantes italianos. Espírito Santo. Racismo. Conflito. Abstract: This article aims at discussing conflicts between a group of Italian immigrants and Brazilian workers in the Barracão de Petrópolis district, in the former municipality of Santa Teresa, Espírito Santo, in the late nineteenth century. These conflicts resulted in a sequence of crimes. The analysis is based on police investigation sand news published in newspapers of the time. According to witnesses interviewed by the police, eleven people were killed and public buildings and homes were set on fire in the night between the 2nd and the 3rd of November, 1897. The crimes would have occurred as a Brazilian reaction to the murder by an Italian of a well-known figure. The case was dismissed without charges. Keywords: Italian immigrants. Espírito Santo. Racism. Conflict.
DADALTO, M. Cristina. Cenas de violência na tessitura entre imigrantes italianos e brasileiros no interior do Espírito Santo. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 12, n. 1, p. 189-200, jan.-abr. 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222017000100011. Autora para correspondência: Maria Cristina Dadalto. Universidade Federal do Espírito Santo. Coordenação de Ciências Sociais. Av. Fernando Ferrari, 514 – Goiabeiras. Vitória, ES, Brasil. CEP 29075-910 (maria.dadalto@ufes.br). Recebido em 07/07/2016 Aprovado em 22/11/2016
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Cenas de violência na tessitura entre imigrantes italianos e brasileiros no interior do Espírito Santo
INTRODUÇÃO Os estertores do final do Dezenove, anunciando as transformações socioculturais, econômicas e políticas no porvir do novo século no Brasil, se faziam presentes por meio da violência física e simbólica no interior da então comarca de Santa Teresa, Espírito Santo. Agressões verbais, imposições e intimidações, canalizadas por imigrantes italianos e descendentes a trabalhadores brasileiros que por ali circulavam, conflagraram uma sequência de crimes com cenas de tocaias e assassinatos. Na tessitura destes crimes, verificam-se tensões sociais alicerçadas em disputas de poder e discriminação racial – o conceito de raça está referido neste estudo como uma construção social que envolve características físicas e culturais (Guimarães, 2012) –, na qual um grupo de indivíduos, imigrantes italianos e descendentes, se autorrepresentava como detentor do direito de determinar o que era possível e o que não era permitido, além de definir quem poderia ou não circular no lugar. Em contraponto, segundo este grupo de imigrantes, brasileiros deveriam ser submissos ao que lhes fosse imposto como regra. No epicentro da sequência destes crimes, aflorava a figura de dois homens: o mineiro José Calhau e o italiano Luiz Vivaldi. Tudo teria acontecido na virada da noite de 2 para 3 de novembro de 1897, no distrito de Barracão de Petrópolis, quando explodiram atos violentos, culminando em assassinatos de vários moradores e incêndios em domicílios e no cartório local. As motivações que sustentaram tais atos extremos, segundo os relatos das testemunhas do inquérito1 constituído: desordem e impunidade. Nas entrelinhas dos relatos, entrementes, pode-se acrescentar discriminação e disputas diversas entre diferentes grupos de moradores. Segundo Biasutti e Loss (1999), José Calhau era um mascate mineiro que atuava na região do distrito de 1
Barracão de Petrópolis. O capitão Luiz Vivaldi – assim conhecido por ter sido oficial da polícia italiana antes de emigrar para o Brasil – chegou a Barracão de Petrópolis no ano de 1890, e, lá assentado, instituiu um domínio de medo e de terror, marcado pela intolerância contra os pretos e os pardos que circulavam no local. Vivaldi, no entanto, advertem estes autores, também singularizava seu comportamento pelas más relações estabelecidas com os vizinhos e com as pessoas que trabalhavam para ele. Entretanto, não se deve debitar apenas a este imigrante italiano o sentimento de racismo e a responsabilidade pelos fatos ocorridos. Suas ações e os comportamentos intolerantes encontravam ressonância e apoio tanto por parte de outros moradores da vila como das instituições. Isto porque, ao se considerar o ambiente em que estes personagens estavam inseridos, deve-se ter claro que participavam de uma comunidade, portanto, que compartilhavam trocas e conflitos entre si e também com representantes dos diversos outros grupos sociais e instituições. Nesta direção, são elucidativos os estudos produzidos por Guimarães (2012), ao lançar um olhar à compreensão da sociedade brasileira e revelar a construção de um imaginário nacionalista, resultante da onda imigratória europeia no final do século XIX, incentivada por uma política oficial de embranquecimento, de modo que, na concepção deste pesquisador, a elite ou a classe média da época promoveram a dinâmica de absorção dos imigrantes, em especial dos europeus, e a redefinição dos demais, sobretudo dos trabalhadores, por meio de um novo racismo. Neste artigo, parte-se do pressuposto de que a dicotomia entre os imigrantes italianos e os brasileiros não é um binômio fixo. Portanto, a questão do sujeito histórico se apresenta à reflexão e, dessa forma, envolve tanto os grupos e as instituições assentados quanto aqueles em trânsito no local do conflito, mas abarca também o contexto social,
Inquérito policial-criminal do ano de 1897. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, Vitória (ES). Cx. Nº 78, catalogado sob nº 1414.
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histórico, cultural, político e econômico, no qual se tece a cena do processo nos níveis macro e micro no espaço físico e geográfico2. No rastro de Sahlins (2006), considera-se que “a escolha de sujeitos históricos depende do modo de mudança histórica”. Com base nesta premissa, analisam-se as relações de conflito vivenciadas por brasileiros, imigrantes italianos e descendentes na vila de Barracão de Petrópolis. Como suporte analítico metodológico, estes autores apropriam-se do inquérito policial-criminal instaurado sobre o evento e das notícias publicadas em dois jornais da época. O argumento utilizado é de que há um conflito na representação do nós e do outro, fundamentado em um contexto de colonização, marcado por disputas identitárias e econômicas na região. A argumentação sobre a representação do nós e do outro encontra, neste estudo, suporte na análise produzida por Elias e Scotson (2000, p. 7). Estes autores compreendem o nós – o estabelecido – como aquele que pertence a “um grupo que se autopercebe e que é reconhecido como uma boa sociedade, mais poderosa e melhor”. Deste modo, esse grupo detém “uma identidade social construída a partir de uma combinação singular de tradição, autoridade e influência” (Elias; Scotson, 2000, p. 7). Já o outro – designado como outsider – é aquele não membro, o que está fora dessa boa sociedade. Ao se pensar sobre as relações de poder estabelecidas no Brasil, em especial no Espírito Santo no Dezenove – uma região com pequeno número de moradores, cujo movimento colonizador de exploração de fronteiras internas teve como suporte de política pública a imigração branca europeia –, e sobre a dimensão do outro nas relações entre e intergrupal, é possível identificar alguns fatores que favorecem a construção e o acirramento desse processo discriminatório, e que culminaram nos crimes em análise.
Nesta direção, Seyferth (2002, p. 118) assegura que, no Brasil, a discussão sobre a questão racial está subjacente aos projetos imigrantistas desde 1818, de maneira que a “imigração passou a ser representada como um amplo processo civilizatório e forma mais racional de ocupação das terras devolutas”. Considera-se, assim, que tal asserção é evidência à compreensão de um grupo de imigrantes italianos se autorrepresentar como aqueles que são o nós. Encontra, portanto, referência no “pressuposto da superioridade branca, como argumento justificativo para um modelo de colonização com pequena propriedade familiar baseado na vinda de imigrantes europeus” (Seyferth, 2002, p. 118). A sequência de crimes em análise fundamenta-se em um contexto de colonização carregado de conflitos identitários, socioeconômicas e políticos. Tais conflagrações são apresentadas no relato publicado sobre a diligência realizada por Joaquim Barbosa dos Santos, major comandante interino (O Estado do Espírito Santo, 1897), ao chegar a Barracão de Petrópolis, no dia 8 de novembro. No relato, o próprio Joaquim Barbosa dos Santos descreve o que aconteceu da seguinte forma: Tendo sido assassinado em um dos dias do mês de outubro último o mineiro de nome João Rodrigues, compareceram ao seu enterramento, cerca de cinquenta mineiros (mais ou menos) que pediram à autoridade policial do Barracão de Petrópolis, capitão Vivaldi, a punição para o assassino que apontavam ser o italiano Biazze, a fim de não ficar impune tão bárbaro crime, como muitos outros até então praticados. A autoridade policial procedeu ao inquérito, e não coube a culpabilidade à pessoa indicada, ficando desconhecido o autor do referido crime. Dias depois os mineiros que acompanharam o cadáver de João Rodrigues, reunidos, procuram tirar um desforço do crime citado por terem sabido que a referida autoridade dissera: – “que quem matava um brasileiro era mesmo que matar um porco”. E isto fizeram indo à casa do capitão Vivaldi, autoridade policial, ofendendo-o fisicamente e assassinando Vivaldi, pai.
Situações de conflitos entre brasileiros e italianos, bem como entre brasileiros e outros grupos étnicos, aconteceram em vários locais no interior do Brasil, conforme revelam estudos produzidos por Monsma (2004), Teixeira (2006), Santos (2008) [incluído], Junqueira (2009), Vendrame (2014), Vendrame e Zanini (2014), entre outros.
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Depois dirigiram à povoação do Barracão de Petrópolis, que fica a pequena distância da casa do capitão Vivaldi e ali chegando, em tiroteio, foram assassinados os italianos Bortho Vilask, Bepi Sapateiro e os brasileiros, João, vulgo “que não pode” e João Paulo. Em seguida foram ao cartório policial e escola pública, e atearam fogo em todos os papéis do referido cartório, o que deu lugar a um princípio de incêndio, pois ficou o assoalho deste prédio completamente queimado. Também atearam fogo em uma outra casa dando isso lugar a que morressem queimados os brasileiros de nomes Elias e Cassiano de tal, os quais ali haviam refugiado. No tiroteio foram feridos o italiano de nome Joani Frankeane e o mineiro Izidoro da Silva, os quais se achavam em tratamento em Santa Thereza. Sabe-se estarem envolvidos nesses assassinatos, como principais autores, Romão de tal, José Calhau, um tal Sardinha e muitos outros indivíduos (Santos, 1897, p. 2).
Em sua descrição, o major informa que, ao chegar, encontrou Barracão de Petrópolis com todas as casas abandonadas, o comércio saqueado e a edificação que servia de subdelegacia policial e de escola pública com princípio de incêndio. Na perseguição que promoveu contra o grupo responsável pela sequência de crimes, o major percorreu vários povoados: Santa Joanna, Santa Julia, Boa Família, obtendo informações indicando que os assassinos seguiram para o estado de Minas Gerais.
O ESPÍRITO SANTO NO DEZENOVE O último quartel do século XIX constituiu-se como um período de intensas disputas identitárias, políticas e econômicas no Espírito Santo. O movimento migratório internacional e regional ganhara força a partir de meados dos anos de 1800, provocado, conforme Almada (1984), pela expansão do café. Tal fato sobrevém motivado pela quase duplicação das populações livre e cativa e pelo aumento do fluxo migratório. Neste sentido, convém lembrar que os imigrantes foram assentados no Espírito Santo, com o propósito de participar de um projeto de colonização cuja forma instituída foi a exploração agrícola baseada na concessão de pequena parcela de terra, de maneira que o sistema de demarcação de terras e de instalação dos estrangeiros
seguia sempre uma mesma diretriz, por meio da constituição de um núcleo na colônia. A partir da sede dos núcleos, eram definidos os caminhos de onde partiam as demarcações dos lotes — normalmente, nos fundos dos vales e às margens dos rios (Saleto, 1996). Entre os anos de 1847 a 1900, chegaram oficialmente ao Espírito Santo um total de 44.510 imigrantes estrangeiros (Hess; Franco, 2003), sendo maior o número de italianos. De acordo com Rocha (2000), o processo imigratório europeu espírito-santense ocorreu em três fases: 1847 a 1881, 1882 a 1887 e 1888 a 1896. Os imigrantes que chegaram nesse período têm origens diversas: são alemães (hanoverianos), pomeranos, suíços, luxemburgueses, prussianos, holstenianos, hessenianos, austríacos, holandeses, badenses, poloneses, italianos, entre outros. Somente os imigrantes assentados entre os anos de 1888 a 1896 – em número total de 21.497 e com a maioria absoluta sendo composta por indivíduos vindos de diferentes lugares da península Itálica – vieram em projeto que contava com a iniciativa financeira do próprio governo do Espírito Santo. Nessa época, este estado era ainda comandado por presidentes provinciais deslocados de outras regiões e por curtos períodos de tempo – foram 55 presidentes provinciais entre os anos de 1830 a 1889. Contudo, em geral, a vice-presidência era ocupada por latifundiários locais, assim como os importantes postos administrativos eram ocupados pela elite regional. Segundo Banck (1977), tal contexto provocava tensões constantes, em razão de conflitos em torno de terras, de escravos e de cargos estratégicos no aparelho administrativo. Parte dessas disputas estava relacionada à alocação de dinheiro público, a decisões acerca da definição de rotas de estradas e de lugares para a construção de pontes. Neste cenário, havia ainda o papel de milícia da Guarda Nacional, responsável pela captura dos escravos fugitivos, e que potencialmente mantinha a oportunidade de se apropriar ilegalmente desses escravos. A ostentação do posto de capitão, carreado da Itália, fazia com que moradores da região aproximassem simbolicamente a
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atuação truculenta da Guarda Nacional a Vivaldi, o que constituía, inclusive, um notável indício da importância de poder que assumia a representação do capitão Vivaldi no distrito de Barracão de Petrópolis. Ao se analisar o contexto socioeconômico e político do Espírito Santo, inferem-se a existência e a pactuação do uso de métodos violentos, com vistas ao atendimento dos interesses de uma determinada elite política e econômica. Nesta direção, o Espírito Santo foi um espaço cujos projetos colonizatórios e de expansão latifundiária estavam, ainda, especialmente localizados nas regiões Centro (onde se localizava a comarca de Santa Teresa) e Sul. O acelerado crescimento da produção cafeeira e a escassez de mão de obra são os dois fatores centrais que resultaram na política de imigração e de colonização do Governo Central (Oliveira, 1951). O processo de expansão da cultura cafeeira realizava-se na região Sul por meio da plantation escravista (Almada, 1984), enquanto, no vale do rio Doce e na região Central, dava-se por intermédio de pequenas unidades de produção familiar, sustentadas pelo trabalho dos imigrantes europeus ali estabelecidos. Sobre este período, Campos (2011, p. 9) esclarece: Apenas o Rio de Janeiro superava a marca de africanidade nas escravarias capixabas, que invertera assim a sua situação, se comparada com o início do século quando se afigurava como terra de poucos africanos. Cachoeiro de Itapemirim, nessa data, possuía 1.255 cativos africanos, mais da metade do contingente da Província. Estima-se que parte desses homens tenha acompanhado seus senhores quando chegaram às terras do sul do Espírito Santo.
Ressalta-se que, em princípio, no Espírito Santo, o imigrante não tinha como destino substituir o escravo nas grandes fazendas. Nesta direção, é esclarecedora a análise de Seyferth (2014), ao advertir que o projeto de povoamento do território patrocinado pelo governo produziu, no Brasil, debates e leis políticas restritivas, mas também ensejou disputas sobre raça, eugenia, ideologias políticas e formação nacional, cujas bases eram as ideias de assimilação e caldeamento.
O assentamento de imigrantes ocorreu em um período no qual a produção de café ganhava destaque e se iniciava a construção da infraestrutura viária, a despeito da inexistência de um plano organizado para seu desenvolvimento. A expansão da cafeicultura propiciou as mudanças socioeconômica e demográfica do Espírito Santo. Em consonância com o período, grande número de proprietários mineiros e fluminenses se deslocou para terras localizadas ao Sul, em Cachoeiro de Itapemirim, Alegre e Veado (atual Guaçuí). Tal movimento povoou os sertões desabitados do sul do Espírito Santo. Todavia, Banck (1978) ressalta que estas mudanças não modificaram o fato de o Espírito Santo permanecer esquecido e sem qualquer peso político nacional. Nesse período, o único capixaba que conseguiu alguma projeção nacional foi o barão de Itapemirim, “uma exceção que se deveu mais à sua riqueza do que ao seu lastro político” (Banck, 1978, p. 65-84). Essa ausência de representação nos meandros do poder nacional, assim como os movimentos políticos internos de adesão e traições de determinados grupos, trouxe consequências de várias dimensões para o Espírito Santo, considerando-se a transição política entre o Império e a República, marcada pelo divisionismo. Os fazendeiros do Sul encontravam-se ligados cultural e economicamente ao Rio de Janeiro, e a elite urbana de Vitória, isolada economicamente dos dinâmicos distritos do Sul, mantinha-se como centro das decisões políticas, explorando a sua situação geográfica costeira, localizada na linha divisória entre Sul e Norte, e seu porto natural. Para Zorzal e Silva (1995), esse foi um dos fatores que influenciou no modelo do projeto de colonização da imigração na região Centro-Norte. Acreditava-se que, permanecendo o movimento de desenvolvimento cafeeiro do Sul do Espírito Santo, a tendência era de a capital ser reduzida a funções burocrático-administrativas. Neste sentido, havia a percepção da necessidade de ocupar, de forma apressada, e de incrementar atividades produtivas nas regiões Centro-Norte.
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De acordo com Almada (1993), o Censo Demográfico registrava, em 1890, 136.997 habitantes no Espírito Santo; em 1900, 200.783; em 1910, 457.326; em 1940, 750.107; e em 1950, 841.562 – Santa Teresa, na região Central do estado, teve um aumento populacional entre 1900 e 1920 de 4,5%. Contudo, a este processo se agregava outro, que, por ser simbólico, atuava no imaginário dos imigrantes e descendentes assentados: o objetivo subjacente discriminatório racial de “embranquecimento da raça”, que instituía o projeto imigratório brasileiro. Em tal contexto encontrava-se situado o distrito de Barracão de Petrópolis, mesmo que perifericamente. No local, racismo e disputas políticas e econômicas estavam em jogo, não somente entre os personagens centrais no inquérito em tela, mas também entre diferentes grupos de imigrantes estrangeiros. Nas povoações próximas, encontravam-se assentados, entre outros, alemães, suíços e poloneses ou polacos – como os imigrantes provenientes da Polônia eram pejorativamente chamados pela população à época. Complementava tal contextura o isolamento em relação à capital, Vitória, no qual os moradores da localidade estavam inseridos. Ou seja, apesar da curta distância geográfica de 78 quilômetros entre a capital e Santa Teresa, dada a precariedade das estradas na época, a população interiorana não se encontrava tão próxima física e simbolicamente do centro das decisões políticas e econômicas, para que pudesse influenciar, mas também não tão distante, para que não fosse afetada pelas deliberações que repercutiam no seu cotidiano. É no interno daquele espaço que os diferentes grupos lutavam também para que suas identidades se consubstanciassem e se diferenciassem entre si, possibilitando que brasileiros e imigrantes se distinguissem por aquilo que não eram (Woodward, 2000). Além disso, faz-se necessário ressaltar que essas disputas identitárias comportavam outro conjunto de contendas – situadas nos campos político e econômico, por exemplo. Entretanto, ao atuar simbolicamente no campo imaginário,
classificavam-se as relações sociais estabelecidas no interior daqueles grupos, ensejando uma representação que agia no sentido de distinguir entre quem era o nós e quem era o outro. Sobressaía, nessa relação, o contínuo processo de negociação de trocas de oferta e de recebimento do imigrante com ele próprio e com outros grupos imigratórios e de brasileiros. Isto porque, à medida que avançava na interação com os estabelecidos no lugar onde ele estava assentado, o imigrante aprendia novos hábitos e valores, mas também ensinava. Deste modo, ao mesmo tempo em que os imigrantes se diferenciavam dos brasileiros, por serem ‘de fora’, também se uniam aos nativos em ocasiões específicas, conforme ditavam suas necessidades – e, devido a algumas características em comum, passavam a ser vistos como um grupo. No caso em pauta, os diferentes grupos de imigrantes e brasileiros assentados compunham o grupo dos membros da comunidade do distrito de Barracão de Petrópolis, localizada no interior da comarca de Santa Teresa. Desta forma, os locais integravam um grupo heterogêneo, cujas diferenças podem ser justificadas com base na ilusão de uma cultura semelhante, inerente a cada subgrupo, que, por sua vez, se obtinha ao se avaliarem os traços culturais específicos – aqueles próprios da cultura de uma etnia – e, simultaneamente, utilizados para contraste entre as identidades (Barth, 1998). Os indícios dessas representações identitárias apresentam-se como resultados históricos concretos, tanto nas concepções duradouras quanto nas percepções fugazes. Porém, o que significa, em termos da representação social, constituída no cotidiano, o sentido de discriminação racial? Para Berger e Luckmann (2002), os conceitos de realidade e de conhecimento correspondem a nexos sociais específicos, que são essenciais para a afirmativa que apresenta o real como resultado de um processo de construção social. Na perspectiva de Junqueira (2005), cabe às representações articular tanto o sentido da vida coletiva de uma sociedade como o processo de constituição
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simbólica, nos quais os sujeitos sociais lutam para dar sentido ao mundo, para entendê-lo e nele encontrar o seu lugar, por meio de uma identidade social e individual. Nesta acepção, as representações estão radicadas na arena pública e nos processos por meio dos quais desenvolvemos uma identidade, e se vinculam à transformação do padrão da ordem social a envolver desde aspectos socioculturais, econômicos e políticos aos geográficos e jurídicos.
BARRACÃO DE PETRÓPOLIS Busatto (1990) assevera que o assento de imigrantes europeus na região de Santa Teresa tem início a partir de 1874, com a fixação de imigrantes italianos procedentes do núcleo colonial Conde D’Eu (atual Ibiraçu). Posteriormente, a Inspetoria Especial de Terras e Colonização, responsável pela distribuição dos lotes coloniais, assentou novas levas de imigrantes no local. A maioria dos imigrantes ali instalados estava imersa em uma estrutura cujo padrão de produção socioeconômica era a pequena propriedade familiar resultante do modelo de distribuição dos lotes coloniais. Era um padrão ordenador das atividades produtivas em cuja malha a cultura do café organizava-se, principalmente por meio da ação familiar (Scalzer, 2015). Para as atividades de sociabilidade e lazer, os homens, membros das comunidades, usufruíam de seu tempo livre em jogos de baralho, em especial tre-sette, briscola, scopa, trucco; na bocce, ou jogo de bola de pau – jogos trazidos pelos imigrantes italianos – em bares que vendiam vinho e grappa3 (Biasutti; Loss, 1999). Nesse contexto, é importante ressaltar o papel especial da religião, que mediava o ordenamento do cotidiano dos sujeitos ali residentes. As pequenas comunidades se estendiam ao longo do vale do Canaã4 – Tabocas, Córrego dos Espanhóis, Vale do
Tonini, Santo Anselmo, Vinte e Cinco de Julho, Caldeirão, Várzea Alegre, São Paulo do Perdido, Nova Valsugana. Famílias de imigrantes vindos de Tirol, Alemanha, Suíça, Itália, entre outros lugares, constituíam os grupos de moradores. Coabitavam com os brasileiros, cujas vidas produtivas se organizavam por meio de atividades diversas, seja como trabalhadores rurais, tropeiros, jagunços, comerciantes ou proprietários de glebas de terras. Com esta acentuada diversidade configurando e ordenando a região de Santa Teresa, os conflitos sociais, políticos e econômicos interpenetravam as relações de poder ali estabelecidas. Nesse sentido, recorre-se a Elias e Scotson (2000), quando apontam o significado de um grupo se afirmar como o estabelecido para se analisar os crimes acontecidos em Barracão de Petrópolis. Também se evoca Sahlins (2006, p. 13), quando assinala a importância de se compreender uma mudança estrutural, um fato ou um personagem como evento histórico, descobrindo, ao perseguir de frente para trás a trilha dos acontecimentos, “os pontos de inflexão e os agentes da nossa história”. Nesta direção, analisada a sequência de crimes e os dois principais personagens envolvidos nos episódios da noite de 2 de novembro de 1897, o imigrante italiano capitão Vivaldi e o brasileiro José Calhau inserem-se, então, como fatos e indivíduos em um contexto histórico, socioeconômico, cultural e político. Imersos em uma estrutura de disputa colonizatória geográfica e simbólica do espaço, tais elementos materializavam o sentido dos conflitos de poder instituídos em um país em transição política, econômica e demográfica, em pleno momento da República nascente. Essas transformações encontravam ressonância no cotidiano do colono imigrante e do trabalhador brasileiro no interior do Espírito Santo. Era um período, como
A grappa resulta da destilação do bagaço fermentado da uva, chamado de vinaccia, originalmente destinada ao aproveitamento do álcool residual após a elaboração do vinho. A matéria-prima, portanto, é a sobra da fermentação constituída de cascas, polpas e sementes remanescentes da prensagem das uvas. 4 O vale do Canaã percorre o sentido do município de Santa Teresa a Colatina, passando por São Roque do Canaã. O vale foi um dos locais onde se ambientou o romance “Canaã”, de Graça Aranha, escrito em 1902. 3
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esclarece Schwarcz (1993), no qual já se havia configurado como processo o distanciamento do mundo rural, no qual as classes dominantes urbanas já haviam conquistado mais poder. Época, portanto, em que as disputas ganhavam novos contornos e renovado elenco de atores. Ressalta-se que os dois personagens experimentavam diferentes contextos e estruturas de vida. O capitão Luiz Vivaldi era um imigrante, proprietário de gleba de terra, e tinha o apoio político e institucional da elite social e econômica da região. José Calhau era um brasileiro, mestiço, tropeiro, cujas relações com os moradores do lugar eram mediadas, principalmente em suas passagens transitórias, por meio do comércio e da venda de mercadorias. Nessa contextura, como um único homem – comandando um pequeno grupo de jagunços – que não vivia seu cotidiano em Barracão de Petrópolis surpreendeu e venceu o poderoso capitão Vivaldi?
A NOITE DA VINGANÇA Segundo consta no inquérito instaurado e nas matérias publicadas sobre a virada da noite de 2 para 3 de novembro de 1897, José Calhau e seus homens atacaram Barracão de Petrópolis, ateando fogo a várias residências, inclusive na casa do capitão Vivaldi e no cartório de registro – fato simbólico, pois representa o local de guarda oficial da documentação da população. Findo o ataque, o grupo comandado por José Calhau teria retornado para seus lugares de origem, e não se teve informações sobre prisão de nenhum dos participantes da sequência de crimes. Assim, quais fatos e personagens participaram da sequência de crimes que resultaram na morte à foice e à bala de 11 homens e em incêndios em Barracão de Petrópolis? (Müller, 1925). De acordo com os relatos descritos no inquérito policial-criminal instaurado e nas narrativas publicadas nos jornais, o evento ganhou grande repercussão. No relato introdutório do inquérito produzido, fica esclarecido que tão logo o governo
tomou conhecimento dos fatos ocorridos em Barracão de Petrópolis, o tenente Bueno, juntamente com mais oito praças e 12 voluntários, foi deslocado para o local. Contudo, como o número dos componentes do grupo de Calhau era superior ao contingente policial deslocado, prontamente foi enviado o major Joaquim Barbosa dos Santos. Ele partiu da capital Vitória para Barracão de Petrópolis em 6 de novembro, acompanhado de 27 homens: um oficial, um inferior e 25 praças. Seu objetivo era capturar os criminosos e abrir o inquérito policial-criminal. No inquérito, o escrivão descreve que, quando o major chegou ao local, “os bandidos já haviam partido” e atenta para o fato de que “os boatos que corriam sobre a morte do nosso correligionário Sr. Vivaldi eram falsos”5. De maneira sintomática, o escrivão enquadra o capitão Vivaldi na categoria de correligionário e o grupo de Calhau, na categoria de bandidos, expressando os indícios das tensões que teciam as interações sociais na sociedade à época e que nos dão pistas sobre como, possivelmente, o inquérito seria conduzido. Pode-se inferir, neste sentido, que considerar Vivaldi como um igual é fato que, possivelmente, está relacionado à sua história pregressa como capitão no exército italiano – e não importa porque renunciou a esta patente para (e) imigrar para o Brasil –, a ser alguém que tinha posses ou à óbvia constatação de ser branco. Neste caso, a ilusão da semelhança se apresentava na possibilidade da identidade profissional, financeira e racial, de modo que o fato de ser um imigrante não o diferenciava – não neste momento. Outro indício sobre as tensões existentes nas relações e interações sociais estabelecidas entre os moradores de Barracão de Petrópolis é que no inquérito o local é compreendido como “lugar de conflito” no momento em que a sequência de crimes acontece. E novamente permite que se produza uma disjunção analítica entre o ‘nós’, o branco, o produtor, a vítima do conflito, e o ‘outro’, o bandido, o mestiço, o preto, o mineiro, o criminoso.
Inquérito policial-criminal, do ano de 1897. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, Vitória (ES). Cx. Nº 78, catalogado sob nº 1414.
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Entrementes, para as cinco testemunhas intimadas a comparecer na Secretaria de Polícia do Estado do Espírito Santo com o fim de depor sobre o acontecimento, o delegado de polícia pergunta se elas atribuem ao crime um caráter de rivalidade entre nacionais e estrangeiros. E é a partir desta questão que se retoma o possível ponto no qual se desdobram os acontecimentos que resultaram no evento final. Antonio de Araujo Aguirre, engenheiro, de 36 anos, testemunha e residente em Barracão, assegura em seu depoimento que: segundo consta, os fatos criminosos que tiveram lugar no Barracão de Petrópolis tiveram a sua origem do seguinte: tendo sido assassinado em dias do mês de outubro próximo passado naquele lugar um tal João Rodrigues, os amigos do morto, reunidos para o enterro, afrontaram o assassino e pediram a sua punição. O Subdelegado de Polícia daquele distrito, depois de ter feito o corpo de delito e o respectivo inquérito, não encontrou nele o verdadeiro culpado. Segundo sabe, ele depoente, por ouvir dizer, foi o motivo que deu origem à desordem6.
Ao ser arguido pelo delegado Henrique Cancio Ribeiro, que considerava que os acontecimentos poderiam estar relacionados a rivalidades entre os imigrantes e os brasileiros, Antonio de Araujo Aguirre afiança que não. E acrescenta supor que possivelmente havia um chefe a guiar os homens no ordenamento do crime. Aqui cabe uma pergunta: por que Aguirre traz outra pessoa, um chefe, a comandar a ação? Ele enveredava por julgar que os homens que constituíam o grupo não teriam capacidade de pensar e de realizar tal sequência de crimes por conta própria ou pretendia apontar a possibilidade de coexistência de outras questões não reveladas claramente? Neste sentido, é interessante observar que tanto a negação do conflito racial quanto a arquitetura intelectual destes crimes aparecem também assinaladas como uma ação premeditada por outra pessoa nos depoimentos de Frittole Silvestre, autodenominado negociante e
lavrador, de 36 anos, e na de João Pagani, de 30 anos, negociante. Ambos, italianos. Contudo, como não foram encontrados novos documentos que possibilitassem análise complementar dos acontecimentos, estas questões são apontadas neste artigo, mas não são aprofundadas. Dois outros depoimentos lançam diverso olhar a estes fatos, remetendo o crime a questões ocorridas no passado entre os moradores do Barracão de Petrópolis e os trabalhadores mineiros que por ali transitavam. O testemunho de Antonio Tirone, italiano, de 33 anos, professor de ensino público, vai nesta direção. Ele considera que os problemas tenham se iniciado em 1885, por ocasião de uma festa religiosa, quando o capitão Vivaldi, subdelegado de polícia em exercício de Barracão, foi informado de que José Calhau, Missias e outros dois brasileiros pretendiam provocar problemas no lugar e de que, nas eleições federais, o local também foi ameaçado de invasão e de violência pelo mesmo grupo. Nada obstante, Tirone complementa em seu depoimento acreditar que provavelmente os crimes foram provocados pelo assassinato do mineiro João Rodrigues, possivelmente por um italiano. Esse assassinato, motivado por conflitos entre nacionais e estrangeiros, como questionado pelo delegado, é também ponto de vista compartilhado por outra testemunha, o advogado pernambucano Julio de Mello, de 27 anos: [...] que a causa dos lamentáveis fatos que tanto impressionaram a população deste Estado, e tão mal ressoaram lá fora, foram todos locais, provenientes de um fato anterior, como causa imediata a morte de um mineiro de nome João Rodrigues, a qual não foi averiguada e punida pela autoridade local. […] Disse ainda que o capitão Luiz Vivaldi foi até poucos dias antes dos fatos criminosos no Barracão de Petrópolis, Subdelegado de Polícia. Disse mais que acha injusta e irracional a pretensão de ver-se nestes fatos uma perseguição qualquer por espírito de nacionalidade aos italianos7.
Inquérito policial-criminal (1897, p. 13). Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, Vitória (ES). Cx. Nº 78, catalogado sob nº 1414. Inquérito policial-criminal (1897, p. 14). Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, Vitória (ES). Cx. Nº 78, catalogado sob nº 1414.
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Também no inquérito é reveladora a intencionalidade de todas as testemunhas em assegurar que o capitão Vivaldi era um eleitor e estimado. Tal sentimento fica exposto com clareza na resposta à pergunta feita pelo delegado Henrique Cancio Ribeiro a Antonio de Araujo Aguirre acerca da naturalidade de Vivaldi8. Aguirre responde que Vivaldi é brasileiro – mas que sabia que ele havia chegado ao Brasil com 11 anos – e que é um eleitor muito estimado na comarca de Santa Teresa. Neste sentido, ao analisarmos os testemunhos, verificamos que Vivaldi combinava várias categorias valorativas na sociedade local. Havia sido subdelegado, era italiano – um grupo de imigrantes que era desejado pela população, seja pelo simbólico que representava de ‘embranquecimento da raça’, tal como se propunha o projeto imigratório do período –, bem como se apresentava como alguém passível de proteger a população local. Mesmo que, a este, na ideia de proteger estivesse subentendido o uso da força e da violência física e simbólica. Com relação às testemunhas do inquérito, é importante analisar quem elas são e quais são as relações estabelecidas no interior do distrito de Barracão de Petrópolis. Principia-se pelas profissões das cinco testemunhas: engenheiro, negociante, professor, lavrador e advogado. Indício que nos oferece a possibilidade de pressupor que todos os depoentes compartilhavam minimamente um ambiente de proximidade e de trocas comerciais e sociais com Vivaldi. São assim participantes naturais e incluídos nas atividades do cotidiano em um pequeno distrito do interior. Também afeta este sentido de compartilhamento o sentimento de proteção mútua, até por estarem situados em uma comunidade mais isolada da capital. Desta forma, um capitão, que foi subdelegado, é uma personagem com grande poder simbólico, sendo importante para se preservar ou para se tomar como aliado. Tal perspectiva pode ser conferida em notícia no Jornal Commercio do Espírito Santo. Ao relatar os acontecimentos
ocorridos em Santa Teresa, em matéria intitulada “Assassinato, roubo e incêndio” (Assassinato..., 1897, p. 2), publicada em 6 de novembro de 1897, o periódico sustenta ser a falta de segurança um problema vivenciado tanto por moradores residentes no interior quanto na capital. Nesta perspectiva, é necessário também pensar os conflitos simbólicos e físicos instituídos dentro da lógica da discriminação que permeava as interações sociais no interior das colônias do Espírito Santo. As consequências reais desses processos muitas vezes eram levadas a trágicos acontecimentos, como os crimes cometidos por José Calhau e seu grupo. Além disso, tais decorrências promoviam a disseminação de um sentimento de intimidação no ambiente, tal como se anunciava em Barracão de Petrópolis. Desse modo, a violência tanto poderia coibir a mobilidade como provocar a autonomia e a ousadia dos diferentes sujeitos – o que, no caso, ocorre com José Calhau e seu grupo de homens. Eles se insurgiram e demonstraram aos diferentes atores que viviam no lugar sua condição de insubordinados às determinações racistas do capitão Vivaldi e dos demais moradores que pensavam da mesma forma, mas que, pelos depoimentos, não se revelavam tão abertamente.
À GUISA DE CONCLUSÃO Ao se assumir como propósito deste trabalho, a análise da sequência de crimes do distrito de Barracão de Petrópolis na perspectiva dos sujeitos históricos, tomou-se como pressuposto que havia um conflito na representação do nós – os italianos, ou até alargando este olhar a partir do depoimento do advogado pernambucano, os donos de alguma posse – e do outro – os brasileiros trabalhadores despossuídos de bens físicos. Nesta direção, este artigo fundamentou-se em uma perspectiva segundo a qual o Espírito Santo é tomado como palco de um contexto de colonização em disputas identitárias e simbólicas.
O delegado pergunta se a testemunha sabia que Vivaldi era estrangeiro.
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A análise da sequência de crimes no inquérito instaurado, as notícias publicadas e as pesquisas posteriores tornam patente como italianos, alemães, brasileiros, entre outros grupos assentados no lugar, são protagonistas em um ambiente conflagrado por conflitos diversos. Tais protagonistas vivenciaram um momento de tensão provocada por transformações exógenas ao microambiente, com alentada reverberação no ambiente interno da comunidade onde residiam, e duradouramente inscritas nas tensões sociopolíticas e econômicas do porvir. Por outro lado, concebem suas representações, afirmando a imagem de um nós e de um outro fundamentada em um contexto de ‘colonização’ do espaço no qual a discriminação e a exclusão social promovidas por um ideário racista e escravocrata privilegiaram imigrantes europeus em detrimento de brasileiros – promovendo, assim, uma inversão de quem é um estabelecido e de quem é o outsider, fazendo com que tais atores se orientassem por uma percepção de poder na qual o racismo se estabeleceu na tessitura das relações sociais. Assim, capitão Luiz Vivaldi e José Calhau configuraram o epicentro do conflito. Mas, em torno destes dois personagens, correlacionavam-se outras histórias e conflitos, bem como orbitavam inúmeros outros sujeitos em disputa em um período de extremas tensões, mediadas por questões políticas, sociais e econômicas. Era uma época em que se esgotava um modelo de governo, em que a escravidão mal havia chegado ao fim, em que nascia a República – e na qual o assentamento de milhares de imigrantes no Brasil e no Espírito Santo provocava transformações. Configurou-se também como um período no qual um trabalhador se assegurou de dizer a um capitão branco que seu racismo e suas intimidações não ficariam sem respostas. Foi sangrenta a reação dada por José Calhau e seu grupo à decisão de não se determinar a autoria de culpabilidade da morte de João Rodrigues, mas foi também um revide promovido, muito possivelmente,
com o apoio de muitos outros sujeitos, na tentativa de se apoderar de um espaço em construção.
AGRADECIMENTOS Esta pesquisa foi realizada com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo (FAPES). REFERÊNCIAS ALMADA, V. P. F. Estudos sobre estrutura agrária e cafeicultura no Espírito Santo. Vitória: SPDC/UFES, 1993. ALMADA, V. P. F. Escravismo e transição: o Espírito Santo (18501888). Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984. ASSASSINATO, roubo e incêndio. Jornal Commercio do Espírito Santo, Victória, p. 2, 6 nov. 1897. BANCK, Geert. Estratégias de sobrevivência em duas comunidades ítalo-capixabas. In: BANCK, Geert. Estudos em homenagem a Ceciliano Abel de Almeida. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1978. p. 65-84. BANCK, Geert, Caçar com gato: escassez de recursos e relações sociais no Espírito Santo. 1977. 198 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade de Amsterdam, Amsterdam, 2011. Traduzido do original holandês por Karel van den Bergen. BARTH, F. Grupos etnicos e suas fronteiras. In POUTIGNAT, P.; STREIFF-FENARD, Jocelyne (Ed.). Teorias da etnicidade: seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. São Paulo: UNESP, 1998. p. 187-227. BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 2002. BIASUTTI, Luiz Carlos; LOSS, Arlindo. São Roque do Canaã: uma história de fé, trabalho e vitórias. Belo Horizonte: O Lutador, 1999. BUSATTO, Luiz. Dilemas do imigrante italiano no Espírito Santo: a presença italiana no Brasil. Porto Alegre: Est Editora, 1990. v. II. CAMPOS, Adriana Pereira. Nascidos em cativeiro: dinâmica de reprodução endógena nas escravarias do Espírito Santo – século XIX. In: ENCONTRO DE ESCRAVIDÃO E LIBERDADE DO BRASIL MERIDIONAL, 5., 2011, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2011. p. 1-17. ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Racismo e antirracismo no Brasil. São Paulo: Editora 34, 2012.
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Reciprocidade e ação coletiva entre agricultores familiares no Pará Reciprocity and collective action among peasants in the State of Pará, Brazil Heribert SchmitzI, Dalva Maria da MotaII, Glaucia Macedo SousaI I II
Universidade Federal do Pará. Belém, Pará, Brasil
Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária - Amazônia Oriental. Belém, Pará, Brasil
Resumo: O objetivo do artigo é analisar a persistência da ação coletiva na comunidade Santa Ana, no município de Mãe do Rio, Pará. O quadro de análise insere-se no debate sobre a motivação para que pessoas se engajem voluntariamente em uma ação coletiva. Tratamos das relações de reciprocidade para as ações coletivas realizadas no âmbito das organizações dos agricultores familiares. A metodologia consistiu em um estudo de caso, com levantamento de dados secundários, observações dos eventos cooperativos dos grupos e entrevistas com moradores e lideranças. Os resultados demonstram que a ação coletiva assume diferentes formatos, a depender da existência ou não de relações de reciprocidade entre os participantes das organizações presentes em Santa Ana. Palavras-chave: Associativismo. Organização. Mutirão. Agricultura familiar. Amazônia. Abstract: The aim of this article is to analyze the persistence of collective action in the community Santa Ana, Mãe do Rio, Pará State, Brazil. The analytical framework is part of the debate on the motivation for people to engage voluntarily in collective action. In this article, the relationships of reciprocity to collective action undertaken within the scope of the peasants’ organizations are addressed. The methodology consisted of a case study, with collection of secondary data, observations of cooperative events realized by the groups and interviews with residents and leaders. The results demonstrate that collective action takes different shapes, depending on the existence of reciprocal relationships among the participants of these organizations in Santa Ana. Keywords: Associativism. Organization. Communal work exchange. Peasant agriculture. Amazon.
SCHMITZ, Heribert; MOTA, Dalva Maria da; SOUSA, Glaucia Macedo. Reciprocidade e ação coletiva entre agricultores familiares no Pará. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 12, n. 1, p. 201-220, jan.-abr. 2017. DOI: http://dx.doi.org/10. 1590/1981.81222017000100012. Autor para correspondência: Heribert Schmitz. Universidade Federal do Pará. Avenida Augusto Corrêa, s/n. Campus Universitário. Guamá. Belém, PA, Brasil. CEP 66075-110 (heri@zedat.fu-berlin.de). Recebido em 23/02/2016 Aprovado em 08/09/2016
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INTRODUÇÃO A efervescência de ações coletivas em uma comunidade rural1 no nordeste paraense chamou-nos a atenção na última década. Estudos mostram que ali a ação coletiva foi incentivada pela Igreja Católica, a qual, no intuito de evangelizar, apoiou a luta pela terra a partir dos anos 50 do século XX. Nesse processo, a Igreja apoiou-se em estruturas de reciprocidade, como o mutirão, uma forma de ação coletiva, já realizada pelos primeiros moradores locais. Na década de 80, no processo de abertura democrática, o Estado incentivou novas formas de ação coletiva por meio de associações. Nesse contexto, foi fundada a Associação Integrada de Piripindeua, em 1991, para viabilizar projetos e implementar o Assentamento Itabocal, onde se localiza a comunidade de Santa Ana, no município de Mãe do Rio, Pará (Figueira, 2009; Mota; Castro, 2010; Mota et al., 2011; Sousa, 2012). No Brasil, as associações têm sido consideradas como um sustentáculo para que a sociedade civil dispute e, ao mesmo tempo, compartilhe a responsabilidade pela implementação das políticas públicas (Ganança, 2006). Isso se intensificou a partir dos anos 90, com a concessão de crédito à agricultura familiar, o estímulo à aquisição coletiva de máquinas, equipamentos e pequenas agroindústrias, bem como a demarcação e a gestão de assentamentos, reservas extrativistas e territórios quilombolas. No estado do Pará, apesar da expressiva expansão das associações como uma forma de ação coletiva nas últimas duas décadas, estudos mostram as dificuldades enfrentadas pelas pessoas que tentam manter vivo o associativismo. Para Reis (2002), que estudou três empreendimentos coletivos do tipo associação e cooperativa, o associativismo não apresenta resultados positivos no meio rural paraense, apesar de haver iniciativas promissoras nos anos 80 e 90. As suas conclusões não diferem das observações de
Maneschy et al. (2010, p. 156), que, em estudo baseado na percepção dos dirigentes de 43 associações no nordeste paraense e na ilha do Marajó, constataram a presença de um certo “[...] artificialismo em sua constituição, conforme as queixas generalizadas dos líderes de que os sócios eram ausentes ou pouco atuantes”. As autoras afirmam ainda que “[...] as associações muitas vezes não passavam de grupos formais [...]”. Na análise de Farias (2009), em curto prazo, as estratégias individuais dos diferentes atores envolvidos no empreendimento coletivo prevalecem sobre a cooperação, o que corrobora as conclusões das autoras citadas. Nos casos por elas analisados, parecia predominar “[...] a atitude do free rider, o dilema da ação coletiva destacado por Olson [...]” (Maneschy et al., 2008, p. 104). Esses fatos reforçam a hipótese de Olson (1965) de que membros de um grupo com interesses comuns não agem para os promover, mesmo que pudessem viver em uma situação melhor quando os objetivos fossem alcançados. O principal motivo é a atitude do free rider (aproveitador, carona), que se beneficia dos resultados de um esforço conjunto, sem participar da ação coletiva, porque não pode ser excluído do usufruto do bem obtido. Na literatura revisada, são raros os estudos que mostram o êxito da ação coletiva no nordeste paraense. Ressalta-se o de Prado (2008), que, analisando uma cooperativa do ramo de plantas ornamentais e de hortaliças, concluiu que a cooperativa se destaca pela ativa participação dos sócios, embora a figura dominante do presidente reúna várias fontes de poder. A autora mostra a importância do poder como uma força estruturante da ação coletiva. Complementarmente, estudiosos levantam a hipótese de “[...] que onde há um tecido social ativo, com formas de cooperação anteriores à associação, elas tendem a apresentar um desempenho mais eficaz [...]” (Maneschy et al., 2010, p. 149). Lacerda e Malagodi (2007), analisando
Segundo Shore (1996, p. 115), o conceito de comunidade, no mínimo “[...] indica um grupo de pessoas dentro de uma área geográfica limitada que interagem dentro de instituições comuns e que possuem um senso comum de interdependência e integração”. O que importa não é o fato de viverem ou interagirem no mesmo território ou de disporem de uma estrutura, mas o “sentimento de comunidade” compartilhado por essas pessoas.
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assentamentos rurais na Paraíba, observam que, para o desenvolvimento da cooperação, é necessário trabalhar os seus níveis, partindo dos mais simples para os mais complexos. Para os autores, a ajuda entre vizinhos em caso de doença, o mutirão e a troca de dias de trabalho podem ser considerados formas de cooperação simples, enquanto associações e cooperativas são formas de cooperação complexas. Os estudos indicam que, além da existência de um interesse comum – explicando a motivação individual (Olson, 1965) –, a ação coletiva necessita de elementos estruturantes, que permitam aos participantes engajar-se – relações centrais que influem na coesão do coletivo (Ostrom, 2010). Entre esses elementos, inserese a reciprocidade, elemento comum de sociedades camponesas, como afirma Ellis (1993), um dos estudiosos do campesinato: Em graus variados, uma sociedade camponesa pode ter transações não mercantis, ou recíprocas, entre grupos domésticos camponeses. Reciprocidade refere-se a trocas que são culturalmente definidas, não replicáveis entre uma e a próxima troca, e envolve bens e serviços diferentes. Por exemplo, você me ajuda a construir minha casa e eu me comprometo a contribuir com um saco de mandioca para a escola da sua aldeia; você e seus parentes me ajudam na minha colheita e minha família oferece uma festa de cerveja para sua família extensa. Há um conteúdo econômico em tais trocas – há os custos de recursos no fornecimento de bens e serviços – mas o significado da reciprocidade é que essas transações não são valorizadas em preços de mercado (Ellis, 1993, p. 11).
Entre os camponeses, destaca-se o mutirão, compreendido como uma estrutura de reciprocidade baseada no princípio da dádiva (Mauss, 2003 [1925]). A relação entre ação coletiva e reciprocidade é tema de muitos autores que trabalham o campesinato ou a agricultura familiar, a exemplo de Sabourin (2009a).
No quadro apresentado, o caso da comunidade Santa Ana do Piripindeua, doravante denominada Santa Ana, nos últimos anos destaca-se no contexto de generalizada dificuldade de ação coletiva no nordeste paraense. As experiências dessa comunidade indicam que há um clima favorável à ação coletiva, com a existência de ações duradouras. Tal aspecto, que difere da situação geral do estado do Pará, levou-nos a buscar entender por que a ação coletiva persiste em Santa Ana. O trabalho enquadra-se, assim, em “[...] uma contestação crescente do raciocínio monológico que reduz toda a vida social a uma motivação utilitária e econômica, desprezando a complexidade dos demais fatores sociais [...]” (Martins; Cattani, 2014, p. 14-15).
A PESQUISA E O LUGAR A pesquisa foi realizada em Santa Ana2 (Figura 1), uma das comunidades do assentamento Itabocal, no município de Mãe do Rio, Pará. A metodologia consistiu em um estudo de caso, com levantamento de dados secundários e históricos (atas de reuniões do Clube de Mães e da Coordenação Regional) e pesquisa de campo, por meio de observações do cotidiano local e de eventos cooperativos do grupo. Trinta e duas entrevistas não diretivas foram realizadas com moradores e lideranças, envolvidos nas diferentes formas de ação coletiva. Comparamos a experiência da ação coletiva e a manifestação da reciprocidade por meio dos mutirões das organizações dos agricultores familiares, que se diferenciam quanto ao tempo de origem, ao objetivo da criação e à forma de funcionamento. Santa Ana foi fundada na década de 1930, com a chegada de migrantes – na sua maioria, de municípios próximos –, que buscavam áreas livres para viver. Eram atraídos pela facilidade de encontrar um novo lugar de morada e de plantio, por conta da existência, na época, de grandes extensões de terra devoluta no
Localizada na mesorregião do nordeste do estado do Pará, microrregião do Guamá. São 180 km da capital Belém até a principal via de acesso, a BR-010 (rodovia Belém-Brasília), entrando-se à esquerda no km 40, vicinal Santa Ana, por 10 km (Mota; Castro, 2010).
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Figura 1. Localização da comunidade Santa Ana, Mãe do Rio, Pará. Elaborado pelo Laboratório de Sensoriamento Remoto, Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) Amazônia Oriental.
Pará (Loureiro, 2004). A primeira geração de moradores usufruía de um espaço coberto de floresta, o que facilitava a obtenção, por meio do extrativismo vegetal e animal, de uma parte da dieta alimentar, complementada pela agricultura, com o uso do sistema de corte e queima3. Decisiva para a história do grupo foi a atuação evangelizadora da Igreja Católica, que incentivou a realização de mutirões para o benefício comum, nos anos 1950, e que foi importante na mobilização pela disputa da terra, nos anos 1970, com o apoio das Comunidades
Eclesiais de Base (CEB) e do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR), que se uniram contra um fazendeiro atraído pelos benefícios e pela abertura da Rodovia BelémBrasília. Destaca-se também a conquista da terra por meio da implementação do assentamento de reforma agrária Itabocal, nos anos 90. Atualmente, coexistem, nesse lugar, várias formas de ação coletiva, abrigadas no Conselho da Comunidade, Clube de Mães, Clube Agrícola, Coordenação Regional, Associação Integrada de Piripindeua e time de futebol.
“Na maioria dos estabelecimentos da agricultura familiar da Amazônia, é usado o sistema tradicional da agricultura, chamado de sistema corte e queima, caracterizado pelo uso de uma área [a roça] por um a dois anos, seguido por vários anos de pousio. Para esta forma de agricultura migratória com a rotação da área cultivada dentro dos limites do estabelecimento ocupado continuamente pelo agricultor, é usada a expressão agricultura itinerante. Vale ressaltar que este sistema se refere apenas às culturas anuais, enquanto no mesmo estabelecimento outras áreas podem ser usadas de forma permanente com culturas perenes e pasto” (Schmitz, 2007, p. 46).
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Em Santa Ana, vivem cerca de 140 famílias, dedicadas predominantemente à agricultura, mas também a atividades assalariadas no local e nos arredores. As práticas religiosas são bem valorizadas e explicitam divisões internas, entre fiéis católicos e evangélicos4. Existem ainda outras divisões: entre os fundadores e os recém-chegados, entre aqueles que residem no centro da vila e nos arredores, entre os que pertencem simultaneamente a várias organizações ou apenas à Associação Integrada de Piripindeua.
RELAÇÃO ENTRE AÇÃO COLETIVA E RECIPROCIDADE A ação coletiva pode ser compreendida como o esforço de um conjunto de pessoas para atingir um objetivo comum. Para Cattani (2011, p. 15), “ação coletiva designa toda espécie de ato concertado por grupos ou categorias sociais visando alcançar um fim determinado”. Segundo esse autor, a ação coletiva inclui a possibilidade de um poder de decisão e a capacidade de agir. Para o teórico de movimentos sociais Tilly (1981, p. 17), há ação coletiva em “[...] todas as ocasiões em que grupos de pessoas mobilizam recursos, incluindo seus próprios esforços, para alcançar objetivos comuns”, ideia à qual nos afiliamos neste artigo. Por um lado, a ação coletiva visa a tentar resolver uma causa pontual e, para isso, não requer a existência anterior de uma união profunda, de uma confiança ou de um alinhamento ideológico entre os participantes. Por outro lado, pode se tratar de uma cooperação em longo prazo, como em uma empresa, que reúne pessoas com interesses diferentes e até divergentes. Em muitos casos, então, a cooperação pode ser considerada como um sinônimo da ação coletiva, especialmente quando se
trata de ações coletivas duradouras5. Podemos identificar ações coletivas que são resultado de uma mobilização espontânea ou seguem regras consuetudinárias, sem dispor de um centro de decisão ou de uma fonte visível de iniciativa, e outras que precisam mais do poder como força estruturante (Crozier; Friedberg, 1977). O objetivo comum ou, em alguns casos, o objeto comum é uma condição para o estabelecimento de relações de poder, a emergência de conflitos, a possibilidade de negociação e, certamente, a ação coletiva. Mas a mera existência de objetivos comuns – considerados também fins comuns ou interesses comuns – ou a existência de um conjunto de pessoas, um grupo, não caracteriza ainda uma ação coletiva, a qual se constitui apenas a partir de uma ação conjunta, resultado de um engajamento voluntário de indivíduos. A literatura especializada preocupa-se em determinar sob que condições indivíduos isolados admitem engajar-se numa ação conjunta para fortalecer ou defender sua situação. Apesar de muitos cientistas sociais terem discutido esta questão – especialmente Karl Marx e Max Weber –, a referência básica no debate moderno é o texto de Olson (1965) e o conceito do ‘aproveitador’ (free rider) (Urry, 1996, p. 2).
Olson (1965) foi um dos idealizadores da ‘Escolha Racional’, uma teoria que tenta explicar fenômenos sociais à luz da preferência de indivíduos racionais, que seguem a lógica utilitarista da relação custo-benefício, na tentativa de maximizar a satisfação dessa preferência. No livro “A lógica da ação coletiva” (Olson, 1965), ele mostrou que o engajamento das pessoas não é uma coisa natural, um fato dado, mas, ao contrário, é pouco provável. Isso porque, em muitos casos, o indivíduo pode compartilhar
Os evangélicos chegaram apenas no início da década de 1970, com poucas famílias. Aumentaram posteriormente, porque várias pessoas se converteram, mas são minoria nessa comunidade. 5 Em geral, consideramos a cooperação como uma forma de ação coletiva. Segundo William (1988, p. 7), “dois agentes cooperam quando eles se engajam em um empreendimento comum para cujo resultado as ações de cada um são necessárias, e onde a ação necessária de pelo menos um deles não está sob o controle imediato do outro”. Gambetta (1996) relaciona a cooperação à confiança e à exigência de que os envolvidos estejam de acordo com um conjunto de regras, que não necessariamente são resultado de uma comunicação, como as regras consuetudinárias. 4
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os benefícios, mesmo sem participar do esforço para conquistá-los. O autor cunhou a expressão free rider (ou carona) para designar esse ‘aproveitador’6. A argumentação de Olson (1965) é principalmente econômica e baseia-se no raciocínio de uma análise quantitativa de custo-benefício entre o ‘investimento’ necessário para o alcance de um bem e o benefício recebido7. Olson (1998, p. 5), que não define a ação coletiva no seu livro8, enfatiza o papel da organização, afirmando que “[...] muita da ação (ainda que, definitivamente, nem toda) levada a cabo por um grupo ou em nome de um grupo de indivíduos é realizada através de organizações [...]”. A ação coletiva é realizada, principalmente, quando um determinado objetivo comum a um grupo de indivíduos não pode ser alcançado por meio de uma ação individual. “Não se justifica, obviamente, uma organização, se a ação individual não organizada pode servir os interesses do indivíduo tão bem ou melhor do que a organização [...]” (Olson, 1998, p. 7). Esse é também o caso na comunidade estudada, que desenvolve ações organizadas por meio de mutirão e diferentes associações. Pela sua estrutura, a organização facilita o desenvolvimento de ações coletivas, mas coloca também para os seus líderes o desafio de coordenar o comportamento de um determinado número de atores, cuja cooperação é indispensável, mas, por eles terem certo grau de autonomia, podem seguir interesses que não são necessariamente convergentes. Tanto Olson (1998) como Crozier e Friedberg (1977) identificam, na organização, a existência de grupos divididos “[...] em subgrupos ou facções que se opõem mutualmente” (Olson, 1998, p. 8).
Olson ainda constata no seu trabalho que a presença de uma liderança forte – um “entrepreneur político”, em que se confia – contribui para reduzir os custos de transação e, consequentemente, a necessidade de se engajar dos demais atores. As conclusões de Olson (1965), ainda reforçadas pela ideia da “tragédia dos bens comuns”, defendida por Hardin (1968), e pelo exemplo do jogo do dilema dos prisioneiros, indicam que os indivíduos defenderiam preferencialmente seus próprios interesses em curto prazo e, consequentemente, seria impossível a ação coletiva. A constatação significou um grande desafio para os estudiosos e colocou o estudo da ação coletiva na agenda dos pesquisadores, que tentam, principalmente, responder à pergunta: por que as pessoas se engajam? Ao mesmo tempo, e no contexto em que Olson (1965) apresentou a sua tese, aconteceram mobilizações efervescentes pelos movimentos sociais contra a guerra no Vietnã, em favor dos direitos civis e do feminismo. Esses movimentos de “temas distantes” (Rucht, 2000) não lutaram diretamente por benefícios para os seus participantes9. Olson (1998) reconheceu os limites da sua teoria. Para isso, refere-se à comparação de Weber (1994) do “grupo associativo”, que baseia sua ação em motivações racionais, com o “grupo de comunhão” (organizações comunais, religiosas e filantrópicas). “A lógica da teoria aqui desenvolvida [...] não se adapta, facilmente, ao estudo desses grupos” (Olson, 1998, p. 6). Para superar os limites da abordagem utilitarista, que parte da maximização de benefícios a curto prazo, encontramos, em princípio, duas saídas importantes para
Melucci (1988, p. 339) considera o free rider “[...] um termo útil de comparação neste contexto. Este argumento tem inegável peso crítico vis-à-vis à suposição ingênua que a ação coletiva deriva do interesse comum, objetivo de vários indivíduos. Sua contribuição substantiva, no entanto, não vai além desta função crítica”. 7 Na verdade, na maioria das decisões, as pessoas não conseguem fazer realmente esse cálculo racional, mas partem de informações incompletas. 8 Segundo a interpretação de Sabourin e Lazzaretti (2002, p. 72), para Olson (1965), a ação coletiva seria toda “ação de um grupo para a produção ou a obtenção de um bem público ou coletivo”, estando ligada, principalmente, a grupos de interesse e de pressão (lobbies). 9 Segundo Cohen (1985), apenas a consideração de fatores como solidariedade, identidade coletiva, consciência ou ideologia permitiria explicar o engajamento por motivos que não trazem benefícios diretos para os indivíduos, a exemplo dos Novos Movimentos Sociais. 6
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esse “dilema da ação coletiva”: uma dentro da mesma abordagem da ação individual racional, por meio de modelos mais complexos, utilizando, entre outros, a teoria dos jogos; outra saída refere-se a abordagens baseadas em normas como produto da coletividade. Ambas as abordagens identificam a importância da reciprocidade para a emergência da ação coletiva. Foi, principalmente, Axelrod (1984) quem defendeu o papel da reciprocidade como elemento-chave para explicar a existência da ação coletiva, criticando o uso do jogo do dilema dos prisioneiros como sendo “de um tiro só”10. “Enquanto a interação não é repetida, a cooperação é muito difícil. [...] É essa interação contínua que torna possível a cooperação com base na reciprocidade” (Axelrod, 1984, p. 125). Axelrod propôs várias medidas para promover a cooperação, como aumentar o número das interações entre os envolvidos e ensinar a reciprocidade, para, assim, alcançar um benefício maior para eles. Nessa vertente, que recorre à teoria de jogos, Ostrom (1990) tem um papel central. Ela mostrou a capacidade tanto de pequenos grupos locais quanto de populações maiores de criar instituições para elaborar as regras necessárias e garantir a cooperação, a fim de alcançar maiores benefícios, além de identificar a existência de experiências duradouras de ação coletiva para a gestão de bens comuns. Nos últimos anos, Ostrom (1998, 2010) propõe modelos mais complexos para chegar a uma teoria mais ampla do comportamento racional, considerando a reciprocidade como um elemento-chave para a emergência da ação coletiva. Ela indica uma série de variáveis estruturais que podem influenciar os resultados do jogo, como tamanho do grupo, heterogeneidade, situação de interconhecimento, normas compartilhadas, informação sobre comportamento anterior. Reputação e confiança das pessoas reforçam-se em função do comportamento
recíproco em interações multiplicadas e tornam mais provável a disposição para a ação coletiva11. Três questões parecem importantes nessas abordagens: tanto Axelrod quanto Ostrom desenvolveram modelos que estimam a probabilidade da ação coletiva a partir de resultados em formas de benefícios individuais. Ao contrário de Olson (1965), reconhecem a importância de normas. Além disso, em ambos os casos, a existência de um grupo com tamanho reduzido e com comunicação ‘face a face’ facilita a ação coletiva. Uma lógica diferente prevalece nos estudos da reciprocidade, que têm na base a obra de Mauss (2003 [1925]). Ele estudou a reciprocidade em sociedades ditas primitivas e arcaicas, contribuindo, assim, para reafirmar – e, algumas vezes, negar – a existência de regras e forças que condensam os laços coletivos entre clãs, tribos, famílias, em torno das trocas que, às vezes, podem assumir a forma de simples presentes. Esses elementos, conhecidos como o princípio da dádiva, compõem-se, segundo Mauss (2003 [1925]), de três atos – dar, receber e retribuir –, os quais contribuem para criar e solidificar relações entre grupos e, quando desconsiderados, podem também desencadear guerras nas sociedades antigas ou ‘primitivas’ estudadas. “Recusar dar, negligenciar convidar, assim como recusar receber, equivale a declarar guerra; é recusar a aliança e a comunhão” (Mauss, 2003 [1925], p. 201-202). Diferente dos autores citados anteriormente, nos casos estudados, “[...] não são indivíduos, são coletividades que se obrigam mutuamente, trocam e contratam” (Mauss, 2003 [1925], p. 190). Para Mauss (2003 [1925], p. 188-189), esses princípios ainda funcionam hoje e ele acreditou ter “[...] encontrado uma das rochas humanas sobre as quais são construídas nossas sociedades [...]”. Polanyi (2000) destaca também a importância da reciprocidade nas sociedades modernas como um dos
Robert Axelrod (1984) e Russell Hardin (1982) criticaram a ideia do One-move ou One-shot prisoner’s dilemma, apresentada para argumentar contra a probabilidade da ação coletiva. Ver também Ostrom (1998). 11 Para mais informações sobre esses modelos, ver Ostrom (1998, 2010). Ostrom refere-se à reciprocidade como “uma classe de normas especificamente importante” (1998, p. 10). 10
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“comportamentos econômicos”, junto com o mercado, a redistribuição e a economia doméstica. Sabourin (2009b, p. 13), que estudou a reciprocidade em vários países da África, da América Latina (inclusive no Brasil) e na França, no âmbito do campesinato, afirma, referindo-se explicitamente a Polanyi (2000), que a reciprocidade é “[...] não apenas uma categoria econômica diferente da troca de mercadorias [...]”, mas também um princípio econômico oposto à troca mercantil12. Muito além da troca material, a reciprocidade na forma de dádiva visa à criação de relações de amizade e à construção de alianças. Sabourin (2012, p. 55) explica que o princípio de reciprocidade, do ponto de vista antropológico, corresponde “[...] a um ato reflexivo entre sujeitos, a uma relação intersubjetiva, e não a uma simples permuta de bens ou de objetos, como pode ser, ao limite, o caso da troca”. Esse princípio, segundo o autor, caracteriza “[...] relações e prestações que não impliquem a noção de cálculo ou que não privilegiem apenas a satisfação de interesses materiais privados que correspondem bem ao espírito do princípio de troca” (Sabourin, 2012, p. 56). Alguns autores relacionam a reciprocidade à solidariedade, como Castel (2003); para outros, as duas categorias são sinônimas. Para Sabourin (2012, p. 55), a “reciprocidade é sinônimo de solidariedade (dependência mútua, fato de ser solidário) ou de mutualidade”. Já outros autores, como Altvater (2006), Crow (2002) ou Melucci (1988), propõem uma definição de solidariedade sem estabelecer uma relação estreita com a reciprocidade; logo, para eles, a solidariedade é uma categoria independente. Por isso, para o caso da comunidade aqui estudada, usamos a definição de Alberti e Mayer (1974, p. 21), que não recorrem a outras noções para explicar a reciprocidade:
Definimos a reciprocidade como o intercâmbio normativo e contínuo de bens e serviços entre pessoas conhecidas entre si, no qual entre uma oferta e sua devolução deve decorrer em certo tempo, e o processo de negociação das partes, ao invés de ser um regateio aberto, é bastante encoberto por formas de comportamento cerimonial. As partes que interagem podem ser tanto pessoas físicas como instituições.
A relação entre ação coletiva e reciprocidade é tratada, explicitamente, por Axelrod (1984) e Ostrom (2010), como mostramos anteriormente. Esses autores relativizam os trabalhos de Olson (1965) e Hardin (1968), que têm o mérito de introduzir o estudo da problemática da ação coletiva na agenda dos pesquisadores. No entanto, são necessárias também perspectivas teóricas que vão além das teorias do comportamento racional de indivíduos, mesmo quando estes consideram no seu ‘cálculo’ normas como a reciprocidade (Ostrom, 1998, 2010). Mauss (2003 [1925], p. 306) traz essa perspectiva, diferente da “[...] noção de interesse, de busca individual do útil”. Resumindo, a diferença entre a teoria do comportamento racional e da teoria da dádiva é o sentido que as pessoas atribuem a seu comportamento. Mesmo no caso dos modelos complexos, que superam a ideia da maximização dos benefícios a curto prazo, o objetivo é obter um benefício individual. No caso da dádiva, o que importa é a criação de amizades, alianças e vínculos permanentes, além de conduta generosa e do prestígio que pode se ganhar com isso. Além disso, é tema de muitos autores que trabalham sob uma perspectiva “antiutilitarista” sobre o campesinato ou a agricultura familiar13, relevante para o nosso estudo. Sabourin (2012, p. 53) destaca a “[...] existência estruturante de relações de reciprocidade no mundo rural brasileiro”. Relaciona as formas de organização camponesas com as estruturas de reciprocidade existentes tanto na produção
Sabourin (2009b, p. 53) considera apenas “[...] aqueles autores que reconhecem a existência de relações de reciprocidade e de dom (dádiva) como princípio econômico diferente da troca”. Essa restrição deve-se, entre outras causas, a divergências profundas na interpretação da dádiva, a partir da introdução que Claude Lévi-Strauss escreveu para o ensaio sobre a dádiva de Mauss (2003 [1925]). Ver, entre outros autores, Godelier (2001), Lévi-Strauss (2003) e Sigaud (1999). 13 No âmbito deste artigo, tratamos campesinato e agricultura familiar como sinônimos. 12
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quanto na vida familiar e doméstica, como as práticas da ajuda mútua e do compartilhamento de recursos comuns (Sabourin, 2009a).
AÇÃO COLETIVA COM E SEM RECIPROCIDADE? Eis as organizações existentes em Santa Ana, por data de fundação: o Conselho da Comunidade, o Clube de Mães, o Clube Agrícola, a Associação Integrada de Piripindeua e a Coordenação Regional (Quadro 1). Com exceção da Associação, todas foram fundadas por incentivo da Igreja Católica, cujo propósito geral era a evangelização. O Conselho da Comunidade destaca-se por ter sido a primeira iniciativa evangelizadora e de congregação de lideranças católicas residentes na localidade. Os clubes tratam de iniciativas de produção e atividades domésticas, interpretadas como de homens ou de mulheres e, consequentemente, reforçam os papéis segundo os quais, para garantir o bem estar da família, compete ao homem – o trabalho fora de
casa – e à mulher – as tarefas domésticas. A Associação, entretanto, é oriunda de iniciativas vinculadas à execução de políticas públicas para os assentados. A Coordenação Regional é a organização mais recente, e visa a estabelecer o contato entre todos os católicos que fazem parte do assentamento. Os processos eletivos nas organizações criadas no âmbito da Igreja Católica eram realizados pelo grupo a partir da avaliação da participação do agricultor no mutirão e do cumprimento das suas obrigações cristãs; na Associação, diferentemente, levam-se em consideração os preceitos do regimento registrado em cartório. As organizações diferenciam-se pelo momento histórico em que foram fundadas, pela afiliação religiosa dos participantes, pelos propósitos e pela abrangência de atuação. A Associação Integrada de Piripindeua, criada para viabilizar projetos e implementar o assentamento, é a única que reúne católicos e evangélicos e pretende ser dissociada da vida religiosa da comunidade14. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) exigiu a criação
Quadro 1. As organizações em Santa Ana. Nome
Período de fundação
Características (membros, dinâmica)
Atividades
Conselho da Comunidade
Década de 50
Composto pelas lideranças dos grupos religiosos (católicos), 23 participantes
Definir demandas relacionadas à Igreja; controlar as atividades da comunidade e a escolha dos dirigentes das organizações
Clube de Mães
1975
Mulheres que têm família e são mães (católicas), 22 participantes
Realizar mutirão para as festas religiosas e cívicas; confeccionar artesanato
Clube Agrícola
1975
Homens que têm família e são pais (católicos), 45 participantes
Realizar mutirão em torno das atividades produtivas (roça, criação de peixes e gado)
Associação Integrada de Piripindeua
1991
Principalmente homens que têm lotes (católicos e evangélicos), 54 sócios iniciais, atualmente 26 sócios, 12 participantes ativos
Conquistar benefícios estatais para a comunidade e para os lotes individuais
Coordenação Regional
2001
Lideranças católicas de Santa Ana e de comunidades vizinhas, 12 participantes
Ajudar agricultores que passam por dificuldades e organizar festas religiosas, como Corpus Christi
O estudo de caso reforça as afirmações de Hébette (2002), quanto à forte manifestação do campo religioso no espaço social dos agricultores, cujas divisões e tensões aparecem também na Associação. Os evangélicos reclamavam que os cargos que ocupavam eram figurativos, pois o controle dessa organização era dos católicos.
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de uma associação para viabilizar os processos referentes à posse legal das terras e conceder os benefícios das políticas públicas ligadas à reforma agrária. O Conselho da Comunidade e a Coordenação Regional destacam-se por sua afinidade com as atividades da Igreja Católica. Assumem a coordenação e a organização das ações coletivas dos clubes, ou seja, o controle sobre as atividades da comunidade. O controle refere-se à intervenção da Igreja nas organizações e, consequentemente, na vida das pessoas. É o caso da metodologia adotada pelo coordenador comunitário e regional nas reuniões, que têm início com algo que lembra uma missa – as pessoas estendem as mãos umas às outras para desejar a paz de Cristo e, em seguida, todos rezam uma oração. Além disso, existe uma cobrança para que os participantes dessas organizações sejam batizados e crismados. O objetivo dessas organizações é o de aproximar os participantes da Igreja e, ao mesmo tempo, mantê-los ativos nas atividades eclesiais. Com o mesmo propósito, os clubes realizam atividades que, frequentemente, estão relacionadas com os objetivos da Igreja. Caso da arrecadação de verbas para reformas da capela e do esforço para a realização da festa de Santa Ana, em que se disseminam os valores da Igreja por meio da história de vida da Sagrada Família, cada membro representando o comportamento cristão desejado para mães, avós e pais. O controle sobre as pessoas por meio das organizações locais pôde ser sentido por ocasião da eleição do coordenador da Comunidade: no decorrer de uma missa, o padre pediu aos fiéis que escolhessem alguém que não estivesse afastado das obrigações cristãs. O escolhido pode até não atender às exigências, mas se espera que ele se aproxime das expectativas, tanto da Igreja como dos próprios fiéis, que assumem o papel de controladores entre si. A existência do Conselho da Comunidade e da Coordenação Regional mostra a importância das estruturas de poder para garantir a ação coletiva na comunidade –
e nas comunidades vizinhas, no caso da Coordenação Regional. Sua atuação contrasta com a realização voluntária dos mutirões dentro dos clubes e remete à necessidade de controle da Igreja Católica, organizada de forma hierárquica. Assim, o Conselho e a Coordenação podem ser considerados estruturas de articulação entre a Igreja e a comunidade. Além disso, a Coordenação Regional desenvolve também atividades, como a organização da festa de Corpus Christi, e ações do tipo reciprocidade unilateral, para ajudar pessoas em situação de dificuldades15.
OS MUTIRÕES: REINVENÇÃO DA TRADIÇÃO POR MEIO DAS ORGANIZAÇÕES CATÓLICAS Em Santa Ana, os agricultores familiares empreendem a ação coletiva principalmente por meio dos mutirões. A Igreja Católica apoiou-se nessas estruturas de reciprocidade para incentivar a criação de organizações nos anos 50 do século XX. Segundo Boff (1980, p. 26), a Igreja adotava a postura de assumir “[...] as formas de associação que o povo desenvolveu historicamente [...]”, entre as quais se destaca o mutirão, considerado como uma das práticas coletivas mais utilizadas entre os camponeses (Lacerda; Malagodi, 2007), segundo princípios de reciprocidade. Em tempos diferentes, Candido (2001) e Abramovay (1981) definiram o que entendem por mutirão. Para o primeiro, trata-se de uma relação entre vizinhos: Consiste essencialmente na reunião de vizinhos, convocados por um deles, a fim de ajudá-lo a efetuar determinado trabalho: derrubada, roçada, plantio, limpa, colheita, malhação, construção de casa, fiação etc. Geralmente os vizinhos são convocados e o beneficiário lhes oferece alimento e uma festa, que encerre o trabalho (Candido, 2001, p. 88).
De modo mais geral, Abramovay (1981, p. 41) define o mutirão como “uma relação de troca que aparece como relação de ajuda mútua, uma manifestação
No caso estudado, a reciprocidade unilateral é aparente, visto que, para o mutirão nas organizações religiosas, leva-se em consideração a participação de terceiros (Deus e Santa Ana) para a realização da retribuição.
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de solidariedade, de unidade e de comunhão do grupo que repousa sobre a troca simples de trabalho, sobre o princípio da reciprocidade”. Em ambos os casos, não se trata de uma simples troca, pois a relação de reciprocidade reúne o grupo e é o lastro sobre o qual se desenvolvem as ações coletivas. Sabourin (2009a, p. 63) entende o mutirão como uma ajuda mútua que “[...] designa dois tipos de cooperação camponesa de origem autóctone”. O primeiro consiste em convites feitos por vizinhos para que sejam realizados trabalhos em seu benefício; no decorrer do tempo, os convites são retribuídos, até que seja atendido todo o grupo de famílias envolvidas, o que lembra a noção apresentada por Candido (2001) e Abramovay (1981). O segundo refere-se a esforços em benefício comum, como a construção de uma escola, a manutenção de uma estrada ou a realização de uma festa. Sabourin (2009a, p. 67) explica as estruturas elementares da reciprocidade e afirma que “a ajuda mútua corresponde a pelo menos três tipos de estruturas elementares de reciprocidade”: a) a reciprocidade binária; b) o compartilhamento de trabalho; c) a reciprocidade em forma de estrela. Essas estruturas, sistematizadas por Temple (2003), produzem sentimentos e valores por meio das relações humanas vinculadas a cada categoria de estrutura. Nas suas definições do mutirão, os autores destacam diferentes princípios. Enquanto Candido (2001) refere-se à ajuda, Abramovay (1981) e Sabourin (2009a) salientam nitidamente o princípio da reciprocidade inerente a essa forma de ajuda mútua, que impulsiona os camponeses a mobilizarem os seus próprios esforços para um objetivo comum – fundamento de uma ação coletiva. Em Santa Ana, a Igreja Católica valorizou o mutirão, iniciativa local de ação coletiva, tradicionalmente realizada pelos agricultores quando se estabeleciam na condição de posseiros, nos primeiros anos de vida no local. A abertura de áreas, a construção de residências e de casas de farinha com materiais locais (‘barracos’) e o plantio e as colheitas dos primeiros produtos da roça foram
feitos por meio de mutirões, cuja estrutura central é formada pela família e pelo princípio da reciprocidade. A Igreja não só valoriza essas iniciativas tradicionais, como também as inova, estruturando o mutirão no âmbito de organizações (Conselho da Comunidade, clubes e Coordenação Regional) e incentivando a divisão sexual nessas organizações, assim como a distinção entre as pessoas que construíram famílias e os jovens, que participam na condição de ajudantes e aprendizes dos pais. Com base na indicação de estudiosos da reciprocidade, identificamos três tipos de mutirão em Santa Ana: a) o “mutirão clássico” (Abramovay, 1981; Candido, 2001); b) o “mutirão em benefício comum” (Sabourin, 2009a; Temple, 2003); e c) o “mutirão unilateral”, sem retribuição pela pessoa ou pelo grupo beneficiado (Sabourin, 2009a; Veiga; Albaladejo, 2002). Cada um desses tipos engendra reciprocidades que podem ter expressões mais complexas (ternária, intergeracional etc.), as quais não são objeto deste artigo. Uma das principais formas de ação coletiva realizada no Clube de Mães e no Clube Agrícola é o “mutirão clássico”, mencionado por Abramovay (1981) e por Candido (2001). Trata-se de uma ajuda mútua para efetuar trabalhos, realizada informalmente entre vizinhos, convocados por um deles e retribuídos posteriormente, atendendo, assim, a todo o grupo de famílias envolvidas. Quando mais de duas famílias participam, o mutirão pode ser considerado como um compartilhamento de trabalho (Sabourin, 2009a; Temple, 2003). Esta última forma é desenvolvida no Clube de Mães, quando as mulheres se reúnem para a confecção de artesanato. Mas é principalmente no Clube Agrícola que se realiza o ‘mutirão clássico’. Esse grupo, do qual hoje apenas uma mulher participa, produz coletivamente feijão, milho e mandioca, e desenvolve a piscicultura e a criação de bovinos. Para todas as atividades produtivas, existem espaços de propriedade e usos comuns: um prédio do Clube de Mães; uma área com o tanque e um barracão para a piscicultura; dois lotes, um para as roças e outro para a criação de bovinos.
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As atividades são organizadas em reuniões, realizadas às quintas-feiras, quando são discutidos o andamento das atividades, o planejamento do trabalho, a comercialização e a distribuição do trabalho coletivo no regime de mutirão. Apenas no caso da piscicultura, equipes revezam-se continuamente nos períodos noturnos, para evitar o roubo dos peixes. O resultado do trabalho é dividido entre os participantes, sob a forma de produtos ou em dinheiro, oriundo da venda, segundo proporcionalidades alusivas à participação, discutidas antecipadamente, o que, em princípio, exclui a figura do aproveitador. Os vínculos entre os participantes extrapolam o interesse produtivo. Muitos são parentes e vizinhos de longa data e consideram as reuniões um espaço de sociabilidade, no qual, além das questões produtivas, são tratados temas que afetam a vida local. Conselhos, opiniões e piadas pontuam os diálogos. Não obstante a rotina que sustenta o mutirão, reclamações são registradas se a participação de alguém é descontinuada. Para evitar a coerção, alguns membros substituem a sua presença pela dos filhos. Mas sanções são postas em prática por ocasião da divisão dos bens, subtraindo parte daqueles que mais faltam, segundo cálculos feitos coletivamente, como também sugere Ostrom (1990, p. 90) nos seus “princípios de instituições de sistemas duradouros”. O ‘mutirão em benefício comum’ consiste em ajuda mútua para a construção de uma escola, a manutenção de uma estrada ou a realização de uma festa. É incentivado por organizações, criadas com base no princípio da reciprocidade. Trata-se de reciprocidade em forma de estrela, porque conta com a mobilização de famílias da comunidade para um benefício comum (Sabourin, 2009a; Temple, 2003). As festas realizadas pelo Clube de Mães são mutirões em benefício comum destinados à comemoração do dia das mães, dos pais, das crianças e dos avós. As festas religiosas figuram entre as realizações que mais demandam trabalho. Na festa da padroeira da localidade, Santa Ana, são nove noites de novena. Os preparativos exigem uma série de doações dos envolvidos. Além disso,
os dirigentes preparam ofícios, encaminhados à prefeitura municipal, com a finalidade de garantir a recuperação das estradas. Para a realização de um leilão, arrecadam objetos e solicitam a doação de outros (bicicleta, faqueiro, toalha de mesa etc.) à prefeitura, como também aos funcionários da escola da localidade. Essa relação com a prefeitura, no entanto, pode criar uma forma de reciprocidade assimétrica, em que um dá mais, que é a base de uma relação clientelista (Veiga; Albaladejo, 2002). Na semana da festividade em homenagem à padroeira, as integrantes do Clube de Mães trabalham intensamente, com a ajuda de crianças e adolescentes da localidade e até de moradores que trabalham fora da comunidade. Durante o dia, dividem-se em equipes para decorar o salão comunitário da igreja e preparar as guloseimas (bolo, tacacá, vatapá, maniçoba, caruru, frango assado etc.). À noite, depois da reza, durante a festividade da padroeira, elas vendem o alimento. Nos últimos dois dias, as mulheres fazem um bolo de quatro metros para a confraternização das avós, cuja padroeira é Santa Ana. Na maioria das vezes, o retorno das doações (a retribuição) ocorre ainda durante a festa. No leilão que acontece à noite, depois da reza, o responsável pelo som anuncia os nomes dos doadores dos objetos e agradece o gesto. Para os agricultores que ofertam um produto do lote, sem dúvida, esse é o momento em que se realiza a retribuição, que não se traduz em um bem material, mas assume uma forma simbólica, conferindo prestígio pessoal. Da mesma maneira, durante a procissão que encerra o evento, há uma parada dos peregrinos em frente ao Clube de Mães. Nesse momento, as mulheres que lá trabalham param as atividades e ficam observando a procissão pelas janelas ou pela porta do quintal do Clube, ouvindo a senhora responsável pelos cânticos e pelos sermões, que dirige uma mensagem às que trabalharam durante todo o evento. As palavras exaltam as pessoas que cooperaram para a realização da festividade. A circulação de palavras e gestos significa uma retribuição para essas pessoas. A realização das festas promove a coesão social, aprofunda
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a relação com o lugar, produz a responsabilidade com o coletivo, cria confiança e confirma vínculos sociais. Lima Filho (2014, p. VIII), em um estudo sobre as “festas de tradição” nas comunidades quilombolas da ilha do Marajó, no Pará, interpreta essas festas “[...] como dádivas que ao circularem entre comunidades geram vínculos fortes, laços de confiança e fidelidade e alianças políticas entre as mesmas”. Mayer (2004), em contexto andino, inclui também a preparação de festas como “serviços pessoais”, que, no caso de uma troca simétrica entre iguais, requerem a retribuição em algum momento posterior. No último dia dessa festa, é oferecido um jantar na sede do Clube de Mães, do qual participam apenas as pessoas que trabalharam na festa da padroeira: adultos, crianças, jovens e adolescentes. Essa ação expressa uma preocupação em contemplar todos os envolvidos nessa circulação de dar, receber e retribuir dádivas e ensinar, principalmente, a nova geração a receber e a oferecer. Ao agir dessa forma, o grupo investe na reciprocidade, para dirimir a ideia de que os participantes da festa que trabalham pelos outros são explorados ou de que alguém tira proveito da festa. As considerações de Olson (1965) sobre a existência do “aproveitador” não se aplicam a essas formas de ação coletiva, nas quais se exercitam as três obrigações da relação de reciprocidade expressa no princípio da dádiva: dar, receber e retribuir. O mutirão em espaços comuns reforça laços sociais de amizade. Mais do que isso, gera prestígio para quem se envolve mais e assume com vigor as tarefas. Se, por um lado, as relações tecidas no grupo funcionam como um distintivo e uma qualificação para ocupar cargos em uma das diferentes organizações, por outro, geram confiança e um sentimento de reciprocidade que extrapolam o próprio grupo. No ‘mutirão unilateral’ não há retribuição por parte da pessoa ou do grupo beneficiado. O compartilhamento é, por isso, considerado unilateral (Sabourin, 2009a;
Temple, 2003). Em várias dessas manifestações de reciprocidade, é atribuído às divindades (santos, Deus) um papel importante. Em Santa Ana, os dirigentes da Coordenação Regional comoveram-se com a situação de uma moradora que, além de estar bastante adoentada juntamente com os filhos, havia perdido o marido. Assim, decidiram construir uma casa para a família. Essa forma de reciprocidade unilateral é também chamada – no sudeste do Pará (Veiga; Albaladejo, 2002) – de “mutirão para os doentes” e produz valores e sentimentos; frequentemente, os beneficiados referem-se a divindades para “garantir” a retribuição, com um “Deus te pague”, por exemplo. É a introdução de um terceiro, mas não é como na reciprocidade ternária, na qual o terceiro “assume” um papel diferente (Sabourin, 2008; Temple, 2003). Esse ato não inclui a retribuição e cumpre apenas dois dos requisitos das relações de reciprocidade: dar e receber. No caso relatado, a gravidade do estado de saúde dos beneficiados não permitiu a retribuição, o que poderia ser interpretado, segundo Caldeiras (1956), como uma relação de reciprocidade desinteressada, sem retorno16. Na ocasião da pesquisa, o coordenador regional revelou a sua visão. Para ele, o ato do grupo envolvia uma terceira relação, pois seria um trabalho realizado para Deus por pessoas alegres, saudáveis e com conhecimento. Candido (2001, p. 89) corrobora essa ideia: “Um velho caipira me contou que no mutirão não há obrigação para com as pessoas, e sim para com Deus, por amor de quem se serve o próximo; por isso, a ninguém é dado recusar auxílio pedido”. Essa peculiaridade das relações recíprocas foi destacada por Mauss (2003 [1925]). Para ele, o princípio da dádiva, que compreende as três formas de obrigação – dar, receber e retribuir –, pode ser observado não somente nas relações entre pessoas, mas também nas relações entre seres humanos e divindades (deuses, espíritos dos mortos,
Zaluar (1997, p. 6) afirma: “[...] o dom não é puro desinteresse nem absoluta generosidade, mas seu caráter interessado é muito mais simbólico do que material”. Sobre o ato desinteressado, ver também Bourdieu (1996, p. 137-156).
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animais, natureza). No caso do mutirão para a mulher doente que havia perdido o marido, o cumprimento da terceira etapa da reciprocidade não era esperado da beneficiada, cujo estado de saúde impediu a retribuição do favor concedido. A retribuição era esperada de Deus, que pode oferecer, por exemplo, proteção contra a violência e contra outros percalços da vida. Um outro caso de mutirão unilateral envolveu um sócio do Clube Agrícola que teve dificuldades para fazer a farinha, pois o igarapé17 onde deixa a mandioca de molho costuma secar em uma determinada época do ano, impossibilitando a produção. Nesse período, ele conseguiu emprestado o tanque para a mandioca ficar de molho e o ‘retiro’ (casa de farinha), com o forno para torrar a farinha, de um dos integrantes do clube. O empréstimo implica doações imprescindíveis para a produção da farinha: a infraestrutura. Além disso, houve a alocação de mão de obra familiar do ‘doador’, com a participação da mulher e das filhas no mutirão para fazer farinha. Para completar essa circulação da reciprocidade, o ‘doador’ recebe como retribuição o direito de se retirar das outras atividades do clube antes do restante dos sócios, ou seja, ganha mais tempo para a realização dos seus trabalhos individuais. A participação no mutirão dos membros da família do agricultor que emprestou o retiro confere certo prestígio a essa família. A repetição desse comportamento generoso com outros sócios do clube influenciou para que o ‘doador’ fosse eleito a vários cargos, entre os quais o de tesoureiro do Clube Agrícola e o de presidente da Associação, confirmando-se como uma liderança local, reforçando o princípio da reciprocidade como critério importante para as ações coletivas. Outros casos envolvendo terceiros – seres humanos e divindades – são relatados individualmente. Por exemplo, agricultores contam ter feito uma promessa a Santa Ana
e dela recebido alguma graça. Diferentes formas de retribuição são postas em prática. Após alcançar a cura de uma doença, um senhor passou a assar frangos para serem leiloados, destinando o dinheiro arrecadado a Santa Ana. Nas suas palavras, ele transformou-se “em um escravo de Santa Ana”. Na circulação da dádiva, é considerado um terceiro, ao qual é dirigida a promessa. Obtida a graça, a promessa é paga. Diferentemente do caso anterior, nessa reciprocidade com retorno espiritual, as relações ultrapassam as fronteiras dos círculos dos humanos entre si, e o retorno é esperado de seres sobrenaturais. Segundo Lanna (1995), quando alguém faz uma promessa para um santo, oferece-se em sacrifício ao santo, retribuindo, assim, a dádiva alcançada.
AÇÃO COLETIVA OCASIONAL E UTILITÁRIA POR MEIO DA ASSOCIAÇÃO QUE CONGREGA OS ASSENTADOS CATÓLICOS E EVANGÉLICOS Para Veiga e Rech (2001), as associações são organizações voluntárias e abertas a todos. São democráticas, controladas por seus sócios, e sua criação não depende de autorização do Estado, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento. Os autores destacam a necessidade da responsabilidade dos sócios, da ausência de qualquer discriminação, do controle pelos sócios, que devem participar ativamente da formulação das políticas da associação e da tomada de decisões, mantendo sua autonomia. Segundo Albuquerque (2003, p. 17), a associação é uma “sociedade civil sem fins lucrativos cuja finalidade é representar e defender os interesses dos cidadãos associados, buscando estimular a melhoria técnica, profissional e social dos associados”. O autor distingue a associação de outras duas “modalidades de organização” – as cooperativas e os sindicatos –, que, segundo ele, compõem o processo associativo. Diferentemente das
Denominação atribuída a um pequeno rio, especialmente na Amazônia. No Pará, um tipo de farinha de mandioca muito comum é a farinha d’água. Para fazer essa farinha, os tubérculos da mandioca ficam por vários dias submersos na água, que tanto pode ser o igarapé como um tipo de tanque, nas imediações da casa de farinha. 18 A cooperativa é uma associação de pessoas para realização de uma atividade econômica em benefício comum. 17
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cooperativas19, as associações, no Brasil, têm o objetivo de facilitar as atividades (econômicas, culturais etc.) dos sócios, sem a finalidade econômica própria da organização. Faz-se ainda uma distinção entre as associações concretas e “[...] o espírito que, supostamente, embora nem sempre, as anima: o associativismo, caracterizado, por definição, pela espontaneidade, a liberdade e a solidariedade – pela gratuidade e pelo dom [...]” (Hébette, 2010, p. 64). Vários autores, como Avritzer (2009), relacionam o associativismo à maior participação da sociedade civil e à descentralização das funções do Estado. No espaço rural, a ideia da organização voluntária dos produtores rurais em entidades formais (associações e cooperativas) não é novidade. O Estado, nas últimas décadas, tem valorizado a intensificação da produção e estimulado o engajamento dos produtores familiares rurais em diferentes formas associativas, como requisito para a obtenção de serviços (por exemplo, o crédito rural para a aquisição de equipamentos de uso individual e comum, infraestrutura comunitária etc.), mas também como meio de facilitar a execução das suas políticas, que têm, nas organizações dos produtores, os interlocutores privilegiados, em detrimento do atendimento individual. Hébette (2010, p. 64) observa criticamente esse processo, estimulado por atores externos: [...] se, internamente, as associações formais, como tais, são dotadas de grande liberdade, tanto no seu processo de criação, quanto nas suas formas de funcionamento, elas perdem esta mesma liberdade em muitos dos seus usos nas suas relações externas, principalmente com seus “parceiros”, tais como o Estado nacional e as agências governamentais internacionais [...], os bancos, os diversos financiadores, que não deixam de as tutelar mediante seus regulamentos.
A Associação Integrada de Piripindeua foi criada em 1991 e tem como principal objetivo captar financiamentos
ou projetos. Após a implementação do Projeto de Assentamento Itabocal, em janeiro de 1995, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) relacionava-se com os assentados por meio da Associação, que, por sua vez, captava para o grupo benefícios como infraestrutura (estradas, telefones públicos e energia elétrica), crédito habitacional e financiamento para estimular a produção (crédito fomento). O acesso à assistência técnica, como o Projeto Lumiar, em 1997, era realizado também de forma coletiva19. Além das formalidades previstas no regimento, como a realização de assembleias, no decorrer dos anos 90 foram feitos ‘mutirões em benefício comum’. Católicos e evangélicos empreenderam esforços no cultivo de produtos agrícolas nas roças comunitárias, com fins do sustento da família e da manutenção da plantação de feijão e de arroz. Para ter energia elétrica, os agricultores da comunidade realizaram um mutirão para instalar os postes. A energia trouxe melhorias significativas para a vida dos moradores, porque muitas pessoas compraram máquinas para processar o açaí e geladeiras para armazenar produtos sazonais, como o cupuaçu e o vinho do açaí, que passaram a ser comercializados na própria comunidade. Essas ações coletivas, no entanto, não foram duradouras. Passados os anos iniciais, as assembleias e os mutirões não mais aconteceram, tampouco houve, entre os sócios, o compartilhamento de recursos, como os lotes comunitários, usufruídos por todos os membros do Clube Agrícola. Não se criaram relações de reciprocidade entre os sócios da Associação, o que pode ser justificado pela desconfiança entre os grupos religiosos e pela limitação dos encontros nos espaços de trabalho, visto que os evangélicos condenam os demais locais de encontro dos católicos (campo de futebol, festas e comemoração de dias santos). Ademais, persiste a dificuldade para formar uma nova diretoria, porque os sócios não se sentem estimulados
O projeto foi extinto em 18 de junho de 2000, surpreendendo a todos os envolvidos pela falta de informação prévia e de uma explicação convincente, durante uma fase de conflitos entre o governo federal e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
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a liderar. Em consequência, a Associação ficou desativada por cerca de três anos, devido à dificuldade de formar novos diretores; persiste como titular a diretoria que, na época da pesquisa de campo, já estava há cerca de 14 anos nessa condição. A escolha dos diretores tinha de seguir os critérios legais, estabelecidos no estatuto da Associação, que exigia, entre outros requisitos, que os eleitos fizessem oficialmente parte do Projeto de Assentamento Itabocal e fossem registrados na Relação dos Beneficiários (RB). Por isso, permaneceram na diretoria da organização os mesmos dirigentes que assumiram essa função em 1997. As exigências impostas por instâncias externas (legislação referente às associações, exigências do INCRA) influíram nesse processo, que se distingue do procedimento de escolha dos dirigentes das organizações criadas no âmbito da Igreja Católica, eleitos a partir da avaliação da participação do agricultor no mutirão e do cumprimento das obrigações cristãs. A influência externa restringe a “[...] possibilidade de determinar as regras para a sua própria gestão de bens comuns [...]”, condição identificada por Ostrom (1990, p. 90) na elaboração de “princípios de instituições de sistemas duradouros”, como também observado na Amazônia por Benatti et al. (2003) e Maneschy et al. (2010). As últimas autoras constatam que, entre os fatores “[...] que têm induzido à formação de associações jurídicas constituídas, a ação estatal se sobressai [...], [impondo] [...] atribuições definidas externamente” (Maneschy et al., 2010, p. 163-164). As autoras criticam ainda os“[...] modos de funcionamento de uma associação com estatutos, reuniões, eleições periódicas, passos burocráticos característicos e dispendiosos. [...] Problemas que passavam a absorver grande parte da energia dos envolvidos” (Maneschy et al., 2010, p. 163-164). Contribuiu para esse resultado a ausência de relações de reciprocidade entre os sócios de diferentes crenças, o que seria um dos elementos para viabilizar a cooperação. Assim, apesar de experiências positivas iniciais de conquista da regularização fundiária pela cooperação entre moradores católicos e evangélicos, as ações não persistiram. A pouca
frequência de momentos de interação, que pudessem permitir experimentar a disposição do outro de contribuir para o objetivo comum e de se engajar para promover a cooperação, resultou em uma diminuição da coesão, e as ações coletivas não mais ocorreram. Consequentemente, o engajamento dos agricultores ocorre apenas se houver a perspectiva de acesso aos benefícios. Tal como indicado por Hébette (2002), na região de Marabá, também em Santa Ana os evangélicos preferem organizações com objetivos puramente econômicos ou religiosos, o que resulta em uma tímida dimensão da vida cooperativa, que ocorre, sobretudo, na escala dos eventos religiosos (cultos, inauguração de um templo e encontro de grupos de cânticos, por exemplo). Na ajuda àqueles que passam por dificuldades, existe a doação de cestas básicas. Diferentemente, nas organizações criadas no âmbito da Igreja Católica como um fato social total, promoviamse mutirões que influenciavam a vida religiosa, política e econômica. Até mesmo o único projeto com recursos estatais – a criação de peixes – envolvia a participação de representantes de várias famílias católicas, que aprendiam e praticavam as técnicas da piscicultura de forma conjunta e em terreno comum, em diálogo com pesquisadores da EMBRAPA. Os integrantes desse projeto cooperaram em clima de lazer. Essa diferença explica a fragilidade da ação coletiva realizada pela Associação, uma organização para promover os interesses dos seus membros, e mostra os problemas da cooperação apontados por Olson (1965), quando não são desenvolvidas relações de reciprocidade no interior da organização. Vale registrar que isso explica não só o escasso engajamento, mas também a própria dificuldade da troca de diretoria, que, nas organizações criadas no âmbito da Igreja Católica, eram eleitas a partir da avaliação da participação do agricultor no mutirão.
CONCLUSÕES O tema do artigo é a persistência da ação coletiva na comunidade Santa Ana, no município de Mãe do Rio, Pará.
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Segundo Olson (1965), a emergência da ação coletiva não pode ser considerada natural, pois, ao contrário, ela é pouco provável. Desde o desafio de Olson (1965), que impediu qualquer tradução direta de interesses individuais em ação coletiva, teóricos abordaram essa questão e, segundo Tilly (1985), com pouco sucesso. No entanto, estudos de Axelrod (1984) e Ostrom (1990, 1998) relativizaram os trabalhos de Olson (1965) e indicaram que, além da existência de um interesse comum, a ação coletiva necessita de elementos estruturantes, que permitam aos participantes se engajarem, entre os quais a reciprocidade tem um papel de destaque. Na obra de Mauss (2003 [1925]) sobre a dádiva, encontram-se os elementos que oferecem uma perspectiva para além desses modelos do comportamento racional de indivíduos. O princípio da dádiva contribui para criar amizades, alianças e vínculos permanentes, valorizando a coletividade e promovendo a cooperação. A relação entre ação coletiva e reciprocidade é também tema de muitos autores que trabalham o campesinato ou a agricultura familiar. Na comunidade estudada, a persistência da ação coletiva fundamenta-se em relações de reciprocidade em diferentes âmbitos da vida social, sendo o mutirão a forma mais usual. Foi incentivada pela Igreja Católica, que se apoiou em estruturas de reciprocidade anteriores. O Clube de Mães e o Clube Agrícola são os principais lugares da reciprocidade e da cooperação. O que está em jogo nesse círculo – dar, receber e retribuir – é o lugar de cada um e o seu pertencimento ao grupo. Mesmo quando não se pode contar com uma retribuição material, especialmente das pessoas menos privilegiadas, surgem outros bens simbólicos, como o prestígio e a dispensa do trabalho com o consentimento do grupo. Em oposição, as ações coletivas na Associação Integrada de Piripindeua, fundada por agricultores católicos e evangélicos para atender às exigências do Estado, mostram fragilidades e ocorrem apenas ocasionalmente e com fins utilitários, quando iniciativas de financiamento chamam a atenção dos seus afiliados, mas sem investimento
nas relações de reciprocidade. Assim, ela pode ser considerada uma organização que segue uma orientação estratégica e utilitarista. Os mutirões iniciais entre católicos e evangélicos não prosperaram, enquanto estrutura de reciprocidade, devido a visões religiosas diferentes, as quais não permitiram que os contatos se estendessem para outros lugares (clubes, festas, futebol e bares). Em vez disso, a desconfiança impediu até uma efetiva participação dos evangélicos na gestão da associação. Chamamos a atenção para os fatores não econômicos, mas decisivos, para a eficácia da ação coletiva nas diferentes organizações dessa comunidade. Trata-se da afiliação religiosa, que explicita outras divisões sociais, como o tempo e os lugares de residência, bem como os modos de sociação e sociabilidade, assim como a identidade coletiva. A interação frequente nos espaços de compartilhamento de atividades diversas e a criação de uma visão comum do mundo são as prerrogativas para o estabelecimento de relações, qualificadas por elementos como a confiança e o prestígio. No campo católico, as organizações promoviam mutirões como um fato social total, que influenciavam a vida religiosa, política e econômica, além da sociabilidade entre os membros. No campo evangélico, as manifestações da cooperação parecem mais tímidas, separadas entre ações religiosas e econômicas. Por último, enfatizamos que a compreensão dos fenômenos estudados necessita da consideração das duas abordagens, a do comportamento individual racional e a da dádiva “[...] em vez de continuar o debate inútil sobre se variáveis estruturais ou atributos individuais são os mais importantes”(Ostrom, 1998, p. 2-3).
AGRADECIMENTOS Pesquisa financiada com recursos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC); da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA); e da Universidade Federal do Pará (UFPA).
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Do Folclorismo à História da Cultura na Amazônia: o percurso construído por Vicente Salles From folklore to the cultural history of the Amazon: Vicente Salles’ path Magda Maria de Oliveira RicciI, Alessandra Regina e Souza MafraII I II
Universidade Federal do Pará. Belém, Pará, Brasil
Universidade Estadual de Campinas. Campinas, São Paulo, Brasil
Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar parte da trajetória intelectual do pesquisador e folclorista paraense Vicente Salles (1931-2013), nos estudos sobre o folclore. Examina-se como surgiu e se intensificou o interesse de Salles pelo folclore amazônico (em especial, o paraense), as suas primeiras pesquisas de campo, como o autor interpretou os conceitos de folclore e de cultura popular e a presença do folclore em algumas de suas principais obras. Palavras-chave: Vicente Salles. Amazônia. Folclore. História da Cultura. História intelectual. Abstract: This articles aims at analyzing the intellectual path of the paraense researcher and folklorist Vicente Salles in the studies about the Amazonian folklore. We analyze the beginning of his interest on folklore, his first fieldworks, the differences between the concepts of popular culture and folklores in Salles’s interpretation and the presence of the folklore in his mainstream works. Keywords: Vicente Salles. Amazon. Folklore. History of the Culture. Intellectual History.
RICCI, Magda Maria de Oliveira; MAFRA, Alessandra Regina e Souza. Do Folclorismo à História da Cultura na Amazônia: o percurso construído por Vicente Salles. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 12, n. 1, p. 221-240, jan.-abr. 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222017000100013. Autora para correspondência: Alessandra Regina e Souza Mafra. Universidade Estadual de Campinas. Rua Cora Coralina, 100. Campinas, SP, Brasil. CEP 13081-970 (armafra@terra.com.br). ORCID: http://orcid.org/0000-0002-2666-0483. Recebido em 12/03/2016 Aprovado em 05/12/2016
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Do Folclorismo à História da Cultura na Amazônia: o percurso construído por Vicente Salles
INTRODUÇÃO O pesquisador e folclorista paraense Vicente Salles é referência nos estudos sobre a cultura popular na Amazônia, especialmente no estado do Pará. Podemos reiterar que alguns temas marcaram a vida profissional deste pesquisador com mais proeminência: a música, o folclore e o negro, assuntos tratados e discutidos intensamente por Vicente Salles. A inclinação e o interesse por esses temas se deram, em grande medida, pela sua aproximação com intelectuais do porte do folclorista e poeta paraense Bruno de Menezes e do antropólogo baiano Edison Carneiro. Nesses termos, devemos mencionar ainda o contato com as fontes orais, que caracterizou seu trabalho como pesquisador e o interesse pelo folclore desde o início de sua carreira (Mafra, 2014, p. 66). Alguns aspectos da obra de Vicente Salles foram objeto de análise de outros autores. No que diz respeito aos estudos sobre a presença negra na Amazônia, José Maia Bezerra Neto (2008) destacou o pioneirismo da obra mais proeminente de Salles – “O negro no Pará: sob o regime da escravidão” (Salles, 2005 [1971]) –, ressaltando que as influências sociológicas mais importantes que Salles incorporou neste estudo foram as da antropologia cultural brasileira, assim como as do folclore. Karla Oliveto (2007), por sua vez, tratou da trajetória de Vicente Salles pelo viés da música, focando nos procedimentos de pesquisas e na grande contribuição para essa área, representada por um número expressivo de obras publicadas. Tanto Bezerra Neto quanto Oliveto destacaram a obra de Vicente Salles como divisor de águas na compreensão da presença africana e na história da música e dos músicos no Pará. Embora ambos destaquem a presença do folclore como elemento central para se explicar as manifestações da cultura negra e da música na
Amazônia, ainda não há um estudo dedicado a analisar, especificamente, a compreensão e a produção de Salles no campo do folclore. Vicente Salles é um exemplo clássico de intelectual polígrafo, dono de uma trajetória intelectual bastante movimentada, a exemplo do engajamento político e do compromisso no campo cultural e social. Entre tantos papéis desempenhados por Salles, o de folclorista apresentou-se de forma instigante, exatamente pelo mérito deste intelectual ao buscar equilibrar e aliar as discussões entre o folclore e a história, assim como na atuação na defesa do folclore enquanto ciência1. Então, o que seria ou o que representaria o folclore para ele? Quais seriam as contribuições dele para o folclore da Amazônia? Como ele desenvolveu sua reflexão teórica sobre o folclore? Estas foram algumas questões que serviram de fio condutor para compreendermos o veio folclorístico de Vicente Salles. Este artigo tem como objetivo analisar a presença do folclore nos estudos e na trajetória de Vicente Salles, desde as primeiras incursões nas pesquisas de campo, ainda na Amazônia, devido à atuação na Campanha de Defesa do Folclore (CDFB) e na Revista Brasileira de Folclore (RBF), no Rio de Janeiro, embora saibamos que o envolvimento de Salles com o assunto foi além desse contexto, e será o intervalo priorizado para este texto. A discussão neste artigo versa sobre o interesse de Vicente Salles pelo folclore amazônico, especialmente o paraense. Pretendemos investigar o surgimento e, ao mesmo tempo, a intensificação do interesse de Salles pelo tema, averiguando, na medida do possível, o percurso desse pesquisador (caráter empírico) e sua discussão no campo teórico. Assim, buscamos apresentar e explorar o conceito de ‘folclore’ para Vicente Salles e, da mesma
Para compreendermos parte da atuação de Salles na Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro (CDFB) é necessário retomarmos a sua transferência de Belém para o Rio de Janeiro, na década de 1950, uma vez que, em 1954, Salles fez um concurso público, promovido pelo governo federal, para o cargo de datilógrafo. À essa época, Salles já tinha sido apresentado a Edison Carneiro por Bruno de Menezes; Carneiro, então, aconselhou-o a transferir-se de Belém para o Rio de Janeiro, o que fez ainda em 1954. Salles obteve boa classificação no concurso e isso o permitiu escolher o Ministério da Educação e Cultura para trabalhar. Em 1958, quando foi criada a CDFB, foi transferido para o novo órgão, por intermédio de Mozart de Araújo. Logo depois, foi trabalhar diretamente com Edison Carneiro, ficando responsável pela organização da biblioteca da CDFB (Mafra, 2014, p. 64).
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forma, a discussão e reflexão sobre as interseções entre os conceitos de folclore e de cultura popular para esse intelectual, a presença de ideias de grandes personalidades nas suas discussões e a maneira como Salles tratou a relação entre história e folclore (Mafra, 2012, p. 49). É pertinente observarmos que Vicente Salles se autodenominou “folclorista” em essência, e procurou defender a ideia de “identidade social” em seus estudos sobre folclore (Oliveto, 2007, p. 59), aspecto diretamente ligado às discussões de classe e que partem de seu engajamento político e cultural de esquerda. Dessa forma, buscamos apresentar a produção sobre folclore em Salles a partir de fontes diversas, como cartas, entrevistas, material de curso de folclore, livros autorais, microedições do autor, entre outros tantos tipos de documentos guardados e organizados por ele e que nos contam a trajetória desse intelectual (Mafra, 2012).
SALLES, DIÁLOGOS E CONCEITOS SOBRE O FOLCLORE Para Salles, “os fenômenos ditos folclóricos, podem ser considerados fenômenos de cultura, e nesses termos, ambos podem ser analisados separadamente. Esses fenômenos representam uma realidade concreta e dinâmica, que permanecem em constante readaptação às novas formas assumidas pela sociedade” (Mafra, 2012, p. 50). O folclore tornou-se o que ele chamou de “matéria viva”, devendo ser estudado naquilo que tem de vivo, a partir de sua mutabilidade (Salles, 1969, p. 881-882). Logo, o folclore, para Vicente Salles, pode ser entendido como o produto da cultura, em um sentido geral2, uma vez que, para o intelectual, a sociedade como um todo participa na criação e na manutenção do folclore, embora afirme que
somente o “povo” – isto é, as camadas populares – dele se sirva (Salles, 1969, p. 882). Antes de adentrarmos mais intensamente nas discussões a respeito do folclore para Salles, é necessário tratarmos brevemente de duas personalidades marcantes na trajetória profissional desse intelectual: Bruno de Menezes e Edison Carneiro. Com o escritor e folclorista Bruno de Menezes, Salles adentrou mais profundamente no universo da cultura popular. Menezes construiu uma ligação muito forte com as atividades folclóricas da região e tornou-se adepto da doutrina anarquista, envolvendo-se, inclusive, em questões sindicais. Essa aproximação com o anarquismo deu-se antes mesmo do reconhecimento como poeta e folclorista. O amor de Menezes pela causa dos negros e dos trabalhadores em geral também era partilhado por Salles, uma vez que literatura e revolução fizeram parte da atuação de Menezes, cuja militância literária está expressa na abordagem sobre os excluídos e oprimidos na sociedade (Mafra, 2012). Da militância para o campo intelectual, foi Bruno de Menezes quem apresentou Vicente Salles ao antropólogo, folclorista e jornalista baiano Edison Carneiro, em 1954. Considerado um dos maiores estudiosos sobre os cultos afro-brasileiros, Carneiro participou ativamente do movimento em defesa do folclore no Brasil e foi um dos principais expoentes dos estudos antropológicos e folclóricos sobre o negro, dos meados do século XX. Integrou uma geração – formada por intelectuais do porte de Arthur Ramos, Câmara Cascudo, Renato Almeida, Aires da Mata, entre tantos outros – que não apenas ajudou a institucionalizar as Ciências Sociais no Brasil, como também colocou em outro patamar os estudos sobre as manifestações culturais das populações afrodescendentes3.
Material histórico-cultural - Vicente Salles - Correspondência expedida. Carta de Vicente Salles a Napoleão Figueiredo. Brasília, 25 maio 1988. Coleção Vicente Salles, Biblioteca do Museu da Universidade Federal do Pará (MUFPA), Belém. 3 Para compreender a dinâmica da atuação de Edison Carneiro, ver Rossi (2011), Giovannini Junior (2012) e Silva (2015). Trata-se de estudos mais recentes, que situam Edison Carneiro e o interesse desse estudioso pelo tema do folclore do negro e sua contribuição para conformação da chamada cultura brasileira. 2
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Nacionalmente, podemos observar uma clara aproximação entre as concepções de folclore para Edison Carneiro e os estudos de Salles. O paraense destaca que, para Carneiro, ao mesmo tempo em que se realiza a pesquisa folclórica, aprofunda-se a análise da sociedade. Neste cenário, podemos perceber a permanência de condições gerais, econômicas, sociais e políticas que condicionariam e favoreceriam a sobrevivência das concepções dos usos e dos costumes de que se nutre o folclore, ou seja, a partir dessa dinâmica (Salles, 1969). Tal concepção de Carneiro pode ser mais bem compreendida em seu próprio livro “Dinâmica do folclore”, no qual assegura ser o “folclore” uma das expressões mais significativas, justamente por apresentar a permanência dessas condições gerais (econômicas, sociais e políticas) “[...] que favorece a sobrevivência das concepções de uso e costume que se nutre o folclore” (Carneiro, 1965, p. 7-8). Consequentemente, seria fundamental pensar o folclore dentro da sociedade de classes. A preocupação com essa dinâmica permeia o pensamento de todo folclorista e integra as análises de Salles. Vicente Salles percebe o folclore como criado e mantido pela sociedade, porém utilizado apenas pelo povo. Para o autor, todos os fatos folclóricos dizem respeito a uma sociedade, mas, se uma parcela nega, omite ou rebaixa um fato folclórico, consequentemente não está contribuindo para sua manutenção, por mais que dele a sociedade se sirva. Essa parte da sociedade, segundo Salles, pode ser identificada como a “elite”. Dessa forma, o folclore se apresenta a partir de um processo dinâmico e circular, onde estão presentes as relações constantes entre todos os membros da sociedade, ou seja, seria o domínio coletivo do conhecimento, pois interage com todas as camadas sociais4.
Em “Texto-resposta ao questionamento teórico do folclore” 5, Salles refletiu sobre o folclore como “fenômeno de cultura”, situando-o dentro de uma sociedade de classes, de uma sociedade de consumo e nas ‘sociedades’ que vivem em constantes modificações. Mais uma vez, ressaltamos o ‘dinamismo’ do folclore, como salientou Carneiro (1965), uma vez que a pesquisa folclórica permitiria analisar a sociedade em ‘geral’, como mencionamos anteriormente. Dessa forma, podem-se observar no folclore mudanças qualitativas, as quais se apresentam em uma realidade concreta, dinâmica, em constante readaptação às formas que a sociedade venha a assumir (Salles, 1969). Nesse texto-resposta de Salles, ainda não é possível “definir e conceituar certas proposições”. O autor busca esclarecer as ‘confusões’ sobre os conceitos de cultura popular e de folclore, ressaltando que, nas Ciências Sociais, nem sempre os conceitos conseguem obter uma determinada precisão, uma vez que esse problema não se resolveria apenas com a adoção de nomenclaturas estabelecidas e entendidas pelos especialistas, mas se apresentando de forma obscura aos leigos6. Em linhas gerais, o folclore, conforme defendido pela Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, apresenta maior amplitude e romantismo em relação àquele ora trabalhado a partir de Carneiro (1965) e Salles. Nesses termos, para Maria de Lourdes Ribeiro (1969, p. 6), folclore “é o estudo da própria alma de um país, é o estudo do modo de ser da gente do povo, das suas maneiras de pensar, de agir e de sentir, é o estudo da feição nacional nas suas bases mais profundas e mais características”. Segundo a autora, o folclore
Cabe esclarecer que, no “Texto-resposta ao questionamento teórico do folclore”, Salles trabalhou com o sentido de ‘circularidade cultural’, proposto por Bakhtin e citado por Carlo Ginzburg no prefácio à edição italiana de “O queijo e os vermes”. Salles esclarece que a mobilidade do folclore pode se dar tanto no sentido vertical como no horizontal (na sequência: erudito-popular e difusão), desenvolvendo em um dado conjunto os processos dinâmicos de forma circular. 5 Localizado na documentação sociocultural, trata-se de uma resposta aos questionamentos de Rossini Tavares. Coleção Vicente Salles, Biblioteca do Museu da Universidade Federal do Pará, Belém. 6 “Texto-resposta ao questionamento teórico do folclore”. Coleção Vicente Salles, Biblioteca do Museu da Universidade Federal do Pará, Belém. 4
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apresenta uma série de características próprias, tais como anonimato, aceitação coletiva, transmissão oral, tradicionalidade e funcionalidade7. Nesse sentido, podemos perceber nas palavras de Ribeiro (1969) a questão da nacionalidade e, mais do que isso, a associação entre folclore e discurso politizado, pois, para ela, assim como para os demais folcloristas da Campanha de Defesa do Folclore, o folclore deveria ser estudado como forma de proporcionar melhores condições de vida para o povo, e isso não poderia ser feito sem, de fato, conhecer os costumes característicos deste (Ribeiro, 1969). Certamente, a autora compartilhava dos ideais de transformação do folclore em ciência acadêmica, posicionamento idealizado pela CDFB e uma das aspirações dos intelectuais que compunham esta campanha, que, porém, não conseguiu atingir o objetivo e conquistar esse status acadêmico para o folclore8. Ainda referente às missões folclóricas, contemplando o surgimento da Comissão Nacional de Folclore (CNFL), 1947, e da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro (CDFB), 1958, cabe ressaltar que não era apenas a identidade do intelectual folclorista o foco da questão, sendo muito mais do que isso, uma vez que, ao criar um especialista, consequentemente, cria-se um campo de estudo definido, considerando a sua abrangência e as suas limitações. As tendências renovadoras propostas pelo grupo de intelectuais folcloristas foram caracterizadas pelos esforços no plano institucional, mas também pela tentativa em definir a especificidade do trabalho do folclorista (Vilhena, 1997). Vicente Salles também fez parte desse grupo de ‘intelectuais renovadores’, dialogando com diversos pesquisadores que atuaram no movimento folclorista.
Nesta discussão, que gira em torno do mundo do folclore, o papel de folclorista é bem delimitado por este pesquisador, pois ele afirma que o seu trabalho, como tal, consiste em lidar com os “falares de povo” da maneira mais simples e direta, recomendada aos folcloristas e cujos leitores poderiam perceber na leitura das obras. Para Salles, seria essencial que o folclorista tivesse essa concepção da dinâmica do folclore, uma vez que esse assunto “transpassaria” todos os segmentos da sociedade9. O folclorista, assim como o antropólogo, pode estabelecer o critério de povo e, assim, incluí-lo na utilização de seus conceitos10. Podemos também observar outras informações relevantes a respeito do folclore brasileiro em plano de aula construído por Vicente Salles para curso de férias direcionado para professores, intitulado “Pesquisa e documentação do folclore”, realizado por meio da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro na década de 1970. Este texto não somente discorre sobre a prática da coleta de dados, mas também reflete sobre as aspirações da campanha em elaborar e publicar o “Atlas folclórico brasileiro”. Salles enfatiza este trabalho como sendo “antiga aspiração de nossos folcloristas”. O autor caracteriza o folclore, de forma geral, como “produto histórico de conhecimento”. Nesses termos, o material utilizado nos cursos ministrados por Salles apresenta evidências sobre esse aspecto: O Folclore existe em toda a sociedade e compreende o conjunto orgânico das maneiras de pensar, agir, sentir e reagir dos homens, produto histórico de conhecimentos e experiências acumuladas e da interação mútua dos indivíduos na mesma convivência, independentemente de sua posição de classe e de origens étnicas.
Procuramos observar aqui o posicionamento de Maria de Lourdes Ribeiro enquanto integrante da missão pela defesa do folclore brasileiro. 8 Entrevista concedida a Alessandra Mafra, através de carta, em maio de 2010, na qual Salles comenta sobre a aspiração desses intelectuais de tornar o folclore uma disciplina acadêmica. 9 Correspondência expedida: Carta de Vicente Salles a Napoleão Figueiredo. Brasília, 25 maio 1988. Coleção Vicente Salles, Biblioteca do Museu da Universidade Federal do Pará, Belém. 10 “Texto-resposta ao questionamento teórico do folclore”. Coleção Vicente Salles, Biblioteca do Museu da Universidade Federal do Pará, Belém. 7
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Considerado o folclore como cultura de massa, em que toda a sociedade participa da sua criação e manutenção, o conceito é abrangente, inserese no conceito geral de cultura, e inclui, por isso mesmo, os conceitos particulares de cada grupo passível de análise pela posição social, econômica, profissional etc.11
Sem dúvida, existe uma essência ou matriz na amplitude de certa explanação sobre o conceito de folclore. O autor sempre procura superar, a partir de textos e entrevistas, aquilo que possa não ter se apresentado como suficientemente claro em outras exposições do conceito. Por exemplo, no excerto anterior, Salles nos apresenta um conceito de folclore alinhado com outros momentos em que procura exercitar essa definição, inclusive embasado pelo conceito defendido pela CDFB e também por Edison Carneiro (1965), segundo os quais o folclore representa o produto da relação entre os grupos sociais, ou seja, o domínio coletivo do conhecimento.
LEITURAS SOBRE O FOLCLORE: DO MODERNISMO À ESCOLA PAULISTA DE SOCIOLOGIA Autores como Cavalcanti e Vilhena (1990), Ortiz (1992) e Abreu (2002) destacam o percurso do conceito de folclore no Brasil. O final do século XIX foi marcado pelo advento do interesse sobre os estudos folclóricos, tendo como um dos ícones Silvio Romero (1851-1914). No século XX, autores como Amadeu Amaral (1875-1929) e Mário de Andrade (1893-1945) consolidam o campo folclórico, demonstrando uma forma de organização na área, a exemplo da apresentação da proposta de associações ligadas ao folclore (Cavalcanti; Vilhena, 1990). As ‘missões’ de defesa do folclore brasileiro, marcadas pela criação de uma Comissão Nacional de Folclore (1947) e, posteriormente, pela Campanha de
Defesa do Folclore (1958), devem ser compreendidas à luz daquele contexto intelectual precedente, com o objetivo de percebermos a proposta dessas missões e a relação de Salles com a aspiração da Campanha. Nesse sentido, faz-se necessário tecer algumas considerações a respeito do que hoje denominamos de ‘modernismo’. Esse movimento, gestado nas primeiras décadas do século XX, foi marcado pelas aspirações dos homens em busca de uma nova proposta de identidade nacional, a exemplo de Mário de Andrade, que, como folclorista, queria apresentar a origem e o fundamento de uma ‘tradição’ brasileira como missão dos modernistas (Neves, 1998, p. 279)12. Destacamos Mário de Andrade por ser considerado um dos expoentes dos estudos sobre o folclore e um dos ícones do movimento modernista, o qual ajudou a criar e, consequentemente, a divulgar e defender a ‘moderna’ proposta para a cultura brasileira, no intuito de compreender o folclore ou a cultura popular para conhecer, de fato, o ‘povo brasileiro’. Como destacou Margarida Neves, o ‘comprometimento’ em descobrir o Brasil e os brasileiros foi, para Mário de Andrade, a suposição de uma “... diluição da diversidade regional num todo unívoco, uma vez que sua busca era, como a de parte dos modernos, a de definir o caráter brasileiro”, mesmo que, a partir de algumas contradições sobre ‘as coisas populares’ do Brasil e pela atribuição à sua pessoa, a ‘investigação’ fosse pela consciência da nacionalidade (Neves, 1998, p. 292). A peregrinação por diversos pontos do Brasil, inclusive passando por Belém na década de 1920, fez Mário de Andrade dar vida ao livro “O turista aprendiz”, com as crônicas de registro das suas pesquisas etnográficas. Posteriormente, na década de 1930, era a vez da Missão Pesquisa Folclórica, organizada pelo Departamento de Cultura do Estado de São Paulo, sob a direção daquele intelectual, aportar em Belém. Essas ações demonstram
Material do “Curso de férias para professores” da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro, 1975. Coleção Vicente Salles, Biblioteca do Museu da Universidade Federal do Pará, Belém. 12 Entre outros trabalhos específicos sobre Mário de Andrade e suas andanças pelo Brasil em busca de registrar essas tradições, destacamos: Lopez (1972); Moraes (1978); Cavalcanti (2004) e Andrade (1976). 11
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o desejo de ‘sair’ daquele sentimento de limitação no que se refere às tradições e ao folclore brasileiro13. É importante não perdermos de vista que Mário de Andrade fazia parte de um movimento maior, denominado modernismo, cuja proposta era construir uma nova e moderna identidade nacional. Nesse contexto, observamos a propagação dos estudos sobre o folclore nas décadas de 1920 e 1930, demonstrando as preocupações dos intelectuais brasileiros em difundir o folclore nacional, percebidas em revistas como “Lanterna Verde”, “Festa” e “América Latina” (Gomes, 1999)14. Com a implantação do Estado Novo, medidas de grandes proporções foram estabelecidas, entre elas a diminuição da autonomia dos estados. No âmbito cultural, Getúlio Vargas atraiu grupos de intelectuais que pudessem colaborar com a nova ideia de identidade nacional, o que garantiria a firmação do estado nacional (Pandolfi, 1999, p. 10). Se, no século XX, os estudos folclóricos apresentaram certa projeção, como a criação da Comissão Nacional de Folclore (1947) e da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro (1958), também passariam a receber críticas severas de intelectuais como Florestan Fernandes. O problema aqui era o ‘teor’ científico dos estudos sobre o folclore. Os folcloristas foram estigmatizados por atuarem de forma mais descritiva do que interpretativa e por exercerem uma ligação da sociedade tomada como ‘conservadora’. Para Abreu (2002), eles foram, por isso “[...] sendo marginalizados nas universidades e esquecidos pela intelectualidade e esquerda” (Abreu, 2002, p. 4). Cabe aqui ressaltar o possível interesse de ambos os lados. A Comissão Nacional de Folclore foi criada em 1947 por Renato Almeida, ligada ao Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura, órgão da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(UNESCO). Devemos levar em consideração que, no Pós-Guerra, o folclore irá se enquadrar nas aspirações da UNESCO pela paz mundial, na medida em que é encarado como ‘instrumento’ de compreensão entre os povos, permitindo, assim, a construção de identidades diferenciadas entre eles. Nesse sentido, Cavalcanti e Vilhena (1990, p. 75-76) destacam que “o Brasil de então se orgulhava de ser o primeiro país a atender à recomendação da UNESCO no sentido da criação de uma comissão para tratar do assunto” com o interesse maior em divulgar o folclore brasileiro. Por outro lado, temos o pensamento sociológico das décadas de 1950 e 1960, expresso na Escola Paulista de Sociologia e tendo como expoente Florestan Fernandes, que passou a ver as culturas populares no contexto da moderna sociedade capitalista, ou seja, no âmbito das desigualdades sociais (Arruda, 2010, p. 9-27; Abreu, 2002). Fernandes discutia a posição do folclore no quadro das Ciências Sociais, sendo notória neste intelectual, mais do que em qualquer outro representante da escola paulista de sociologia, a preocupação em “demarcar as fronteiras da sociologia em relação às demais ciências” (Cavalcanti; Vilhena, 1990, p. 81). O período que diz respeito à criação da CNFL e, posteriormente, da CDFB foi marcado por tensos debates sobre a posição do folclore na sociedade. Um dos aspectos interessantes é o teor da palavra ‘povo’ e, entre os aspectos fundamentais da definição de folclore para os integrantes da Comissão e da Campanha, seria o de que “o folclore se encontra em diferentes segmentos sociais” e que somente no ‘povo’ pode ser encontrado o folclore de forma autêntica e pura, mesmo que influenciado pela cultura moderna (Cavalcanti; Vilhena, 1990, p. 83). Observamos aqui a tese central sobre o que seria folclore para Salles, como já mencionado, inclusive o sentido dinâmico aplicado ao conceito.
Para notícias mais pontuais sobre a atuação dos intelectuais dentro do Departamento de Cultura do Estado de São Paulo – entre eles, Mário de Andrade – e a interseção entre academia e administração pública, ver Rubino (1995, p. 479-521). Sobre a visita de Mário à Amazônia no final da década de 1920 e, posteriormente, a Missão Pesquisa Folclórica, ver Andrade (1976) e Figueiredo (2008, p. 227-228). 14 Gomes (1999) analisou especialmente o espaço da intelectualidade carioca nas décadas inicias do século XX e os ideais modernistas e nacionalistas. 13
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Embora não tenham conquistado a sua ‘autonomia’ e um teor científico, vale destacar a empreitada dos folcloristas para o despertar e para a valorização do folclore nacional, com toda a atuação que tiveram em território brasileiro. Dos embates travados com a Escola Paulista de Sociologia, apresenta-se parte da história do folclore no Brasil, da sua trajetória, representados pelas ‘missões’ folclóricas e pelas dificuldades ou ‘fragilidades’ para se estabelecer dentro da academia. De modo geral, podemos observar que houve uma preocupação dos intelectuais modernistas, ou mesmo dos folcloristas da CDFB, em valorizar a cultura do povo em sua essência, no sentido de buscar desvendar as particularidades de cada região e de cada estado. Mesmo que essa observação não seja nenhuma novidade, procuramos aqui atentar para este percurso, na medida do possível, com o sentido de situarmos a leitura sobre o folclore no período das missões e referente ao contexto precedente a estas.
DO FOLCLORE À CULTURA POPULAR Para alguns intelectuais, os conceitos de folclore e de cultura popular podem se apresentar com o mesmo sentido ou sentidos similares e, para outros, como conceitos diferentes (Brandão, 1984, p. 24) 15. Sem entrarmos em méritos, procuramos, a partir da observação a respeito da produção de Vicente Salles, esclarecer a utilização da palavra ‘folclore’ na produção deste intelectual, enquanto folclorista ou ‘historiador da cultura’, como Salles se autodenominava. Acreditamos que seja pertinente travar esse diálogo, uma vez que o próprio
Salles concluiu que boa parte do que produziu como pesquisador estaria ligado ao folclore e à cultura popular16. Salles, nas palavras de Edison Carneiro, destaca o folclore como produto de um ‘intenso intercâmbio cultural’ entre vários estratos sociais, resultado de vários tipos de relações, como pessoal, de produção, de nacionalidade, de educação, entre outros. Resumindo, folclore é fruto da ‘matéria viva’ sobre a qual falamos anteriormente. No entanto, destaca que é somente o ‘povo’ que pode atualizar, reinterpretar e readaptar seu modo de pensar e agir em relação aos fatos sociais e aspectos culturais do tempo, e que, somente estabelecido o critério de ‘povo’ e amparado por conceitos precisos, poder-se-á evitar a confusão entre essas palavras, ou melhor, entre o folclórico e o popular (Salles, 1969, p. 883)17. Nesse sentido, percebe-se que Salles problematiza a relação entre os gêneros e procura estabelecer a diferenciação pelo que ele chamou de elemento comum, ‘o povo’. Para ele, a característica do folclore é ser patrimônio cultural do povo, ou seja, de todos aqueles que constituem uma sociedade, e talvez a cultura popular fosse o que ele chamou de “acréscimo de característica” para configurar algo preciso, no sentido de fazer uma diferenciação dentro de uma sociedade de classes. O que se faz importante é o desenvolvimento do conceito de folclore como forma de relacionamento entre as pessoas (Salles, 1969, p. 882-883). Logo, o folclore existe, e, se existe, pode ser conhecido cientificamente, pois independe das concepções, dos interesses e de conceitos ‘eruditos’18.
Entre a abordagem sobre as aproximações dos conceitos, o autor destaca que, para muitos, o folclore seria visto como algo mais ‘conservador’ e a ‘cultura popular’ como algo mais progressista, porém servindo à mesma realidade. Seria interessante atentarmos também para a apresentação de Renato Ortiz (1992), no sentido de percebermos a discussão que tem se estabelecido a respeito da ‘cultura popular’ e a pertinência sobre esse debate. 16 Entrevista concedida à Alessandra Mafra, através de carta, em maio de 2010. 17 Essa questão seria mais complexa ainda, pois, além das confusões envolvendo o conceito de ‘folclore’ e de ‘cultura popular’, ainda existem as celeumas causadas por diferentes interpretações para o conceito de ‘cultura popular’. Segundo Renato Ortiz (1992), essa polêmica oscila entre dois polos. O primeiro compreende a cultura popular como uma cultura subalterna (em um sentido classista), uma vez que há a separação entre o popular e o erudito, e o segundo está ligado à acepção de ‘povo’ que é utilizada enquanto um sinônimo. Para uma discussão mais aprofundada sobre os debates em torno das definições de cultura popular, ver Chartier (1995, p. 179-192). 18 Texto de Vicente Salles intitulado “Uma (re)visão do folclore”. Brasília, 20 ago. 1987. Material histórico-cultural - Vicente Salles. Coleção Vicente Salles, Biblioteca do Museu da Universidade Federal do Pará, Belém. 15
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Para analisar o ‘popular’, Salles apresenta o modelo da famosa pirâmide da ‘Sociologia acadêmica’, modelo pelo qual eram apresentados simbolicamente os extratos sociais, e aponta que aquele termo teria uso igual ao dado na cultura dos estamentos sociais inferiores, estando situado em qualquer tipo de sociedade civilizada. Em outro momento, Salles acrescenta algo mais para compreensão do conceito, enunciando que “cultura popular é um conceito que só existe na sociedade de classes”19, é um termo restrito em comparação ao erudito20. Thompson (1998), ao trabalhar com a historicidade dos conceitos, como os de folclore, de tradição e de cultura popular, já nos fala sobre essa separação entre as culturas plebeias e patrícias nos séculos XVIII e XIX, indicando ser “difícil” não ver essa dissociação em termos de classe (Thompson, 1998, p. 16). Para Salles, o folclore é o domínio coletivo do conhecimento e, como mencionamos anteriormente, é o produto da cultura em um sentido geral, sendo, portanto, identificado na sociedade de classes como cultura popular21. Segundo o autor, os termos que estabelecem uma relação de antagonismo são ‘cultura popular’ e ‘cultura erudita’, como afirma Thompson, e não o folclore, pois ficou esclarecido que, para poder existir, o termo ‘cultura popular’ está ligado a um conceito de classe, enquanto o folclore interage com todas as camadas de uma sociedade, ou seja, ele permeia todos os segmentos da sociedade e se manifesta independentemente de conceitos e de concepções produzidas pela elite, no caso de uma sociedade de classes22.
No contexto brasileiro, na medida em que adentramos na discussão sobre ‘conceitos’, podemos dialogar com a historiadora Martha Abreu (2002), ao problematizar o conceito de ‘cultura popular’, principalmente no sentido de fazer com que os profissionais de história atentem para a historicidade desse conceito, dos significados políticos e teóricos que vieram se incorporando ao longo do tempo. Nesse sentido, a autora procura compreender o conceito de “cultura popular” como uma “perspectiva”, como se fosse mais um meio de se observar a sociedade e tudo o que ela produz culturalmente, considerando-a como um “instrumento” que apresenta os problemas, fruto de uma realidade sociocultural (Abreu, 2002). Acreditamos que é interessante o posicionamento de Abreu, na medida em que dialogamos com uma historiadora que põe em questão a importância de se recuperar o sentido histórico do termo, o que consequentemente implicaria a ausência de determinadas ‘confusões’ entre os conceitos já expostos. Cabe salientar que Salles não exclui a possibilidade da aplicação do termo ‘cultura popular’, mas, ao que parece, quando este termo é utilizado por ele, aproxima-se de um dos polos no qual oscila: a acepção de povo (sinônimo). Salles admite utilizar o termo ‘cultura do povo’ ou ‘cultura popular’, no sentido de defini-la como sendo “o domínio coletivo do popular”, ao contrário da “cultura erudita”23. Em “Sociedade de Euterpe” (Salles, 1985), por exemplo, ao falar sobre a tradição musical do baixo Tocantins, no Pará, Salles aponta Cametá como celeiro de artistas e intelectuais, e busca ressaltar a tradicionalidade do teatro na região, porém a música se apresenta como sua atividade
“Texto-resposta ao questionamento teórico do folclore”. Coleção Vicente Salles, Biblioteca do Museu da Universidade Federal do Pará, Belém. 20 Para uma explicação sobre cultura popular em Salles, foram utilizados alguns textos não publicados, mas que se encontram no acervo documental de Salles, no MUFPA, além de entrevistas, quais sejam: “Texto-resposta ao questionamento teórico do folclore”; “Uma (re) visão do folclore”; entrevista realizada no dia 25 nov. 2011. 21 Texto de autoria de Vicente Salles intitulado “Folclore”, cedido à Alessandra Mafra pelo próprio Vicente Salles em novembro de 2011. 22 A partir da realização de algumas leituras do historiador E. P. Thompson (1998, 2001) percebemos que ele utiliza, mas também critica os folcloristas ingleses, pois, na medida em que constatou ser o folclore necessário para se estudar a cultura popular, também aponta ser indispensável reexaminar o material folclórico há muito recolhido na Inglaterra (Thompson, 2001, p. 234). 23 “Texto-resposta ao questionamento teórico do folclore”, p. 2. Coleção Vicente Salles, Biblioteca do Museu da Universidade Federal do Pará, Belém. 19
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preferida. Nesse sentido, ele destaca que o folclore dessa região e as festas populares, a exemplo de São João e do Carnaval, conservam a influência dos folguedos dos negros e dos caboclos. Como podemos observar, Salles aplicou separadamente os conceitos de folclore e de cultura popular no livro em questão (Salles, 1985, p. 147). Através da leitura de seus livros, percebemos que Salles faz uso, em grande parte, da palavra ‘folclore’ não se isentando da utilização do termo ‘popular’, como já mencionamos anteriormente. É necessário destacar que estamos tratando de um intelectual comprometido com a cultura, com as lutas sociais e políticas dos menos favorecidos, engajado politicamente, que vê no folclore, inclusive, uma forma de resistência. Dessa forma, podemos mencionar como exemplo o folclore negro que se mantêm até hoje nos costumes da Amazônia e do Brasil, trabalhado em seu livro “O negro no Pará, sob o regime da escravidão” (publicado em 1971), assim como em outras obras resultantes do desdobramento dos seus estudos sobre a presença negra na Amazônia. No livro “Marxismo, socialismo e militantes excluídos”, Salles (2001) nos apresenta uma reflexão essencialmente política, enfatizando a questão do folclore, por exemplo, logo no primeiro texto que diz respeito ao pensamento político na Cabanagem, revolta regencial ocorrida no Pará. O autor destaca que, em uma sociedade onde a maioria das pessoas se constitui de analfabetos, “[...] a história vive e se transmite por processos dinâmicos e essencialmente folclóricos [...]”, e que as ideologias se alimentam das lutas e das experiências sociais, podendo ajudar outros povos a partir da transmissão oral ou de processos gráficos (Salles, 2001, p. 14). O exemplo mais pertinente para demonstrarmos o valor das palavras de Salles seria a introdução de ideias revolucionárias na Amazônia, presentes nos escritos de “O negro no Pará, sob o regime da escravidão” (Salles, 2005) e “Memorial 24
da Cabanagem, um esboço do pensamento políticorevolucionário” (Salles, 1992), por exemplo. Em outro livro, intitulado “A música e o tempo no Grão-Pará”, Vicente Salles analisou a história da música na região amazônica em meio ao erudito e ao popular (Salles, 1980). Esta perspectiva de entrecruzamento entre o popular e o erudito é indicada por Lacapra como um aspecto favorável de trabalho, o que ele chamou de “relações efetivas e desejáveis entre cultura popular e alta cultura”, relação cada vez mais dificultada pela mercantilização da cultura (Lacapra, 1991, p. 123). Folguedos de cunho religioso foram impostos aos negros e aos índios. E o folclore amazônico ainda hoje é rico dessas tradições. Mestre Martinho foi o mais famoso festeiro de Belém de outrora... Sua biografia é bem conhecida: preto, ou melhor, mulato escuro, nasceu na cidade de Óbidos a 12 de outubro e veio pequeno para Belém. Era menino quando promoveu a primeira festa do Divino Espírito Santo, a 12 de agosto de 1848, na antiga Rua Nova de Santana, hoje Manuel Barata... (Salles, 1980, p. 164).
Neste trecho, é possível observar como Salles resume em sua narrativa a relação das influências e o amalgamento das culturas no Grão-Pará e a permanência do resultado desta fusão em meio à nossa tradição folclórica. É importante destacar, na obra em questão (Salles, 1980), a presença marcante da ideia de “circularidade, ou seja, um relacionamento circular entre as classes dominantes e subalternas, sendo caracterizado pelas influências recíprocas”, o que se faz presente na obra ora mencionada24. O que seria o autenticamente ‘popular’? Michel de Certeau (1995) indicou que há vários sistemas de explicações para essa pergunta e, assim, esse historiador faz uma importante referência a Marc Soriano e a G. Bollème sob essa perspectiva. Para Bollème, a ‘cultura popular’ seria o resultado de uma degradação da literatura de elite. Enquanto que para Marc Soriano, a literatura
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popular, aquela considerada tradicional, “... enraizada nas origens da história e transmitida por uma tradição oral...”, emergiria de uma literatura clássica, ou seja, ela remontaria a uma tradição popular até chegar às obras consideradas clássicas (Certeau, 1995, p. 67). Peter Burke (1989), em clássico estudo sobre cultura popular, fala desta como uma “redescoberta da cultura do povo”, sendo que o conceito de ‘cultura popular’ fora sendo ampliado na medida em que os historiadores e outros intelectuais alargaram seus interesses pelo exótico, pelas tradições populares (Burke, 1989). Se, ao final do século XVIII, o povo já era considerado interessante e exótico para alguns intelectuais, no início do XIX esse interesse irá se acentuar. Portanto, algumas razões merecem ser destacadas para podermos entender tal interesse: 1) intelectualmente – a valorização da cultura popular não deixou de ser uma reação ao Iluminismo, que não era aceito em todas as regiões (na Espanha, por exemplo, o gosto pela cultura popular no século XVIII foi uma espécie de reação/oposição à França, mas precisamente à sua ‘hegemonia intelectual’); 2) politicamente – a cultura popular estaria intimamente ligada à ascensão do nacionalismo25. Sobre a questão do nacionalismo, da identidade nacional, no Brasil, que se apresenta intimamente ligada às reflexões sobre ‘cultura popular’, Ortiz (1992) apresenta algumas considerações relevantes. Primeiramente, ao destacar que as análises sociológicas, históricas e antropológicas têm contribuído bastante para essas discussões, e que alguns termos, como ‘identidade’, ‘nação’, ‘popular’, estiveram presentes na história do pensamento latino-americano. Porém, esses termos foram associados a outros, como ‘atraso’, ‘desenvolvimento’ e ‘modernidade’, ou seja, os intelectuais do século XIX enfrentaram a contradição entre a “sensibilidade romântica” de apontar a
civilização e as condições reais e materiais que negariam tudo isso (Ortiz, 1992, p. 76-77). Nesse sentido, percebemos, por exemplo, que, ao valorizar a recuperação das tradições, esses ‘folcloristas’ voltar-se-iam para uma análise mais conservadora e, consequentemente, não acompanhariam o desenvolvimento do país e, assim sendo, sua modernização. A preocupação com a construção de uma ‘identidade cultural’ no Brasil remonta ao final do século XIX, estando presente no discurso intelectual de folcloristas, sociólogos, antropólogos, entre outros, a partir das contradições entre os termos apresentados anteriormente. E seria somente a partir de meados do século XX que a cultura popular assumiria uma perspectiva populista nos países latino-americanos, quando os governos procurariam oficializar a imagem do ‘popular’ com as identidades nacionais (Abreu, 2002). Segundo Néstor Canclini, é na prática populista que os valores tradicionais de um povo passam a ser assumidos e representados pelo estado, na figura de um líder carismático, quando os setores populares passam a fazer parte de um sistema inclusivo e de autorreconhecimento no governo (Canclini, 2005, p. 191), como aconteceu no Brasil com o governo Vargas (Williams, 2001). Insistimos no fato de que grande parte do que Vicente Salles produziu como pesquisador está ligado ao folclore e, mesmo tendo defendido a cientificidade dessa disciplina ou ciência, pelo menos no Brasil, não alcançou status acadêmico26, exercendo sua atividade à margem do ofício do historiador. Percebemos que a dificuldade do folclore em se afirmar enquanto ciência não apresentou muitas diferenças entre as aspirações no Brasil e na Europa, pois, como destacou Abreu (2002), foi trilhado um caminho semelhante na trajetória do folclore entre o Brasil, a América Latina e a Europa, tendo como principal ponto de confluência a recuperação da identidade do passado, indiscutivelmente ligada a uma ideologia política.
É interessante destacar o exemplo dos finlandeses, que escaparam dos suecos, mas temiam a Rússia por volta de 1809, no sentido de não perderem sua identidade para o império russo. Eles começaram a estudar sua literatura no final do século XVIII, sendo que um dos primeiros estudos sobre folclore foi a dissertação em latim de H. G. Phortam sobre a poesia finlandesa (1776), e que depois de 1809 acabou assumindo um lado mais político (Burke, 1989). 26 Entrevista concedida a Alessandra Mafra, através de carta, em maio de 2010. 25
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Entre outros trabalhos que nos possibilitam estender essa discussão, está o de Leonardo Ferreira (2007). Este autor aponta que a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro buscou compreender Amadeu Amaral, separando o político do folclorista. Contudo, sua figura política teria sido muito forte em São Paulo, sendo que ele mencionou claramente ser fundamental ter o folclore como um “aliado” no sentido político, com o intuito de conquistar maior possibilidade de intervenção aos costumes da população (Ferreira, 2007, p. 44). Ao entrarmos nessa discussão da relação entre folclore e política, faz-se necessário retomarmos a militância política de Vicente Salles, uma vez que o folclorista recupera Marx, ao destacar que a arte, em todas as suas manifestações, seria sempre uma prova palpável da existência do homem em si, no sentido de mostrar a capacidade criadora desse homem. Nesses termos, o sistema capitalista seria o maior responsável pela criação de condições que parecem não favorecer o ‘florescimento’ da arte popular, uma vez que esse sistema claramente parece limitar o seu espaço e, consequentemente, impõe restrições à criação dessas iniciativas populares. Salles, na realidade, quis trabalhar com essa ideia de problematizar a questão: o sistema não consegue ou não se permite enxergar o “homem criador” enquanto ser social, mas somente como indivíduo (Salles, 1999). Na Inglaterra do início do século XX, as manifestações folclóricas coletadas, tais como as canções, as danças e os costumes, passaram a ser do interesse dos intelectuais de esquerda, o qual, porém, perdeu as forças ainda nos anos 1930. Como nos exemplifica E. P. Thompson, a ascensão do fascismo propiciou uma ligação com os estudos folclóricos, mas com um sentido “reacionário ou racista”. Dessa forma, os intelectuais de esquerda, ou melhor, “os historiadores de esquerda” teriam que buscar outro tipo de “suporte”:
Enquanto isso, os historiadores de esquerda se voltaram para movimentos inovadores e racionalistas, fossem seitas puritanas ou os primeiros sindicatos, deixando a Sir Arthur Bryant e seus sequazes a celebração da “Alegre Inglaterra” e suas festividades de maio (maypoles) e paroquiais, bem como suas relações de paternalismo e deferência (Thompson, 2001, p. 233).
Portanto, podemos perceber o folclore constantemente envolvido com os aspectos políticos e ideológicos presentes em uma sociedade, considerando o dinamismo desta. O folclore, como destacou Salles (1999), seria algo criado e mantido por esta ‘sociedade’, porém, dentro de uma sociedade de classes, por exemplo, não seria somente a ‘elite’ que poderia omitir ou negar um fato folclórico, como observamos a partir das considerações de Thompson (2001). Destacamos anteriormente que o folclore, para Salles, transformou-se no que ele chamou de “matéria viva”, levando em consideração as formas folclóricas e sua dinâmica. Porém, o autor salienta que, por muito tempo, o folclore foi considerado como “matéria morta”, pois o interesse nos fenômenos folclóricos dependia diretamente da sua antiguidade, ou seja, esses fenômenos seriam voltados para um passado remoto somente. Segundo Salles, os folcloristas que consideravam o folclore como matéria viva, no sentido de ser analisado em seu dinamismo, posicionavam-se contrários aos folcloristas que chegavam ao folclore através da história, na medida em que eles confundiam folclore com tradição27 (Salles, 1969, p. 881). Segundo Ortiz (1992), a criação do folclore se deu na medida em que foi amparado pelo pensamento que estava se formando nas Ciências Sociais no século XIX. As ideias dos pensadores positivistas, como Comte e Spencer, apresentaram-se sob forma influente para a compreensão dos “fenômenos sociais”, pois, a partir do momento em que se tem a possibilidade de fundar uma ciência positiva, temos
Em “A invenção das tradições”, podemos observar uma densa discussão sobre o processo de construção das tradições e o modo pelas quais elas são reinventadas. Assim, logo na introdução, escrita por Eric Hobsbawm, é destacado que as “tradições”, que parecem ou são consideradas antigas, são, na verdade, por muitas vezes atuais ou recentes, isso quando não são inventadas. Ver Hobsbawm (1997, p. 9).
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os folcloristas “chamando” a responsabilidade de levarem o esclarecimento científico ao “popular”. E seria no limiar do século que se apresentaria essa “manifestação romântica”, no sentido de tornar algo ‘morto’ em algo que apresentasse um teor mais ‘positivo’, onde se pudesse ver essas classes e costumes populares com outros olhos. Apresentavase, então, certa inclinação para uma ‘nova sensibilidade’. A partir da reflexão feita até o momento sobre o folclore, faz-se necessário pensar sobre algo a mais, algo que o próprio Salles problematizou em seu texto sobre o questionamento teórico do folclore. Partindo da premissa de que cabe à história ter a função de trabalhar com as pesquisas do passado, passaria a história a ter o caráter de auxiliar de todas as ciências, porém o intelectual salienta que o folclore é, da mesma forma, auxiliar de qualquer ciência social, assim como pode ser considerado como auxiliar da história (Salles, 1969, p. 881). Salles acaba por justificar o termo “auxiliar” direcionado à História, pois não significaria reduzir a importância dessa ciência. Assim, ao que parece, o autor está mais preocupado em mostrar o sentido da reciprocidade das ‘disciplinas’. Permanecendo nesse raciocínio a respeito do folclore, deparamo-nos com uma trajetória de desfavorecimento do folclore entre os intelectuais. Das acusações de possuir uma ‘inconsistência teórica’, passando pelo fato de não conseguir comprovar sua cientificidade e, consequentemente, não conseguindo se firmar como disciplina acadêmica, percebemos, ainda, certa desconfiança e algumas limitações quanto ao folclore28. No que se refere à aspiração do folclore no rol das ciências, Salles destaca, a partir das colocações de Renato Almeida,
que o fato de o folclore ser tratado “por diversos processos científicos” é o que vem dificultar a construção de sua metodologia e, consequentemente, a autonomia deste assunto entre as ciências (Salles, 1969, p. 882). Ortiz (1992) apresenta um posicionamento bastante crítico a respeito desse tema; dessa forma, ele destaca que a suspeita dessa “inconsistência” advém da dificuldade dos folcloristas em delimitar sua área do conhecimento (Ortiz, 1992, p. 50). A Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro viveu um momento de intensa produção acerca dos estudos sobre o folclore no Brasil, após alcançar o ‘auge’. Inclusive, por chegar ao status de Instituto Nacional do Folclore, passou posteriormente para a condição de coordenadoria e, hoje, como ‘centro’, utiliza ‘folclore’ e ‘cultura popular’ para a sua denominação29, algo que, para Salles, parece ser redundante, levando em consideração os questionamentos e as discussões sobre os conceitos que foram realizados anteriormente (Salles, 1999, p. 7). Como antropólogo, Salles passou a encarar o folclore como o domínio coletivo do conhecimento, e admite que se trata de “uma panela que muitos mexem”. Assim, Salles enquadra o folclore como matéria de interesse da mídia, sendo lucrativo para a exploração das indústrias que impõem seus produtos. Diante dessa situação surge o movimento de ‘defesa’ do folclore, levado à frente pela CDFB.
VICENTE SALLES E SUA PESQUISA DE CAMPO Em meio à trajetória de Salles, deve ser ressaltada a questão da ‘pesquisa de campo’, técnica característica de seu trabalho como pesquisador. De “Um retrospecto memória” (Salles, 2007), podemos extrair uma breve
Como aponta Magda Ricci (2007), em seu artigo “Folclore, literatura e história: a trajetória de Henrique Jorge Hurley”, a história ainda continua “de costas” para a literatura e para o folclore (Ricci, 2007). Em meio a esta discussão, torna-se essencial dialogar com o papel do historiador e do folclorista. O historiador Aldrin Figueiredo (2008), ao falar sobre a produção dos literatos Pádua Carvalho e Juvenal Tavares, acaba por fazer uma discussão interessante acerca do assunto, uma vez que destaca a figura do folclorista e a relaciona com o ofício do historiador. 29 O Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular está atualmente ligado ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Em 1980, a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro foi incorporada à Fundação Nacional de Artes (FUNARTE), com o nome de Instituto Nacional de Folclore, que, em 1991, passa a ser intitulado de Coordenadoria de Folclore e Cultura Popular, que, finalmente, em 1997, passa a ser o atual centro (IPHAN, 2015). 28
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narrativa a respeito de suas andanças e sobre as pesquisas realizadas pelos interiores do estado do Pará. O ano de 1954 – no qual este folclorista se mudaria para o Rio de Janeiro – foi o momento em que Salles iniciou sua jornada, pesquisando bandas de música, carimbó e outras manifestações culturais da região do Salgado, no Pará, como ele mesmo aponta. Salles acabou por descrever com certo saudosismo sua passagem pela ilha de Algodoal: Detive-me no Algodoal, atraído pela estória de Maiandeua, a cidade encantada, de que tanto me falava Levi Hall de Moura. Guardo memória dessa vivência, do carimbó na casa do velho Oxalá. A comunidade de pescadores guardava seus mistérios e encantarias. Maiandeua estava no fundo da lagoa entre as dunas, como os lençóis do Maranhão, em cujas beiradas um velho caboclo, de nome Atanásio, fazia suas preces e invocações dos caruanas. Atanásio era pajé do Algodoal... (Salles, 2007, p. 15).
O excerto é uma descrição, com certa minuciosidade, da experiência de Salles nesse local, embora aponte que tenha guardado muito pouco dessa ‘primeira’ experiência de campo, talvez por ter feito poucas anotações, possivelmente por ter apresentado dificuldade em entender a fala de um mestre que atendia por nome de Atanásio em uma sessão de pajelança, na qual este velho caboclo segurava um cachimbo de tauari (espécie de fibra para enrolar cigarros) na boca, enquanto defumava a mesa e posteriormente vibrava o maracá. Salles registrou o canto de abertura de uma sessão: Abre-te mesa Abre-te ajucá! Abre-te cortina, Cortina reá! (Salles, 2007, p. 15)
E com certa dificuldade em entender a voz do mestre Atanásio, uma vez que ela surgia com estranha impostação, Salles obteve algo com sentido completo: Tontom é bela Cortei o pau, Fiz a gamela, E depois vendi, Fiquei sem ela. Santo Antônio de Lisboa, Morador de Portugal, Aí, depois vendi, Fiquei sem ela (Salles, 2007, p. 15-16)
Neste primeiro momento, a pesquisa de Salles enfrentou diversas dificuldades. Muitos estudos foram realizados por conta própria. Salles rememora, inclusive, que contou com a solidariedade dos amigos, a exemplo do músico santareno Wilson Fonseca30. No ano de 1957, Salles expressou todo seu entusiasmo em reunir material para futuras realizações no campo da história da música no Pará. Nesse contexto, ele explanava sobre um plano de “aproveitamento do folclore amazônico”, o qual contaria também com a presença do maestro Waldemar Henrique31. Para o desenvolvimento deste plano, Salles demonstrou a importância da colaboração de Wilson Fonseca, no sentido de reunir farto material folclórico da região de Santarém, como as cirandas cantadas pelas crianças dessa região, cantos do ‘Sairé’, lundus, cateretês, cantos de ‘pajés’, entre outros. A realização desse trabalho seria desenvolvida em parceria com os músicos em questão, o qual ficaria divido da seguinte forma: o cancioneiro urbano e informações sobre a região do Marajó ficariam sob a responsabilidade de Waldemar
Salles apresenta uma breve biografia sobre esse músico em seu livro “Sociedades de Euterpe: as bandas de música no Grão-Pará” (Salles, 1985), destacando a trajetória de suas composições, principalmente no que diz respeito à música sacra. 31 Carta de Vicente Salles a Wilson Fonseca. Rio de Janeiro, 21 dez. 1957. Material histórico-cultural - Vicente Salles. Correspondência expedida - Música. Coleção Vicente Salles, Biblioteca do Museu da Universidade Federal do Pará, Belém. O Maestro e compositor Waldemar Henrique nasceu em Belém no dia 15 de fevereiro de 1905, na chamada rua Nova de Santana (atual Manoel Barata). Iniciou seus estudos musicais em Belém. Percorreu o Brasil e outros países difundindo o folclore da região amazônica, apresentando-se com a irmã Mara, intérprete de suas músicas. Em 1943, conheceu Mário de Andrade, um dos incentivadores de sua obra (Henrique, 1996). 30
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Henrique; o que diz respeito à região do baixo Amazonas ficaria sob responsabilidade de Wilson Fonseca; e a zona brangantina, assim como a pesquisa histórica, ficariam sob a incumbência de Vicente Salles32. Em meio à correspondência escrita ao amigo Wilson Fonseca em 1957, Salles adiantaria dados sobre a sua possível visita ao Pará no ano seguinte, com o objetivo de ir até a cidade de Cametá, no interior do estado. O pesquisador já teria tido notícias sobre um determinado músico e compositor que poderia ajudá-lo a reunir o material sobre a zona do Tocantins. De fato, Salles foi a Cametá e está registrada em sua memória (Salles, 2007, p. 18) a referência a duas pessoas que contribuíram com seu trabalho de campo no município: Raimundo Penaforte e mestre Castro33. Exatamente no ano de 1958, temos notícias da primeira pesquisa de campo realizada por Vicente Salles no Pará, mais ampla e com um bom material de apoio. Como ele próprio descreve: “[...] com um gravador de fitas emprestado por Mozart de Araújo, gravando o ritual do baborixá Miguel Silva, e a folia de São Sebastião, de Tó Teixeira. Também fui a Cametá colher os frutos da terra com Raimundo Penafort e mestre Castro” (Salles, 2007, p. 18). Dessa vez, ao que parece, a estrutura para a realização da pesquisa apresentava-se de uma forma mais favorável para o desempenho de seus estudos. Em 1971, ano da publicação do clássico de Vicente Salles “O negro no Pará, sob o regime da escravidão”, encontramos registrado o entusiasmo de Salles pela pesquisa
de campo, que agora se voltava para a presença negra na Amazônia. O folclorista destacava a importância de se estudar os mocambos existentes na região Norte, como o da região do Gurupi; o do bairro chamado Loanda, em Alenquer; o da vila de Curuá, entre outros locais. O pesquisador chegou até mesmo a se desculpar com a antropóloga Anaíza Vergolino pela sua preocupação excessiva com o folclore34. Assim, o livro de Salles apresenta-se como um trabalho permeado de ‘possibilidades’, uma vez que muito ainda teria que ser desenvolvido nesse aspecto. Seria possível que “O negro no Pará” se apresentasse em alguns outros volumes, ou melhor, em outros trabalhos extensivos. Dessa forma, percebemos que Salles ‘desvia-se’ da pesquisa com a música, nesse momento, para se concentrar nos estudos sobre o negro e sua cultura. Acreditamos que seja relevante atentarmos aos ‘primeiros’ interesses de pesquisa de Vicente Salles, que dizem respeito à música e à literatura. Sobre essas duas temáticas, Salles menciona que, por muito tempo, ficou disperso, “querendo fazer música e literatura” e, ao se referir ao contato com alguns professores do Departamento de Antropologia da UFPA, que somente se iniciou quando da fase final dos escritos para “O negro no Pará, sob o regime da escravidão”, menciona: “[...] Mas da música cheguei ao folclore e deste à antropologia [...]”. Com esse pequeno fragmento de frase, Salles nos apresentaria, em certa medida, a possibilidade de compreensão de ‘parte’ ou apenas do início do que representaria a sua trajetória35.
Carta de Vicente Salles a Wilson Fonseca. Rio de Janeiro, 21 dez. 1957. Material histórico-cultural - Vicente Salles. Correspondência expedida - Música. Coleção Vicente Salles, Biblioteca do Museu da Universidade Federal do Pará, Belém. 33 As cartas trocadas com Wilson Fonseca apontam para uma visita de Salles a Belém nesse ano de 1957, para realizar pesquisas folclóricas na cidade, a partir da coleta de gravações de melodias. Esse material seria utilizado posteriormente, nos programas folclóricos na Rádio do Ministério da Educação (MEC), no Rio de Janeiro. Salles expõe ao amigo o resultado de sua coleta, onde obteve um total de sete jornadas de um pastoril, uma ladainha em louvor a São Sebastião e uma coleção onde constam 31 cirandas. Carta de Salles a Wilson Fonseca, Belém, 19 jan. 1957. Material histórico-cultural - Vicente Salles. Coleção Vicente Salles, Biblioteca do Museu da Universidade Federal do Pará, Belém. 34 Carta de Vicente Salles a Anaíza Vergolino. Rio de Janeiro, 26 mar. 1971. Correspondência expedida. Coleção Vicente Salles, Biblioteca do Museu da Universidade Federal do Pará, Belém. 35 Carta de Vicente Salles a Napoleão Figueiredo. Rio de Janeiro, 1 jul. 1970. Material histórico-cultural - Vicente Salles. Correspondência expedida - Folclore. Coleção Vicente Salles, Biblioteca do Museu da Universidade Federal do Pará, Belém. 32
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O FOLCLORE E A HISTÓRIA DA MÚSICA NA AMAZÔNIA Vicente Salles dedicou boa parte de suas pesquisas ao tema da música. Seu primeiro livro, “Música e músicos do Pará”, publicado em 1970, foi gerado a partir do seu interesse pelo tema. Esse livro acabou por tomar corpo de uma enciclopédia, apresentando algumas personalidades que se destacaram no meio musical no Pará, através de breves biografias, assim como informações sobre partituras, instrumentos musicais e folguedos folclóricos36. A respeito desse livro, existem algumas particularidades que merecem ser destacadas. Foi o primeiro livro de Salles sobre música paraense publicado, além de ter proporcionado a amizade entre ele e o jornalista Lúcio Flávio Pinto. Foi a partir das críticas direcionadas a essa obra que o jornalista tornou-se amigo e grande admirador de Salles37. Nas respostas às críticas feitas por Lúcio Flávio, observamos certa ‘fragilidade’, admitida por Salles, principalmente a partir da ‘reavaliação’ de alguns conceitos, o que não permitiu ao folclorista responder certas questões naquele momento, conceitos esses referentes a uma perspectiva folclórica38. Dessa forma, Salles se viu envolvido em uma rede de questionamentos, principalmente no que se referia aos ‘conceitos’39, tensão que se apresenta tanto no diálogo com o jornalista Lúcio Flávio Pinto quanto no “Texto-resposta ao questionamento teórico do folclore” que vimos anteriormente. Em carta direcionada a Lúcio Flávio, Salles
demonstrava suas inquietações através de perguntas, a exemplo de “como definir ‘música colonial’?”. Seria denominada música colonial aquela que o europeu impôs? E a “música popular”, como seria definida? Seria então necessário excluir a contribuição europeia? Seria possível que o “provocador” do debate estivesse encaminhando ou sugerindo a Salles um estudo comparativo entre culturas? Além disso, Salles demonstra um contexto amplamente confuso ao fazer referencia à música popular, pois não se tinha uma definição clara e precisa ao ser comparada à música folclórica40. Em “A música e o tempo no Grão-Pará”, por exemplo, publicado em 1980, Salles abordou a história da música no Pará, especialmente através do teatro, assim como destacou personalidades importantes, nos devidos contextos, que fizeram parte da história da música na Amazônia, utilizando-se das descrições de alguns missionários, como do Padre Bettendorf (século XVII), que, em seus relatos, fala a respeito da música praticada nos engenhos do Pará (Salles, 1980, p. 154). Vicente Salles, ao destacar o “teatro missioneiro”, retoma a discussão sobre a influência das práticas desses missionários sobre os negros e os índios da região, ou seja, de como estimulavam ou instituíam os “cortejos que se folclorizavam” (Salles, 1980, p. 150). Outro aspecto relevante na presente obra é a forma como ele descreve a evolução da música sacra e a ligação desta evolução com as oscilações políticas
O desenvolvimento de suas pesquisas a partir da música possibilitou a Salles apresentar uma compreensão da história do teatro, de músicos e de fatos folclóricos na Amazônia e no Brasil, uma vez que a música se apresenta como um dos componentes dentro de uma análise cultural. O livro teve a sua segunda edição lançada em 2002, em versão corrigida e ampliada, aparecendo como uma microedição do autor, porém destoa da estrutura apresentada de suas outras microedições, pois foi apresentada em capa dura e em um formato maior. Existe também uma publicação feita pela Secretaria de Cultura do Estado do Pará como segunda edição, no ano de 2007, em homenagem a Vicente Salles, patrono da Feira Pan-Amazônica do Livro, em Belém, nesse ano. 37 Resposta de um e-mail dirigido à Alessandra Mafra em 1 de novembro de 2011. 38 Carta de Vicente Salles a Lúcio Flávio Pinto. Rio de Janeiro, 28 mar. 1974. Material histórico-cultural - Vicente Salles. Correspondência expedida - Comunicação. Coleção Vicente Salles, Biblioteca do Museu da Universidade Federal do Pará, Belém. 39 Algo com que Salles se preocupou foi a questão dos conceitos, pois se trata de uma análise delicada, uma vez que uma palavra pode se tornar matriz de “polêmicas infindáveis” apenas, em vez de esclarecer algo. “Texto-resposta ao questionamento teórico do folclore”. Coleção Vicente Salles, Biblioteca do Museu da Universidade Federal do Pará, Belém. 40 Carta de Vicente Salles a Lúcio Flávio Pinto. Rio de Janeiro, 28 mar. 1974. Material histórico-cultural - Vicente Salles. Correspondência expedida - Comunicação. Coleção Vicente Salles, Biblioteca do Museu da Universidade Federal do Pará, Belém. 36
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e consequentes mudanças no meio cultural no século XIX. Observemos: O corpo artístico do bispado paraense sofreu alterações em diferentes épocas, reduzindo-se ou aumentando. Esteve sempre à mercê das oscilações políticas. Depois de d. frei Caetano Brandão, que elevou a música da Catedral ao melhor nível que o ambiente permitia, não houve continuadores mais entusiastas. [...] Quando mais se acentuava a decadência artística da Sé, com seu pessoal desorganizado e por vezes envolvido nos acontecimentos políticos, vêmolo pastoreando seu rebanho e compondo seus próprios hinos. [...] A música na Catedral entrou naturalmente em colapso, com a consequente desorganização de seu pessoal artístico, durante a Cabanagem (Salles, 1980, p. 124-126).
Em “Sociedade de Euterpe: as bandas de música no Grão-Pará”, publicado em 1985, Vicente Salles trata da origem, da evolução e da atividade das bandas de música no estado do Pará. Concluído em 1982, este livro, na verdade, seria uma extensão da obra “A música e o tempo no GrãoPará”. Objetivando esclarecer as origens tanto das bandas militares da capital como das interioranas, Salles (1985) aborda a trajetória da música, desde o Brasil Colônia. Ao que tudo indica, este livro resultaria da pesquisa de campo realizada no início da década de 1950, quando o pesquisador percorreu os interiores do estado do Pará, coletando informações a respeito das bandas de músicas. Observamos que, a partir do seu interesse pela música, Salles necessitou ir para campo, porém percebeu que seria necessária a realização de um levantamento histórico para um embasamento mais denso de seu trabalho. Oliveto (2007) menciona que, para os trabalhos desenvolvidos por Salles sobre folguedos folclóricos e bandas de música, foi essencial ir aos locais para obter as informações, no sentido de completar o levantamento histórico de suas pesquisas (complementação entre
história e folclore). De tal forma, poderíamos falar sobre alguns exemplos dessa relação, a partir das constatações possibilitadas pela leitura das correspondências existentes na Coleção Vicente Salles. Observamos, entre a troca de correspondência com músicos, uma quantidade considerável de cartas trocadas com Wilson Fonseca, de Santarém, no Pará, e com o maestro Waldemar Henrique, de Belém. Ambos são considerados personalidades que contribuíram para as pesquisas de Salles no anseio de desvendar a música e o folclore da região amazônica, primando pela importância da pesquisa de campo. Além da contribuição de músicos e de compositores, entre outros amigos, para o desenvolvimento das pesquisas de campo a respeito da música na Amazônia e no Brasil, não devemos deixar de mencionar o auxílio de sua esposa, Marena Salles. Violinista profissional e filha do violinista e compositor Marcos Salles, Marena participou de muitas pesquisas ao lado do marido, tendo sido responsável por diversas transcrições musicais do que era coletado por Salles, a exemplo da pesquisa de campo na ilha de Mosqueiro, no Pará, em 1972, quando registraram as manifestações folclóricas do local (Oliveto, 2007, p. 165)41.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Este texto objetiva compreender parte da trajetória intelectual do pesquisador e folclorista Vicente Salles, apresentando-se sob a forma de investigação sobre como surgiu e se intensificou o interesse desse pesquisador pelo tema do folclore amazônico, especialmente o paraense. Nesse sentido, exploramos aspectos sobre o conceito de folclore segundo Salles, da discussão em torno das ‘interseções’ entre folclore e cultura popular, sobre suas pesquisas de campo e do trato com o folclore em algumas de suas obras, a partir, inclusive, dos ideais propostos pela Campanha de Defesa do Folclore, da qual fez parte.
Em 2008, Salles publicou o “Livro de Marena”, em que foram reunidos alguns poemas escritos nas décadas de 1950 e 1960, em Belém e no Rio de Janeiro (Salles, 2008). Logo na apresentação da obra, Salles faz questão de externar a cumplicidade existente entre o casal, tanto pelo lado pessoal como pelo profissional. Ele assinala que suas vidas foram unidas a partir de um ideal de amor e respeito e que buscaram sempre lutar pela igualdade social através da pesquisa histórica (Salles, 2008).
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Do Folclorismo à História da Cultura na Amazônia: o percurso construído por Vicente Salles
A música, o negro e o folclore são os três principais eixos de análise da obra produzida por Vicente Salles. Esses são temas exaustivamente abordados pelo autor ao longo de sua trajetória intelectual e que caminharam em meio a discussões políticas, sobretudo dentro do campo de sua militância marxista. A partir destes eixos, e com forte influência de seu posicionamento político, a obra de Salles embrenhou-se por outros temas da história do Pará, recuperando personagens e interpretações populares do passado da Amazônia, a exemplo da presença do negro e de sua cultura na região. Possivelmente esse engajamento e o compromisso com a defesa político-cultural e do folclore do povo alicerçam-se, inicialmente, a partir de sua história de vida. Parte de sua infância foi vivida na cidade de Castanhal (interior do Pará), em proximidade com as comunidades negras do entorno. Outros pontos essenciais para explicação de seu empenho neste aspecto foram os contatos e a experiência de pesquisa e de vida recebidas ainda na juventude, como a de Bruno de Menezes. Posteriormente, já na fase adulta, não há como desconsiderarmos a forte presença de Edison Carneiro, figura ímpar e decisiva para a carreira e as escolhas intelectuais de Salles. O estudo do negro no Pará proporcionou a Salles a oportunidade de relacionar seus amplos campos de interesse, juntando a música, a literatura e o folclore com questões políticas e sociais, como a resistência negra e a luta de classes. Nesse sentido, para Vicente Salles, coletar material e tratar do folclore do negro, da música, entre outras temáticas, foi, antes de tudo, algo que o permitiu discutir a luta social e a política dos excluídos no Norte do Brasil. Mais do que isso, à época da Revista Brasileira de Folclore (1961-1976) e da produção do livro “O negro no Pará, sob o regime da escravidão” (nos idos da década de 1960), a obra de Salles apresentava-se como forma de resistência em um dos períodos mais delicados da história do Brasil, a ditadura militar.
AGRADECIMENTOS Este artigo representa uma versão revisada do segundo capítulo da dissertação de mestrado “O arauto da cultura paraense: uma história intelectual de Vicente Salles”, defendida no Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia (PPHIST), da Universidade Federal do Pará (UFPA), com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). As autoras agradecem aos professores Aldrin Figueiredo e Silvana Rubino pelas contribuições feitas por ocasião do exame de defesa da dissertação de mestrado. REFERÊNCIAS ABREU, Martha. Cultura popular, festas e ensino de história. In: ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA, 10., 2002, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: ANPUH/Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2002. ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz. São Paulo: Livraria Duas Cidades/Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976. ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. A sociologia de Florestan Fernandes. Tempo Social, v. 22, n. 1, p. 9-27, jun. 2010. DOI: http:// dx.doi.org/10.1590/S0103-20702010000100001. BEZERRA NETO, José Maia. A presença Negra no Pará: resenha de um trabalho pioneiro. Revista Estudos Amazônicos, v. 3, n. 1, p. 167-172, 2008. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é folclore? São Paulo: Brasiliense, 1984. BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. CANCLINI, Néstor Gárcia. Hybrid cultures: strategies for entering and leaving modernity. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2005. CARNEIRO, Edison. Dinâmica do folclore. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Cultura popular e sensibilidade romântica: as danças dramáticas de Mário de Andrade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 19, n. 54, p. 57-78, fev. 2004. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69092004000100004. CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro; VILHENA, Luís Rodolfo da Paixão. Traçando fronteiras: Florestan Fernandes e a marginalização do folclore. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 3, n. 5, p. 75-92, 1990.
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A inserção da obra “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido”, de Leandro Tocantins, na imprensa carioca nos anos de 1960 The insertion of Leandro Tocantins’s “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido” in Rio de Janeiro Press in the 1960s Alexandre Pacheco Universidade Federal de Rondônia. Porto Velho, Rondônia, Brasil
Resumo: Este artigo analisa a inserção da obra “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido”, de Leandro Tocantins, na imprensa carioca nos anos de 1960. A fundamentação teórica levou em conta, por um lado, os estudos da recepção e da função do autor em nossa contemporaneidade; por outro, os estudos sobre as relações entre literatura e cordialidade na cultura brasileira. Para sustentar essa problematização, foram utilizados textos de Jacques Leenhardt, Roger Chartier, João Cezar de Castro Rocha e Flora Süssekind. A análise operada permitiu observar que a recepção da obra “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido” no meio jornalístico do Rio de Janeiro sofreu influências decisivas da cordialidade que jornalistas e críticos dispensaram ao autor e ao político Leandro Tocantins nos anos de 1960. Palavras-chave: Literatura. Recepção. Imprensa carioca. Integração da Amazônia. Abstract: In this article we analyze Leandro Tocantins’s “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido” [“Euclides da Cunha and the Paradise Lost”], was received by the in Rio de Janeiro press in the 1960s. We take into account the reception studies and the author’s function in our contemporary world. Studies on the relationship between literature and cordiality in Brazilian culture also support our work. Thus, scholars such as Jacques Leenhardt, Roger Chartier, João Cezar de Castro Rocha and Flora Süssekind are essential to understand and explore the issue. Analysis allowed us to observe that the reception of Tocantins’s “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido” in Rio de Janeiro press received decisive influence from the cordiality with which journalists and critics treated the author and politician Leandro Tocantins in the 1960s. Keywords: Literature. Reception studies. Rio press. Amazonian integration.
PACHECO, Alexandre. A inserção da obra “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido”, de Leandro Tocantins, na impressa carioca nos anos de 1960. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 12, n. 1, p. 241-255, jan.-abr. 2017. DOI: http://dx.doi. org/10.1590/1981.81222017000100014. Autor para correspondência: Alexandre Pacheco. Universidade Federal de Rondônia. Campus José Ribeiro Filho. Rodovia 369, km 9,5. Porto Velho, RO, Brasil. CEP 76801-059 (nelsonfonseca4@hotmail.com). Recebido em 30/05/2016 Aprovado em 06/12/2016
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A inserção da obra “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido”, de Leandro Tocantins, na imprensa carioca nos anos de 1960
INTRODUÇÃO Desde o início dos anos de 1960, os nomes do escritor Euclides da Cunha e do historiador Leandro Tocantins haviam sido relacionados pela crítica no que se refere à problemática amazônica. Entretanto, com a obra “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido”, editada em 1966 e reeditada em 1968, esse encontro foi selado por meio da apropriação singular que Leandro Tocantins realizou da figura do autor fluminense à frente da Expedição de Reconhecimento do Alto Purus, sobretudo ao realizar a interpretação das cartas e dos relatórios produzidos no transcurso dessa expedição amazônica, em inícios do século XX. Essa apropriação singular levou jornalistas e críticos da imprensa carioca, nos anos de 1960, a considerarem esta obra e o seu escritor como reveladores de um Euclides amazônico, precursor da luta pela integração da Amazônia ao restante do país, desde o momento em que aceitou o convite do Chanceler Barão do Rio Branco para o comando da Expedição de Reconhecimento do Alto Purus. Tal forma de recepção por parte de jornalistas e de críticos em relação ao livro, como será visto, não deixou de sofrer os efeitos que a representação de Leandro Tocantins possuiu como político a serviço dos interesses do Estado brasileiro na Amazônia junto à imprensa do Rio de Janeiro nos anos de 1960. O que está em jogo, no presente artigo, não é necessariamente a análise da recepção de Leandro Tocantins sobre Euclides da Cunha, mas sim a abordagem da recepção por parte da imprensa carioca em relação à obra “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido” e de seu autor. Esta pesquisa necessitou considerar, por um lado, os estudos da recepção e da função do autor em nossa contemporaneidade e, por outro, os estudos sobre as relações entre literatura e cordialidade na cultura brasileira. Para sustentar essa perspectiva teórica, foram utilizados textos de Leenhardt (1997), Chartier (2012), Rocha (1998) e Süssekind (1993). Chartier (2012), em sua obra “O que é um autor? Revisão de uma genealogia”, apresenta importante discussão no âmbito da aliança entre a crítica textual e a
história cultural, extremamente profícua para a pesquisa em questão, principalmente por identificar certos conjuntos de variações que envolvem os estudos dos textos literários e da função do autor; conjuntos que [...] designam a mobilidade, a descontinuidade das categorias de atribuição, de designação e de classificação das obras, categorias estas que permitem produzir ou compreender a cultura escrita e, obviamente, entre elas, a presença do nome próprio, do nome do autor [...] (Chartier, 2012, p. 24-28).
De acordo com Chartier (2012, p. 27), o autor deve, antes, ser definido pela função variável e complexa que possui no âmbito dos discursos, ao invés de o ser pela constatação de sua existência como indivíduo: “[...] a função autor é característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de certos discursos no interior de uma sociedade”. Dessa forma, a função autor constitui-se por “[...] operações complexas que relacionam a unidade e a coerência de alguns discursos a um dado sujeito [...]”, as quais realizam a classificação de certos enunciados, capazes de promover uma separação “[...] entre o nome do autor e o indivíduo real, entre uma categoria do discurso e o eu subjetivo” (Chartier, 2012, p. 28-29). Esse princípio de identificação a partir da função discursiva apontaria, entretanto, para um processo de instabilidade na definição autoral das obras, já que tanto a linguagem como as tradições ligadas à determinada função discursiva promoveriam um processo de ‘desindividualização’ do autor e do sujeito empírico subjetivo ligado ele:
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Essa dupla desinvidualização do autor com a remissão, de um lado, às formas herdadas dos gêneros, das convenções, das tradições e, de outro, à própria linguagem, ao que Foucault [...] chamou de “o pensamento de fora”, ou seja, esse transbordamento, essa instabilidade, essa pluralidade da significação que é remetida direta, e exclusivamente, ao funcionamento automático e impessoal da linguagem na obra (Chartier, 2012, p. 33-34).
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Se, por um lado, essa discussão teórica de Chartier (2012) norteou determinada percepção deste estudo sobre as relações entre o discurso presente em “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido” e a construção de seu autor, por outro, ver-se-á que a recepção desta obra e de seu autor – no contexto em questão – relacionou-se intimamente à representação que o cidadão e o homem político Leandro Tocantins possuíram na imprensa nos anos de 1960. Com a publicação de Leenhardt (1997), tornou-se mais evidente a operacionalização daquilo que Chartier (2012) designa como os sentidos, os quais definem, por meio de determinada função discursiva, a constituição de um autor, sobretudo no que se refere à discussão de Leenhardt (1997) sobre a apropriação da obra literária em termos sociológicos, vista como um objeto estético. Esta apropriação é capaz de produzir uma série de significados para a obra literária diante de seu tempo, mediante determinadas aspirações, valores, posições políticas e interesses individuais ou de grupos sobre ela, enquanto um símbolo sensível. De acordo com Leenhardt (1997, p. 9-10): [...] Jan Mukarovsky, figura essencial no círculo de Praga, já indicava em 1966 que a obra literária, enquanto um fato semiológico, é em parte um signo material polissêmico e, em outra, uma concretização ou interpretação desse signo pela consciência coletiva dos membros de um grupo social particular. Ele chamava a obra concretizada, ou interpretada, “de objeto estético”, cujo conteúdo semântico corresponde ao sistema de valores e ao sistema normativo da sociedade que o acolheu [...].
No caso em questão, trata-se da percepção sobre como o diálogo com Leenhardt (1997) pode apontar desdobramentos de sentidos a partir da recepção do Euclides amazônico, de Leandro Tocantins, na obra em foco.
O diálogo teórico com Rocha (1998), por meio de “Literatura e cordialidade”, possibilitou a compreensão do significado da inserção da obra em foco no contexto da cultura brasileira, ou seja, no âmbito do que ele denomina de uma sociedade literária composta por homens cordiais. Essa apreensão fez com que fossem percebidos os limites da teoria de Chartier (2012) sobre a função autor, já que, em nossa sociedade, o sujeito empírico, o cidadão ligado ao autor literário, exerce uma influência decisiva para a inserção de suas obras, por intermédio de suas relações privadas com o poder, no interior do campo literário brasileiro. A discussão de Süssekind (1993), no livro “Papéis colados”, nos levou à compreensão de como as abordagens impressionistas de uma influente crítica de rodapé foram decisivas para a construção do autor Leandro Tocantins (1992), em “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido”, por intermédio da tradição de seu discurso romântico e ecológico presente na abordagem da paisagem amazônica feita pela imprensa carioca nos anos de 1960.
A INSERÇÃO SOCIAL DA OBRA “EUCLIDES DA CUNHA E O PARAÍSO PERDIDO” DIANTE DA PROBLEMÁTICA AMAZÔNICA NOS ANOS DE 1960 Leandro Tocantins nasceu em Belém do Pará. No Rio de Janeiro, estudou no Colégio Pedro II e tornou-se bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi escritor e historiador. Entre seus principais livros, podemos destacar: “O rio comanda a vida” (1952); “Amazônia: natureza, homem e tempo” (1960); “Formação histórica do Acre” (1961b); “Santa Maria de Belém do Grão Pará: instantes e evocações da cidade” (1963); “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido” (1966)1.
A primeira publicação da obra “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido” foi realizada pela Editora do governo do estado do Amazonas, em 1966. As publicações seguintes foram: segunda edição pela Editora Record, em 1968; terceira edição pela Civilização Brasileira, em 1978; e quarta edição pela Biblioteca do Exército Editora, em 1992.
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A inserção da obra “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido”, de Leandro Tocantins, na imprensa carioca nos anos de 1960
Como homem público, Leandro Tocantins tornou-se representante da Superintendência do Plano de Valorização da Amazônia (SPVEA) na cidade do Rio de Janeiro, nos inícios dos anos de 1960, além de ter atuado nesta cidade como assessor de Arthur Cézar Ferreira Reis, quando este governou o estado do Amazonas, a partir de 1964. Tal episódio rendeu-lhe a oportunidade de realizar pesquisas no arquivo histórico do Itamaraty e de escrever a obra “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido”. Essas relações políticas no âmbito da SPVEA e no governo do estado do Amazonas, somadas às publicações de certas obras amazônicas de Leandro Tocantins por editoras sediadas no Rio de Janeiro2, foram decisivas para que o autor e a sua obra fossem reconhecidos pela imprensa carioca, em especial por meio dos anseios que jornalistas, críticos e intelectuais possuíram em discutir soluções para as fragilidades da Amazônia diante do contexto nacional e internacional da época. Considerando-se o cenário descrito, cabe ponderar a inserção social da obra “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido” a partir da publicidade que a imprensa carioca realizou nos anos de 1960. Para tanto, em um primeiro momento, deve-se procurar entender como se deu o efeito representativo da personagem Euclides da Cunha no âmbito da circulação e do funcionamento do discurso de Leandro Tocantins, tomando-se a recepção da obra nos principais órgãos da imprensa carioca nos anos de 1960; em um segundo momento, torna-se mister apontar as influências que a representação de Leandro Tocantins, como autor reconhecido e como homem público influente, exerceu sobre uma recepção positiva da obra junto à imprensa.
A INSERÇÃO DA OBRA “EUCLIDES DA CUNHA E O PARAÍSO PERDIDO” NA IMPRENSA CARIOCA NOS ANOS DE 1960 Desde o lançamento da obra “Amazônia: natureza, homem e tempo” (1960) e do relançamento de “O rio comanda a vida” (1961a), passando por livros como “Formação histórica do Acre” (1961b), “Acre, Rio Branco e espírito Luso” (1962), “Santa Maria de Belém do Grão Pará” (1963), “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido” (1966), entre outros títulos, a crítica de jornais e revistas do Rio de Janeiro sempre foi favorável à produção de Leandro Tocantins, destacando a sensibilidade literária deste escritor, sobretudo no trato das questões amazônicas, com o uso de lirismo épico-romanesco, presente no seu discurso histórico e focado na descrição ecológica da região, bem como na necessidade de adaptação do homem ao meio. Vários artigos na imprensa carioca no transcurso dos anos de 1960 anotaram as características presentes na obra do autor paraense. Como exemplo, vale citar a publicação presente no Correio da Manhã3, de 11 de novembro de 1961, em que “Formação histórica do Acre” é exaltada como “[...] a epopeia da incorporação definitiva do Acre ao patrimônio territorial brasileiro, as lutas travadas com armas da guerra e da diplomacia para fixação de uma linha que não espoliasse o Brasil [...]” (Formação..., 1961, p. 9). Vale registrar que, em 10 de agosto de 1961, no mesmo jornal, uma matéria sobre a obra “O rio comanda a vida” a qualifica como “[...] atraente e fascinante, à semelhança de um romance é pois este livro rigorosamente científico de Leandro Tocantins” (O rio..., 1961, p. 9). Destarte, as características líricas e ecológicas também puderam ser notadas no livro “Santa Maria de
Tratam-se de casas publicadoras Editora Civilização Brasileira, Conquista Editora, Editora Letras e Artes e a Gráfica Record Editora. Uma dessas, a Conquista, possuiu uma coleção intitulada “Temas Brasileiros”, que foi dirigida por Arthur Reis, padrinho intelectual e político de Leandro Tocantins, na qual foi publicada a obra “Amazônia: natureza, homem e tempo”, do autor paraense, em 1960. 3 De acordo com Sodré (1999), o jornal Correio da Manhã posicionou-se, em meados dos anos de 1960, como um dos baluartes das liberdades individuais, denunciando os desmandos do regime instaurado em 1964, estando imerso em um contexto no qual a imprensa estrangeira avançava sobre o mercado brasileiro. 2
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Belém do Grão Pará”, em notícia do crítico Chermont de Britto, no Jornal do Brasil4, de 20 de dezembro de 1963: Há capítulos de Santa Maria de Belém do Grão Pará em que o grave historiador que é Leandro Tocantins se transforma no poeta apaixonado de sua terra e então surgem páginas de um lirismo encantador, de emoção quase religiosa, em que todas as galas e garridices da terra, do céu, da floresta, do rio e da mata palpitam e resplandecem (Britto, 1963, p. 8).
É interessante destacar que Britto (1961), por meio de suas posições nacionalistas, não só criticou certas obras literárias ligadas à temática amazônica, mas também denunciou, em vários artigos no Jornal do Brasil, a situação de fragilidade da região nos anos de 1960. Como se evidencia, a repercussão das obras e do autor na mídia se fazia presente, e a recepção de “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido” não foi diferente. De antemão, vale apontar que Leandro Tocantins, ao longo da edição de 1966 desta obra, estabeleceu nos capítulos “O sonho”, “A viagem”, “O deserto” e “A obra” um diálogo com a escrita e com a personalidade do homem Euclides, totalmente representativo de sua cumplicidade literária com o autor fluminense. Essa cumplicidade foi necessária para a construção de uma imagem heroica de Euclides, mesmo quando expressou contrariedades a respeito da Amazônia nos documentos relativos à Expedição de Reconhecimento do Alto Purus (Silva; Pacheco, 2014). Nesse sentido, mediante o memorável inventário que realizou da viagem da Comissão Mista Brasileira Peruana de Reconhecimento do Alto Purus, efetivada entre os anos de 1904 e 1905, Leandro Tocantins afirmou, no prólogo para a edição de 1968 de “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido”, ter se apropriado de um Euclides menos influenciado por autores estrangeiros, já que teria se encontrado com sua verdadeira personalidade diante
da natureza amazônica. Essa personalidade, servindo-se de sua própria intuição e experiência intelectual adquirida, quase sempre acertou o prognóstico acerca da Amazônia, haja vista que, para o escritor paraense, sua “[...] tendência inata de aproximação com a natureza conduziu-o à observação experimental: muito mais na Amazônia do que nos sertões baianos” (Tocantins, 1992, p. 14). Tomando-se esse enredo que concebeu um Euclides mais intuitivo e experimental, esta obra causou expectativa, evidenciada em chamada no Jornal do Brasil, de 7 de agosto de 1968: “Já em distribuição, Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido, de Leandro Tocantins” (Informe..., 1968, p. 10). Deve-se ponderar, entretanto, que essa expectativa parece ter sido fruto mais de uma informação obtida através de comunicação enviada aos órgãos da imprensa do que propriamente da leitura dela. A respeito disso, vale observar o Diário de Notícias5, de 12 de setembro de 1968, no qual Eneida de Moraes elogia a obra em tela e, ao que tudo indica, não necessariamente a partir da leitura, mas através de certo conhecimento prévio que possuía nos anos de 1960 a respeito do autor e de sua obra geral. Veja-se: Leandro Tocantins a quem devemos tantos livros da melhor qualidade acaba de ser editado pela Gráfica Record: Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido. É outro paraense preocupado sempre com a Amazônia. Leandro Tocantins está dirigindo na mesma editora uma coleção intitulada “Presença Brasileira”. A apresentação de seu livro é de Arthur César Ferreira Reis (Moraes, 1968a, p. 3).
Já o crítico Nestor de Holanda, no Diário de Notícias de 28 de novembro de 1968, exaltou a grande expressão do Euclides concebido por Leandro Tocantins, recomendando de forma enfática, em seu rodapé, a leitura de “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido”, considerado um “[...] excelente
O Jornal do Brasil, segundo Smith (2000), possuiu tendências liberais e conservadoras, acima de tudo na figura de seu maior dirigente nos anos de 1960 e 1970, o jornalista Nascimento Brito. 5 O Diário de Notícias foi um órgão da grande imprensa carioca, com variados escritores e críticos literários congregados, os quais contribuíram direta ou indiretamente para a tendência nacionalista do jornal, extinto em 1974. 4
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A inserção da obra “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido”, de Leandro Tocantins, na imprensa carioca nos anos de 1960
livro saído pela Record” (Holanda, 1968, p. 1). Ressalte-se que Holanda (1968) não só assinou a coluna de rodapé “Telhado de vidro”, no Diário de Notícias nos anos de 1960, mas também foi escritor. Entre outras obras, concebeu o livro intitulado “Brasil” (Holanda et al., 1963), com intelectuais de tendências esquerdistas, como Oscar Niemeyer, Nelson Werneck Sodré e Astrojildo Pereira, obra publicada pela Academia de Ciências de Moscou em 1963. Percebe-se, assim, que os elogios sobre “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido” parecem ter sofrido os efeitos indiretos do prestígio alcançado por Leandro Tocantins como autor, em decorrência da recepção que a imprensa realizou de sua obra mais ampla, desde o início dos anos de 1960, como demonstrado anteriormente. Ademais, Rocha (1998) chamou a atenção para o significado de tais elogios na vida literária brasileira como expressão das chamadas leituras cordiais por parte dos críticos, ou seja, leituras impregnadas pela influência e pelo prestígio que os autores puderam alcançar no campo literário. Por outro lado, importa considerar que a recepção da obra em tela também sofreu a influência das características discursivas românticas e ecológicas preconizadas por essa mesma imprensa, as quais podem ser visualizadas em uma reportagem, sem assinatura, publicada no Jornal do Brasil, em 27 de agosto de 1968, cujo autor utilizou as palavras do historiador e ex-governador do Amazonas para elogiar a referida obra de Leandro Tocantins, conforme pode ser visto a seguir: Euclides de Tocantins – Prefaciando o livro Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido, de Leandro Tocantins, recente lançamento da Gráfica Record Editôra, Artur César Ferreira Reis diz das obras do autor: “[...] refletiam espírito amadurecido, apaixonado pela temática de sua preferência espiritual, em prosa que traz sempre uma
contribuição ao conhecimento da nação, de suas figuras, de seus tipos, de sua paisagem física, de sua problemática, enfim, de sua personalidade como um todo cultural e humano” (Panorama..., 1968, p. 2).
Desse modo, pode-se afirmar que, de acordo com teóricos da recepção, como Leenhardt (1997), “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido” tornou-se um ‘objeto estético’6 em razão de certas inscrições históricas concebidas por parte da crítica sobre ela, e em confronto com o funcionamento do enredo construído por Leandro Tocantins para seu Euclides amazônico. Essas inscrições foram geradas, em boa medida, por uma histórica consciência coletiva que sempre encarou a região amazônica como desprotegida diante da cobiça das potências estrangeiras nos anos de 1960 (Santos Filho, 2006). Dessa forma, esta obra torna-se um ‘objeto estético’ não só mediante a representação reveladora que realizou de um Euclides profético sobre as fragilidades amazônicas, mas sobretudo a partir do efeito de sentido que ela passou a ter – por meio das preocupações dos críticos com a região amazônica – como obra que reacendeu o debate sobre a integração da região ao restante do país. Veja-se isso em uma matéria, sem assinatura, na coluna de rodapé “Vida Literária”, no Diário de Notícias, publicado em 8 de maio de 1966, na qual se verifica o crítico afirmar, por exemplo, que Leandro Tocantins, ao concluir “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido”, forneceu uma espécie de ‘chave do pensamento euclidiano’ para a Amazônia, ao mesmo tempo em que assinalou “[...] o tom de profecia de muitas de suas páginas” (Vida..., 1966, p. 3). Essa visão profética de Euclides para a Amazônia, por outro lado, também foi vista como detentora de revelações sobre o mundo amazônico, as quais deveriam sensibilizar a consciência dos brasileiros sobre o abandono e as fragilidades da região, especialmente diante de um
Como já discutido na introdução, o objeto estético, de acordo com Leenhardt (1997), seria um signo autônomo que se enraizaria na consciência coletiva por meio das leituras individuais das obras literárias, sendo, deste modo, signo que se imporia como sentido de representação dos mais variados fenômenos sociais de determinado meio específico.
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crescente imaginário7 de que as potências estrangeiras pudessem subtrair este lugar do restante do Brasil nos anos de 1960. Isso pode ser visto, por exemplo, no artigo do crítico de iniciais A. A., escrito no Correio da Manhã de 26 de novembro de 1966: Foi para um tema ainda hoje fascinante, sob vários aspectos, que volveu os olhos o ensaísta Leandro Tocantins: para o testamento de Euclides da Cunha sobre o mundo amazônico. Para o esfôrço que o grande escritor empenhou no sentido de que o Brasil se desse conta de uma realidade espantosa. Para o protesto que êle bravamente levantou contra a indiferença e a incompreensão, doido por “vingar a Hiléia maravilhosa de tôdas as brutalidades que a maculam desde o século XVII”. [...] Em apêndice, um artigo publicado por Euclides, em 1906, na revista Kosmos, excerto de uma entrevista concedida ao Jornal do Comércio, no ano anterior, e, na íntegra, cartas de Euclides ao Barão do Rio Branco. Agora que a Amazônia se encontra ostensivamente na alça de mira da cobiça estrangeira, a leitura dêsse livro se reveste de particular interesse (O mundo..., 1966, p. 2, grifos do autor).
A despeito do fato de que o autor paraense tenha demonstrado Euclides algumas vezes assombrado diante das brutalidades do ambiente amazônico, podemos perceber, na obra em estudo, certas inscrições históricas por parte da crítica traduzidas em uma visão de Euclides como um profeta da Amazônia, um revelador de aspectos de sua brasilidade, um conscientizador de suas fragilidades. Essas inscrições fizeram com que a imagem de Leandro Tocantins girasse em torno do escritor que revelou, em plena década de 1960, a importância de Euclides para o debate sobre o problema da efetiva integração da região ao restante do Brasil. Antonio Olinto8, no jornal O Globo, em 1966, contribuiu para essa representação do autor Leandro Tocantins, ao afirmar que a relação de Euclides com a Amazônia não havia ainda recebido o reconhecimento
necessário do campo literário brasileiro, já que a “[...] presença de Euclides da Cunha na Amazônia estava à espera de um livro [...]” como “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido” (Olinto, 1966, p. 12). É interessante observar, inclusive, como essa percepção a respeito do Euclides amazônico foi marcante para Olinto (2007), bem como para sua geração de críticos, posto que em anos mais recentes sugeriu a leitura de “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido” dentro do mesmo espírito dos anos de 1960, afirmando que diante: [...] do acirramento do interesse estrangeiro pela região, nada melhor do que ler, principalmente, “Euclides da Cunha e o Paraíso perdido”, em que Leandro Tocantins estuda o fascínio de Euclides em face do que vira naquele Paraíso que podia já estar perdido (Olinto, 2007, p. 1).
Entretanto, não se pode deixar de observar que esse clamor sobre a criação de uma consciência a respeito da Amazônia, principalmente diante da necessidade de integração ao restante do país, já havia sido anotado pela crítica para outras obras de Leandro Tocantins na década de 1960. Britto (1961), no Jornal do Brasil, de 14 de novembro de 1961, elogiou o livro “Formação histórica do Acre” por conter a revelação feita por parte de Leandro Tocantins acerca de elementos de uma brasilidade que deveria ser entendida e integrada ao restante do país, momento em que recomendou essa obra “[...] à admiração de todos os brasileiros, e muito especialmente à dos que se batem por revivescer e revigorar essa consciência amazônica sem a qual jamais completaremos a unidade nacional” (Britto, 1961, p. 6). Além dessa recomendação, Britto (1961) ressalta a importância de Leandro Tocantins para o entendimento da região, relacionando-o a outros grandes autores:
Em especial, por parte de intelectuais, de jornalistas e de críticos na imprensa carioca nos anos de 1960. Antonio Olinto, jornalista e crítico literário de tendência liberal, atuou no jornal O Globo, assinando a coluna “Porta de Livraria” nos anos de 1960. Como poeta e ensaísta, pertenceu à ‘Geração de 45’.
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[...] É êsse escrúpulo que dá autenticidade a tudo que lhe sai das mãos pacientes e fecundas, e que o coloca entre os Euclides da Cunha, os José Veríssimo, os Inglês de Souza, os Araújo Lima, os Raimundo Morais, os Arthur César Ferreira Reis, isto é, os grandes escritores da Amazônia (Britto, 1961, p. 6).
Ressalte-se que, por efeito da constituição da obra “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido” como um ‘objeto estético’ representativo dos anseios da integração da Amazônia, Leandro Tocantins praticamente não teve seus posicionamentos políticos questionados pelo enredo que teceu para o seu Euclides amazônico. Essa aceitação decorreu do fato de a imprensa, nos anos de 1960, ter reproduzido para o autor paraense a tradição discursiva que sempre descreveu as propostas civilizadoras de Euclides da Cunha como legítimas para a Amazônia (Ribeiro, 2007). O posicionamento desses jornalistas e críticos na imprensa ante a obra de Leandro Tocantins demonstra que muitas das proposições de Ribeiro (2003) sobre as relações entre jornalismo, literatura e política na imprensa carioca nos anos de 1950 podem, em parte, ser estendidas para a década de 1960. Como se observa, apesar de ter ocorrido um processo de modernização da imprensa a partir dos anos de 1950, período em que o jornalismo passou a impor maior objetividade aos fatos noticiados, nos anos de 1960 certos jornalistas e críticos ainda teciam argumentos provindos de um estilo impressionista e cujas características principais giravam em torno da apreensão de determinados pontos contraditórios, representados nas estéticas literárias, bem como das posições dos escritores diante delas. Esta crítica pretendeu apreender nos escritores aquilo que eles possuiriam de mais original (Martins, 1983). No caso de Leandro Tocantins, pode-se perceber como o impressionismo dos jornalistas e dos críticos que se voltaram não só para “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido”, mas também para outras obras, sempre procurou
construir argumentos menosprezando os elementos sócio-históricos que teriam contribuído para a confecção delas. Essa postura revela que uma influente crítica de rodapé ainda estava presente nas páginas dos jornais nos anos de 1960, a despeito da ascensão de uma crítica literária universitária na imprensa, com tendências científicas e imparciais (Süssekind, 1993). Assim, segundo Ribeiro (2003, p. 158), apesar de o jornalismo nos anos de 1950 ter assumido “[...] cânones discursivos e profissionais próprios [...]”, distanciando-se da literatura, isso não significou que [...] os dois campos (o literário e o jornalístico) se tenham autonomizado totalmente. Muitos escritores ainda eram jornalistas e muitos jornalistas se aventuravam na vida literária. As duas atividades eram muito próximas e o contato entre elas, inevitável. Na realidade, literatura e jornalismo pertenciam a um mesmo sistema de bens simbólicos, que só se separaram (e adquiriram uma autonomia relativa) na medida em que foram capazes de constituir mercados distintos, associados a lógicas produtivas diversas (Ribeiro, 2003, p. 158).
Veja-se, a seguir, como as relações políticas de Leandro Tocantins também estiveram por trás da inserção social de “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido”.
“EUCLIDES DA CUNHA E O PARAÍSO PERDIDO” NO ÂMBITO DAS RELAÇÕES POLÍTICAS DE LEANDRO TOCANTINS NOS ANOS DE 1960 A concepção da obra “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido” não apenas contou com as benesses do poder, como também representou, no plano da cultura, a política desenvolvimentista implantada por Arthur Cézar Ferreira Reis como governador do estado do Amazonas, entre os anos de 1964 e 1967. Arthur Reis, ao programar uma série de políticas econômicas para a superação do atraso daquele estado em relação ao restante do Brasil, com um plano bienal, entre 1965 e 19669, também procurou implantar um
Plano que contou com técnicos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE).
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programa cultural. Dessa forma, através da imprensa oficial do estado, foram publicados mais de cem livros dedicados a autores que retrataram os problemas amazônicos, entre eles “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido”. Leandro Tocantins, em um primeiro momento, no entanto, nos forneceu motivações mais poéticas para a concepção de sua obra. Após a publicação desta obra pelo governo do estado do Amazonas, em 1966, o autor afirmou, no prólogo da segunda edição, em 1968, que a vontade de escrever sobre Euclides da Cunha vinha desde a sua adolescência. De acordo com ele: [...] Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido é o pagamento de uma dívida de gratidão pelos momentos de animação espiritual que me proporcionou – a mim, adolescente no Ginásio do Instituto Nossa Senhora de Nazaré, em Belém do Pará – a leitura de Os Sertões e de À Margem da História (Tocantins, 1992, p. 14).
Ademais, vale observar o que evidencia Rocha (1998), em seu livro “Literatura e cordialidade”, demonstrando como a paisagem nacional já havia sido mobilizada por escritores, a exemplo de José de Alencar, com o objetivo de valorizarem a vocação que têm para as letras, desprezando, neste sentido, a possível contribuição de condicionantes sociais, inclusive para a inserção social de Alencar como autor de “O Guarani” (1979). Independentemente desse argumento, muito contribuiu para a concepção de “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido” o acesso que o autor possuía aos documentos da Expedição de Reconhecimento do Alto Purus, quando foi representante da SPVEA na cidade do Rio de Janeiro, no início dos anos de 1960. Este episódio proporcionou-lhe a oportunidade de frequentar o Arquivo Histórico do Itamaraty e de aprofundar seu conhecimento sobre os registros da Comissão de Reconhecimento do Alto Purus, bem como de participar da publicação do livro “O rio Purus” (Cunha, 1960), feita pela SPVEA (O rio..., 1960). No entanto, ao se tornar adido do estado do Amazonas, no Rio de Janeiro, em 1964, sob os auspícios
da política desenvolvimentista do governador Arthur Cézar Ferreira Reis, teve a oportunidade de pesquisar os documentos sobre a expedição ao Purus e de escrever a obra em questão neste artigo. Em 1966, Euclides da Cunha faria cem anos, se fosse vivo. O então Governador Arthur Cézar Ferreira Reis – que operou no Amazonas, ao lado de uma revolução administrativa, uma revolução cultural – pediu-me que escrevesse o anunciado livro sobre Euclides da Cunha, pois desejava incluí-lo na série que tem o seu nome, dentre outras séries cujos títulos alcançaram, no fim de seu Governo, o número de cento e seis. Era a homenagem do Amazonas ao grande revelador do Paraíso Perdido (Tocantins, 1992, p. 17).
O patrocínio do nacionalista e do desenvolvimentista Arthur Cézar Ferreira Reis foi fundamental para a concepção de “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido”, pois, como já afirmado, proporcionou ao escritor paraense condições materiais e o acesso efetivo aos acervos do Itamaraty, fato percebido pela crítica quando do lançamento da obra. Destarte, a coluna de rodapé “Panorama das Letras”, no Jornal do Brasil, veiculada em 18 agosto de 1968, apontou relação entre o conhecimento prévio da documentação sobre a presença de Euclides da Cunha na Amazônia e a feitura do livro de Leandro Tocantins: EUCLIDES – De Leandro Tocantins, a Gráfica Record Editôra publica Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido. Documentos inéditos da missão oficial de Euclides no Amazonas são revelados no livro. Um Paraíso Perdido é o título do livro que Euclides pretendia escrever sobre a Amazônia (Rei, 1968, p. 2, grifo do autor).
Essa forma de inserção da primeira edição deste livro na imprensa, no entanto, representou não somente o reconhecimento de Leandro Tocantins como autor, por parte de Arthur Cézar Ferreira Reis, mas também como homem político e assessor de governo no estado do Rio de Janeiro. Essas relações no campo político foram decisivas para a inserção desta obra, como
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demonstrado em artigo do Correio da Manhã, de 26 de novembro de 1966: No livro que o govêrno do Amazonas acaba de publicar, como contribuição às comemorações do centenário de nascimento de Euclides, intitulado Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido, LT analisa com precisão as observações e considerações que o autor de Os Sertões formulou sôbre a Amazônia, ressaltando sua consistência científica e o seu caráter premonitório (O mundo..., 1966, p. 2, grifos do autor).
Por outro lado, a própria inserção do homem político como autoridade sobre os problemas amazônicos na imprensa carioca, desde os anos de 1950, como nos anos de 1960, ‘contaminou’ também a autoridade do escritor e de sua obra romântica e ecológica, e vice-versa, em um movimento que engendrou efeitos positivos sobre a recepção não apenas de “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido”, mas também de outras obras do autor ao longo daquela década. Nesse sentido, os mesmos jornais que, através dos mais variados artigos, perceberam o autor e a sua obra como exercendo um trabalho de conscientização sobre a Amazônia, reiteradamente também destacaram as ações de Leandro Tocantins para a efetivação de políticas visando à integração da região, fosse como assessor da SPVEA ou como representante do estado do Amazonas. Veja-se, por exemplo, o artigo intitulado “Amazônia contra o colonialismo”, publicado no Diário de Notícias, em 11 de novembro de 1966, quando o autor esteve à frente da representação do governo de Arthur Reis, no Rio de Janeiro: O Sr. Leandro Tocantins asseverou que a ajuda externa será aceita, mas em têrmos nacionalistas, eliminando-se qualquer hipótese de domínio estrangeiro na área. Para isto – continuou – a Sudam fixou uma série de benefícios para os investidores brasileiros que terão o pagamento de seus impostos reduzido, concedendo-se, neste sentido, outros benefícios fiscais, a fim de possibilitar o desenvolvimento rápido da Amazônia (Amazônia..., 1966, p. 10).
Como se pode observar, são inúmeras as reportagens que ora tratam do político e ora do autor, em especial entre os anos de 1965 e 1968, sendo evidenciadas, em algumas matérias, remissões ao autor – também chamado de professor – como representante da SPVEA, oferecendo evidências de que parte dos jornalistas e críticos que julgaram a obra de Leandro Tocantins teve suas leituras influenciadas pela representação política alcançada por ele na imprensa, além do próprio efeito produzido pelo discurso do autor, fato evidenciado em matéria do Correio da Manhã, de 19 de setembro de 1965: O professor Leandro Tocantins, representante do govêrno do Estado do Amazonas no Rio de Janeiro, declarou-nos ontem, a propósito da grave situação da Amazônia, que a região “deixou de ser simplesmente um capítulo da problemática brasileira para constituir um componente do jôgo internacional” (Professor..., 1965, p. 16).
Nesse sentido, a relação entre o autor e o homem político dialoga com as posições teóricas de Chartier (2012, p. 31), ao afirmar, a partir de uma crítica a Michel Foucault, que a função autor, por um lado, seria o produto de uma tensão entre “[...] os mecanismos sociais e institucionais [...]” ligados a ela e, por outro, a desenvoltura de ‘um Eu empírico’, que igualmente influenciaria na sua constituição. Essa forma de representação de um Leandro Tocantins enquanto autoridade ambivalente manifestou-se, por exemplo, na pequena polêmica entre o escritor paraense e a escritora e crítica literária Eneida de Moraes, no Diário de Notícias, em 1968, evento que influenciou a escritora a dar anúncio positivo em relação à segunda edição de “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido”. Ao criticar a postura política do autor Leandro Tocantins no prefácio que escreveu para o relançamento de “O rio comanda a vida”, Eneida de Moraes (1968c), no rodapé “Encontro matinal”, do Diário de Notícias, publicado em 25 de maio de 1968, afirmou que ele foi condescendente com a presença dos americanos
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na Amazônia à época, como também com os abusos cometidos por certos potentados locais na região. Ela (Moraes, 1968c), então, com tendência marxista, criticou a ausência de um posicionamento mais contundente por parte de Leandro Tocantins, acima de tudo em relação aos abusos cometidos no âmbito do projeto Jari10, no Território Federal do Amapá, com relação à forma como trabalhadores nordestinos foram arregimentados para esse projeto ou mesmo à pressão que os interesses norteamericanos estavam exercendo sobre a Amazônia. Além disso, Eneida de Moraes (1968c) demonstrou discordâncias conceituais com o autor, sugerindo que, no referido prefácio, ele estava a camuflar acontecimentos da história da Amazônia, ao afirmar aos leitores de sua coluna literária que: “[...] História é história e não estória” (Moraes, 1968c, p. 3). Após essa crítica, no entanto, Leandro Tocantins enviou uma carta para a escritora, na qual procurou demonstrar sua posição diante dos problemas explicitados por ela, que, então, se ‘desmanchou’ em elogios para o autor, ao comentar a carta enviada por ele em sua coluna literária “Encontro Matinal”, no Diário de Notícias de 9 de agosto de de 1968 (Moraes, 1968b). Ela teceu comentários que demonstraram sua rendição à autoridade de Leandro Tocantins não apenas como autor, mas também como homem político e como seu conterrâneo, já que, ao mesmo tempo em que se retratou por tê-lo questionado publicamente, anunciou de forma enfática e positiva o lançamento de “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido”: [AGRADECIMENTOS: A Leandro Tocantins pela carta (Ótima) explicando sua posição no] problema da Amazônia e a invasão americana. Leandro Tocantins e eu somos paraenses e vim comentando aqui o nôvo prefácio à segunda edição de seu belo livro “O Rio Comanda a Vida”. Pena não poder publicar essa carta na íntegra. Mas há uma boa notícia a dar: vai aparecer por estês dias
um novo livro de Leandro Tocantins: “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido”. Agradeço a carta de LT afirmando: “é assim, ‘dialogando’, que os homens de bem se entendem" (Moraes, 1968b, p. 3).
Assim, ao questionar a posição de Leandro Tocantins sobre o problema da integridade da Amazônia frente aos interesses estrangeiros, a escritora, mediante a reação de Tocantins, procurou desfazer a polêmica, recorrendo à paisagem amazônica, ao afirmar que ambos eram paraenses, e também como forma de se irmanar a ele. É interessante perceber, de acordo com Santos (2007), que Eneida de Moraes sempre utilizou sua ‘crônica-militante’ para realizar denúncias no Diário de Notícias, as quais muitas vezes foram censuradas entre os anos de 1957 a 1970. Estes textos nem sempre eram aprovados pelo Diário de Notícias e tiveram grande influência da fase em que a escritora pertenceu ao Partido Comunista Brasileiro, em plena ditadura Vargas, tendo sido presa várias vezes pelo regime varguista. Lima (1960a), ao analisar a obra “Amazônia: natureza, homem e tempo”, de Leandro Tocantins, no Diário de Notícias, publicado em 28 de agosto de 1960, envolveu-se também em uma polêmica com o autor paraense, que àquela altura já possuía certa representatividade política junto à imprensa, em razão dos trabalhos à frente da SPVEA. Na ocasião, Lima (1960b) afirmou que esta obra não teria sido editada à altura das intenções de Leandro Tocantins em estudar a problemática amazônica com efetiva profundidade. Tais afirmações causaram a reação do escritor paraense, que foi reverberada no Diário de Notícias de 18 de setembro de 1960, momento em que Raul Lima não só se desculpou, mas também reverenciou Leandro Tocantins de forma enfática (Lima, 1960b). Vale ressaltar que este crítico, cuja coluna “Livros e Fatos” no Diário de Notícias era assinada por ele, sempre
O Projeto Jari foi constituído para a fabricação de celulose e de produção de energia nas margens do rio Jari, no Pará. Foi idealizado, nos anos de 1960, pelo bilionário norte-americano Daniel Keith Ludwig e por seu sócio Joaquim Nunes Almeida.
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expôs suas posições democráticas diante da censura que constantemente se abatia a esse jornal nos anos de 196011. Tais polêmicas revelam-se como sintomas do que Rocha (1998, p. 57) afirmou ser a função delas no âmbito de uma cultura da cordialidade, e suas relações com a valorização da paisagem nacional12, já que, para esse autor, a polêmica deve ser “[...] vista como noção primeira que condena qualquer debate a gravitar em torno do eixo jamais questionado da própria ideia de nacionalidade”. Ainda para Rocha: [...] na esfera específica da polêmica, a presença desse eixo promove uma singular metamorfose. A polêmica deixa de constituir um momento privilegiado para a proposta de códigos renovadores dos pressupostos subjacentes ao próprio debate. No interior de uma experiência histórica dominada por homens cordiais, tal oportunidade se perde, pois cada desacordo, em lugar de ser enfrentado como uma diferença de pressupostos, é compreendido como um ataque pessoal. E é deste modo que se compreende a polêmica numa sociedade cordial (Rocha, 1998, p. 57).
Segundo Süssekind (1985 apud Rocha, 1998, p. 151-152), várias circunstâncias são definidoras da noção de vida literária no Brasil, entre elas a censura, as polêmicas, o público, as formas de escrita, as opções de leitura, de forma que “[...] com o mesmo propósito de delinear um sistema, Silviano Santiago identificou, na transformação da amizade em critério estético, a origem da ‘mediocridade fofoquenta e a miséria opinativa do meio intelectual brasileiro’”. Entretanto, as apropriações sobre a obra “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido” por parte da crítica apontadas anteriormente, ainda que realizadas no âmbito de relações cordiais, foram expressas por meio de abordagens representativas de diferentes posicionamentos políticos
e, dessa forma, passíveis de revelar as contradições existentes entre a estética literária de Leandro Tocantins e suas posições como autor e cidadão que contava com as benesses do poder. A presença dessa crítica de rodapé independentemente das tendências políticas aponta para a importância que possuiu, no sentido de favorecer os interesses políticos dos variados jornais cariocas nos anos de 1960, fossem de tendências nacionalistas ou mais liberais. Ressalte-se que a maioria dos órgãos da imprensa carioca, como o Diário de Notícias, o Correio da Manhã e o Jornal do Brasil, posicionava-se, de forma geral, a favor de políticas públicas que contribuíssem para uma efetiva integração da Amazônia nos anos de 1960, especialmente diante da histórica cobiça por parte das potências estrangeiras sobre a região. Como se observa, são inúmeras as matérias desses jornais que trataram desse tema ao longo dos anos de 196013, inclusive após o golpe de 1964, quando as políticas econômicas dos governos militares passaram a realizar intervenções desenvolvimentistas mais efetivas na Amazônia, período em que a imprensa brasileira, de uma forma geral, foi subserviente aos desmandos do regime militar. N e s s e c on t e x t o, t an t o o a u t or c om o o representante político Leandro Tocantins tornaramse símbolos dos anseios desses jornais no tocante ao problema da integração da região ao restante do país. Essa perspectiva, principalmente em relação à inserção social de “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido”, apresentou relações com os dizeres de Rocha (1998) referentes aos intercâmbios entre literatura e sociedade, já que este autor demonstrou, em seu livro “Literatura e cordialidade”, como a interpenetração do privado sobre
Foi também comentarista internacional nos anos de 1940 no periódico intitulado Revista, sempre procurando se posicionar a favor da causa aliada nos anos em que transcorreram a Segunda Guerra Mundial. 12 A partir da polêmica entre Gonçalves de Magalhães e José de Alencar em torno do poema “A Confederação dos Tamoios”, em meados do século XIX. 13 A título de exemplificação, para os anos de 1960, foram encontradas em relação ao tema integração da Amazônia as seguintes ocorrências nos principais órgãos da imprensa carioca, através de uma constante pesquisa na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional (Fundação Biblioteca Nacional, s. d.): 81 para o jornal Correio da Manhã; 94 para o Diário de Notícias; 93 para o Jornal do Brasil. 11
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o público sempre foi decisiva para a inserção social dos escritores em nossa sociedade: Afinal, se para o estudo dos intercâmbios entre literatura e sociedade não basta examinar a maneira como os textos representam as relações sociais engendradas por determinado modo de produção, mas importa, também e principalmente, (examinar) a forma como o texto encena sua inserção no sistema de produção [...], numa sociedade de homens cordiais, esta inserção é precedida pela do escritor na República das Letras (Rocha, 1998, p. 30).
Essa forma de inserção do escritor na sociedade remete novamente ao que Chartier (2102, p. 29-30) afirmou teoricamente para a função autor como sendo não apenas “[...] uma função, mas também uma ficção, e uma ficção semelhante a essas ficções que dominam o direito quando ele constrói sujeitos jurídicos que estão distantes das existências individuais dos sujeitos empíricos”.
autor-símbolo das expectativas nacionalistas sobre a problemática da integração da Amazônia, construíram em boa medida essa representação, em virtude da extensão do reconhecimento obtido por ele junto à imprensa carioca como homem político a serviço do Estado brasileiro na Amazônia nos anos de 1960. Assim, torna-se evidente também o quanto seria fictício imaginar a inserção social desta produção literária apenas como fruto de seu reconhecimento como obra, sem se considerar as influências que ela sofreu da anterioridade da própria inserção do autor e do cidadão Leandro Tocantins no campo literário brasileiro. E isso não só a partir de seu talento, mas, em boa medida, através da influência de suas relações interpessoais com políticos, como Arthur Reis, mas também em razão da notoriedade que angariou como homem de Estado junto à imprensa.
REFERÊNCIAS ALENCAR, José de. O Guarani. São Paulo: Ática, 1979.
CONCLUSÃO Diante do exposto, pode-se afirmar que a postura personalista e pragmática da crítica que recepcionou a obra de Leandro Tocantins não realizou correções políticas, salvo em alguns casos, ao autor de “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido”, as quais poderiam ter trazido à tona, como fez a escritora Eneida de Morais, as relações existentes entre os conceitos do historiador e as posições do homem público, com tendências favoráveis aos novos donos do poder a partir de 1964, sobretudo para lembrar que esta obra foi editada em 1966, portanto, dois anos após o golpe. Apesar de não terem sido realizadas praticamente correções políticas por parte de jornalistas e de críticos, ainda assim é possível afirmar que a função autor neste livro – mesmo muitas vezes definida pelo estilo discursivo presente na obra mais ampla de Leandro Tocantins – sofreu grande influência do reconhecimento que o cidadão Leandro Tocantins angariou junto à imprensa. Isso é verificado especialmente ao se observar que os críticos e os jornalistas, ao alçarem Tocantins como um
AMAZÔNIA contra colonialismo. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 11 nov. 1966. p. 10. Disponível em: <http://memoria.bn.br/ DocReader/docreader.aspx?bib=093718_04&pasta=ano%20 196&pesq=leandro%20tocantins>. Acesso em: 30 nov. 2013. BRITTO, Chermont de. Santa Maria de Belém do Grão Pará. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 20 dez. 1963. Caderno B, p. 8. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=0 30015_08&PagFis=6313&Pesq=leandro%20tocantins>. Acesso em: 22 nov. 2013. BRITTO, Chermont de. Formação histórica do Acre. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 nov. 1961. p. 6. Disponível em: <http:// memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_08&PagF is=6313&Pesq=leandro%20tocantins>. Acesso em: 20 nov. 2013. CHARTIER, Roger. O que é um autor? Revisão de uma genealogia. São Carlos: EdUFSCAR, 2012. CUNHA, Euclides da. O rio Purus. Rio de Janeiro: SPVEA, 1960. FORMAÇÃO histórica do Acre. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 11 nov. 1961. p. 9. Disponível em: <http://memoria.bn.br/ DocReader/docreader.aspx?bib=089842_07&pasta=ano%20 196&pesq=leandro%20tocantins>. Acesso em: 23 nov. 2013. FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. [s. d.]. Disponível em: <http://memoria.bn.br/ hdb/uf.aspx>. Acesso em: 26 mar. 2016.
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A inserção da obra “Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido”, de Leandro Tocantins, na imprensa carioca nos anos de 1960
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BOLETIM DO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI. CIÊNCIAS HUMANAS INSTRUÇÕES AOS AUTORES
Objetivos e política editorial O Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas tem como missão publicar trabalhos originais em arqueologia, história, antropologia, linguística indígena e disciplinas correlatas. A revista aceita colaborações em português, espanhol, inglês e francês para as seguintes seções: Artigos Científicos – textos analíticos originais, resultantes de pesquisas com contribuição efetiva para o avanço do conhecimento. De 15 até 30 laudas. Artigos de Revisão – textos analíticos ou ensaísticos originais, com revisão bibliográfica ou teórica de determinado assunto ou tema. De 15 até 30 laudas. Notas de Pesquisa – relato preliminar mais curto que um artigo, sobre observações de campo, dificuldades e progressos de pesquisa em andamento, enfatizando hipóteses, comentando fontes, resultados parciais, métodos e técnicas utilizados. Até 15 laudas. Memória – seção que se destina à divulgação de acervos ou seus componentes que tenham relevância para a pesquisa científica; de documentos transcritos parcial ou integralmente, acompanhados de texto introdutório; e de ensaios biográficos, incluindo obituário ou memórias pessoais. Até 20 laudas. Debate – ensaios críticos sobre temas da atualidade. Até 15 laudas. Resenhas Bibliográficas – texto descritivo e/ou crítico de obras publicadas na forma impressa ou eletrônica. Até cinco laudas. Teses e Dissertações – descrição sucinta, sem bibliografia, de dissertações de mestrado, teses de doutorado e livre-docência. Uma lauda.
Apresentação de artigos O Boletim recebe contribuições somente em formato digital. Os arquivos digitais dos artigos devem ser submetidos online na plataforma ScholarOne via o site da revista <http://www.museu-goeldi.br/editora/humanas/index.html> ou diretamente via o link <https://mc04. manuscriptcentral.com/bgoeldi-scielo>, fornecendo obrigatoriamente as informações solicitadas pela plataforma.
Cadastramento O(s) autor(es) deve(m) realizar o cadastro (Login/Senha), criando uma conta pessoal na plataforma online, na seção “CREATE AN ACCOUNT” ou “NEW USER”, e preencher corretamente o perfil. O cadastramento/criação de uma conta precisa ser feito somente uma vez. Após isso, a conta deve ser usada para todas as submissões de trabalhos, revisões e pareceres.
Encaminhamento Para submeter um novo trabalho, o autor precisa fazer o login na plataforma online e clicar em “AUTHOR CENTER”. Após realizar este passo, o autor deve buscar a janela “AUTHOR RESOURCES” e iniciar o processo de submissão através do link “CLICK HERE TO SUBMIT A NEW MANUSCRIPT”, no qual deverá realizar os sete passos:
• Step 1: Type, Title, & Abstract º Escolher o tipo de trabalho (artigo, resenha etc.). º Preencher o título do trabalho. º Fornecer o resumo. • Step 2: Attributes º Acrescentar palavras-chave (3 até 6). • Step 3: Authors & Institutions º Especificar se o submissor é o próprio autor ou se é um terceiro. º Especificar autor de correspondência. • Step 4: Reviewers º Especificar revisores da sua preferência e/ou aqueles que gostaria de evitar. • Step 5: Details & Comments º Especificar quem financiou a pesquisa. º Declarar que o trabalho foi submetido exlusivamente para o Boletim e ainda não foi publicado. º Declarar que o trabalho está conforme as normas éticas da disciplina. º Afirmar que os arquivos submetidos estão completamente anônimos, para possibilitar avaliação por pares. º Declarar se há conflito de interesse. No caso de haver, especificar. • Step 6: File Upload º Fazer o upload do(s) arquivo(s). (Pelo menos um dos arquivos deve representar o Main Document - o documento pricipal). • Step 7: Review & Submit º Verificar se todas as informações e arquivos estão completas e concluir a submissão, clicando em “SUBMIT”. A revista possui um Conselho Científico. Os trabalhos submetidos são primeiramente avaliados pelo Editor ou por um dos Editores Associados. O Editor reserva-se o direito de sugerir alterações nos trabalhos recebidos ou devolvê-los, caso não estejam de acordo com os critérios exigidos para publicação. Uma vez aceitos, os artigos seguem para avaliação dos pares (peer-review). Os artigos são analisados por dois especialistas, no mínimo, que não integram a Comissão Editorial e emitem pareceres independentes. Caso haja discordância entre os pareceres, o trabalho é submetido a outro(s) especialista(s). Caso mudanças ou correções sejam recomendadas, o trabalho é devolvido ao(s) autor(es), que terão um prazo de 30 dias para elaborar nova versão. A publicação implica cessão integral dos direitos autorais do trabalho à revista. A declaração para a cessão de direitos autorais é enviada pela secretaria por email ao autor de correspondência, após a aceitação do artigo para publicação. O documento deve ser assinado por todos os autores.
Preparação de originais Todas as submissões devem ser enviadas por meio da plataforma de submissão online ScholarOne. Os originais devem ser enviados 1.
Em Word, com fonte Times New Roman, tamanho 12, entrelinha 1,5, em laudas sequencialmente numeradas. Os trabalhos de linguística indígena devem utilizar fonte compatível com o padrão Unicode, como Arial, Calibri, Cambria, Déjà Vu, Tahoma e outras que incluam todos os símbolos fonéticos da IPA. Times New Roman é preferível, mas inclui IPA em Unicode somente a partir das últimas edições de Windows. Nunca improvisar símbolos do IPA usando letras comuns com tachamento (imitando
2.
ɨ, ʉ etc.).
Da primeira página, devem constar: a. título (no idioma do texto e em inglês); b. resumo; c. abstract; d. palavras-chave e keywords.
3.
Os originais não podem incluir o(s) nome(s) do(s) autor(es) e nem agradecimentos.
4.
Deve-se destacar termos ou expressões por meio de aspas simples.
5.
Apenas termos científicos latinizados e palavras em língua estrangeira devem constar em itálico.
6.
Os artigos deverão seguir as recomendações da ABNT para uso e apresentação dos elementos bibliográficos: resumos, NBR 6028; citações em documentos, NBR 10520; referências, NBR 6023.
7.
Tabelas devem ser digitadas em Word, sequencialmente numeradas, com legendas claras.
8.
Ilustrações e gráficos devem ser apresentados em páginas separadas e numeradas, com as respectivas legendas, e submetidos na plataforma online em arquivos à parte. Imagens devem ter resolução mínima de 300 dpi e tamanho mínimo de 1.500 pixels, em formato JPEG ou TIFF. Devem ter, no máximo, 16,5 cm de largura e 20 cm de altura (para uso em duas colunas) ou 8 cm de largura e 20 cm de altura (para uso em uma coluna). As informações de texto presentes nas figuras devem estar em fonte Arial, com tamanho entre 7 e 10 pts.
9.
Figuras feitas em programas vetoriais podem ser enviadas, preferencialmente, em formato aberto, na extensão .cdr (X5 ou inferior), .eps ou .ai (CS5 ou inferior).
10. O texto do artigo deve, obrigatoriamente, fazer referência a todas as tabelas, gráficos e ilustrações. 11. Seções e subseções no texto não podem ser numerados. 12. Somente numeração de páginas e notas de rodapé devem ser automáticas. Textos contendo numeração automatizada de seções, parágrafos, figuras, exemplos, ou outros processos automatizados, como referenciação e compilação de lista de referências, não serão aceitos. 13. Observar cuidadosamente as regras de nomenclatura científica, assim como abreviaturas e convenções adotadas em disciplinas especializadas. 14. Notas de rodapé devem ser numeradas em algarismos arábicos e utilizadas apenas quando imprescindíveis, nunca como referências. 15. Referências a manuscritos, documentos de arquivo ou textos não publicados (relatórios, cartas etc.) devem ser feitas em notas de rodapé. 16. Citações e referências a autores no decorrer do texto devem subordinar-se à seguinte forma: sobrenome do autor (não em caixa alta), ano, página(s). Exemplos: (Goeldi, 1897, p. 10); Goeldi (1897, p. 10).
17. Todas as obras citadas ao longo do texto devem estar corretamente referenciadas ao final do artigo, e todas as referências no final do artigo devem ser citadas no texto. 18. Citações de obras como “apud” também devem estar corretamente referenciadas ao final do artigo. Os nomes de múltiplos autores ou organizadores citados como “et al.” devem todos aparecer nas referências no final do artigo.
Estrutura básica dos trabalhos 1.
Título – No idioma do texto e em inglês (quando este não for o idioma do texto). Deve ser escrito em caixa baixa, em negrito, centralizado na página.
2. Resumo e Abstract – Texto em um único parágrafo, verbo na voz ativa e terceira pessoa do singular, ressaltando os objetivos, método, resultados e conclusões do trabalho, com no mínimo 100 palavras e, no máximo, 200, no idioma do texto (Resumo) e em inglês (Abstract). A versão para o inglês deverá ser feita ou corrigida por um falante nativo (preferivelmente um colega da área), o que é de responsabilidade do(s) autor(es). 3. Palavras-chave e Keywords – Três a seis palavras que identifiquem os temas do trabalho, para fins de indexação em bases de dados. 4. Texto – Deve ser composto de seções NÃO numeradas e, sempre que possível, com introdução, marco teórico, desenvolvimento, conclusão e referências . Evitar parágrafos e frases muito longos. Optar pela voz passiva, evitando o uso da primeira pessoa do singular e do plural ao longo do texto. Siglas devem inicialmente ser escritas por extenso. Exemplo: “A Universidade Federal do Pará (UFPA) prepara novo vestibular”. Citações de até três linhas devem estar dentro do parágrafo e entre aspas duplas (“); citações com mais de três linhas devem ser destacadas do texto, com recuo de 4 cm da margem esquerda, com fonte menor e, conforme o exemplo a seguir: Com efeito, a habitação em cidades é essencialmente antinatural, associa-se a manifestações do espírito e da vontade, na medida em que se opõem à natureza. Para muitas nações conquistadoras, a construção de cidades foi o mais decisivo instrumento de dominação que conheceram. Max Weber mostra admiravelmente como a fundação de cidades representou para o Oriente Próximo e particularmente para o mundo helenístico e para a Roma imperial, o meio específico de criação de órgãos locais de poder, acrescentando que o mesmo fenômeno se encontra na China, onde ainda durante o século passado, a subjugação das tribos Miaotse pode ser identificada à urbanização das suas terras (Buarque de Holanda, 1978, p. 61). 5. Agradecimentos – Devem ser sucintos: créditos de financiamento; vinculação a programas de pós-graduação e/ou projetos de pesquisa; agradecimentos pessoais e institucionais. Nomes de pessoas e instituições devem ser escritos por extenso, explicando o motivo do agradecimento. Note que a primeira versão submetida é para avaliação anônima e deve estar sem agradecimentos. 6. Referências – Devem ser listadas ao final do trabalho, em ordem alfabética, de acordo com o sobrenome do primeiro autor. No caso de mais de uma referência de um mesmo autor, usar ordem cronológica, do trabalho mais recente ao mais antigo. Todas as referências devem seguir as recomendações da NBR 6023 da ABNT. Deve-se evitar o uso indevido de letras maiúsculas nos títulos de artigos ou de livros. Somente nomes próprios, substantivos alemães e as palavras de conteúdo de títulos de revistas e de séries devem começar por uma letra maiúscula. Obs: A utilização correta das normas da ABNT referentes à elaboração de referências (NBR 6023/2002) e o uso adequado das novas regras de ortografia da Língua Portuguesa nos artigos e demais documentos encaminhados à revista são de responsabilidade dos autores. A seguinte lista mostra vários exemplos de referências nas suas categorias diferentes:
Livro: VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1906. Livro: WIECZOREK, Alfred; ROSENDAHL, Wilfried; SCHLOTHAUER, Andreas (Org.). Der Kult um Kopf und Schädel. Heidelberg: Verlag Regionalkultur, 2012. Série/Coleção: GOELDI, Emílio. Escavações arqueológicas em 1895: executadas pelo Museu Paraense no Litoral da Guiana Brasileira entre Oiapoque e Amazonas. Belém: Museu Paraense de História Natural e Ethnographia, 1900. (Memórias do Museu Goeldi, n. 1). Capítulo de livro: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Política indigenista no século XIX. In: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 133-154. Capítulo de livro e Série/Coleção: VUILLERMET, Marine. Two types of incorporation in Esse Eja (Takanan). In: DANIELSEN, Swintha; HANNSS, Katja; ZÚÑIGA, Fernando (Org.). Word formation in South American languages. Amsterdam: John Benjamins, 2014. p. 113-142. (Studies in Language Companion Series, n. 163). Artigo de periódico: GURGEL, C. Reforma do Estado e segurança pública. Política e Administração, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 15-21, set. 1997. Artigo de periódico: TERSIS, Nicole; CARTER-THOMAS, Shirley. Investigating syntax and pragmatics: word order and transitivity in Tunumiisut. International Journal of American Linguistics, Chicago, v. 71, n. 4, p. 473-500, out. 2005. Artigo de periódico em meio eletrônico: VELTHEM, L. H. V. O objeto etnográfico é irredutível? Pistas sobre novos sentidos e análises. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 7, n. 1, p. 51-66, jan./abr. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-81222012000100005&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 06 mar. 2015. Artigo e/ou matéria de jornal: NAVES, P. Lagos andinos dão banho de beleza. Folha de S. Paulo, São Paulo, 28 jun. 1999. Folha Turismo, Caderno 8, p. 13. Artigo e/ou matéria de jornal em meio eletrônico: SILVA, Ives Gandra da. Pena de morte para o nascituro. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 19 set. 1998. Disponível em: <http://www.providafamilia.org/pena_morte_nascituro.htm>. Acesso em: 19 set. 1998. Trabalho apresentado em evento: BRAYNER, A. R. A.; MEDEIROS, C. B. Incorporação do tempo em SGBD orientado a objetos. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE BANCO DE DADOS, 9., 1994, São Paulo. Anais... São Paulo: USP, 1994. p. 16-29. Trabalho apresentado em evento em meio eletrônico: SILVA, R. N.; OLIVEIRA, O. Os limites pedagógicos do paradigma da qualidade total na educação. In: CONGRESSO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA DA UFPe, 4., 1996, Recife. Anais eletrônicos... Recife: UFPe, 1996. Disponível em: <http://www.propesq.ufpe.br/anais/anais.htm>. Acesso em: 21 jan. 1997.
Documento eletrônico: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Demográfico 2010. 2011. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/default.shtm>. Acesso em: 23 jan. 2012. Documento jurídico: SÃO PAULO (Estado). Decreto nº 42.822, de 20 de janeiro de 1998. Lex: coletânea de legislação e jurisprudência, São Paulo, v. 62, n. 3, p. 217-220, 1998. Documento jurídico: BRASIL. Congresso. Senado. Resolução nº 17, de 1991. Coleção de Leis da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, v. 183, p. 1156-1157, maio/jun. 1991. Documento jurídico: BRASIL. Medida Provisória nº 1.569-9, de 11 de dezembro de 1997. Estabelece multa em operações de importação, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 14 dez. 1997. Seção 1, p. 29514. Trabalhos acadêmicos (teses, dissertações e monografias): MORGADO, M. L. C. Reimplante dentário. 1990. 51 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Odontologia), Universidade Camilo Castelo Branco, São Paulo, 1990. Trabalhos acadêmicos (teses, dissertações e monografias): ARAUJO, U. A. M. Máscaras inteiriças Tukúna: possibilidades de estudo de artefatos de museu para o conhecimento do universo indígena. 1985. 102 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, 1986. Trabalhos acadêmicos (teses, dissertações e monografias): BENCHIMOL, Alegria. Resgate e ressignificação da pesquisa no Museu Paraense Emílio Goeldi: presença e permanência de cientistas estrangeiros (1894-1914) na produção científica de autores atuais (1991-2010). 2015. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) – Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. Trabalhos acadêmicos (teses, dissertações e monografias): MOORE, Denny. Syntax of the language of the Gavião Indians of Rondônia (Brazil). 1984. 200 f. Tese (Doutorado em Antropologia) – University of New York, Nova York, 1984.
Avaliação inicial Será feita uma avaliação inicial da submissão pela administração editorial, seguindo um checklist de critérios básicos. Caso a submissão esteja incompleta ou as imagens não estejam conforme as especificações ora informadas, o artigo será devolvido via plataforma online como “UNSUBMITTED”. Isso significa que ele volta para a fase de não submetido. O autor de correspondência receberá, nesse caso, um comunicado com informações sobre as pendências apresentadas pelo artigo. Após a resolução dos problemas apontados, o autor pode ressubmeter o trabalho, escolhendo a opção “RESUBMIT”.
Revisão de artigos Após receber os pareceres anônimos, o Editor decide quanto à aceitação do artigo para publicação. Se aceito, o autor é convidado a revisar o artigo com base nos pareceres e nas observações do Editor. O autor deve explicar como a revisão foi realizada, dar justificativa em caso de não acatar sugestão dos pareceres, devendo obrigatoriamente usar a ferramenta e, obrigatoriamente, usar a ferramenta “Controle de
alterações” do Word para realizar as alterações no texto. O artigo revisado deve ser enviado através da plataforma online, por meio do link de revisão disponível em “AUTHOR RESOURCES”, clicando em “CREATE REVISION”.
Provas Os trabalhos, depois de formatados, são encaminhados através do sistema de e-mail do ScholarOne, em PDF, para a revisão final dos autores, que devem devolvê-los com a maior brevidade possível. Os pedidos de alterações ou ajustes no texto devem ser feitos por comentários no PDF. Nessa etapa, não serão aceitas modificações no conteúdo do trabalho ou que impliquem alteração na paginação. Caso o autor não responda ao prazo, a versão formatada será considerada aprovada. Os artigos são divulgados integralmente no formato PDF no sítio, no Issuu, no DOAJ e na SciELO.
Endereço para correspondência: Museu Paraense Emílio Goeldi Editor do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas Av. Perimetral, 1901 - Terra Firme CEP 66077-830 Belém - PA - Brasil Telefone: 55-91-3075-6186 E-mail: boletim.humanas@museu-goeldi.br
Lembre-se: 1- Antes de enviar seu trabalho, verifique se foram cumpridas as normas acima. Disso depende o início do processo editorial. 2- Após a aprovação, os trabalhos são publicados por ordem de chegada. O Editor Científico também pode determinar o momento mais oportuno. 3- A revista não aceita resumos expandidos, textos na forma de relatório e nem trabalhos previamente publicados em anais, CDs ou outros suportes.
BOLETIM DO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI. CIÊNCIAS HUMANAS INSTRUCTIONS FOR AUTHORS Mission and Editorial Policy The mission of the Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas is to publish original works on archaeology, history, anthropology, indigenous linguistics, and related fields. The journal accepts contributions in Portuguese, Spanish, English and French for the following categories: Research Articles – original scientific articles reporting on research, that effectively contribute to the advancement of knowledge. Between 15 and 30 pages. Review Articles – analytical texts or essays that contain a bibliographical or theoretical review of a certain subject or topic. Between 15 and 30 pages. Short Communications – short preliminary reports on field observations, challenges faced and progress made in ongoing research emphasizing hypotheses, mentioning sources, partial results, materials and methods. Maximum length: 15 pages. Memory – this category includes texts about collections or items in collections considered relevant for scientific research; fully or partly transcribed documents with an introductory text; biographical essays, including obituaries or individual memories. Maximum length: 20 pages. Debate – critical essays on current issues. Maximum length: 15 pages. Book Reviews – descriptive and/or critical reviews of printed or electronic publications. Maximum length: five pages. Theses and Dissertations – brief descriptions of theses and dissertations, with no references section. Maximum length: one page.
Article proposals The Boletim only accepts original contributions in digital format. Digital manuscripts should be submitted via the online platform ScholarOne, which is accessible through the website of the Boletim <http://www.museu-goeldi.br/editora/humanas/index.html> or directly via the link <https://mc04.manuscriptcentral.com/bgoeldi-scielo>, providing additional information requested during the various steps of the submission process.
Registration Authors must register in order to create a password-protected personal account on the online platform in the section “CREATE AN ACCOUNT” or “NEW USER” and correctly fill in the profile. Registration and the creation of an account need be done only once. Thereafter, the account should be used for current and future submissions to the Boletim.
Submission In order to submit a new contribution, authors must log into their account on the online platform and click on “AUTHOR CENTER”. After completing this step, proceed to the “AUTHOR RESOURCES” window and start the submission process via the link “CLICK HERE TO SUBMIT A NEW MANUSCRIPT”, following seven steps: • Step 1: Type, Title, & Abstract º Choose type of manuscript (article, review, etc.).
º Title of manuscript. º Provide the abstract. • Step 2: Attributes º Add key words (3 to 6). • Step 3: Authors & Institutions º Declare whether the manuscript is submitted by the author, or by another person. • Step 4: Reviewers º Optionally name potential reviewers that are preferred, or non-preferred. • Step 5: Details & Comments º Specify who funded the research that resulted in the submission. º Declare that the work was submitted exclusively to the Boletim and has not been published elsewhere. º Declare that the work is in accordance with ethical norms. º Confirm that the submitted files are entirely anonymous, so as to enable anonymous peer review. º Declare whether there is any conflict of interest. If there is, please specify. • Step 6: File Upload º Upload the files. (At least one of the files should represent the Main Document) • Step 7: Review & Submit º Verify that all information and files are complete and finalize the submission by clicking on “SUBMIT”. The journal has a Scientific Council. Manuscripts are first examined by the Editor or by one of the Associate Editors. The Editor has the right to recommend alterations to the submitted manuscripts or to return them when they fail to comply with the journal’s editorial policy. Upon acceptance, manuscripts are submitted to peer-review and are reviewed by at least two specialists who are not members of the Editorial Board. In the event of discrepancy between the reviews, the manuscript is submitted to other referee(s). In case changes or corrections are recommended, the manuscript is returned to the author(s), who have thirty days to submit a new version. Publication of a manuscript entails transfer of copyright to the journal. A declaration of Assignment of Copyrights of the published work, signed by all authors, must be submitted together with the revised manuscript via the ScholarOne platform.
Preparing the manuscript for submission All manuscripts have to be submitted via the online platform ScholarOne. Original manuscripts must be prepared observing the following requirements:
1. Word for Windows format, Times New Roman font, size 12, line spacing 1.5, and pages must be numbered. Articles on linguistics must use a font that is compatible with the Unicode standard, such as Arial, Calibri, Cambria, Déjà Vu, Tahoma and others that include the IPA extended set of phonetic symbols. Times New Roman is preferred, but it includes the full IPA in Unicode only in more recent editions of Windows. One should never improvise IPA characters such as ɨ, ʉ, etc. by applying strike-through of common characters. 2. The cover page must contain the following information: a. Title (in the original language and in English); b. Abstract; c. Resumo (a Portuguese abstract in case the original is English); d. Keywords and their equivalent palavras-chave in Portuguese. 3. The manuscript must include neither the name(s) of the author(s) nor acknowledgements. 4. To highlight terms or phrases, please use single quotation marks. 5. Only foreign language words and phrases and Latinized scientific terms should be in italic type. 6. The articles should follow the recommendations of the Brazilian Association for Technical Standards (ABNT) for the presentation and use of bibliographical information: abstracts, NBR 6028; citation in documents, NBR 10520; references, NBR 6023. 7. Tables should be in Word format, numbered in sequence, with clear captions. 8. Images and graphs should be on separate numbered pages, with their respective captions. They should be submitted as separate files on the online platform. Digitalized images should have a minimum resolution of 300 dpi., a minimum size of 1,500 pixels, and be in TIFF (preferably) or JPEG format. They should be max. 16.5 cm wide and 20 cm high (when covering two columns), or 8 cm wide and 20 cm high (when used within a single column). Textual information inside the images should be in Arial font, size between 7 and 10 pts. 9. Images created in vectoral programs should be provided in open format, with either a .cdr (X5 or inferior), .eps or .ai (CS5 or inferior) extension. 10. All tables, graphs and images must obligatorily be mentioned in the body of the text. With regard to maps, please use symbols rather than colours (because of restricted use of colour in printed versions). 11. Sections and subsections in the text must not be numbered. 12. Only page numbering and the numbering of footnotes should be automatic. Texts containing automatically numbered sections, paragraphs, figures, examples or any other automatized processes cannot be accepted. 13. Texts must fully comply with scientific naming rules, abbreviations and other conventions current in the specific fields of discipline. 14. Footnotes should be used only when strictly necessary, never for reference to published work, and should be indicated in Arabic numbers. 15. References to manuscripts, archive documents or unpublished texts (reports, letters, etc.) must not be listed at the end of the article, but should be provided in footnotes. 16. Reference to works cited throughout the text should conform to the following convention: author’s last name (not in upper case), year, page(s). Examples: (Goeldi, 1897, p. 10); Goeldi (1897, p. 10). 17. All references used throughout the text must be listed at the end of the article, and all works listed should be mentioned in the text. 18. Works cited as “apud” should also be fully and correctly listed at the end of the article. The names of multiple authors and volume editors referred in the text as “et al.” must all appear in the reference list at the end of the article.
Basic text structure 1. Title – The title must appear both in the original language of the text and in English (or Portuguese, in case English is the original language). The title must be in lower case in bold type, centralized on the page. 2. Abstract – This section should be a single paragraph and highlight the goals, methods and results of the research, with a minimum length of 100 words and a maximum length of 200 words. The abstract should be presented both in the original language of the text and in English (or Portuguese, in case the original language is English). The translated abstract must either be composed or corrected by a native speaker, which is the responsibility of the authors. 3. Keywords – Three to six words that identify the topics addressed in the article, for the purpose of indexation in databases. 4. Body of the text – The text should be subdivided into sections that are NOT numbered. Articles should preferably contain the following components/sections: introduction, theoretical background, main text, conclusion, references. Lengthy paragraphs and/ or sentences should be avoided. Acronyms should be preceded by the word or phrase to which it refers to when appearing for the first time. Example: “The Universidade Federal do Pará (UFPA) is preparing a new admission exam”. Quotations of less than three lines should be included in the body of the text between double quotation marks (“). Quotations of more than three lines are separated from the text and indented in block, with no quotation marks, the font size being smaller than the font used in the text. The road down into the Guaporé Valley was in quite good condition, for it had not yet begun to rain heavily, and we made good time to the ranch known as Estrela do Guaporé. There, I talked briefly with the administrator, a man named Alvaro, and then with Kim, who was recuperating from malaria. Kim was very pale and weak, and our talk was brief and constrained. I found out later that he had actually gone to Brasília and told the FUNAI that Sílbene was urging the Indians to kill cattle. In fact, Sílbene had told the Indians to defend their gardens, which were on demarcated land, from invading cattle (Price, 1989, p. 119). 5. Acknowledgements – Should be brief and can mention: support and funding; connections to graduate programs and/or research projects; acknowledgement to individuals and institutions. The names of individuals and institutions should be written in full, together with a motivation for the acknowledgement. Note that the first submitted version of the article should be without acknowledgements, because of the anonymous peer-review process. 6. References – Should be listed at the end of the text in alphabetical order according to the last name of the first author. In the event of two or more references to a same author, please use chronological order starting with the most recent work. References should comply with ABNT recommendation NBR 6023. Please avoid unnecessary capitals in the titles of books and articles. Only proper names, German nouns and the content words of journal titles and book series should start with a capital letter. Note that the correct application of the ABNT norms concerning bibliographical references (NBR 6023/2002) and the correct application of the modern spelling rules of Portuguese are the responsibility of the author(s). The following list contains examples of the different categories of bibliographical references, illustrating ABNT practice: Book: PRICE, David. Before the bulldozer: the Nambiquara Indians and the World Bank. Cabin John: Seven Locks Press, 1989. Book: WIECZOREK, Alfred; ROSENDAHL, Wilfried; SCHLOTHAUER, Andreas (Ed.). Der Kult um Kopf und Schädel. Heidelberg: Verlag Regionalkultur, 2012.
Series: GOELDI, Emílio. Escavações arqueológicas em 1895: executadas pelo Museu Paraense no Litoral da Guiana Brasileira entre Oiapoque e Amazonas. Belém: Museu Paraense de História Natural e Ethnographia, 1900. (Memórias do Museu Goeldi, n. 1). Book chapter: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Política indigenista no século XIX. In: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela (Ed.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 133-154. Book chapter and series: VUILLERMET, Marine. Two types of incorporation in Esse Eja (Takanan). In: DANIELSEN, Swintha; HANNSS, Katja; ZÚÑIGA, Fernando (Ed.). Word formation in South American languages. Amsterdam: John Benjamins, 2014. p. 113-142. (Studies in Language Companion Series, n. 163). Journal article: GURGEL, C. Reforma do Estado e segurança pública. Política e Administração, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 15-21, Sept. 1997. Journal article: TERSIS, Nicole; CARTER-THOMAS, Shirley. Investigating syntax and pragmatics: word order and transitivity in Tunumiisut. International Journal of American Linguistics, Chicago, v. 71, n. 4, p. 473-500, Oct. 2005. Electronic journal article: VELTHEM, L. H. V. O objeto etnográfico é irredutível? Pistas sobre novos sentidos e análises. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 7, n. 1, p. 51-66, jan./abr. 2012. Available at: <http://www.scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-81222012000100005&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>. Accessed on: 06 Mar. 2015. Newspaper article: NAVES, P. Lagos andinos dão banho de beleza. Folha de São Paulo, São Paulo, 28 Jun. 1999. Folha Turismo, Caderno 8, p. 13. Electronic newspaper article: SILVA, Ives Gandra da. Pena de morte para o nascituro. O Estado de São Paulo, São Paulo, 19 Sept. 1998. Available at: <http://www.providafamilia.org/pena_morte_nascituro.htm>. Accessed on: 19 Sept. 1998. Conference presentation: BRAYNER, A. R. A.; MEDEIROS, C. B. Incorporação do tempo em SGBD orientado a objetos. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE BANCO DE DADOS, 9., 1994, São Paulo. Proceedings... São Paulo: USP, 1994. p. 16-29. Electronic conference presentation: SILVA, R. N.; OLIVEIRA, O. Os limites pedagógicos do paradigma da qualidade total na educação. In: CONGRESSO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA DA UFPe, 4., 1996, Recife. Electronic proceedings... Recife: UFPe, 1996. Available at: <http://www.propesq.ufpe.br/anais/anais.htm>. Accessed on: 21 Jan. 1997. Electronic document: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Demográfico 2010. 2011. Available at: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/default.shtm>. Accessed on: 23 Jan. 2012. Legal document: SÃO PAULO (Estado). Decreto nº 42.822, de 20 de janeiro de 1998. Lex: coletânea de legislação e jurisprudência, São Paulo, v. 62, n. 3, p. 217-220, 1998.
Legal document: BRASIL. Congresso. Senado. Resolução nº 17, de 1991. Coleção de Leis da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, v. 183, p. 1156-1157, May/Jun. 1991. Legal document: BRASIL. Medida Provisória nº 1.569-9, de 11 de dezembro de 1997. Estabelece multa em operações de importação, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 14 Dec. 1997. Seção 1, p. 29514. Academic theses (PhD theses, MA theses and monographs): MORGADO, M. L. C. Reimplante dentário. 1990. 51 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Odontologia) – Universidade Camilo Castelo Branco, São Paulo, 1990. Academic theses (PhD theses, MA theses and monographs): ARAUJO, U. A. M. Máscaras inteiriças Tukúna: possibilidades de estudo de artefatos de museu para o conhecimento do universo indígena. 1985. 102 f. MA thesis (Mestrado em Ciências Sociais) – Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, 1986. Academic theses (PhD theses, MA theses and monographs): BENCHIMOL, Alegria. Resgate e ressignificação da pesquisa no Museu Paraense Emílio Goeldi: presença e permanência de cientistas estrangeiros (1894-1914) na produção científica de autores atuais (1991-2010). 2015. PhD thesis (Doutorado em Ciência da Informação) – Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. Academic theses (PhD theses, MA theses and monographs): MOORE, Denny. Syntax of the language of the Gavião Indians of Rondônia (Brazil). 1984. 200 f. PhD thesis (Doctorate in Anthropology) – University of New York, New York, 1984.
Initial evaluation An initial evaluation will be carried out by the editorial staff, following a checklist of basic criteria. In case the submission is incomplete or the images are not in accordance with the specifications mentioned above, the article will be returned to the author through the platform, by marking it as “UNSUBMITTED”. This means that the article returns to the stage of not yet having been submitted, with an explanation of the issues to be resolved. After having resolved the pending issues, the author should resubmit the article by choosing the option “RESUBMIT”.
Revision of articles After receiving the anonymous peer reviews, the Editor decides whether the article is accepted for publication. If accepted, the author is requested to revise the article on the basis of the reviews and the Editor’s observations. The author must also explain how the revision was done and provide justification in case the advice of the reviewer(s) was not followed. It is obligatory to use the “Track Changes” function in Word, when applying changes. The revised article should be submitted via the online platform, via the revision link at “AUTHOR RESOURCES”, by clicking on “CREATE REVISION”.
Proofs After having been formatted by the editorial staff, the articles will be sent in PDF format to the authors via the ScholarOne e-mail system for final approval, and must be returned as soon as possible. Requested changes in the text have to be marked and commented as clearly as possible in the PDF document. At this stage, changes concerning content or changes resulting in an increase or decrease in the number of
pages will not be accepted. In the event that the author does not respond in time, the formatted version will be considered as approved by the author. The articles will be published in full in PDF format on the journal website, in Issuu, in DOAJ, and at SciELO.
Mailing address: Museu Paraense Emílio Goeldi Editor do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas Av. Perimetral, 1901 - Terra Firme CEP 66077-530 Belém - PA - Brazil Phone: 55-91-3075-6186 E-mail: boletim.humanas@museu-goeldi.br
Please remember: 1- Before submitting your manuscript to the journal, please check whether you have complied with the norms above. The start of the editorial process depends on this. 2- After acceptance, the articles will be published according to order of arrival. The Editor may also decide on the most convenient time for publication. 3- The journal does not accept expanded abstracts, reports, and works previously published in Proceedings, CDs, and/or other media.
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