INVENÇÃO DE LUGARES PRÓPRIOS NO TEMPO BIANCA JO SILVA
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INVENÇÃO DE LUGARES PRÓPRIOS NO TEMPO Trabalho final de graduação apresentado à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Mackenzie para a obtenção do título de arquiteta e urbanista
Orientadora: Profª Drª Lizete Maria Rubano
São Paulo, Dezembro de 2014
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À meus pais, que sempre com muito cuidado e carinho, materializaram o que sou À Lina Jo, que mesmo em meio à discordâncias, me mostra o quanto seria difícil viver sem ela À Lizete Rubano, maior referência de profissional e pessoa, que faz da escola e da vida lugares melhores Aos amigos, que compreenderam o ano atarefado e mesmo assim se fizeram presentes Aos professores Sami Bussab e Lucas Fehr, aos professores convidados Daniel Corsi, Volia Kato e Cláudio Manetti e tantos outros, que acompanharam e apoiaram o trabalho Aos encontros e experiências tantas que esse ano me proporcionou
SUMÁRIO
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INTRODUÇÃO
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capítulo 01 O TERRITÓRIO [simbologia, articulação e agentes na disputa]
047
capítulo 02 A DISPUTA [cenário dos últimos anos]
067
capítulo 03 O CORPO COLETIVO AUTO ORGANIZADO [movimento, trajetória e ocupação]
099
capítulo 04 ANTROPOLOGIA DA CIDADE [manifesto público das vocações de uma cidade] [a valorização da vida cotidiana]
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capítulo 05 REVOLUÇÕES E RUPTURAS [uma outra cidade para outra vida]
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capítulo 06 INVENÇÃO DE LUGARES PRÓPRIOS NO TEMPO [o vazio qualificado gera possibilidades]
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BIBLIOGRAFIA
INTRODUÇÃO
001. Estação Brás São Paulo, 2014.
São Paulo é uma cidade segregada e pouco funcional. O objetivo de estudar o tema da habitabilidade1 no centro dessa cidade, e de grupos dedicados à luta por moradia ligados a movimentos de ocupação, é a vontade de compreender melhor a complexidade e as dinâmicas da relação entre a população e a disputa pelo território da metrópole frente a conflitos e contestações ao poder público. Esses grupos articulados evidenciam a contraposição à postura pública no que diz respeito à garantia e o direito de habitar e veem o centro como importante palco para sua atuação. Tanto pelas próprias dinâmicas desencadeadas ao longo dos anos que geraram seu esvaziamento e, mais adiante, sua reocupação quanto e, principalmente, pela própria exposição e repercussão das deficiências de gestão e uso do território que a cidade apresenta. Como colocação preliminar, a intenção é discutir intervenções na cidade real, constituídas não pela reprodução de sentidos pré-estabelecidos e condicionados, mas pelo desenvolvimento de novas possibilidades, questão claramente debatida nos movimentos sociais ao longo do processo de ocupação dos edifícios abandonados na área central. Que tipo de projetos contribuiriam para a inversão da lógica da cidade e que caracterizariam São Paulo pela 1. Habitabilidade diz respeito ao uso, ao espaço humano e humanizado, ao lugar do nosso habitar, enquanto residência ou dinâmica diária. BRANDÃO, Carlos (2013).
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002 MUSEU BRASILEIRO DA ESCULTURA JARDIM EUROPA
solidariedade, pela qualidade de vida, pelo direito e pela poética2? Como valorizar a vida cotidiana e democratizar a utilização dos espaços públicos na cidade? O trabalho se propõe, na qualidade de um ensaio, lançar-se em meio ao mundo em acontecimento com o objetivo despretensioso de discutir certas hipóteses de construção de cidade mais justa física e eticamente. Será colocada a falta multifacetada de respeito do poder público com a população, da população com ela própria e da população com a cidade (ou vice e versa); sugerindo novas lógicas que impulsionam a uma nova leitura e um diferente olhar, que pode desencadear anseios diversos de transformação das cidades.
“Poderíamos nos dar ao luxo de não sermos utópicos?” (HARVEY, 2013, p.32)
2. Poética, é utilizada no sentido do poder de comover, sensibilizar, despertar sentimentos, inspirar e encantar.
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capítulo 01
O TERRITÓRIO [SIMBOLOGIA, ARTICULAÇÃO E AGENTES NA DISPUTA]
003 Zona Central de São Paulo, região administrada pela Subprefeitura da Sé e composta pelos distritos da Bela Vista, Bom Retiro, Cambuci, Consolação, Liberdade, República, Sé e Santa Cecília.
O centro como símbolo, território e significado é claramente um elemento estruturador da urbanidade de uma cidade (VILLAÇA, 2000). Está presente, independente do tamanho, história e idade. Isso não significa que o centro seja autônomo, tenha maior importância ou que anteceda a cidade. Pelo contrário, o centro e as áreas não-centrais compõem o mesmo e único processo no desenvolvimento das cidades. As principais questões que trazem à tona a discussão de dinâmicas ocorridas em centros históricos, seja indagando-se sobre condições de moradia, seja sua inserção no debate público, são: a contraposição do déficit habitacional versus a quantidade de domicílios vagos nas regiões (MARICATO, 2011, VILLAÇA, 2000, ARANTES, 2002). Além disso há o esvaziamento dessas áreas, o processo de crescimento das cidades em direção a regiões periféricas e, ao longo dos últimos 15 anos, a criação das operações urbanas, com projetos de parceria público-privada. Essa questão envolve, também, muitas outras dinâmicas relativas ao desenvolvimento das cidades, gestões e políticas públicas de planejamento e também de cunho político, notadamente através das divergências de gestões opostas. Ao passo que nossas cidades se expandem, demarcadas pelo ao 15
assentamento formal ou informal, de maneira desordenada e sem planejamento, com altas taxas de ocupação horizontais em direção a zonas periféricas, algumas regiões adensam-se intensamente e novas áreas tornaram-se foco de valorização e especulação imobiliária. Essa valorização deu-se por questões diversas, que variam de oferta de infra estrutura pública ao preço da terra. Essa transformação é um aspecto comum às grandes capitais brasileiras1 que tiveram em seus centros históricos um esvaziamento de população moradora, mas que permaneceram como referência de local de trabalho, cultural e local de consumo de grande parte da população, ofertando enorme variedade de comércios e serviços que atendem toda a cidade. A partir do projeto “Moradia é Central” desenvolvido pelo instituto Pólis2 , é possível ter um panorama, em escala nacional, com semelhanças nas transformações das áreas centrais de cidades de alguns estados brasileiros, o que nos chama a atenção para um processo generalizado característico de grandes áreas urbanas, e não específico da 1 . Conforme dados da publicação “Moradia é Central”, realizada em 2009 pelo Instituto Pólis. 2. Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais é uma (ONG) de atuação nacional e reconhecida como entidade de utilidade pública nos âmbitos municipal, estadual e federal.
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cidade de São Paulo. O objetivo da pesquisa foi o de sensibilizar a opinião pública à efetivação de políticas públicas de promoção de habitação de interesse social nos grandes centros urbanos, tendo como principal instrumento de ação os imóveis vazios e ociosos para a melhoria das condições de vida da população que já residia nessas áreas. As cinco capitais envolvidas foram: São Paulo, Belém, Fortaleza, Recife e Rio de Janeiro, que apresentaram em geral, dinâmicas muito semelhantes. Recife, Rio de Janeiro e Belém, por exemplo, possuem regiões centrais portuárias de grande valor patrimonial histórico, o que muda um pouco a perspectiva de ação. Nesses casos, levantou-se projetos e possibilidades de se ocupar esses edifícios públicos com a perspectiva da recuperação do patrimônio associado ao envolvimento da população de menor renda na produção de habitações. Já a cidade de Fortaleza, assim como São Paulo, caracteriza-se pela grande concentração de empregos na área central ao mesmo tempo em que apresenta, entre seus imóveis centrais, taxas acima de 20% de vacância (Moradia é Central, 2009). As experiências mostram claramente que as dificuldades em se democratizar os centros das nossas cidades conformam um processo complexo, mas também evidenciam que os movimentos 17
sociais ligados às temáticas de reforma urbana e de moradia, técnicos e a iniciativa acadêmica, têm tido grande potencial na reivindicação de uma política habitacional que reverta esse quadro histórico. Além disso, várias são as ações e conquistas significativas desencadeadas para que as cidades caminhem a uma configuração sócio espacial mais justa.
No contexto mais específico do município de São Paulo, que contava no Censo de 2010 com 11.253.503 de habitantes e, segundo projeções do IBGE, em 2014 com 11.895.893 habitantes, tem-se assim o quarto maior aglomerado urbano no mundo3 . A população paulistana vem crescendo a um ritmo inferior ao do restante do Brasil, mas em 2010, ainda representava 21,63% da população brasileira e a distribuição de domicílios no município, subprefeituras e distritos municipais (também se3. Dados da organização Americana UN World Urbanization Prospects (2005 revision). Aglomerado Urbano refere-se ao território contíguo habitado com densidade residencial,desconsiderando-se os limites administrativos.
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gundo dados do IBGE do Censo de 2010) em áreas urbanas, atingia 99,22% da população.
Segundo dados do IBGE de 2011, São Paulo concentrava 32,57% do PIB (Produto Interno Bruto) nacional e o município, 35,34% do PIB do Estado. Ainda que, na década de 1970 esses percentuais tenham sido mais expressivos4 , o Município continua sendo estruturador fundamental da organização econômica da rede de distribuição de mercadorias, de comercialização de varejo e de oferta de serviços no país. Porém, apesar de sua desenvoltura na área econômica, a cidade de São Paulo ainda apresenta uma situação social significativamente desigual que se manifesta em muitas instâncias, inclusive em sua configuração espacial. Aspectos muito divergentes como forte precariedade e áreas com muito investimento tangenciam-se na desordenada malha urbana e, de um modo mais geral, na forte discrepância 4. Fato extraído dos comentários gerais sobre o Censo de 2011 na página online do IBGE.
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004 CENTRO DE SÃO PAULO REPÚBLICA 2 linhas de metrô, 30 de ônibus, oferta de emprego e infraestrutura básica 22 % dos domicílios estão vagos 7 mil domicílios 20 Min é o tempo médio de viagem por dia dos moradores do bairro*
005 PERIFERIA DE SÃO PAULO GRAJAÚ 61 % dos domicílios apresentam alguma precariedade de acesso à infra-estrutura básica 53 mil domicílios 72 Min é o tempo médio de viagem por dia dos moradores do bairro* *Pesquisa de Origem e Destino, Metrô da Cidade de São Paulo, 2010.
visível entre área consolidada, mais central, e a periferia, o que é ainda mais acentuado se considerarmos a região metropolitana e não apenas o Município de São Paulo. Do quantitativo de população total em suma apresentado, 63% vive em bairros periféricos e precários5 , ou seja, a cidade claramente sofre muito com problemas ambientais e habitacionais. Ambientais, pois a ocupação das bordas inevitavelmente alcança áreas de preservação de vegetação e mananciais, fato altamente prejudicial para o desenvolvimento das cidades. E habitacional, pois em 2010 o déficit habitacional representava 1.495 milhões de domicílios6 , 11,9% do total nacional. Há ao mesmo tempo na cidade um milhão de moradores de cortiços (KOWARICK, 2013) e, 14.478 pessoas em situação de rua, sendo somente 7.713 em centros de acolhida da capital7. Se, historicamente a aglomeração de pessoas e a consequente conformação dos centros das cidades eram dadas pelos estruturadores da vida urbana como templos, edifícios de função governamentais e ligados à economia, hoje a cidade que nasce e desenvolve-se de maneira capitalista, é 5. Publicação Moradia é Central, dados de 2009. 6. Dados do Censo de 2010 sobre a Região Metropolitana e município de São Paulo. 7. Dados de 2010, do site da FIPE - Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas apoio à FEA-USP.
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estruturada essencialmente pelas dinâmicas comerciais de oferta varejista e serviços básicos. (VILLAÇA, 2000) Há como criar hipóteses de que esse processo foi gradual, a partir da soberania do Estado sobre a Igreja - esse seria um indício de porquê as cidades mais antigas carregavam mais simbologias relacionadas a seus centros históricos, pelo caráter monumental, religioso, de controle de poder, etc. E, mesmo que a conformação espacial tenha sido alterada, o controle desses grandes centros pelas classes mais altas sempre esteve presente. Observamos claramente esse controle desde a urbanização da cidade de São Paulo, por volta das décadas de 1870 e 1880, quando é iniciado seu processo ininterrupto de crescimento urbano, estruturado e desenvolvido basicamente em decorrência da produção e comércio cafeicultor no interior e os consequentes investimentos na produção de bens manufaturados, que deram origem ao processo de industrialização. Ora, sua posição estratégica, entre importantes territórios produtores de café e o porto de Santos, favoreceu muito seu rápido desenvolvimento como centro político-administrativo, comercial e cultural da região. Para isso foi fundamental com a construção da rede ferroviária, datando de 1865 a viagem inaugural da São Paulo Railway e, dez anos mais tarde, a inauguração da Sorocabana (REIS, 1994). 23
“Entender o espaço é entender como ele participa das transformações sociais e como em elas interage. Não existe transformação social sem a participação do espaço, e não existe a transformação do espaço sem a transformação social.” (VILLAÇA, 2012, p. 16)
Essa sucessão de fatos justifica muito o crescimento demográfico e espacial acelerado, sobretudo com o período mais intenso de imigração, o que desencadeou a procura da elite por áreas mais resguardadas da movimentação intensa no centro. Começam a surgir novos bairros de caráter aristocrático e exclusivamente residenciais, como os Campos Elíseos e Higienópolis, além da abertura da Avenida Paulista, em 1891 (REIS, 1994). Essas iniciativas elitistas de exclusão social foram desde o princípio estimuladas pelo poder municipal (como ainda o são) por meio da isenção de impostos durante os primeiros anos, por exemplo. É nítida a influência, já nesta época, do interesse das classes dominantes na configuração do território, induzindo seu crescimento. 24
“Invertia-se, portanto, a polarização da cidade. O que havia sido a sua porta de entrada, local de habitação do governador e das famílias mais abastadas, transformava-se agora em zona industrial. O lado oposto, que foi considerado o quintal da cidade, o Vale do Anhangabaú, transformouse no ponto central da cidade, a partir do qual se tinha acesso, pela Avenida São João e pelos seus viadutos, aos bairros residenciais de alta renda.” (REIS, 1994, p.49).
Essa transferência de valor agregado ao território criou uma nova centralidade8, ainda que muito próxima, imposta pelas classes dominantes e concretizada por intervenções do poder público. Observamos um ensaio do que viria a ser esse processo de exclusão social sem controle que se dissipa por toda a cidade e pelo país ainda hoje.
8. Aqui concebida enquanto um “espaço de prestígio, dotado de uma considerável capacidade de atrair diversos grupos sociais e de catalisar uma gama de novos serviços, negócios e lojas, que estão majoritariamente voltados para as camadas mais abastadas da população” (LIMA, 2007).
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“Através da segregação, as camadas de alta renda dominam o espaço urbano não só produzindo suas áreas residenciais nas áreas mais agradáveis e bem localizadas, mas também atuando sobre toda a estrutura urbana segundo seus interesses” (VILLAÇA in SOUZA, 1999 p.224)
Nota-se que a citação de Villaça acima poderia referir-se tanto ao início do século quanto ao momento atual de expansão do eixo de alto poder econômico pela região Sudoeste da cidade. De qualquer forma, o crescimento urbano, para além do Centro Histórico, está claramente ligado às transformações econômicas que ocorreram na passagem do século. O capital passa a ser investido também em terras, levando a outra etapa de estruturação da matriz fundiária e de consolidação da cidade. Enquanto antes os limites eram determinados pela necessidade de ocupação, mesmo que sem planejamento, a partir dessa época começam a surgir loteamentos e arruamentos independentes da necessidade de expansão. Começamos a ver expressões da “separação entre a propriedade e a efetiva ocupação” (ROLNIK, 1997, p.22 e 120). Inicia-se, portanto, um processo de especulação que ordena26
ria a lógica de ocupação sócio espacial da metrópole. Já no século XX, observamos a valorização da área central em relação a seu papel comercial e seu processo de verticalização, o que levou a um adensamento significativo e ao surgimento dos problemas de mobilidade tendo em vista o crescimento da frota dos transportes individuais e ao desinteresse da implementação de um sistema de transporte público de massa eficiente. A essa altura a elite já ocupava bairros mais afastados do centro e deixava para trás os grandes casarões que foram aos poucos sendo tomados pelos cortiços9. Ações do Estado, como o Plano de Avenidas (1929), impulsionaram o crescimento da cidade no sentido horizontal e a Lei do Inquilinato (1942), que, ao congelar o valor dos aluguéis, acabou por elevá-los, aumentando o número de despejos e dificultando a permanência das populações mais pobres na área central, contribuíram ao deslocamento dessas populações para as bordas. Mais uma vez, a classe de mais baixa renda assumia, para si, a responsabilidade que deveria por princípio caber ao poder público na organização da cidade. Este deixa a cargo dessa camada a produção 9. Publicação de estudos desenvolvidos na disciplina Planejamento de Áreas Especiais: Favelas e Cortiços (FAU/USP), 2007.
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desordenada e auto construída de habitações em áreas completamente desprovidas de infra estrutura, o que significou uma redução ao mínimo dos investimentos públicos em urbanização para o habitat. Com a expansão do centro histórico, e atendendo à polarização na escala de metrópole nacional de primeira grandeza, na década de 60, surge a Av. Paulista como nova centralidade, vindo a atingir, nos anos de 1970, a região da Avenida Faria Lima e nos anos 1990, a Av. Luis Carlos Berrini e Marginal Pinheiros como centralidade da metrópole “global”. Dessa maneira, conformam-se áreas de intensa exploração para o mercado imobiliário, como o Morumbi, Vila Olímpia e Itaim Bibi.
“Pulou da Rua do Arouche/Barão
de Itapetininga para a Rua Augusta/ Avenida Paulista; a partir da década de 1970, para a Avenida Faria Lima; e depois para a Marginal Pinheiros/ Berrini – assumindo a forma de uma enorme e descontínua área central, entremeada de bairros residenciais das camadas da elite. Apesar de difícil delimitação geográfica, essa área existe, indiscutivelmente.” (VILLAÇA, 2000 p.133)
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Ao mesmo tempo em que essas transformações saíam do perímetro do centro já expandido, a região central apresentou duas dinâmicas significativas: foi progressivamente apresentando uma redução importante da população moradora, que era de 526 mil pessoas em 2000 no total dos 13 distritos (IBGE e SEMPLA, dados censitários de 2000); a perda de população foi cerca de 30% entre 1980 e 2000, sendo a maior perda no distrito de Pari (46%) e a menor no distrito da República (22%). A incidência de vacâncias nestes distritos era maior do que no conjunto da cidade, onde o total de vazios era de 11,8%. A segunda dinâmica, correspondente à concentração significativa de empregos mantida - 21% do total, cerca de um terço de todos os empregos formais da cidade (FIPE, dados de 2011.), provavelmente pela ampla oferta de infraestrutura, saneamento básico e energia e a grande facilidade de acesso aos diversos meios de transporte. Como observado no mapa ao lado (imagem 006), mesmo que tenha havido esses grandes investimentos na região sudoeste (que apresentam nos dados participação de até 40% na arrecadação geral sobre serviços prestados) e que os mesmos sejam mais lucrativos em dados absolutos, o centro continua tendo participação muito importante no que diz respeito à oferta de emprego e de retorno econômico ao 29
006 Mapas de Arrecadação de Impostos sobre Serviço ISS no Município de São Paulo. Fonte: Secretaria Municipal de Finanças 2011.
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Estado pelo faturamento geral principalmente por questões quantitativas (ARANTES, 2011). Assim, com a diminuição do interesse dos promotores imobiliários na região central no que diz respeito a empreendimentos habitacionais de classe média e novos escritórios, alguns edifícios inteiros comerciais e residenciais esvaziaram-se completamente ou passaram a ser subutilizados. Houve uma presença importante e progressiva de moradias alugadas e da oferta de cômodos em cortiços: o percentual de domicílios alugados na área central (36,7%) embora tenha diminuído nas últimas décadas, permanece muito superior ao do município (19,4%), chegando a 49,7% no Brás, 46,5% no Bom Retiro e 44,6% no Pari (IBGE, 2010). Este percentual de imóveis alugados, conforme a Linha de Base para o Programa Ação Centro, se distribui mais ou menos uniformemente entre as diversas faixas de renda, com uma presença um pouco maior entre aqueles que têm renda entre 1 e 3 salários mínimos (LIMA, 2006). Há também uma importante parcela da população vivendo em cortiços, em cômodos precários, pelos quais paga um valor exorbitante por metro quadrado.
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Segundo Kohara10 (2009) foi verificado que enquanto no mercado formal o valor mensal do aluguel representa cerca de 0,8% do valor total do imóvel, nos cortiços o mercado informal chega a arrecadar mensalmente até 3,35% do valor do imóvel. Foi realizado um estudo com 92 cortiços na região da Luz entre os períodos de 1998 a 2012, onde residiam 765 famílias com o valor médio de locação de R$13,20 por m², valor que representava mais do que 200% do valor de moradias unifamiliares com boas condições de habitabilidade localizadas também no perímetro central da cidade. Ao final do estudo, passados 14 anos, uma nova pesquisa na mesma área evidenciou a grande dinâmica na região que vêm sido discutida: 44 imóveis, ou seja, 48% deles deixaram de ser utilizados como cortiços, mas 56 imóveis que não tinham essa característica passaram a ter, totalizando, portanto 104 cortiços na área, 13% a mais do que no estudo anterior. Houve também um crescimento de 30% dos moradores encortiçados, de 765 para 995 famílias. 10. Luiz Kohara é membro do Centro Gaspar Garcia* de Direitos Humanos, engenheiro-urbanista e pós-doutorando FAU/ FAPESP. Escreveu a dissertação de mestrado: Rendimentos obtidos na locação e sublocação de cortiços: estudo de casos na área central da cidade de São Paulo, 2009. *Centro Gaspar Garcia é uma organização não governamental.Desde 1988 atua junto a pessoas de baixa renda que possuem seus direitos violados, conferindo a esta população o papel de protagonista social.
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Ainda hoje a moradia coletiva precária de aluguel representa uma alternativa habitacional concreta para a população de menor renda (entre 1 e 3 SM), que aponta as vantagens de proximidade ao emprego e de redução do custo de transporte, embora que, se analisarmos a relação de preço por metro quadrado, em média de 12m² por família, o valor do aluguel representa o mais alto da cidade de São Paulo (LIMA, 2006). Em decorrência desses fatos é possível compreender melhor a popularização do centro e a degradação material e social dada principalmente ao longo das décadas de 70 a 90. O centro de São Paulo permaneceu por anos deixado à própria sorte pelo Poder Público e pela sociedade. Enquanto isso, grande parte da população enfrentava (e enfrenta até hoje) grandes deslocamentos cotidianamente a essas áreas estruturadas. Promover habitações nessas áreas se revelou de maneira um pouco óbvia, uma iniciativa estratégica que traria claros benefícios como, por exemplo, em relação à economia de tempo, gastos e desgaste da população nesses grandes deslocamentos diários (de casa ao trabalho). Também está colocada aqui, a ideia de uma possível contenção dos fenômenos de expansão da cidade para áreas de risco, adensando-se regiões urbanizadas e preservando as ambientalmente inadequadas à habitação. 33
Baseado nesse movimento dos centros e no desenvolvimento econômico da cidade parece pertinente a discussão do centro não determinado por um limite geográfico, e sim pelas dinâmicas da sociedade, que se utiliza de regiões específicas para desenvolver suas atividades cotidianas, independente de haver uma conexão ou simbologia histórica intrínseca a esses lugares. O principal (ou principais) centro econômico, que mais movimenta capital na cidade de São Paulo está onde a elite quer que ele esteja. Além disso, o Estado age, mas sob pressão social. A segregação espacializa o poder político e econômico das classes mais imponentes e, indiscutivelmente, as questões urbanas estão amalgamadas às desigualdades sociais. A partir deste cenário, os movimentos sociais se articularam nos anos 70 e 80 e deram início à tímida retomada da área central, intensificada efetivamente a partir dos anos 2000 (ver tabela de taxas de crescimento). Mesmo baseando-se nos altos e baixos, o centro de São Paulo nunca pôde ser caracterizado por falta de vitalidade. Como informa Kowarick, 2007: “Basta mencionar a existência de [...] 3,8 milhões de pedestres diários, ou os dois milhões de passageiros que diariamente são canalizados para os distritos da Sé e da República através de 294 das 1,2 34
007 Mapas do crescimento demogrรกfico na cidade de Sรฃo Paulo. Fonte: IBGE Censo demogrรกfico 1980 a 2010.
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mil linhas de ônibus existentes no Município, das 17 estações de metrô e outras três grandes circulações ferroviárias espalhadas nos seus distritos de ocupação mais antiga”. O Censo de 2010 revelou o que estava sendo observado: uma notável inversão na tendência de perda de população. O crescimento de 1,63%, ou seja, de 57.192 habitantes apenas na Subprefeitura da Sé corresponde a uma mudança de leitura e de ocupação frente à região. E, na última década, mesmo não tendo sido foco de gestões municipais, o centro reaparece nas discussões da sociedade, grandes mídias e debate público, com iniciativas de reurbanização. A área começou a ser evidenciada, com pautas sobre a moradia, também em razão de projetos idealizados por incorporadoras e da consequente valorização da região. Edifícios vazios e ociosos tornaram-se então, novamente, atrativos pela possibilidade de ganhos por outros tipos de investimento – seja do poder público ou de iniciativa privada (AQUINO, 2009). Hoje encontram-se, portanto, visões polarizadas no debate sobre a reurbanização do centro. Uma volta a um urbanismo mais elitizado, que busca recuperar antigos valores para atrair pessoas da 36
008 Tipologia dos distritos, segundo comparação das taxas de crescimento da população. Fonte: IBGE Censos demográficos de 1991/2000 e 2000/2010.
classe média e empresas à região. Foi o que se deu a partir da década de 90, com as iniciativas de caráter cultural e projetos pontuais grandiosos e contraditoriamente de pouco impacto, como a Sala São Paulo, a reforma da Pinacoteca, o Museu da Língua Portuguesa, a reforma do antigo DOPS e do prédio dos Correios. Estes funcionariam como “âncoras culturais” que, teoricamente, desencadeariam um processo de recuperação do entorno voltado a classes mais altas tendo em vista o padrão de cultura ofertado por esses equipamentos. 37
Voltaram-se ao tratamento elitista da região tendo em vista a valorização imobiliária acima dos interesses de quem vive ali cotidianamente, demonstrando mais um exemplo de ação segregadora (CARDOSO, 2012). É claro que essas iniciativas, que se valerm de políticas e leis de incentivo à cultura, nada mais são do que iniciativas do poder privado para agregar valor a seu próprio produto. “O grande risco desse enfoque das coisas é que a gente pode descambar para a estética urbana, não é isso? E, com isso, se desvia a direção política. Você não enfrenta os problemas:oferece, cristalizados, os novos espaços”. (SANTOS, 1990)
Ainda na tentativa de atrair o investimento privado, concebeu-se em 1997, a Operação Urbana Centro, instrumento legal que permite alterar normas de zoneamento, sobretudo, no que diz respeito a potencial construtivo dos lotes. Em tese, essa medida visava o adensamento da região. Porém, o que se esperava, claramente, é que isso fosse utilizado como ferramenta do mercado especulativo imobiliário para a valorização da área e a consequente expulsão das classes de baixa renda hoje inseridas no local. A Operação Urbana Centro, oferecia Coeficientes de Aproveitamento variando de 6 a 12, ain38
da que o máximo na cidade fosse 4,0. Mesmo com esse incentivo, a Operação resultou em muito pouco interesse por parte do mercado imobiliário, pois em sete anos, das 101 propostas apenas 33 eram realmente de compra de potencial construtivo. Ao contrário do que se viu, por exemplo, na Operação Faria Lima, que em cinco anos resultou em 14 propostas e um investimento inicial de R$170 milhões para a área. “A reintegração de posse exige a saída daqueles que ‘indevidamente’ ocuparam o Centro, durante os anos em que a elite estava mais interessada nos novos bairros exclusivos do setor sudoeste da cidade” (ANDRADE, et alii, 2001 p.192)
009. Mapeamento do perímetro de atuação da Operação Urbana Centro. Fonte: Secretaria de São Paulo.
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A outra visão, sem rejeitar a necessidade de reabilitar o centro, defende a necessidade de garantir espaço para a população de baixa renda por meio de programas habitacionais, de geração de empregos e renda (BONDUKI, 2000, p.65). Nos últimos trinta anos, foram elaborados 6 planos para a região do centro de São Paulo, tendo resultado na formação do PROCENTRO - Programa de Requalificação Urbana e Funcional da Área Central11. Em 2001, o PROCENTRO junto com a AR Sé desenvolveu o chamado “Plano Reconstruir o Centro”, considerando reformas de acessibilidade , o abandono e subutilização. Esse plano investia na diversidade funcional e social, procurando enfatizar planos de ação de oito programas básicos: Andar no Centro, Morar no Centro, Trabalhar no Centro, Descobrir o Centro, Preservar o Centro, Investir no Centro, Cuidar do Centro e Governar o Centro. Muitos deles eram projetos de conscientização acerca da importância da valorização do patrimônio histórico. No mesmo período, em 2003, a Emurb - Empresa Municipal de Urbanização continuou a fortalecer as tentativas de parceria com o BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento, iniciadas com esse intuito em 1996. Apesar de baseadas nos prin11. Dados retirados de uma publicação referente à disciplina de Grandes Projetos Urbanos em São Paulo ministrada pelo prof. Eduardo A. C. Nobre FAUUSP.
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cípios de estruturação do PROCENTRO, o perfil teve que ser bastante modificado para adequar-se às exigências do BID, angariando assim um empréstimo de US$ 150 milhões12 desse banco para desenvolver o programa. Baseava-se em cinco linhas de ação: Reversão da desvalorização imobiliária e recuperação da função residencial, transformação do perfil econômico e social, recuperação do ambiente urbano, transporte e circulação e fortalecimento institucional do Município. Dentro do primeiro plano de ação foi implnado o PAR – Programa de Arrendamento Residencial - associado a investimentos da Caixa Econômica Federal, que previa a reforma ou construção de unidades residenciais de baixa renda (até três salários mínimos), recuperando os edifícios: Riskallah Jorge, Maria Paula, Celso Garcia, Brigadeiro Tobias, Ipiranda, Joaquim Carlos e Hotel São Paulo. Também foi implementada a lei de Locação Social, com a reurbanização da Favela do Gato e o PRIH – Programa de Reabilitação Integrada do Habitat, com experiências na Luz e no Glicério, além da instituição das ZEIS 3 – Zonas Especiais de Interesse Social13.
12. Dados obtidos da Operação Urbana Centro, no site prefeitura da cidade de São Paulo. 13. Dados obtidos da Operação Urbana Centro, no site prefeitura da cidade de São Paulo.
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010 Perímetro de Reailitação Integrada do Habitat (PRIH) e ZEIS 3. Fonte Plano Diretor Estratégico de 2002.
Em relação às perspectivas de transformação do perfil econômico e social, foram criadas as leis, anteriormente citadas, de incentivo seletivo de isenção fiscal para atração de novos investimentos; controle e fiscalização do comércio de rua e o programa de requalificação de ruas comerciais. E, na recuperação do ambiente urbano, foram implantados projetos de restauro de patrimônio histórico como a galeria Olido e o Mercado Municipal, além da isenção de IPTU por dez anos para a recuperação da fachada de outros patrimônios e transferência de potencial construtivo14. Observamos com esses 14. Dados retirados de uma publicação referente à disciplina de Grandes Projetos Urbanos em São Paulo: Crítica da prática recente, ministrada pelo prof. Eduardo A. C. Nobre FAUUSP.
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exemplos que a falta de um projeto urbanístico que organize as propostas pontuais de intervenção faz com que seus resultados sejam apenas imobiliários, sem que haja melhoria efetiva no espaço urbano. Hoje, segundo estudos (MARICATO, 2001, VILLAÇA, 1999, BONDUKI, 2000, KOWARICK, 2007), para que haja ações efetivas de requalificação da área central, é preciso aprimorar a percepção das dinâmicas. A diversidade total, de pessoas e usos, garantiria a ocupação do centro em tempo integral, e por toda a população. A ideia de discutir a dicotomia, apontada anteriormente, é exatamente a de destacar potenciais em ambas as iniciativas e evidenciar que a reurbanização não deveria ser voltada a uma camada especifica da população, mas que deve democratizar esse espaço, e garantir sua ocupação por todos, de maneira igualitária. “Uma política urbana baseada nesses princípios difere de um simples empilhamento de tijolos em obras públicas. O que importa em uma política é o que precede a realização da obra: o porquê e o para quem.” (WILHEIM, 2000 , Pag.13)
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A citação de Wilheim explicita que, no desenvolvimento de uma política urbana, além de haver a preocupação básica pela justiça e pelo cumprimento dos direitos, também deve haver a compreensão da complexidade humana e dos grupos sociais dos “homo-nem-sempre-sapiens” (WILHEIM, 2000), buscando refrear seus aspectos corruptos e destrutivos, reforçando os vértices da solidariedade, sabedoria e da construção coletiva.
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capítulo 02
A DISPUTA [CENÁRIO DOS ÚLTIMOS ANOS]
Será tratada aqui, a condição contemporânea das cidades que se colocam na lógica competitiva por atração de investimentos, o culturalismo de mercado (ARANTES, 2000) e a influência dessas dinâmicas na vida cotidiana individual de quem se utiliza da cidade. “São Paulo é só a metrópole do capitalismo global nas redes cibernéticas, nos restaurantes e boutiques de luxo [...] e toda uma arquitetura de campo de concentração que protege seus felizes prisioneiros. O resto é o que ninguém quer ver e todos se esforçam por ignorar.” (SANTOS, 2002, p.111)
011. Vista aérea Centro da cidade de São Paulo, 2013.
Desde as primeiras intervenções urbanas nos anos 20, com o argumento de recuperar as áreas deterioradas, a população de baixa renda – trabalhadores locais – eram expulsos da região pelas condições precárias em que viviam (BONDUKI, 2008). O processo de “gentrificação”15 (ARANTES, 2000) que podemos observar em função de inicia15. Tradução literal do inglês “gentrification”. Termo usado pela primeira vez pela socióloga britânica Ruth Glass, em 1964. Refere-se ao fenômeno que afeta uma região ou bairro pela alteração das dinâmicas da composição local, tal como novos pontos comerciais ou construção de novos edifícios, valorizando a região e afetando a população de baixa renda local.
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tivas do mercado imobiliário se verifica naqueles bairros centrais que sofreram um abandono histórico das elites locais (VILLAÇA, 1998 e 2012) e foram ocupados por classes populares ao longo da segunda metade do século XX. De acordo com Ermínia Maricato (2011), tais áreas são atualmente palco de um conflito entre Estado, mercado e classes populares pela permanência ou pela requalificação do lugar. Desse modo, segundo a autora, seria ingênua a intenção de substituir a população presente por outra de maior renda como medida para resolver as questões colocadas pelo que se denomina “declínio das áreas centrais”. A requalificação dessas áreas caracteriza-se, segundo Harvey (in Arantes 2000), como espetáculo urbano16 e configura uma forma de controle social. Tais políticas usualmente são justificadas apontando o esvaziamento das áreas públicas e a diminuição da população residente, apresentando uma situação contraditória diante da oferta de infraestrutura e das dinâmicas econômicas presentes nas áreas centrais (CAMPOS e ROLNIK, 2004; BONDUKI, 2000). 16. É colocada por Harvey (1992) a questão da substituição do espetáculo urbano – no que diz respeito à ocupação de espaços livres da cidade - como forma de resistência ou de festa popular revolucionária pela forma de controle social.
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E, nas propostas de requalificação de áreas consolidadas, infelizmente e não raro, se faz evidente a falta de sinergia entre a população que realmente usufrui da cidade e os planejadores. Isso não ocorre somente nessa região, tampouco é um problema específico da cidade de São Paulo, porém, em 2013, chegamos perto de viver um exemplo da mesma situação reproduzida. O projeto Nova Luz (2005-2013) era de autoria e responsabilidade da Secretaria Municipal de Planejamento e, pretendia (talvez um dos pontos mais polêmicos da implantação do projeto), legitimar uma concessão urbanística. Instrumento previsto no Plano Diretor Estratégico de São Paulo de 2002, segundo o artigo 239, conforma-se como uma ferramenta que autoriza, por meio de licitação, uma concessionária a realizar desapropriações e obras de urbanização. Em contrapartida, recebe remuneração mediante a exploração de terrenos vazios e edificações de uso privado. Parágrafo Único do Artigo 3º da Lei nº 14.917, acerca das concessões urbanísticas no Município de São Paulo: “Podem ser objeto de concessão urbanística, entre outras intervenções estruturais, as obras relativas a modificação do sistema viário, da estrutura fundiária, de instalações e equipamentos urbanos, inclusive sistema de transporte público, e da localiza51
ção de logradouros públicos, a demolição, reforma, ampliação ou construção de edificações.” Mesmo que a licitação deva cumprir um plano urbanístico aprovado previamente pelo Poder Público Municipal, apresenta-se como um mecanismo controverso e manipulável. A interpretação em relação às desapropriações, por exemplo, responsabilidade total da concessionária (de pagamento de indenizações, inclusive) é completamente flexível. A desapropriação é um instrumento legal previsto para ser usado apenas em caso da utilidade pública ou interesse social. A concessão urbanísitica, entretanto, atribuía –no projeto Nova Luz – essa prerrogativa á iniciativa privada, que poderia usar esse instrumento a seu favor, de acordo com seus interesses. Segundo o depoimento de Paula Ribas (revista Carta Maior, 2012), moradora do bairro há 37 anos, administradora da página web “Apropriação da Luz”17 e representante popular do Conselho Gestor da Zona Especial de Interesse Social, o projeto previa demolir 60% das edificações do bairro (e antes mesmo de aprovado o plano geral, foram iniciadas as demolições). “Enquanto a população reage 17. “Apropriação da Luz é um movimento através da comunicação que se destina a dar voz e vez aos moradores do perímetro de renascimento da Santa Ifigênia e Luz. Bem como, aproximar os interessados a ver de perto a força e resistência dos moradores.” Descrição retirada do próprio site.
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como pode aos amplos poderes dados à prefeitura para decidir a vida de moradores e comerciantes, apelando à Justiça, a especulação imobiliária já corre solta”. Segundo dados publicados na apresentação do projeto, no site da prefeitura, seria necessário desapropriar, de início, pelo menos 89 imóveis - três estacionamentos, 27 prédios e 59 galpões ou lojas. Esses imóveis deveriam liberar espaço para calçadões, ciclovias e parques. O governo municipal já havia recebido do consórcio responsável pelo estudo urbanístico o mapa preliminar das desapropriações e o estudo de viabilidade econômica do projeto, que mostrava o potencial de geração de receita da área - mais de 20 quarteirões. O consórcio Nova Luz foi contratado somente para desenvolver um plano urbanístico e para isso recebeu um investimento público de R$ 12 milhões, segundo dados da prefeitura da cidade (2010). Diante deste cenário, no entanto, é natural que haja algumas preocupações, por exemplo: Não estava muito claramente acordadas quais seriam, exatamente, os benefícios públicos desse investimento, visto que uma Parceria Público Privada (PPP), serve para que a iniciativa privada invista, em uma área, os recursos que o poder público não tem.
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“O projeto, junto com a Lei de Concessão, visa fazer um acordo do particular para o particular” (RIBAS, 2012). O que diferenciaria o novo do antigo proprietário desses imóveis na região da Luz seria, portanto, seu poder de compra. Os terrenos ou imóveis privados, para além dos 89 citados, permaneceriam com essa característica, porém teriam valorização mais rápida do que o normal, por estarem dentro do plano urbanístico do consórcio. Apesar de todos estes questionamentos, o projeto foi aprovado pela Câmara Municipal e as desapropriações e demolições foram iniciadas em 2005, embora tenha sido somente em 17 de novembro de 2010 que a Prefeitura de São Paulo tenha apresentado o projeto urbanístico preliminar com as diretrizes básicas para a Nova Luz. Os dados sobre o projeto ficaram disponíveis por cerca de dois meses, para consulta pública, no site da prefeitura e em um posto de atendimento na Rua General Couto de Magalhães18, único edifício manti18. Informações concedidas por moradores e trabalhadores da região em visitas feitas entre Abril e Agosto de 2014.
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012 acima: posto de atendimento da prefeitura na Rua General Couto de Magalhães. 013 abaixo: muro da antiga estação rodoviária sendo demolido. A frase escrita refere-se ao que caracterizou o bairro como “cracolândia”.
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do em três quarteirões vizinhos, por suas condições de tombamento. Essa consulta pública dizia respeito somente ao esclarecimento das ações de projeto para a população, sem que nenhuma alteração ou mesmo questionamento pudesse ser feito. Assim, com o projeto cada vez mais próximo a tomar forma, moradores e comerciantes do bairro iniciaram uma mobilização contra o Nova Luz, desencadeando processos jurídicos para que o projeto fosse suspenso. Inclusive, no dia 13 de Janeiro de 2013, 80 famílias articuladas ao MMRC - Movimento de Moradia da Região Centro (frente derivada e ligada ao MSTC), ocuparam o edifício onde se localizava esse ponto de consulta da prefeitura, impedindo a continuidade do trabalho19. Ainda em Janeiro, o projeto foi definitivamente cancelado, agora na gestão do atual prefeito Fernando Haddad (2012-2016), por motivos de inviabilidade econômica. Após uma reunião com o consórcio responsável pelo projeto, constatou-se que os gastos da Prefeitura necessários para viabilizá-lo poderiam chegar a R$ 2 bilhões. O prefeito, no entanto, afirmou que o projeto urbanístico do Nova Luz tem seus méritos, e manteria suas diretrizes para obras que eventualmente fossem feitas na região. 19. Dados retirados do site do Movimento MMRC.
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A hegemonia dos interesses privados tem aparecido como central nos processos de revitalização. Aqui e internacionalmente há uma lógica sistêmica-funcional (ARANTES, 2000) que elimina outras possibilidades de desenvolvimento da vida urbana, que privatiza espaços comuns e determina fronteiras excludentes para aquelas pessoas que se encontram fora dos padrões de consumo estabelecidos por esses processos. Em São Paulo, assim como em outras grandes cidades do mundo, constroem-se empreendimentos com títulos atraentes para investidores, mas não se constrói uma cidade que de fato sirva à cidadania. Exige-se do urbano uma rentabilidade similar a de títulos de ações, submetidas ao mercado financeiro (FIX, 2007). Contudo, nesta cidade, as conexões entre o mercado imobiliário e o setor financeiro deram-se de modo diferente de países desenvolvidos. Mesmo que São Paulo não se configure como uma cidade global, pode-se dizer que é “hospedeira dessa lógica” (FIX, 2007). Ou seja, ainda que não atenda às condições de urbanidade que respondam às necessidades e lógicas globais, a construção da “face global” da cidade foi sustentada principalmente por grandes investidores brasileiros, como os fundos de pensão, a maioria ligados às empresas estatais. 57
Observamos a concentração dos poucos investimentos disponíveis desse Estado mobilizado para transformar a cidade numa verdadeira “máquina de crescimento” para poucos, especializada em direcionar recursos públicos para alavancar negócios privados. Claramente observado, por exemplo, a partir do eixo de crescimento de áreas de grande influência do ponto de vista econômico em um determinado sentido da cidade – como discutido nos próximos parágrafos - e todo o amparo de infraestrutura que o acompanha e o distancia cada vez mais da realidade da maior parte da cidade. Seguindo essa mesma lógica, observam-se iniciativas de políticas habitacionais em ações nas periferias afastadas, que requerem um investimento muito maior para que sejam supridas as necessidades básicas de infraestrutura e de equipamentos públicos, como por exemplo os relacionados à saúde, à mobilidade e à educação. As favelas e suas autoconstruções, contrário ao que muito se ouve, não constituem uma negação à cidade e muito menos configuram uma cidade que deva ser caracterizada somente como “informal”. As favelas são a expressão máxima e evidente da adesão das famílias de baixa renda – já tão excluídas da cidade “formal” - para com a vida urbana e demonstram, inclusive, um anseio dessas famílias 58
em viver de maneira digna, como consta na constituição, um direito a cada cidadão a ser provido pelo Estado. O processo de afastamento progressivo da população de baixa renda para as bordas20 da cidade é outro instrumento de manipulação. As estruturas de poder (e sua classe), impedidas de atuar diretamente sobre o tempo (VILLAÇA, 2000), atuam no espaço, que tem reflexos diretos na temporalidade. Ou seja, o controle do tempo de deslocamento exerce forças muito potentes na produção do espaço urbano definido pelas áreas distantes, onde se situam as habitações populares, e pela concentração das áreas de rendas média e alta mais a distribuição de comércios, serviços e ofertas de trabalho, que atendem a ambas. Principalmente deste fato surge a importância da boa estruturação do sistema de transporte público como alternativa de subversão desse tipo de controle. Os problemas da população, evidentemente, variam de acordo com as oportunidades de acesso ao solo urbano. As classes sociais de menor renda acabam por ser mais dependentes de resoluções do poder público e têm reivindicações de 20. A borda aqui refere-se literalmente a fronteiras, margens e limites. Simbolicamente (ARROYO, 2007), põe em dúvida o sentido do espaço público que se pressupõe fisicamente contínuo, social e culturalmente universal. Representa uma das problemáticas da cidade: a cisão, a segregação e a interrupção da cidade como totalidade sistêmica.
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maior impacto, frente a demandas básicas de direito à cidade. Já os problemas da população de maior renda dependem muito mais das condições do mercado e são mais facilmente resolvidas (demandas solváveis)– possuindo uma força diferente diante do poder público. “[...] durante as chuvas de verão, as notícias sobre árvores que caem nas ruas de São Paulo ocupam um quarto de pagina no jornal. Se alguma cair em cima de um automóvel, ocupará meia página, com direito a foto. Na Zona Leste, não há nem árvore para cair.” (VILLAÇA, 2000, p. 77)
As zonas favorecidas incorporam o capital cultural, hierarquizam e estratificam a relação sociedade-território. Os grandes condomínios e áreas comerciais, em especial os situados no quadrante sudoeste da cidade, têm representado a máquina que oferece equipamentos mas que, ao mesmo tempo, esvazia o âmbito público – denunciando a omissão da sociabilidade e ressaltando o que Peter Hall (1995 in. ARANTES, 2000) aponta como a “cidade empreendimento”. Essa lógica baseia-se na cidade ancorada ao solo como mercadoria e as contradições recorren60
tes que essa dinâmica apresenta. O sentido exploratório do lugar coloca em questão seu valor de uso para os habitantes locais, que se utilizam do espaço como suporte para suas ações cotidianas, e o valor de troca, com que ele se apresenta aos interessados em extrair do espaço somente benefícios econômicos. A forma da cidade, segundo Otília (2000) é constituída por diferentes manifestações desse conflito. “À primeira vista, uma história tipicamente americana, pois em nenhuma região do mundo o solo foi discutido como alvo tão primordial da especulação capitalista. Que a cidade tenha outra finalidade que não a de atrair o comércio, incrementar o valor dos imóveis e, portanto, pura e simplesmente crescer, é uma coisa que jamais passou pela cabeça dos próceres da nação21” (p.26).
Dessa maneira, perde-se o significado da experimentação da vida pública e passa a valer a prática do “culturalismo de mercado” (ARANTES, 2000), ou seja, a cultura torna-se imagem de indivíduos que se identificam pelo consumo ostensivo. Essa política de construção de imagens busca ren21. Otília Arantes, 2000, sobre a urbanização americana de 1850 a 1930.
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tabilidade econômica a partir da comercialização e consequente especulação e propõe que os espaços públicos na realidade sejam privados e propícios para este consumo. Uma das estratégias de valorização, segundo Harvey (1992), é a apropriação cultural de regiões de interesse histórico. Isso não se dá por acaso visto que Arantes (2002) aponta: “rentabilidade e patrimônio cultural se dão as mãos, nesse processo de revalorização urbana sempre, evidentemente, em nome de um alegado civismo. E para entrar neste universo de negócios, a senha mais prestigiada é a cultura” (p.31) E, complementa, Haug (1997): na cultura capitalista, a produção estética se faz através das mercadorias compradas. A estética, nessa perspectiva, cria necessidades de consumo dentro de uma ideologia maior dominante – neste caso, de especulação da parceria público privada com a produção imobiliária. Mesmo que tais equipamentos metropolitanos culturais em discussão estejam localizados no centro, mesmo que atendam a grande parte da população por questões de acessibilidade, não significa que atendam a maior parte da população por questões socioculturais como temos observado.
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“Ilha reluzente em plena Cracolândia, a Sala
São Paulo parece ser a expressão acabada e atual desse disparate chamado Brasil [...] A justaposição ostensiva entre luxo e lixo talvez a torne, para alguns, escandalosa e intolerável. Contudo, ela representa a regra e não a exceção de uma “sociabilidade” com a qual já nos acostumamos a conviver, como se fosse uma segunda natureza. Se o contraste entre a Sala e seu entorno repõe conhecidas figuras contraditórias da experiência brasileira, como a superposição de vanguarda e atraso, a novidade, neste caso, consiste em não mais escamotear o caráter revanchista do processo em curso.” (FIX, 2000)
014 SALA DE CONCERTOS SALA SÃO PAULO - LUZ
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Nos últimos vinte anos foram realizados ou iniciados pelo poder público ao menos dez grandes projetos de reformas ou reciclagem de edifícios de interesse histórico para usos culturais na região central: a Pinacoteca do Estado, o Museu de Arte Sacra, a Sala São Paulo (imagem abaixo), o Museu da Ditadura no prédio do antigo Dops, a reforma e transformação do Parque da Luz em Jardim de esculturas, o Centro Cultural dos Correios, o Centro Cultural Banco do Brasil, a transferência da Galeria Prestes Maia para o MASP, o restauro do Mosteiro de São Bento e o museu da Língua Portuguesa na Estação da Luz. Por mais diversos, tais investimentos são denominados “âncoras culturais”. Sustentam o discurso das políticas higienistas e dialogam intimamente com a lógica de gentrificação que vem dominando a região no processo de revalorização de imóveis. Além disso, contribuem com o objetivo maior que impulsiona essas transformações: trazer à região central de São Paulo um “novo público”.
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Dessa maneira, a cultura é resignificada em prol de quem nela investe. Enquanto o “embelezamento” aposta no centro como se fosse possível uma coexistência entre os completos opostos, ele esbarra necessariamente na força da luta que vem sendo travada na região pela tomada do espaço pelos movimentos sociais.
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capítulo 03
O CORPO COLETIVO AUTO ORGANIZADO [MOVIMENTO, TRAJETÓRIA E OCUPAÇÃO]
3.1 O movimento Os movimentos sociais se inserem nesse contexto de disputa pelo território como organização representativa e ativadora de reivindicações da população que luta pela moradia digna, uma necessidade básica e um direito fundamental que se amplia para o acesso à educação, à saúde, à cultura, ao lazer e à cidade, constituindo-se numa experiência emancipatória da sociedade civil articulada. Essa organização representa uma manifestação política clara aliada ao desejo de ação e legitimação do movimento a partir de princípios de articulação das famílias dentro da luta por moradia.
015 acima: subsolo da ocupação Prestes Maia, onde funciona uma biblioteca pública e asembléias do movimento. 016 abaixo: manifestação contra reintegração de posse na ocupação Prestes Maia, Luz.
Trata-se de um movimento representativo porque conecta sujeitos individuais em grupos coletivos em torno de comuns identificações, conflitos, embates e adversários. Configura nesse sentido uma referência de conquista enquanto ferramenta de pressão sobre o poder público com o objetivo de obter programas habitacionais que atendam as demandas da população.
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A organização é construtiva porque se lança nesse cenário com um projeto ou utopia de transformação social. Forma grupos com democracia interna de gestão horizontal e autônoma, na defesa do direito de participação popular na elaboração e desenvolvimento das políticas públicas em geral. Diz respeito à construção de cidadania acima de tudo e, para melhor entendimento do movimento, é importante observar a relação entre a base e sua liderança já que, a todo momento, é colocada a importância da coesão para evitar possíveis conflitos de interesse individual acima do coletivo, para a melhor estruturação da ocupação. “O direito à cidade não é somente usar o que já existe, é também o direito ativo de se fazer diferente; não é um presente, ele deve ser tomado pelo movimento político” (HARVEY, 2013, pág.)
No discurso fica muito clara a percepção da fragmentação do grupo diversas vezes posta em segundo plano em prol da união. Tem-se, dessa maneira, um trabalho constante com as famílias. A participação vê-se, portanto, fruto de um processo, da construção de uma consciência crítica em uma organização inconstante. O conceito de coletivização de Aquino (2008), coloca esse processo de esforço permanente da liderança do movimento 70
como percebido constantemente, ou seja, que se configura também em um instrumento de engajamento político e envolvimento entre os sujeitos. O esforço é no sentido de conscientizar as famílias que articuladas, atribuem maior sentido aos sonhos que, por sua vez, ganham mais potência para serem realizados. O objetivo de unir-se é claro, unir as forças na luta por um ideal comum, um plano que realmente se mostre de ação efetiva de mudança. O movimento social é uma manifestação política desencadeada pelo desejo de ação. Segundo palavras de um dos coordenadores da ocupação Marconi em entrevista, a população que entra em contato com os movimentos sociais, mesmo que venha a se desvincular em algum momento da luta pela moradia, retornará à lógica do sistema com uma postura e um discernimento político completamente diferentes das pessoas que não tiveram acesso a iniciativas similares. “As pessoas tomam conhecimento do seu poder quando trabalham em equipe” (MORUZZI, 2013)22. Os grupos não lutam apenas pela conquista de direitos constitucionais, mas também por sua própria razão de existir, pela construção de um corpo coletivo auto organizado (AFFONSO, 2010). 22. Depoimento cedido por MORUZZI, Manuel – liderança da Ocupação Marconi. Entrevista em Outubro de 2013.
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Prova-se, dessa maneira, a capacidade de articulação da população contrária à ideia da totalidade alienada da massa, mostrando seu potencial de transformação. Com a ocupação, o movimento denuncia a falta de assistência por parte do governo e causa repercussão cada vez maior na mídia com suas ações. O conflito aqui analisado apresenta, como caracteriza Fernandes (2008), um pluralismo paradoxal. Os movimentos exigem a efetividade da ordem oficial vigente, e não a criação de uma nova ordem jurídica para atendê-los (a busca por uma reforma geral das políticas habitacionais que atendam à toda a população é, inclusive, a principal diferença entre um movimento articulado de ocupação e uma ação de invasão). Ao mesmo tempo, os poderes Judiciário e Executivo agem de forma a violar o direito estatal à moradia. 017 acima: manifestação organizada pelo MTST (Movimento dos Trabalhadores sem Teto). São Paulo, 2013. 018 abaixo: ocupação liderada pela FLM (Frente de Luta por Moradia), Av. Ipiranga, São Paulo, 2014.
Por exemplo: o MSTC (Movimento dos Sem Teto do Centro) reivindica o cumprimento do Direito constitucional, principalmente o direito à moradia e à função social da propriedade. Porém, para fazê-lo, pratica atos ilegais (a própria ocupação de imóveis privados) que os violam. E, 73
de “cima para baixo” a atuação é omissa e recusa a efetividade do direito constitucional, bem como exerce a violação da legislação, o que Fernandes chama de a produção legal da ilegalidade. Entende-se que reivindicar o direito à cidade se vale de um exercício contínuo de luta. Viver em condições de ilegalidade nesse contexto, apresenta-se, então, como tarefa ainda mais árdua, que necessita de extrema articulação entre os envolvidos no movimento. Os “ideais comuns”, analisados a seguir a partir de um exemplo, devem ser pactuados e todas as ações convergirem para conquistas direcionadas a eles. A Frente de Luta por Moradia (FLM) é um dos coletivos emancipatórios de luta por habitação, formado por representantes de movimentos autônomos que somam esforços. A FLM estimula e articula ainda lutas populares em geral, defendendo que a luta deve se dar permanentemente e da forma mais abrangente possível, com participação intensa das famílias. O movimento defende, em seu discurso23, além de sua carta de princípios, que rege suas ações, três valores básicos para a consolidação dos tais 23. Informações retirados do site portal FLM, acesso em 17 de Setembro de 2014.
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“ideais comuns”: a criação de um plano integrado de desenvolvimento social; a intensa participação popular e a implementação devida de instrumentos de política de desenvolvimento urbano. O plano integrado de desenvolvimento social tem o principal objetivo de impedir que a população de baixa renda siga sendo expulsa das regiões onde já se instalou (ou das que estão em processo de ocupação) e orienta-se por uma série de medidas que englobam o exercício do direito à cidade como um todo. Por exemplo: discute-se a necessidade de desenvolver em larga escala o programa de Locação Social24, disponibilizando de imediato o maior número possível de imóveis vazios e abandonados (terrenos ou prédios) para atendimento a famílias por meio do programa. Essa ação visa regiões urbanizadas, áreas onde o movimento já se faz presente, discutindo-se, dessa maneira, a contenção de ocupações em regiões de proteção ambiental, mananciais e de risco. 24. Lei 10.365-99 Programa de Locação Social: “O acesso à moradia digna pela Locação Social desvincula o valor do aluguel do custo do imóvel e o vincula às possibilidades de pagamento das famílias. Além disso, o fato de o imóvel manter-se como propriedade pública, impede que a população beneficiada fique submetida à pressão do mercado imobiliário que a expulsa quando há valorização das áreas centrais”. Margareth Uemura, arquiteta do Instituto Pólis, em publicação Moradia é central, 2011.
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Coloca-se em questão também, a regulamentação do Programa Bolsa Aluguel25, para famílias em situação de despejo, moradias precárias (cômodos em cortiços, por exemplo) e/ou em situação de rua. Como programas complementares, o movimento coloca a necessidade de implantação de projetos de apoio ao trabalhador como um plano de emergência para desempregados e trabalhadores de baixa renda, estimulo à formação de cooperativas, frentes de trabalho, bolsa-trabalho e renda mínima para apoiar os moradores de rua. E, também de programas educacionais como cursos de alfabetização, supletivos e profissionalizantes para adultos; o ingresso nas escolas e creches de todas as crianças e a criação de Escolas Técnicas e profissionalizantes para os jovens. É importante analisar que as reivindicações dos movimentos são pragmáticas e solicitam melhores condições de moradia, educação e trabalho, direitos básicos de cidadania. É claro que essas questões são prioritárias, porém, outros pontos importantes da vida cotidiana são deixados em segundo plano, como o direito à cultura e ao lazer.
25. Programa que atribui um subsídio utilizável na complementação do aluguel mensal no mercado privado, por um período de até 30 meses, podendo ser prorrogado por igual período. UEMURA, em publicação Moradia é central, 2011.
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Em relação à participação popular, o movimento coloca-se como agente pleno no desenvolvimento e na implantação dos programas. O grupo de famílias deveria contribuir e acompanhar a execução do projeto e das obras por meio da auto-gestão. Coloca, também, a importância da criação de associações de moradores para dar continuidade aos programas de desenvolvimento social, responsáveis pela gestão do espaço, após a entrega do projeto aos moradores. Por último, no que diz respeito aos instrumentos de política de desenvolvimento urbano, o movimento posiciona-se no sentido da busca da efetivação das leis presentes no Estatuto da Cidade como a de orientação da utilização do estoque de propriedades imóveis, assegurando a função social da propriedade26 urbana, destinando-a a fins sociais, além do IPTU progressivo27.
26. Projeto de Lei de Função Social da Propriedade. Projeto de Lei nº 181/1989. 27. Emenda Constitucional 29/2000, presente no Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001). O Município poderá proceder à aplicação do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana (IPTU) progressivo no tempo, mediante a majoração da alíquota pelo prazo de cinco anos consecutivos para imóveis considerados subutilizados (cujo aproveitamento seja inferior ao mínimo definido no plano diretor ou em legislação). Dados do Portal Tributário, 2013.
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Também faz parte dessa discussão a tentativa de se incorporar novas leis referentes, por exemplo, a propriedades provenientes de enriquecimento ilícito (de corrupção e sonegação de impostos), que deveriam ser desapropriadas sem indenização a seu injusto possuidor e destinadas a investimentos sociais, especialmente moradia popular. Segue a carta de princípios da FLM, na íntegra: “1.A FLM é um coletivo de luta por moradia, constituído de representação de movimentos autônomos que somam esforços para conquistar projetos habitacionais. Embora esteja assegurada a autonomia de cada movimento, seus procedimentos não podem ser incompatíveis com os princípios gerais da Frente. 2.A FLM entende que a melhora das condições de vida das famílias de baixa renda ocorrerá somente por um processo de luta popular permanente, o mais abrangente possível, com a participação intensa dessas famílias, em defesa de seus interesses econômicos, sociais e políticos. 3.Deste modo, a FLM trabalhará incansavelmente para viabilizar lutas populares, de modo mais amplo possível, em defesa de projetos habitacionais para famílias de baixa renda, mas também
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projetos sociais de interesse popular, Reforma Urbana, e combaterá todos os entraves que se apresentem e impeçam o desenvolvimento de uma sociedade igualitária. 4.A FLM entende que a participação popular e organização de base são o elemento-chave para melhorar as condições de vida das famílias de baixa renda, por isso dará prioridade à organização de grupos de base em diferentes pontos da cidade, regidos pela democracia interna. 5.O papel da FLM é de facilitar as lutas populares o mais abrangente possível. Entretanto, apoiará lutas especificas de movimentos organizados que sintam/tenham necessidade de travar luta localizada. 6.Todas as conquistas obtidas pela FLM serão partilhadas proporcionalmente à participação quantitativa e qualitativa de seus movimentos organizados; 7.A FLM participará de outras organizações de luta por moradia e social, visando somar esforços no sentido de fortalecer o desenvolvimento de programas habitacionais e sociais para as famílias de baixa renda”. (Organização da FLM, 2010)
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3.2 A Trajetória As lutas sociais urbanas na cidade de São Paulo são bastante antigas. Porém, o recorte a que nos ativemos, é o dos anos 80, quando houve grande aumento da atuação das organizações de movimentos sociais de luta por moradia (CAVALCANTI, 2006, OLIVEIRA, 2010), espalhando-se por todas as regiões da cidade. Isso decorreu do agravamento da crise econômica e do consequente valor do aluguel, tendo em vista a predominância nessa época dos cortiços, que apresentam – como já vimos - uma relação bastante desproporcional entre as condições de habitabilidade (precárias) e o preço de mercado (alto).No período entre 1984 e 1988, aconteceram as primeiras experiências de mutirões, nas administrações de Jânio Quadros e Mario Covas. O governo oferecia terra e material de construção e as famílias construíam suas casas no regime de autoconstrução nos finais de semana (MIAGUSKO, 2008). No final dos anos 80, os movimentos se articulam em torno da proposta dos mutirões de auto-gestão, que vinham de uma experiência acumulada dos movimentos e das cooperativas do Uruguai. Houve muita troca entre movimentos dos dois países. Tudo isso acabou sendo consolidado com a 80
019 acima: Inauguração do mutirão São Francisco VIII, em São Mateus, na zona leste (1993).
eleição da gestão de Luiza Erundina (1989-1993), que transformou os mutirões em política pública. A partir desta experiência mais de 10.500 unidades habitacionais foram criadas no regime de auto-gestão por mutirão, em uma parceria direta entre as associações e movimentos organizados, que tiveram o poder de gerir e decidir sobre os trabalhos que realizavam. Mais do que a concretização das moradias, os mutirões representaram experiências de auto-gestão que fortaleceram os movimentos sociais. Em 1991, surge a Unificação das Lutas de Cortiços (ULC). Este é o movimento que começou a recorrer nos casos de despejos 81
e de violência contra a população encortiçada utilizando-se como forma de luta as ocupações de edifícios vazios. Assim, segundo Bloch (2007), a ULC pode ser considerada a matriz dos movimentos dos sem-teto da região central da cidade de São Paulo. Em 1993, como dissidência da ULC, surge o Fórum dos Cortiços. Em decorrência principalmente dos grandes despejos acontecidos na cidade28, outros movimentos articulados também surgiram e o Fórum, dessa forma, transformou-se em entidade aglutinadora dessas organizações. A expressão de sua luta é significativa: em pouco mais de uma década obteve grandes conquistas como o Projeto Condomínio “Pirineus” na Santa Cecilia, edifício habitacional destinado à população encortiçada, o Projeto “Hotel São Paulo” (iniciativa PAR, já comentada no primeiro capítulo), no Vale de Anhangabaú e o edifício Maria Paula, transformado em apartamentos de habitação de interesse social. O ano de 1997 foi um marco na história dos movimentos de moradia no centro. Os governos de Paulo Maluf (1993-1997) e seu sucessor Celso Pitta (1997-2000) foram caracterizados pela interrupção dos mutirões. Os programas foram questionados judicialmente pelas gestões e, utilizando-se de bre28. Informação obtida a partir do depoimento de Veronica Kroll, liderança do movimento Fórum dos Cortiços em 2013, no site da organização.
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chas formais, retiveram os recursos financeiros. As obras foram interrompidas e nenhum novo convênio foi assinado até o final de 1997 (MIAGUSKO, 2008). Neste mesmo ano, surgiram muitos outros movimentos articulados, como o MNLM (Movimento Nacional de Luta por Moradia), presente também em outros 16 estados brasileiros, e a própria FLM. Esses movimentos de moradia foram acompanhados de um período de forte articulação do MST (Movimento dos Sem Terra), já mais estruturado, que organizou a Marcha Popular em Brasília, em dezembro ainda do mesmo ano. Os anos seguintes, de 1998 e 1999, possivelmente decorrentes dessas novas ações e articulações, são os anos do ápice das ocupações dos movimentos dos sem-teto até hoje, cerca de 36 ocupações foram contabilizadas (OLIVEIRA, 2010). Depois dos anos 2000, seguiu-se a gestão de Marta Suplicy (2001-2004), representada pela queda do número de ocupações em 38,8%, o que, segundo MIAGUSKO (2008) refere-se a um período de “trégua política”. Talvez essa trégua tenha sido decorrente de outras ações ministradas pelo governo, que também não priorizou os mutirões, mas que apresen83
tou planos de regularização fundiária e planos habitacionais como crédito individual e locação social (com alguns exemplos apresentados no primeiro capítulo) que podem ter atendido parte da demanda por moradia. Já a partir de 2005, na gestão de José Serra/Kassab (2005-2008 e 2008-2012), a linha política observada foi a de repressão total aos movimentos com o cumprimento praticamente imediato dos processos de reintegração de posse dos edifícios ocupados, a paralização dos programas habitacionais desenvolvidos na gestão anterior e a redução significativa da quantidade de ocupações (ou um falho registro delas). “O mais grave é quando observamos o contrário: Algumas instâncias do governo ainda atuam no sentido que contribui para acirrar as desigualdades urbanas drenando os parcos recursos públicos de modo a priorizar o embelezamento, a monumentalidade [...] atuando com uma visão elitista, asséptica e higiênica com relação à população de baixa renda e os grupos vulneráveis.” (COMARU ,2008)
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Com um ano e meio da atual gestão (Haddad, 2012-2016), vê-se alguns avanços voltados para a produção de habitações de interesse social. José Floriano29 afirmou que “reformar prédios ocupados de forma organizada há muito tempo no centro e transformá-los em moradia popular é uma forma de revitalizar a região [...] Há movimentos muito organizados, que realmente conseguem fazer um papel social importante ao acolher pessoas de baixa renda sem casa para morar”.
“O destino da cidade de São
Paulo e todas as coisas positivas que já aconteceram aqui só aconteceram em função da mobilização e da luta”. (ROLNIK, 2014, pág.)
Segundo dados da prefeitura (2014), dez prédios na região central, quatro deles ocupados hoje por movimentos de moradia, estão sendo comprados ou já pertencem ao governo municipal. O objetivo é desapropriar 41 edifícios na região e transformá-los em habitação de interesse social. As ocupações Mauá e Prestes Maia, são dois exemplos de edifícios que passarão por reformas e voltarão à posse do movimento. O novo Plano Di29. Secretário Municipal de Habitação em entrevista para o Jornal O Estado de São Paulo no dia 07 de Julho de 2014.
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retor30, sancionado em agosto desse ano, avança muito - na participação efetiva popular na construção do projeto, principalmente – mas também na regulamentação de dispositivos para impedir a ociosidade de imóveis localizados em áreas com grande infraestrutura, com o objetivo de conter a origem do conflito. “A história tradicional de discussão do Plano Diretor na cidade de São Paulo é a história de bairros residenciais que não querem verticalizar, versus setor imobiliário que quer verticalizar tudo o que puder. Era esse o debate. Dessa vez acho que nós ampliamos muito. A presença de movimentos de moradia colocando questões de política fundiária foi essencial”. (ROLNIK, 2014).
30. Projeto de Lei 688/2013 entregue à Câmara Municipal em 26 de setembro de 2013 e sancionado em Agosto de 2014.
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3.3. A Ocupação Na escala do edifício, observa-se uma organização bem estruturada de divisão das tarefas para a manutenção do imóvel. Segundo Manuel Moruzzi (2013), “um movimento que demonstra ser articulado tem mais facilidade de negociação com o poder público, que escolhe com quais movimentos e com quais líderes vai conversar”. Estar em uma ocupação significa “estar em uma demanda”, ou seja, estar na fila para ser atendido por programas habitacionais. Para ser contemplada, a família deve merecer sê-lo por meio de engajamento político. Há regras muito rígidas de comportamento como a proibição de drogas e bebidas alcoólicas na ocupação e o controle da entrada de pessoas de fora do movimento. Há um sistema de pontuação por família, que prioriza pessoas mais envolvidas em eventuais conquistas de moradias pelos programas habitacionais. Analisar o corpo do movimento auxilia no entendimento da atuação: a maior parte dos integrantes do movimento está na faixa renda de 0 a 3 salários mínimos e provém de pontos absolutamente distintos: de periferias, de favelas, de cortiços na própria área central, de fora do país como imigrantes bolivianos, peruanos e africanos, e de 87
fora da cidade como migrantes das regiões norte, nordeste e de áreas rurais. Apesar das diversas origens e, portanto, conceitos de urbanidade distintos, são unidos por um ideal comum, portanto devem cumprir as regras do movimento. “O principal motivo de divergência [dos movimentos de moradia] com o sistema atual está relacionado à sua principal forma de protesto, a ocupação” (BLOCH,2007).
Os condicionantes apresentados caracterizam a ocupação como um reflexo concreto da luta que não pretende reduzir os benefícios às famílias ocupantes, mas que pretende - com sua ação - desencadear uma reforma na política habitacional em escala nacional. Assim como propõe que a ocupação seja uma possibilidade de transição e um momento de adaptação das famílias e não de solução definitiva para o déficit de habitação social. Apresentam, dessa maneira, uma alternativa digna de direito à cidade, ainda que seja um espaço de abrigo temporário. 88
020 e 021 ensaio fotográfico: “Cada janela uma história” de Júlio Bittencourt.
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A partir de dados do Censo do IBGE- 2010, há mais edifícios vazios nos centros das maiores cidades brasileiras do que o déficit habitacional. Segundo a arquiteta Raquel Rolnik, em 2000, tínhamos cerca de 420 mil domicílios vagos para um déficit de 203 mil moradias na cidade de São Paulo. É evidente que os movimentos visam repercutir e combater essa discrepância de haver um déficit tão grande habitacional e ao mesmo tempo haver ociosidade de imóveis. “...[luta] termo tão rico de significados e atributos, que merece ser descrito em ato.” (AQUINO, 2009)
Em decorrência dessa organização ser à margem da lei e tão bem estruturada, a relação da ocupação com a cidade também é prejudicada. De fora, a ocupação se assemelha a um “bunker”: portas de ferro altas com grande proteção e restrição de entrada são sua maior característica por questões de segurança da ocupação, dado o confronto. Não raro, esse embate ocorre inesperadamente pela polícia militar, que é autorizada (pela frágil situação judicial da ocupação) a entrar –em qualquer momento - para efetivar uma ação de reintegração de posse. 90
O exemplo escolhido, a seguir, para descre-
ver melhor como acontece o processo de ocupação de um edifício, não foi o mais bem sucedido da história das ocupações, tampouco o mais duradouro e articulado. Porém, apóia-se em uma denúncia clara do poder da aliança entre mercados financeiro e imobiliário na construção de uma cidade desigual e injusta. Avenida Ipiranga, número 895. “Luzinhas de Natal esquecidas sabe-se lá quando acumulam poeira e adornam tristemente o alto da fachada, como plantas secas e quebradiças. A entrada lacrada tem uma porta cinza disfarçada no cimento, onde o desenho de um rosto delicado, com grandes olhos voltados para cima, observa com pesar o edifício abandonado sobre sua cabeça. É por esta porta que o segurança do prédio, Alex, entra para trabalhar todos os dias. Sua função é impedir invasões.” (BARBOSA, 2012).
Em 1941, a partir de processos legais de divisão de bens por herança familiar, o edifício pertenceu, por um período de 12 anos, a duas crianças. Mario Rubens Costa, 10 anos, e Maria Regina Costa, 8 anos. Os dois únicos proprietários do imóvel eram 91
evidentemente, totalmente inabilitados em todos os sentidos, principalmente do ponto de vista político e econômico. Por questões desconhecidas, nada muito efetivo pôde ser feito em relação ao edifício ter sido esvaziado e se manter nesse estado pelos anos seguintes. Em 1953, Maria Regina casou-se com Antônio Ermírio de Moraes31. Com a união, sob regime de comunhão universal de bens, ele se tornou coproprietário do imóvel. Em 1974, segundo entrevista com um trabalhador da área32, o número 895 era um edifício residencial já “meio vazio”. Os moradores saíram pouco a pouco e o imóvel ficou totalmente desocupado durante dez anos, entre a metade da década de 1980 e metade da década de 1990. Após uma reforma geral do prédio, tornou-se o Europa Palace Hotel em meados dos anos 90. Hospedavam-se ali principalmente times de futebol em visita a São Paulo. O hotel faliu e fechou no 31. Falecido em agosto de 2014, Antônio Ermínio de Morais, ex-presidente do Grupo Votorantim, ocupou em 2012, o número 193 da lista de pessoas mais ricas do mundo da revista Forbes e o 7o mais rico do Brasil, com patrimônio de US$ 5,3 bilhões. 32. Carlos de Abreu Leonel, há 37 anos trabalha indicando clientes a um advogado – na Avenida Ipiranga, bem em frente ao número 895. Conhece boa parte dos frequentadores da avenida, também um pouco da história dos edifícios por observação. Entrevista a BARBOSA, 2012.
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ano de 2002. Dois anos depois, o casal proprietário alugou o pavimento térreo para um bingo, em uma época um pouco ingrata para investir nesse tipo de negócio: no próprio ano de 2004, os bingos foram proibidos. Mesmo assim, a casa continuou em funcionamento até 2007, quando finalmente as últimas liminares sobre o assunto foram cassadas. Mesmo com todo patrimônio pertencente ao casal, o prédio da avenida Ipiranga acumulou uma dívida de R$ 41.681,43 de IPTU33, referente aos anos entre 1998 e 2004. Completamente abandonado por mais de uma década, o edifício foi vendido, em 2008, por R$ 2,2 milhões (BARBOSA, 2012). A compradora foi a Campinas Empreendimento Imobiliário, propriedade da HM Engenharia, que por sua vez faz parte da CCDI, sigla para Camargo Corrêa Desenvolvimento Imobiliário. O Grupo Camargo Corrêa, um grupo de atuação bem ampla e diversificada (áreas estratégicas de engenharia, construção, geração e distribuição de energia, concessão de serviço público, incorporação imobiliária, indústria naval, óleo, gás, cimento, siderurgia, calçados e setor têxtil) é uma organização econômica forte e de grande poder. 33. Trabalho acadêmico apresentado em forma de site (edificiosabandonados.com) de BARBOSA, 2012, que levanta a história dos proprietários de 5 ocupações no centro da cidade. Acesso em 10 de setembro de 2014.
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Em 2010, o grupo doou R$ 91,7 milhões a campanhas eleitorais de diversos candidatos, somente no primeiro turno (BARBOSA, 2012). Como já pudemos notar, o poder e a boa classificação nos rankings de faturamento não são tão diretamente ligados à boa conservação dos bens duráveis das organizações. Até por que, abandonar um edifício em uma área histórica e central da cidade também pode ser uma estratégia de investimento dentro dessa lógica corrupta e especulativa do mercado imobiliário. Assim, o edifício permaneceu vazio até que, na madrugada de 4 de outubro de 2010, a FLM preencheu o edifício de movimentação e uso de 1.200 pessoas (sendo dessas, 353 crianças) como há anos não se via! E ocorreu de forma bem articulada, associada a três outras ocupações no mesmo dia “[...] uma na avenida São João, número 572, que funcionou como hotel, outra na rua Álvaro Penteado, propriedade do INSS, e a outra na Prestes Maia, vazio há 18 anos e ocupado até hoje.” (BARBOSA, 2012).
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022 Ipiranga 895, em estado de abandono, 2011.
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Porém, a ocupação do Ipiranga 895, não teve o mesmo êxito da Prestes Maia. A Camargo Corrêa entrou com um pedido de reintegração de posse na mesma semana, que foi rapidamente efetuada. Em 51 dias, todos os “novos moradores” estavam no meio da Avenida Ipiranga com todos seus pertences à mão. Ao final de 2012, o edifício começou a passar por uma reforma completa e depois de seis meses de obra, um stand de vendas surgiu. Este é um exemplo muito claro de como é viável a reforma de edifícios abandonados no centro – pela iniciativa privada e voltada às classes mais favorecidas da cidade. A reforma durou somente um ano e meio e logo panfletos e anúncios indicavam as “últimas unidades disponíveis”. “É realmente muito satisfatório ver um edifício de grande porte e bonito, como este, voltar a ter uma função social. Não importa se é moradia popular ou não, o que realmente é importante para São Paulo é que prédios vazios no centro da cidade sejam recuperados e ocupados. Minha única crítica é o nome “Vanguard” no imóvel, mas ai acho que é querer demais! De qualquer maneira, é gratificante ver mais um imóvel recuperado.”34
34. Depoimento retirado de uma matéria de 2014 sobre o Hotel Europa no site São Paulo Antiga. Acesso em 17 de setembro de 2014.
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“NÃO IMPORTA SE É MORADIA POPULAR OU NÃO”
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capítulo 04
ANTROPOLOGIA DA CIDADE [MANIFESTO PÚBLICO DAS VOCAÇÕES DE UMA CIDADE] [A VALORIZAÇÃO DA VIDA COTIDIANA]
A-GEN-TE: Adj.:1. Que opera; Subs.: 2. O que opera ou é capaz de operar; 3. Causa, princípio; 4. Autor .
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4.1 O Manifesto público das vocações de uma cidade Se, como explora Carlos Aquino (2009), as paisagens são criadas pela ação humana, a cidade deixa de ser fonte puramente material, referência de suporte apenas às relações sociais; ela se configura em algo muito mais potente: a agência associada diretamente aos propulsores das ações, os agentes, que interferem em conjunto nas questões de materialidade. Ou seja, a cidade se transforma na capacidade de agir de cada agente que, tendo em vista a diversidade (de agentes e ações), compõem um campo amplo de ação coletiva. Certeau (1998), de forma análoga, analisa o ato ínfimo de caminhar como um processo de apropriação do sistema topográfico pelo pedestre e a própria transformação do espaço, ou seja, trata como uma realização espacial do lugar pelos movimentos. “Os jogos dos passos moldam espaços. Tecem os lugares. As motricidades dos pedestres formam um desses sistemas reais cuja existência faz efetivamente a cidade” (p.177). Segundo Kato (2014), a noção de espaço em si, definida por Certeau (2000) e Lefebvre (1969), é indissociável da questão de mobilidade. A relação que se faz, portanto, desses elementos que se 101
A-GÊN-CI-A: Subs.: 1. Capacidade de agir; 2. Ocupação ou função de agente.
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opõem e se combinam pela “transparência e opacidade de suas manifestações”, configuram o espaço urbano como um campo diferencial. Campo este, que representa a projeção da sociedade sobre o lugar, sobre o plano específico concebido pelo pensamento individual. A cidade, assim, tem como parte indissociável as ações dos indivíduos que nela habitam. É humanizada e socializada: É o espaço onde se encontram as estruturas (instâncias diversas que promovem a capacidade de operação) e os agentes (aqueles que possuem a capacidade de ação) (AQUINO, 2009). É a fusão de momentos e estímulos condicionada desde cima pelas limitações e restrições versus recursos e facilitadores, decorrentes das reações das estruturas; e desde baixo pelas habilidades, discernimento e poder de articulação de cada indivíduo na sociedade, podendo abranger ações tanto individuais quanto coletivas como, por exemplo, de movimentos sociais. “Os violentos contrastes entre a riqueza e a pobreza, os conflitos entre os poderosos e os oprimidos não impedem nem o apego à cidade nem a contribuição ativa para a beleza da obra. No contexto urbano, as lutas de facções, de grupos, de classes, reforçam
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o sentimento de pertencer [...] Esses grupos rivalizam o amor pela sua cidade.” (LEFEBVRE, 1969, p. 11-12)
Todos os dias, nós agentes, somos pouco críticos quando o assunto é vivenciar o espaço público. Nossas experiências embutidas em pequenas ações cotidianas aos poucos se traduzem nas vocações maiores de uma cidade (CARDOSO, 2012). Se analisarmos a estrutura socioeconômica absolutamente desigual da sociedade atual, partindo a análise do espaço público, podemos observar a atual deficiência de nossas relações com as formas de convivência. Segundo Lefebvre (1969), uma das possibilidades da condição urbana é proporcionar o encontro e a coexistência. Porém, hoje não observamos boas referências de espaços públicos que representem efetivamente um símbolo de civilidade e convívio. Observamos muitas vezes o inverso, que os espaços são caracterizados pela passagem, pela associação à velocidade e dinamicidade de fluxos e imposições da propriedade privada (CALLIARI, 2014). A lógica do urbanismo moderno inverteu o conceito de espaço público enquanto espaço estruturador do privado e ordenador dos objetos arquitetônicos, transformando-o em um espaço meramente residual, sem forma precisa, e sem sistema 104
simbólico próprio (HUET, 2001). Assim, o imaginário coletivo de rua, como a escala mais próxima ao homem, torna-se cada vez mais distante da atual realidade nos grandes centros urbanos. “As ruas são uma verdadeira zona de convergência de onde pulsam os costumes, modos e anseios de uma cidade... O mundo da rua é a cidade em miniatura” (CARDOSO, 2012)
A cidade e a realidade dependem do valor de uso. Para Lefebvre (1969), o valor de uso é a própria cidade e a vida urbana, representa o tempo urbano. O valor de troca, ou seja, os espaços comprados e vendidos e a ‘mercadorização’ da vida tendem a destruir, ao subordinar - a cidade e a realidade urbana – a essa lógica. A criação de espaços que nos aproximem de uma memória coletiva em maior escala como sendo um lugar de legitimidade, portanto, se faz necessária. Lugares onde haja uma identificação e um sentimento acolhedor da cidade a cada um, pois os conceitos de gestão urbana estão, muitas vezes, desprovidos dos interesses da vida cotidiana dos cidadãos. “Ao fazer a cidade, o homem refaz a si mesmo” (PARK apud HARVEY, 2013)
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A partir da perspectiva de que a cidade é poetizada pelo sujeito (CERTEAU, 1998), há a perspectiva de que ele sugira possibilidades de uso do espaço. Assim, o usuário traz para si o espaço público pelo reconhecimento, coexistência e repetição de ações cotidianas. Estas, organizam um dispositivo social e cultural segundo o qual o espaço urbano se torna não somente o objeto de um conhecimento, mas o lugar de um reconhecimento. Há que se considerar que, hoje, os espaços livres representam mais uma ferramenta de controle social (MARICATO, 2002) pela vigilância, onde a espontaneidade das ações é vista, muitas vezes, como transgressão. Não é a lei que precede a intervenção, pelo menos não deveria sempre ser. A cidade é, também, para além de seu papel nas lógicas da produção da vida material, fruto de questões e manifestações fenomenológicas adaptadas e adaptáveis a diversas situações. No âmbito público as afinidades sociais se submetem à segregação e à violência da exclusão. A dimensão pública é o essencial produto da cultura, é o lugar que modifica o sentido da prática e é transformado por ela (HARVEY, 2013). Se o espaço deve ser assumido como forma precisa e entendido como parcela de um sistema complexo contínuo, parte material da memória, o conflito também o compõe e também lhe atribui forma. 106
Nesse sistema complexo, o sentido da dimensão da vida cotidiana como instância vivida da realidade e de análise dela própria, é trazido nos conceitos de ordem próxima - relações dos indivíduos – e ordem distante - regida por grandes organizações, por um código jurídico e por conjuntos significantes (LEFEBVRE, 1969) que compõem e atribuem possibilidades e características ao urbano. Entretanto, é a ordem distante, dotada de poderes, que se impõe e se projeta na realidade prático-sensível. Ora, se a especificidade da cidade e dos fenômenos urbanos são decorrentes das transformações da sociedade no seu conjunto (Lefebvre, 1969), pode-se dizer que os movimentos de mudança espacial são consequências de lógicas sociais abrangentes, que vão da vida cotidiana à escala das relações impostas pela globalização. Assim, em seu nível específico, a cidade se apresenta como um sub-sistema privilegiado porque é capaz de refletir, de expor os outros sub-sistemas e de se oferecer como um “mundo”, como uma totalidade única, na ilusão do imediato e do vivido. A complexidade maior, teórica, mas principalmente prática, é de que a urbanização da sociedade acontece necessariamente simultânea ao crescimento da cidade. 107
As relações sociais continuam a se tornar mais complexas, a se multiplicar, a se intensificar, através das contradições mais dolorosas (LEFEBVRE, 1969). A forma do urbano, sua razão suprema, a saber da simultaneidade e o encontro, não pode desaparecer. A satisfação de necessidades elementares não consegue matar a insatisfação dos desejos fundamentais. Ao mesmo tempo que é o lugar de encontros, convergência das comunicações e das informações, o urbano se torna aquilo que sempre foi: lugar do desejo, do desequilíbrio permanente, da sede da dissolução das normalidades e coações, momento do lúdico e do imprevisível. (LEFEBVRE, 1969)
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4.2. Esmiuçando diferentes momentos desse mosaico de desencontros35: “Mas embaixo, a partir dos limiares que cessam a visibilidade, vivem os praticantes ordinários da cidade. Forma elementar dessa experiência, eles são caminhantes, pedestres, cujo corpo obedece aos cheios e vazios de um texto urbano que escrevem sem poder lê-lo” (CERTEAU, 2000)
As propostas para a melhoria da vida urbana partem de uma análise da cidade a partir do vértice da vida cotidiana. A cidade metropolitana suporta ao mesmo tempo, independente da maneira como o faz, o conjunto da massa generalizada e a particularidade de cada mundo interior. O homem encontra na vida cotidiana um refúgio para o desencanto do futuro ofuscado pelos instrumentos do capital e do poder. Nesse contexto, olhamos as hesitações de um homem particular atravessado pela dominação, que luta diariamente para compreender um viver que se apresenta como absurdo, uma espécie de viver destituído de sentido (MARTINS, 2000). Analisando a estrutura geral da cidade e da sociedade, segundo Wilheim (2000), a vida de cada 35. Expressão retirada de “A Sociabilidade do homem simples” de José de Souza Martins, 2000.
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um pode ser entendida como um subsistema do qual participam as pessoas, as coisas, as paisagens, as ações, as ideias e os sentimentos significativos para o dia-a-dia. Cada subsistema tangencia-se e se superpõe a outros gerando, assim, pontos de empatia e de conflito. A vida de uma cidade é, também, a integração desses subsistemas pessoais e podemos afirmar que uma cidade será melhor - e sua vida mais rica - na medida em que for capaz de acolher um número mais variado de subsistemas, pois, nesse caso, aumentará o grau de liberdade dos cidadãos. A questão é então entender o que libertaria o homem das “múltiplas misérias que o fazem pobre de tudo” (MARTINS, 2000, p.10); entender como oferecer à cidade esse tipo de “dispositivo articulador” de diferentes camadas sociais, que promoveria essa tangência de subsistemas; entender qual é o papel da história, que se faz notar pouco a pouco todos os dias e a ética que fez do sujeito o construtor da história, e que paradoxalmente, se afasta dela; que fez do sujeito um objeto de si mesmo, posto como estranho em relação à sua própria identidade. “Não ignorar a vida cotidiana é o ponto de partida para decifrar sociologicamente o possível” (MARTINS, 2000, p.10)
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Enxergamos no fragmento do tempo do processo mecânico, repetitivo e coletivo, o tempo de cada um de nós, do possível e o paradoxo de que somente em união, os dois tempos compõem a história. “É na práxis que se instalam as condições de transformação do impossível em possível. É no instante da ruptura, do insuportável e do não-manipulável que se faz a criação, a ousadia.” (MARTINS, 2000). A criação e a ousadia são possíveis se resultantes de condições reais da sociedade e não idealizadas ou encobertas pela ideologia. No Brasil, que tem uma modernidade incompleta (Martins, 2000), a sociedade expressa essa condição disforme (de parecer e não ser moderna) pela importação de culturas de outro contexto. Também pela falta de consciência crítica que temos em relação aos absurdos que vivemos todos os dias – principalmente em relação à “invisibilidade” da miséria e ao culto a tudo que é importado. Nossas desigualdades sociais são também o nosso descompasso histórico em relação ao que já é real em outras partes (p.19)– do que nos chega fragmentariamente – pois nós aceleramos o processo para nos adequar a outras realidades estrangeiras (que não às nossas). 111
“Infeliz do povo que não sabe de onde vem; Pequeno é o povo que não se ama, (...); pobre do povo que, sem estrutura, acaba crendo na loucura de ter que ser outro para ser alguém” (EMICIDA, 2012)
A modernidade vem a nós como objeto, como signo, como expressão do ver e não do viver e do acontecer. (MARTINS, 2000, p. 27) Num descompasso histórico, a vivência do moderno se faz pelo apelo ao não moderno, ao rústico, ao sertão, onde estariam as raízes de nossa “autenticidade”. A modernidade aqui aparece sem laços fundos: como afirma o autor, as nossas desigualdades sociais são também o nosso descompasso histórico. José de Souza também trata da modernidade em face da “angústia cotidiana das incertezas”, como um anúncio dos progressos e linearidades, que em nenhum momento realmente mostra suas realizações efetivamente humanas. Ele descreve o momento contemporâneo como absolutamente cínico em relação à desumanização das pessoas. No Brasil, a miséria e a gritante desigualdade social são reconhecidas, pela análise teórica, como condição “funcional” de nossa modernidade disforme.
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A dimensão da Luta, para Martins (2000), surge para ser considerada, reconhecida, ouvida, incluída de fato, para que as políticas públicas por exemplo, sejam democratizadas. A própria miséria e a degradação social podem desencadear uma prática real de resistência, porque representam um dos limites impostos à condição humana, frente a todas suas potencialidades. Essa questão dos limites nas vivências do cotidiano tem sido tema posto pelos movimentos e, temos visto infelizmente com frequência, situações de ações individuais violentas, imprevistas e desproporcionais em relação à falta de tolerância no contexto urbano. A falta de entendimento nesse sentido demonstra que a vida se esgota no próprio agente, que se contextualiza em um processo de banalização da vida cotidiana, tornando-a superficial (MARTNS, 2000). É possível que a mescla de sentido – de importação versus a experiência real da vida em si - venha do conflito de interpretação de como se traduz a vida cotidiana. Não há cotidiano sem contexto e não há história sem cotidiano. Não se pode, portanto destituir do cotidiano a historicidade (WILHEIM, 2000), há que atribuir-lhe mais cuidado e atenção posto que atentamos a um recorte de tempo e espaço muito específicos.
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Se a vida cotidiana é o refúgio do desencanto vivido pelo todo, pelo futuro incerto, pela história corrompida pelo domínio do capital e do poder; se a vida cotidiana é o refúgio dos céticos, naturalmente tornou-se também o ponto de referência das novas esperanças da sociedade. “Já não se trata de remendar as fraturas do mundo da vida, para recriá-lo. Mas de dar voz ao silêncio, de dar vida à história” (MARTINS, 2000, p.57)
Ora, se o cotidiano, segundo Gambini, 1994, é moldado nas relações sociais dinâmicas que tendem, a todo o momento, a adaptar-se às novas realidades, o que dizer dos movimentos sociais organizados que lutam pelo direito à cidade? Os espaços povoados não são preenchidos de cidadãos somente sensíveis aos estímulos de uma paisagem, e sim por “atores no palco” (WILHEIM, 2000), agentes fisicamente vinculados à sua própria realidade através da reciclagem de uso do lugar onde se inserem e socialmente vinculados aos sistemas de justificam sua própria existência e que atuam no sentido de uma transformação.
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“Todo dia, pela manhã, aquilo que assumimos ao despertar é o peso da vida, a dificuldade de viver, ou de viver nesta ou noutra condição, com essa fadiga ou com este desejo.” (CERTEAU, 1998, prefácio)
Uma de nossas possíveis colaborações para a melhoria das condições de vida urbana no país está na ação coletiva. Está na força do lugar . Depende da experiência e da descoberta (Santos, 2006). Depende da ação política do indivíduo e dos grupos sociais, da dimensão cotidiana e da vivência metropolitana. Somente estamos livres para atuar de acordo com o que acreditamos, quando somos cidadãos e experimentamos - no dia a dia e no tempo longo - a condição de cidadania.
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capítulo 05
REVOLUÇÕES E RUPTURAS [UMA OUTRA CIDADE PARA OUTRA VIDA]
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Os espaços públicos deveriam por princípio representar um suporte à cidade e estimular ações de dimensão política para além da dimensão funcional, democratizando-a. Os espaços públicos devem, de fato, ter potência de enfretamento da metrópole que é, hoje, um lugar que não nos acolhe, e devem servir de referências mais potentes de paisagem. Devem proporcionar um convite à vivência presa ao tempo e ao ritmo do trabalho e à produção para o tempo do ócio e contemplação, permitindo a reflexão e dando legibilidade às iniciativas que já acontecem e que desencadeiam mudanças coletivas significativas de pensamento. Que as experiências no espaço público possam representar aberturas e diferentes olhares para tudo o que nos envolve e que atribuam sentido à vida urbana, mesmo que não seja em prol de uma luta especifica, mas que nos despertem algum desejo de ação efetiva de mudança, vivência, ou pelo menos um respiro para os estímulos caóticos da cidade. 023. Livro ‘Memories’ de Guy Debord e Asger Jorn sobre as experiências situacionistas. Paris, 1959
Uma de tantas inspirações aqui trazidas, frente ao desejo de se formular hipóteses outras à experiência urbana, é o Movimento Internacional Situacionista. Movimento de base política e artística, criado em 1957, com ideia inicial de criticar as formalizações com que eram estruturados o urba119
nismo e a arte. Surgiram e se viam como responsáveis por completar o trabalho dos dadaístas e surrealistas36, enquanto discordavam de ambos os movimentos. Porém, já no primeiro ano, direcionaram as críticas no sentido de que a superação da arte só viria pela transformação ininterrupta do meio urbano. A questão não era construir cidades ideais, e sim fazer do urbanismo e da arquitetura ferramentas de uma revolução do cotidiano (JAQUES, 2013). As questões formuladas pelos situacionistas se aplicam na leitura do meio urbano e em hipóteses de apropriações espaciais diversas. Contrários a qualquer ideia de controle, na lógica situacionista37, o projeto essencialmente vinculado à ideia tectônica e racional cede lugar à criação de momentos. Propicia ambiências efêmeras e libertárias que acompanham e suportam o desejo momentâneo do homem. 36. Ambos, movimentos artísticos iniciados na Europa (Zurique, 1916 e Paris 1920, respectivamente), inseridos no contexto das vanguardas artísticas. O Dadaísmo com a proposta de caracterizar a arte pela espontaneidade e gratuidade total e o Surrealismo com o papel do inconsciente na atividade criativa. 37. A lógica situacionista se aproxima da construção de raciocínio desse trabalho na medida em que se parte da matriz do território ocupado com a intenção de olhar para o que, durante muito tempo, foi esquecido, acreditando na criação de espaços que, mesmo sem grandes interferências na cidade existente, promovam a convivência, lugares de observar e ser observado, de encontro e convívio com o outro.
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A retomada da crítica ao urbanismo tradicional vem da inquietude que os afligia e que é recorrente até hoje: Os bairros não são capazes de atender ideal algum, nem os modos de comportamento estabelecidos pela sociedade muito menos os modos de vida que buscamos. A sociedade do espetáculo38 esvaziou a felicidade burguesa de preocupações lúdicas criando uma ambiência morna com poucas variáveis e repleta de alienação (JAQUES, 2003). As questões históricas trazidas pelo manifesto Situacionista nos elucidam um pouco sobre a atual falta de interesse e busca pelo novo (JAQUES, 2003). Partindo da leitura da realidade múltipla e distorcida das grandes cidades – e, portanto, de situações urbanas - os situacionistas faziam ver que a metrópole não é apenas um momento do habitar; mas, antes, condição e possibilidade deste (VELLOSO, 2002). Assim, a ‘revolução do cotidiano’ situacionista baseava-se na ideia da experimentação nos lugares, de maneira a superar a dicotomia entre momentos artísticos e momentos banais (VELLOSO, 2002). Ao afirmarem que não há algo como uma obra situacionista, mas apenas um uso situa38. Referência ao livro de Guy Debord (1957), um dos fundadores do Movimento Internacional Situacionista.
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cionista da obra, deixam-nos o questionamento do real papel da experiência, inclusive da arquitetura e na cidade, para além de seus objetivos funcionais, experiência essa muitas vezes indiferente e apática associada à vida metropolitana. Ora, as cidades pressupõem a aglomeração e o conflito, no melhor dos sentidos, de sociabilidade e civilidade. A passividade e a não-participação são consideradas pelo movimento como manifesto de alienação que aos poucos foi tomando proporções para além do trabalho e invadiram a vida das pessoas. A construção das situações39 vem com o objetivo de criar novas ambiências, sem fronteiras e definidas pela prática, pela formulação deliberada que desperte novamente a imaginação, a criatividade e o desejo pela cidade (JAQUES, 2003).
024. The Situationist Times, 1962-1967
Os situacionistas questionavam ‘o experimentar’ que se dava nos espaços. Mas, os discursos não eram de nostalgia, e sim de transformação. O desejo pela práxis revolucionária aponta a busca completamente sem garantias de uma autenticidade inédita, que dialoga muito com princípios colocados por Lefebvre em O direito à cidade (1969). 39. “A situação é o momento articulado de modo a ser vivido por seus construtores. Representa um ‘momento da vida’, concreto e deliberadamente construído pela organização coletiva de uma ambiência unitária e de um jogo de acontecimentos.” (JAQUES, 2003).
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Os fundamentos, de ambos, residem na crítica do mundo atual, moderno e capitalista, sejam quais forem suas dimensão e condição, e apostam no lúdico e no cotidiano como recuperação da vida urbana. Lefebvre coloca, ainda em relação aos espaços lúdicos, que os mesmos sempre coexistiram com espaços de troca e com o espaço público, com o espaço cultural. A partir deste instante, o centro urbano traz, para as pessoas da cidade, o movimento, o imprevisto, o possível e os encontros. Ou é um “teatro espontâneo” ou não é nada.
Donde tirar o princípio da reunião
do conteúdo? Do lúdico. O termo deve ser tomado aqui em sua acepção mais ampla e no seu sentido mais profundo. [...] A centralidade lúdica tem suas implicações: restituir o sentido da obra trazido pela arte e pela filosofia – dar ao tempo prioridade sobre o espaço, não sem considerar que o tempo vem se inscrever e se escrever num espaço – por apropriação acima do domínio. (LEFEBVRE, 1969, p.120)
A experimentação, nesse sentido, se faz anterior ao decreto de regulamentações, ou seja, a espontânea descoberta de novos desejos pode resul124
tar, naturalmente, na descoberta permanente de novos espaços de ação libertária – mesmo que não tenham sido planejados exatamente com essa finalidade. Assim, todo e qualquer uso, todo e qualquer espaço, depende da leitura que fazemos do lugar que nos é apresentado na cidade. Então, a grande revolução do cotidiano não seria necessariamente a intervenção no suporte físico. Seria muito mais, representaria a transformação da consciência dos indivíduos em seres vivenciadores40 urbanos. Claro, a arquitetura e o urbanismo são capazes de proporcionar momentos plurais e privilegiados de ruptura e explorar diferentes modalidades de presença do indivíduo na cidade. Porém, deve haver, simultaneamente, a revolução interna de pensamento e leitura da cidade para agregar sentido ao cotidiano das pessoas. “Para que serve técnica se há a carência de imaginação?” (JAQUES, 2003, p.110)
Dessa forma, os ambientes adquirem uma potência imensurável, ou seja, são capazes de declarar a situação absoluta, incentivar comporta40. “O papel do ‘público’, se não passivo pelo menos de mero figurante, deve ir diminuindo, enquanto aumenta o número dos que já não serão chamados atores, mas, num sentido novo do termo, vivenciadores.” (JAQUES, 2003).
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mentos e pressupor as aglomerações (JAQUES, 2003). A proposta é que o projeto seja formulado como hipótese, como elemento que se faz presente em seu próprio tempo e que configure um abrigo para as instabilidades dos desejos ideais de cidade. Na cidade consolidada, humanizar pré-existências, possibilitar uma experiência de cidade livre e democrática e valorizar a disputa e o conflito em suas potencialidades a partir do suporte existente, são construções de raciocínio absolutamente possíveis de uma vida pública construída em conjunto. Construção essa, onde as experiências pessoais e os acontecimentos na vida cotidiana são fundamentais a evidenciar as marcas humanas deixadas no território.
025. “Licença Poética” Fotografia e tipografia. Guy Debord. Paris, 1958
A arte expressa em intervenções urbanas se apresenta, assim, como uma possibilidade potente de interação criativa e poética das pessoas com o espaço cotidiano. As intervenções, ainda que efêmeras, são capazes de reinventar novos sentidos ao espaço e suscitar novas percepções às pessoas.
“Pôr a arte ao serviço do urbano
não significa de modo algum enfeitar o espaço urbano com objetos de arte. Isso quer dizer que os tempo-espaços tornam-se obra de arte e que a arte é
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reconsiderada como fonte e modelo de apropriação do espaço e do tempo. O direito à cidade se manifesta como forma superior dos direitos: direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e ao habitar. O direito à obra (à atividade participante) e o direito à apropriação (bem distinto do direito à propriedade) estão implicados no direito à cidade”. (LEFEBVRE, 1969, p. 124)
A partir desse conceito de espaço participativo – considerando a cidade como receptor não-fixo e não-passivo, mas de caráter transitório, um multiplicador capaz de proporcionar mais interatividade com seus componentes espaciais e humanos – enxergamos uma alternativa à arte ‘museável’ (BARJA, 2008), neste caso, mais acessível, inserida realmente em consonância com o lugar e com as pessoas. A conquista de um público, antes inatingível pelas artes visuais então ‘musealizadas’, implica também em estratégias do artista em ter uma postura mais objetiva, ou seja, as pessoas, em seu cotidiano, estão claramente mais desatentas a sutis mensagens de arte, que podem facilmente confundir-se com a imensa invasão visual publicitária. 128
Existem hoje, diversos coletivos artísticos muito representativos no sentido de ações efetivas de transformação, e que mantêm o caráter crítico e questionador frente à cidade, em similaridade ao que propunham os situacionistas na década de 50. Aproximam-se muito, inclusive, pela consciência da “passagem” das intervenções. Segundo Guattari (1992), as cidades são imensas máquinas produtoras de subjetividade individual e coletiva. Engendram, por meio de equipamentos materiais e imateriais, a existência humana sob todos os aspectos em que se queira considerá-la. Dessa forma, é possível analisar os exemplos de trabalhos que se seguem como formas de costurar a cidade subjetiva de Guattari, sendo essa subjetividade o processo de desterritorialização que os habitantes da cidade contemporânea vivem. “Intervenções são quase sempre efêmeras. Duram o tempo do deslocamento do ritmo cotidiano para um ritmo poético, questionador. É possível re-sensibilizar o espaço urbano? [...] Uma intervenção pode durar o tempo em que a imagem provocada ficar na memória de quem a viu. Quantas imagens uma intervenção pode gerar?” (PORO, coletivo artístico, 2002)
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A arte propõe uma vivência sensível das coisas que nos cercam. É um olhar livre de preconceitos sobre a vida e baseia-se no desejo. Tanto de criar relações com o mundo e com os outros, como um desejo de transgressão - não no sentido panfletário, mas de forma sensível. Assim, uma revolução estética pode despertar o espectador para o conteúdo das ideias que estão sendo discutidas.
025 acima: “Festa na rua, avenida temporariamente fechada”. Reclaim the Streets, Londres, 1991. 026 abaixo: “A mesma avenida, os mesmos direitos, as mesmas regras”. Reclaim the Streets, Londres, 1991.
Neste contexto, a pertinência das expressões artísticas está sempre associada a críticas e ações políticas. O movimento Reclaim the Streets, por exemplo, fundado originalmente em Londres em 1991, surgiu como um pequeno grupo associado à cultura rave, a ecologistas radicais e artistas plásticos para organizar ações diretas41 contra os carros. Para o movimento, os automóveis particulares “são elementos que dominam nossas cidades, poluem, congestionam e dividem as comunidades” (LUDD, 2002). O automóvel está presente no discurso como o gerador de um grande vazio 41. Forma de ativismo, que usa métodos imediatos para produzir mudanças desejáveis ou impedir práticas indesejáveis. (PAES, 2008)
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social por que dispersam e fragmentam as atividades cotidianas, aumentando o anonimato. Porém, na realidade, o repúdio ao automóvel em si é uma ação simplificada em relação aos princípios do movimento. “O carro é o símbolo. A manifestação mais tangível é a da perda de espaço comunitário, ruas onde se possa caminhar e lugares de livre expressão” (LUDD, 2002, p.42). O objetivo do movimento é direcionar a atenção das pessoas ao resgate da utilização do espaço público. Seus componentes caracterizam suas ações como sequestro das ruas (PAES, 2008). Desde 1995, o coletivo organiza grandes festas, jogos de futebol, bloqueios e pinturas ilegais de faixas para ciclistas em vias movimentadas, cruzamentos importantes e até rodovias. São ensaiadas formas teatrais de se bloquear as vias, como por exemplo, uma falsa batida de carros que inicia uma discussão e impede que se continue o tráfego de automóveis, mas permite a passagem de pedestres. A via bloqueada, passa a ser decretada pelo movimento como “rua aberta” e, logo, grandes cartazes tomam o espaço com frases como “Respire”, “Sem Carros” e “Resgate o Espaço”. Dessa forma, uma grande festa começa, com música, piscinas plásticas, sofás, áreas de estar improvisadas, apresentações circenses, artísticas e musicais. 132
O receio de que o ato fosse caracterizado como uma manifestação esvaziada de embasamento político desencadeou a organização da chamada Global Street Party, no dia 16 de Maio de 1998, dia em que os líderes da G8 fariam uma reunião na cúpula de Birmingham, na Inglaterra e, dois dias depois, iriam a Genebra celebrar 50 anos da OMC – Organização Mundial do Comércio. As festas foram articuladas em 20 países da Europa, simultaneamente. A Global Street Party ocorreu em uma manifestação contra as corporações internacionais e a globalização econômica, em um momento onde muitas pessoas se sentem alienadas e com suas ações limitadas diante do “grande sistema capitalista”. Outros exemplos de intervenções urbanas, que dialogam bastante com o RTS, são as obras do artista plástico brasileiro Eduardo Srur. Uma de suas obras de maior repercussão trata exatamente da relação da publicidade e do comércio invadindo outras instâncias que não dizem respeito à publicidade– ou pelo menos não deveriam. A CowParade, criada em Zurique em 1998, espalhou-se pelo mundo. A proposta era a de que cada patrocinador comprasse uma vaca e convidas133
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se artistas para pintá-las e expor na cidade. O evento que aconteceu pela segunda vez na cidade de São Paulo em 2010, custou cerca de R$ 2 milhões e as 80 vacas, leiloadas em abril, conseguiram a marca de R$ 5 milhões de reais. Alguns coletivos artísticos denunciavam que havia um esgotamento na linguagem, com a curadoria questionada, ou seja, qualquer um que pintasse uma vaca se tornaria artista e o patrocinador é quem definiria o local a ser exposto e o que poderia ou não ser pintado no objeto. Depois da denúncia, a Prefeitura de São Paulo autuou e notificou os organizadores para retirar vinte vacas que fariam alusão à marca de patrocinadores. Segundo as denúncias, uma vaca patrocinada pela Ades tomava o suco. “O que representaria mais uma expressão publicitária, então? Basta colocar um objeto na rua para ser arte pública?” (SRUR, 2010).
027. Intervenção ‘Touro Bandido’ de Eduardo Srur. São Paulo, 2010
Em resposta, no dia 16 de março de 2010, duas vacas receberam intervenções de Srur: um touro feito de igual tamanho que simulava estar montando em cima delas com o título: Touro Bandido. Segundo Srur, “a vaca ficou estéril de reflexão simbólica e vem o touro e cria uma inseminação artística”. 135
E, se a inciativa artística for, em algum momento, chamada de utopia, nos remetemos diretamente a Milton Santos. Para ele, utopia não é o irrealizável, e sim a possibilidade real de mudança. É necessário que as utopias em geral, principalmente as políticas, não sejam prescritivas no sentido de regrar a ação das pessoas criando uma espécie de “gaiola” ideológica, se fizessem isso, não seriam utopias livres (PAES, 2008). A partir dessa perspectiva, da “possibilidade real de mudança”, é que foram desenvolvidas algumas ações em área central. Ações e a corresponde reflexão acerca do que poderiam significar, associadas que estão aos movimentos sociais que disputam o território.
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capítulo 06
INVENÇÃO DE LUGARES PRÓPRIOS NO TEMPO [O VAZIO QUALIFICADO GERA POSSIBILIDADES]
6.1 Trazer luz para a Luz ou acender a que já existe?
“Você olha o que existe e se per-
gunta: por que? Eu imagino o que ainda não existe e me pergunto, porque não?” (SHAW, G., p.73)
O capítulo presente é um manifesto de expressão pessoal acerca das vocações e, principalmente, dos anseios territorializados de transformação da cidade de São Paulo a partir das questões que foram colocadas ao longo da monografia, que também inclui o exercício de projeto desenvolvido.
028. Estação da Luz São Paulo, 2014
É preciso melhor discutir as questões relacionadas à degradação do centro de São Paulo, que vão muito além de classificar as formas de habitações como regulares ou não (ocupações). Mais além, inclusive, do que o próprio déficit habitacional e as ocupações em si. A cidade está em mutação. Nossas ações podem ser efêmeras e anônimas, mas também podem ter uma potência muito grande em meio a todos os acontecimentos. Cabe a nós decidir qual será nosso papel frente a esse momento tão importante de articulações diversas e mudanças políticas efetivas, como o novo plano diretor discutido anteriormente, por exemplo, e significativas em prol da sociedade. 141
Deve-se lançar à transformação sem amarras, não com o objetivo de assegurar resultados positivos, pois não nos cabe prever com precisão o que será, mas ter a clareza de exercício da vida civil, do despertar e experimentar novas experiências de cidade, enxergar nossa participação como auxílio à interação social de dimensões de comunidade e “mundo”. É preciso gerar novas formas de convivência, trazer aos poucos o tão explorado sentido da vida tratado por José de Souza (2000), trocando a quantificação pela qualificação e valorizando ações potenciais que já existem. “Trata-se de uma mudança de prática social. O valor de uso, subordinado ao valor de troca durante séculos, pode retornar ao primeiro plano. Que a sociedade urbana esteja destinada aos “usuários” e não aos especuladores, aos promotores capitalistas, aos planos dos técnicos, é uma versão justa porém enfraquecida dessa verdade.” (LEFEBVRE, 1969, p.118)
Uma nova linguagem e leitura podem criar um novo lugar: acredito que as regiões possuem sementes de sua própria regeneração. Há o hábito de considerarem-se apartadas e abstraídas da cidade as regiões “degradadas” quando na realidade o 142
objetivo deveria ser o inverso: reintegrá-las à malha urbana da maneira mais natural e espontânea possível, para que seja realmente aceita e incorporada pelas pessoas que já usufruem desse lugar. “A região da Luz, em São Paulo é um lugar onde a fumaça dos churrasquinhos vendidos na Rua General Osório fica impregnada no seu cabelo [...]. Em quase todas as esquinas da região da Luz há lanchonetes que vendem um salgado e uma vitamina por quatro e cinquenta [...]. A região da luz não é, por natureza, o lugar onde se vendem cafés expressos ou cappuccinos com canela [...] o projeto de revitalização da Luz é uma daquelas coisas fora do lugar. Quem tiver olhos para ver, veja.” (CARDOSO, 2012, p.89-90)
A questão aqui defendida é relativa às possibilidades de qualificar a vida urbana existente, não anulando nem substituindo as dinâmicas atuais, mas conformando-as a novas realidades de modo a que se desenvolvam em conjunto. Devemos levar em consideração as pré-existências: saber ler o suporte dado é fundamental, pois ele possui a responsabilidade da imagem a ser construída. A ideia é que haja uma nova narrativa que não se sobrepo143
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nha, mas que mescle com a cidade atual e que permeie questões instigantes. É preciso reinterpretar as condições ao projeto, questionar como se utiliza dos fragmentos que a cidade consolidada gera e principalmente aproveitar-se do que já existe de maneira a transformar e reestruturar a oferta de experimentações da vida pública. O principal objetivo, portanto, não é a criação do edifício em si. Há menos ainda um desejo individual e isolado de renovação ingênuo e inevitavelmente vazio de significados para outros. A ideia principal é relatar e transformar a experiência do lugar levando em consideração principalmente a aposta na potência humana de requalificação do lugar, e não unicamente pela ação urbanística. A cidade e seus acontecimentos sempre foram o foco pretendido por esse tfg, fugindo do lote determinado e buscando intervir naquilo que tem deixado a cidade “menos habitável”. Trabalhar estruturas existentes de forma a criar novas espacialidades, foi a tentativa e o sonho de um projeto que permita livremente as cenas públicas, que promova as coexistências e co-presenças. 029. Estação da Luz São Paulo, 2014
Hoje, a Luz apresenta principalmente uma escala metropolitana funcional, de grande movimentação e vitalidade em determinados períodos 145
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do dia, decorrentes principalmente da movimentação comercial e de pontos culturais metropolitanos. A expressão de equipamentos voltados à vida cotidiana ainda é pequena, embora ultimamente tenham aumentado cada vez mais seus números e há indícios de que os movimentos emancipatórios de habitação tenham muito a ver com o crescimento da densidade local (vide dados apresentados no capítulo 01). A questão é se a Luz está preparada para atender essa nova população que chega a partir desses movimentos. Não só em relação às próprias habitações, os edifícios ociosos que já não cumprem sua função social há muitos anos e que representam ruínas materiais na região, como também aportes de habitabilidade da vida cotidiana, como pequenos comércios e serviços, equipamentos de uso institucional e de oferta de cultura e lazer.
030. Ocupação na Rua São João São Paulo, 2014
Ora, existem muitos equipamentos culturais de alcance metropolitano na região, porém essa cultura é desejada pela população que está à frente da reocupação do centro? Muitos deles, frutos de ressignificações são, portanto, um pouco frágeis no sentido de apropriação do espaço para quem frequenta o centro todos os dias. Primeiro, acredito que a cultura não parte do equipamento para a população e sim exatamente o oposto: a cultura parte 147
de cada pessoa, individualmente que, em conjunto, compõe (e propõe) a cultura que é realmente absorvida. Segundo, a intervenção “monumental-pontual”, de ressignificação dos grandes edifícios simbólicos existentes no bairro, demonstra sua fragilidade pela falta de apropriação. A antiga estação Júlio Prestes, hoje sala de concertos; o antigo DOPS – Departamento de Ordem Política e Social, hoje Memorial da Resistência e o antigo Liceu de Artes, atual Pinacoteca, por exemplo, colocam-se como equipamentos de grande importância e porte metropolitano, porém distanciados da população que vive cotidianamente a Luz. Essa “desconexão” entre esses equipamentos e a população local, dá-se física e socialmente: porque são “preenchidos” pela chamada cultura erudita, acabam por intimidar a população que deveria ter acesso a eles e frequentá-los mas que se inibe frente ao próprio tema de que são contenedores e pela própria espacialidade controlada e monumental.
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À nossa frente, como um espetá-
culo (para espectadores “inconscientes” daquilo que têm diante de sua “consciência”) estão os elementos da vida social e do urbano, dissociados, inertes. [...] Eis uma vida cotidiana bem decupada em fragmentos: trabalho, transporte, vida privada, lazeres. (LEFEBVRE, 1969, p.92)
A questão seria fazer com que as pessoas permaneçam usufruindo dessas áreas fora do horário comercial de maior movimentação e apresentando possibilidades reais de ocupação, interpretando como programas surgiriam das necessidades locais e ao mesmo tempo atenderiam à metrópole para se estabelecer uma urbanidade associada à intensificação da vida pública. Há a necessidade de construção de ambiências em diferentes escalas e mais democráticas, para diversos usos. Então, se como observado, a intervenção pontual não enfrenta devidamente questões urbanas, o que seria forte o suficiente para reverter a falta de sentido de intervenções? Talvez fosse o caso de ler a cidade a partir da estruturação de um sistema onde as intervenções estejam conectadas por linhas de circulação, mobilidade e tempo, e que estejam pontuadas em diversos momentos por per149
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manências e paradas. Esse sistema formaria uma rede articuladora de menores intervenções, que atentasse para micro dinâmicas e para ações ínfimas, que também são muito relevantes no conjunto da cidade (MARTINS, 2000). A separação analítica nos isola como matérias brutas (quando na verdade resultamos de uma longa história e implicamos numa apropriação da materialidade). Eis o ser humano desmembrado, dissociado (LEFEBVRE, 1969). As micro intervenções vêm nesse sentido, democratizando o espaço por oferecer mais possibilidades de aproximação à escala da vida e abrindo mais possibilidades de uso. Devem-se realizar projetos urbanísticos compreendendo “modelos”, formas de espaço e de tempo urbanos, sem se preocupar com seu caráter atualmente realizável ou não. Que a imaginação se desdobre em um imaginário que investe na apropriação (do tempo, do espaço, da vida fisiológica, do desejo). Por que limitar essas proposições apenas à morfologia do espaço e do tempo? (LEFEBVRE, 1969, p.105) O conceito de sistema sugere a construção de outra cidade, que se sobrepõe à cidade existente para o tempo do pedestre, que se apropria de áreas residuais e espaços subutilizados para a inversão da lógica de visibilidade desses locais. O principal ob151
jetivo seria recriar o tempo no espaço, criar vínculos mais potentes de relação indivíduo-cidade e oferecer, assim, espaços livres para a apropriação. Em uma escala metropolitana, o sistema pode oferecer desdobramentos e ligações a outros bairros. Como as micro intervenções pressupõem pontos de permanência em meio aos acontecimentos dinâmicos da cidade, pressupõem também um caminho à deriva pelas ruas, sem regra ou definição alguma de percurso. Colocam em discussão a irrigação do território com novas possibilidades, aproveitando-se de espaços livres e residuais, exteriorizando lógicas de produção criativa. Ou seja, o objeto arquitetônico se dissipa completamente no espaço-organismo, articula-se às pré-existências por meio da conexão física e pela legitimação das ligações efetivas das pessoas com a cidade. “Orientar o crescimento na direção do desenvolvimento, portanto na direção da sociedade urbana, isso quer dizer antes de mais nada: prospectar as novas necessidades [...] e propor o que não preexiste como objetos.” (LEFEBVRE, 1969, p.115)
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6.2. O vazio qualificado gera possibilidades “um lugar que se propõe mais a apoiar iniciativas criativas do que para oferecer espetáculos.” (WILHEIM, 1985)
No contexto do que foi apresentado até agora, o projeto desenvolvido representa a criação de uma rede de espaços públicos que interferem e ocupam áreas residuais da cidade; que constroem uma rede de sociabilidade e consciência crítica da população acerca de sua contribuição na construção e poder de transformação. É um sistema sobre a cidade real, que traz à experiência vivida desejos ideais, que cobre vazios e cria possibilidades. “Uma cidade em que todos se sintam em casa. Uma cidade que serve de refúgio para todos, em que as pessoas com diferentes recursos, habilidades e capacidades sintam-se parte, independentemente de onde vêm e do que possuem.” (ECHANOVE, 2012, p.27)
O primeiro passo de aproximação e leitura do território foi a análise e discussão do que significa e simboliza o centro histórico da cidade de São Paulo e como aconteceram suas transformações ao longo do tempo. O que principalmente impulsionou 153
035. Levantamento da รกrea de estudo
a pesquisa foi a variação da densidade na região baseada em censos de 2000 e 2010 e os agentes que se demonstraram à frente dessas mudanças: o movimento social emancipatório de moradia. A questão do trabalho, portanto, parte do apoio a essa iniciativa da população em legitimar a função social da propriedade e os direitos à moradia e à cidade. Nos discursos do movimento é muito presente, claro, questões básicas de sobrevivência. Porém, muito pouco se observa de iniciativas oficiais em prol da habitabilidade dessas pessoas, ou seja, questões complementares e também muito importantes da vida como lazer e cultura aberto a todos. Depois, no recorte para o projeto, foram levantados espaços vazios, subutilizados ou ocupados por movimentos sociais articulados. O nomeado “recorte”, pequeno, por questões metodológicas). Foi desenvolvida, então, uma estratégia de ocupação sistêmica que se apropria dos espaços livres e do passeio púbico com a intenção de valorizar a vida cotidiana. A proposta é mostrar as possibilidades de intervenções na cidade real, completamente ligadas à pré-existência e representa assim, um exercício de uma nova lógica de apropriação do espaço, que poderia ser reproduzida, criticamente, em outras regiões da cidade. 155
036. Implantação geral do projeto
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037 e 038. Cortes urbanos Leste (acima) e Oeste (abaixo)
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6.3. O Projeto Urbano: Foram identificadas diferentes situações de dimensionamento de calçada e passeio público, para assim definir algumas diretrizes de intervenção padrão como: .Nivelamento do leito carroçável à calçada com piso intertravado drenante, alterando a condição de claro domínio do carro em relação ao pedestre e colocando - os dois - com igual importância (a ideia é que nenhum meio de mobilidade se destaque em relação a outro e, sim, que todos consigam coexistir); .Alargamento das calçadas em situações possíveis, a partir da análise de fluxo das vias e da situação atual de faixas destinadas a estacionamentos;
039 e 040. Estudos de fluxos e intervenções viárias possíveis nas Rua Brigadeiro Tobias (acima) e Avenida Senador Queirós (abaixo).
.Implantação de ciclovias bidirecionais que permeiam todo o perímetro (foram analisadas as ciclovias já implantadas pela prefeitura, na atual gestão de 20122015).
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6.4. Situações Urbanas: Criação de uma rede de espaços públicos, irrigando o território com interferências no espaço e ocupando áreas residuais da cidade representando pontos de ruptura do percurso funcional rotineiro da vida cotidiana, que de alguma maneira nos faz parar para refletir e transforma a conexão direta entre dois pontos em uma série de novas hipóteses e experiências. Situação Urbana 01 - Incentivo a novos meios de mobilidade: ao longo do sistema de ciclovias, foram propostos pontos de locação gratuitos de bicicleta (em alternativa à iniciativa privada que o faz de maneira não democrática) que também apresentam áreas de estar urbano com mobiliário e mirante na cobertura. (imagem 041 - acima)
Situação Urbana 02 - Explora o ponto de ônibus como o momento da espera necessária que propicia o encontro ao acaso e amplia a rede de sociabilidade na escala do bairro. Para muitos, pode representar também um tempo incômodo. Neste caso, o ponto de ônibus agrega uma possibilidade de descontração para crianças e adultos. (Imagem 042 - abaixo)
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Situação Urbana 03 – Avenida Casper Líbero: Fusão da praça Alfredo Issa ao quarteirão ampliando a calçada e oferecendo espaço de estar urbano e também ao 4º equipamento-âncora, o Auditório. (Imagem em Situação Momento 4)
Situação Urbana 04 – O comércio ambulante se faz muito presente em toda a região. A proposta é legitimar a ação e oferecer uma cobertura-equipamento de abrigo e infraestrutura (ponto elétrico e hidráulico) para melhorar a qualidade dessa dinâmica tão presente na cidade. (Imagem 43 - acima)
Situação Urbana 05 – Praça Ramos de Azevedo: O “estar urbano” oferece uma área mobiliada coberta para encontros, esperas e manifestações artísticas muito presentes exatamente neste local. Essa intervenção aposta na cultura não partindo do equipamento para a população e sim o contrário, a cultura partindo de cada indivíduo para compor a expressão popular, abrigada por um espaço proposto. (Imagem 44 - abaixo)
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6.5. Situações Momento: A definição de momento, segundo os situacionistas, indica a declaração do absoluto associada à consciência da passagem sobretudo “temporal” articulada no lugar. Os momentos são os minutos de experiência espaço-temporal, são pontos de ruptura, aceleração e revoluções da vida cotidiana individual - momentos estes, explorados novamente, pelas questionadoras experiências artísticas.
045 acima: Intervenção urbana “Corpos em Espaços Urbanos” de Willie Dorner e sua companhia de dança em crítica ao acúmulo de pessoas nas grandes metrópoles. Nova York, 2013. 046 abaixo: Projeto do coletivo artístico PI, que envolve o deslocamento de renomadas obras de arte para o ambiente urbano. Releitura de “O Nascimento da Vênus”. São Paulo, 2011.
O projeto representa uma aposta na sociedade, que anseia por oportunidades maiores de realização. Lança-se na cidade com a intenção de estimular a vida urbana, com intervenções conectadas pela identidade visual, materialidade, pelos mirantes (outra forma de olhar) e pela principal característica do pavimento térreo dos equipamentos apresentar-se como alargamento da calçada. O percurso é resultado de um estudo sobre a vida e rotina cotidianas. Os equipamentos representam o desdobramento de um dia completo na vida de uma pessoa:
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Situação Momento 01: Articulação - Passarela das Noivas
À potencialização das paisagens: a passarela oferece um percurso múltiplo com a valorização das perspectivas horizontais e verticais da cidade, um espaço de estar urbano coberto, painéis e área de exposições, representando um convite não só à travessia, mas também à permanência. É explorada aqui a dualidade entre o percurso direto e o múltiplo. Sabemos olhar para além de onde se quer chegar objetivamente? Quais são os benefícios da coexistência e da multiplicidade de acontecimentos? A intenção principal da passarela é absorver o fluxo rápido da passagem, fazendo com que, ao longo do percurso, as paisagens sejam enquadradas, ou seja, mesmo que não paremos para olhar ainda é possível que seja estabelecido algum tipo de vínculo com a cidade. Foi analisado o percurso atual da passarela e identificados certos planos predominantes, de possibilidades de enquadramento verticais e horizontais, sempre com a intenção de chamar a atenção para esses planos específicos e assim potencializar essas paisagens.
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Em relação aos fluxos: o caminho para se chegar de um ponto de articulação de nível ao outro é múltiplo – ainda que o direto também seja possível. Em meio a planos, áreas de exposições e enquadramentos do olhar, são propostas áreas de estar com mobiliário urbano para que seja experimentada uma pausa do ritmo acelerado da cidade. A ideia é que se consiga enxergar também, a partir de um outro nível e em uma escala quase doméstica de abrigo e acolhimento, o fluxo rápido de outras pessoas e dos grandes eixos de mobilidade próximos - Avenida Prestes Maia e a linha do trem. 051. acima: Colagem Externa Av. Prestes Maia 052. abaixo: Colagem Interna Passarela
Os fechamentos se dão por meio de chapas metálicas perfuradas em aço corten, fixadas a montantes e que sustentam também a cobertura. Permitem a passagem de luz, mas inibem a visão à distância, direcionando a atenção para pontos de interesse.
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Situação Momento 02: Produção - Cooperativa À inversão da lógica do trabalho alienador: a cooperativa pretende criar condições mais flexíveis de produção e associá-las aos momentos de lazer. Oferece uma oportunidade de geração de renda para as famílias e aposta na exteriorização da organização do movimento social com a construção coletiva de uma consciência crítica a partir da capacitação. De início, um miolo de quadra localizado entre a Avenida Cásper Libero e as Ruas Brigadeiro Tobias e Washington Luís; um pátio que oferece seus limites para a apropriação total do público com arte urbana, exposições e projeções. Uma área que possui poucos elementos fixos: a vegetação, os pontos de apoio hidráulicos e os decks que “ancoram” os módulos móveis de produção. Funciona como pólo de produção criativa e objetiva, construtor de uma consciência crítica que impulsiona em uma escala menor uma ação social. Recebe materiais reciclados e oferece uma oportunidade de geração de renda para as famílias, aproveitando o potencial e escassez de produção artesanal na capacitação da população e jovens pelo aprendizado. 173
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As estações de produção são móveis (sobre rodízios e com controle de movimentação) e permitem o deslocamento conformando espacialidades diferentes a cada movimento. A partir de fluxos entre quadras e vazios que conformam pátios menores, adapta-se às necessidades, podendo –os módulos – articularem-se uns aos outros, criando espaços maiores. Pretende compor com um alargamento da rua, que absorve o padrão da calçada urbana para integrá-la à cidade, mas que também indica a passagem para o outro lado com a paginação do piso. Há três módulos diferentes: o metálico, que abriga os ateliês de produção de fato e que têm a possibilidade de abrir completamente duas de suas faces, para se caso necessário, unir-se a iguais e aumentar sua área útil. O de madeira, mais voltado ao exterior, abre-se em painéis verticais, também aumentando sua área útil, mas oferecendo seu espaço a quem passa, podendo receber ateliês abertos ao público ou se valer de um espaço com mobiliário urbano coberto. E o de vidro, que representa um módulo de apoio, podendo unir-se tanto a um semelhante quanto aos outros dois a partir de sua área avarandada e coberta. 176
Outra proposta (apresentada apenas como ideia, sem desenvolvimento de projeto) são os elevadores urbanos: A ideia é apropriar-se da cobertura do edifício corporativo vizinho, onde poderiam ocorrer convenções ou reuniões em maior escala e que demandem maior capacidade de transposição de níveis que o elevador interno do edifício suporta. Ao mesmo tempo são também instalações artísticas que distanciam aos poucos o sujeito da aceleração cotidiana e estimula outras possibilidades de percepção e experimentação. O primeiro, mirante caleidoscópio tem objetivos diferentes dos demais mirantes: ele convida a pessoa a olhar a cidade a partir de espelhos, ou seja, invertida. Além disso, propõe que o indivíduo veja seu próprio reflexo frente à cidade e assim reflita um pouco sobre qual é o seu papel na construção da mesma. O segundo [“Não basta o silêncio de fora. Quando se faz silêncio dentro, começamos a ouvir coisas que não ouvíamos” ALVES, 2003] representa o escutatório, que tem como objetivo afirmar o vínculo do sujeito com a cidade: é uma caixa opaca que permite somente a audição como recurso de reconhecimento do espaço. Muito falamos e muito fazemos na cidade, mas ouvimos o que ela tem a dizer? 177
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Situação Momento 03: Pausa - Comedoria À qualificação dos momentos de pausa: A comedoria se apresenta como suporte à falta de infraestrutura dos cortiços e habitações populares na área central na produção de refeições. A ideia é que a relação espacial traduza identidades para o local, constituindo um pertencimento maior da cidade a partir das práticas exercidas no cotidiano e promovendo além de um suporte para a ação, uma condição de ação para as pessoas, ou seja, ser o lugar da experimentação de um momento. As manifestações culturais são representações da voz social, a forma utilizada por um grupo de pessoas para expressar o que pensa ou deseja na construção da cidade. O ato de comer na rua pode estar ligado a situações que se relacionam à memória afetiva do que se come, que pode remeter a um imaginário coletivo, por exemplo os pipoqueiros na entrada das escolas. Se observarmos pontos de grande movimentação de pessoas como terminais de transporte público e grandes centros comerciais, é comum vermos a comercialização in179
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formal de alimentos, o que indica também a demanda presente por essa oferta. O que é de interesse de reflexão também é a forma democrática na qual se apresenta essa prática, por que além de expressar o que se quer consumir nas ruas, oferece preços muito acessíveis. Mais uma vez, é explorado o lugar como um alargamento da via pública. Absolutamente permeável tanto visual quanto espacialmente, dificulta a percepção da distinção entre local e mundo; da mesma forma a cobertura que invade a rua e convida à entrada.
061. acima: Colagem Externa R. Brigadeiro Tobias 062. Colagem Interna Comedoria
Em relação à experimentação do momento: o pé direito alto, a mescla do interior com o exterior, o solário, o mirante, o jardim interno (aberto também as intempéries livremente) fazem com que nos desconectemos completamente do ambiente comum de trabalho, com o intuito de proporcionar a coexistência desse tempo interno onde as pessoas constroem uma experiência comum a todas.
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Situação Momento 04: Expressão – Auditório A pluralidade da apropriação do espaço público é resposta a diferentes dinâmicas que, por serem desdobramentos da mesma vida, não são excludentes, porém possuem naturezas diferentes: a primeira é a luta pela sobrevivência, esmiuçada pelo movimento social articulado, e a segunda é a luta pelo espaço, que também é pura prática de resistência e inclui outras múltiplas necessidades complementares, como ações indicativas de transformação que constituem a vitalidade da cidade. As atividades espontâneas representam a subversão à regulamentação, ao controle e à vigília de uso dos espaços públicos, fugindo ao planejamento de ação em massa e que representa uma oportunidade de expressão, uma possível experiência emancipatória de cada indivíduo e que oferece a cada um a condição de agente efetivo no espaço. Essas atividades são impulsionadas pela própria cidade e pela reflexão que se coloca a partir da falta de questionamento e sentido da vida urbana, ou seja, a manifestação espontânea é o que nos resta como instrumento de ação diante do cenário presente.
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O auditório aberto entra nesse contexto, com o objetivo de abrigar a multiplicidade de acontecimentos e expressar os desejos da sociedade civil em manifestações de todas as escalas, unindo-se a praça Alfredo Issa com o viário reestruturado para que o espaço possa, ao mesmo tempo, concentrar e isolar acontecimentos.
066. acima: Colagem Externa Av. Casper Líbero 067. Colagem Interna Auditório
A intervenção se dissipa completamente no espaço pela inserção na quadra: trata-se de um pórtico treliçado de estrutura metálica, envolto por placas metálicas que emolduram a estrutura e se abre à praça e também à rua, permitindo a interação com todos, sem limite de público. As duas pequenas escadarias representam a plateia e, pela área de apresentação ser rebaixada, mesmo cheia permite a visão de quem passa. O mirante, no auditório, se utiliza das empenas vizinhas para elevar-se a 10 metros do nível da rua e proporcionar outro ponto de vista tanto das apresentações, como da cidade. Enquadra-se exatamente no limite da pré-existência, desaparecendo como objeto em si e afirmando-se enquanto cidade.
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Situação Momento 05: Criação – Oficinas (Equipamento apresentado como intenção de projeto, porém não desenvolvido) A educação, nas mais diversas interpretações teóricas, é considerada pré-condição para o exercício da cidadania e para a participação cívica. Porém, surgem aos poucos, hipóteses de que a “pedagogia cívica” está também muito presente nos processos cotidianos de participação social e aprendizado, ou seja, a pedagogia em si não precisa necessariamente estar relacionada à existência de uma cultura tradicional escolar, oficial, historicamente reproduzida. Assim como o clássico conceito de civismo não necessariamente se constitui a partir das formas de estruturação da política convencional. Independentemente da educação e da cultura política presentes em uma sociedade, o engajamento em práticas associativas, seja nos movimentos sociais, seja nas associações civis pode significar, por elas próprias, experiências alternativas para a participação cívica e para o exercício da cidadania.
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Assim, na tentativa de tangenciar esse assunto, defendo que a aprendizagem pode acontecer pela experiência, no movimento de troca entre os atores da sociedade civil, valorizando sua autonomia em relação a cada experiência vivida. Acredito que haja um processo de aprendizado em questão: os atores adquirem a consciência de seus interesses coletivos no momento mesmo da sua participação. Dessa maneira, a própria ação é uma manifestação pedagógica, permitindo a ampliação das percepções culturais cotidianas. As oficinas trazem então, os intelectuais orgânicos (GRAMSCI, 1998), presentes em cada comunidade, munidos de experiências de suas próprias vidas para contribuir na construção maior de consciência coletiva mais articulada e apostam, também, na sedução que os espaços artísticos podem exercer pela possibilidade de experimentação e liberdade de expressão.
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BIBLIOGRAFIA
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