Um
PODER. NADA ERA tão bom. Nem o excelente chocolate de Partholon. Nem a beleza de um perfeito nascer do sol. Nem mesmo... Não, não sabia sobre aquilo. Ela sacudiu a cabeça, mudando com propósito o padrão de seus pensamentos. O vento assobiava veloz por seus cabelos e alguns fios longos açoitavam seu rosto, fazendo-a desejar que estivessem presos. Geralmente os prendia, mas hoje queria sentir o peso deles, e admitia para si mesma que gostava da maneira como flutuavam às suas costas quando corria, como a cauda flamejante de uma estrela cadente. Sua passada vacilou com a oscilação da concentração, porém Elphame logo recobrou o controle de seus pensamentos perdidos. Manter velocidade exigia foco. O campo no qual corria era relativamente plano e livre da maioria das rochas e obstáculos, mas não seria prudente deixar os pensamentos vagarem.
Um passo em falso poderia facilmente quebrar uma perna; seria tolice acreditar no contrário. Por toda a vida, Elphame fez questão de evitar crenças e comportamentos tolos. Tolice e estupidez eram para pessoas que podiam se permitir erros normais e cotidianos. Não para ela, alguém cujo físico demonstrava que fora tocada pela Deusa e era, portanto, mantida à parte do que era aceito como normal e cotidiano. Elphame aprofundou a respiração e obrigou-se a relaxar a parte superior do corpo. Mantenha a tensão na parte inferior, lembrou a si mesma. Mantenha todo o resto frouxo e relaxado. Deixe a parte mais poderosa de seu corpo fazer o trabalho. Os dentes brilharam num sorriso quase selvagem quando ela sentiu o corpo se recompor e disparar em frente. Elphame adorava a maneira como os músculos encordoados em suas pernas respondiam. Os braços se arrojavam sem esforço enquanto os cascos batiam no macio tapete verde do campo jovem. Ela era mais rápida do que qualquer humano. Muito mais rápida. Elphame exigiu mais de si mesma, e o corpo respondeu com força inumana. Poderia não ser tão rápida quanto um centauro em longas distâncias, mas poucos poderiam deixá-la para trás numa corrida de velocidade, como seus irmãos frequentemente costumavam se gabar. Com um pouco mais de esforço, talvez ninguém fosse capaz de superá-la. A ideia era quase tão satisfatória quanto o vento em seu rosto. Quando a ardência começou, ela a ignorou, sabendo que precisava ir além do ponto de simples fadiga muscular, mas começou a angular suas passadas para que a corrida a levasse num imenso caminho esférico.Terminaria no lugar onde tinha começado. Mas não para sempre, prometeu a si mesma. Não para sempre. E exigiu ainda mais se si mesma.
* * * — Oh, Deusa. — Observando a filha, Etain suspirou com reverência. — Será que nunca me acostumarei com a beleza dela? Ela é especial, Amada. A voz de Epona tremulou com familiaridade pela mente da Escolhida. Ela puxou as rédeas do cavalo para detê-lo ainda dentro da proteção das árvores que flanqueavam uma das extremidades do campo. A égua prateada parou e girou a cabeça, erguendo as orelhas para sua senhora na versão equina de uma pergunta. E Etain sabia que sua égua, a encarnação equina da Deusa Epona, estava realmente fazendo uma pergunta. — Só quero ficar aqui e observá-la. A Deusa bufou imperiosa pelo nariz. — Não estou espionando! — exclamou Etain indignada. — Sou a mãe dela. Está no meu direito observá-la correr. A Deusa sacudiu a cabeça numa réplica que indicava não ter tanta certeza. — Comporte-se com o devido respeito. — Ela sacudiu as rédeas da égua. — Ou a deixo no templo no próximo passeio. A Deusa não se dignou a comentar com nada além de um bufo. Etain ignorou a égua que agora a ignorava, e murmurou alguma coisa sobre velhas criaturas mal-humoradas, mas não alto o bastante para a égua ouvir. Depois apertou os olhos e ergueu a mão para impedir que o sol interferisse na sua visão. Sua filha estava correndo com uma velocidade que fazia a parte inferior do corpo borrar, tanto que parecia voar sobre os brilhantes brotos verdes do trigo novo. Ela corria ligeiramente inclinada para a frente, com uma graça que sempre maravilhava a mãe.
— Ela é a mistura perfeita de centauro e humana — murmurou Etain para a égua, que girou as orelhas para capturar as palavras. — Deusa, você é tão sábia. Elphame tinha completado a longa volta de sua trilha imaginária e estava começando a voltar para o bosque no qual a mãe aguardava. O sol poente emoldurava seu corpo em movimento, lançando fogo no cabelo castanho-avermelhado da garota. Ele brilhava e faiscava ao redor dela em fios longos e pesados. — Ela certamente não herdou de mim o adorável cabelo liso — falou Etain com a égua, enquanto tentava prender atrás da orelha um dos cachos que sempre escapavam. A égua virou as orelhas para trás em atenção. — O brilho vermelho que entremeia o cabelo, sim, mas de resto ela pode agradecer ao pai. — Também poderia agradecê-lo pela cor daqueles espantosos olhos escuros. O formato era seu — grandes e redondos, repousando em maçãs altas e delicadas que também eram cópias das da mãe, mas enquanto os olhos de Etain eram verde-musgo, os olhos da filha eram do fascinante negro do pai centauro. Mesmo que a forma física de Elphame não fosse inteiramente única, sua beleza seria incomum — combinadas a um corpo que só a Deusa poderia ter criado, o efeito era espetacular. O passo de Elphame começou a diminuir, mudando de direção, dessa vez rumando para as árvores nas quais a mãe e a égua esperavam. — Devemos nos fazer visíveis para que ela não pense que estávamos nos escondendo nas sombras para observá-la. Elas surgiram na orla, e Etain viu a filha virar a cabeça na direção delas num gesto instintivo de defesa, mas quase imediatamente Elphame as reconheceu e ergueu o braço para acenar um olá, ao mesmo tempo que a égua proclamava uma aguda saudação.
— Mamãe! — chamou Elphame com alegria. — Por que vocês duas não vêm se refrescar comigo? — Claro, minha querida — gritou Etain. — Só que mais devagar, você sabe que a égua está ficando velha e... Antes que ela pudesse terminar a frase, a “égua velha” em questão disparou e alcançou a jovem, empinando com energia para os lados antes de ajustar com facilidade seu galope calmo à marcha de Elphame. — Vocês duas nunca ficarão velhas, mamãe. — Elphame riu. — Ela só está se exibindo para você — disse Etain à filha, mas abaixou-se para agitar com afeição a crina sedosa da égua. — Ah, mamãe, por favor. Ela está se exibindo... — Elphame deixou a frase sugestivamente inacabada enquanto erguia a sobrancelha e dava uma olhada sábia nas joias resplandecentes e no sedutor caimento do traje de montaria de couro macio que se ajustava confortavelmente ao corpo ainda formoso da mãe. — El, você sabe que usar joias é para mim uma experiência espiritual — disse ela em sua voz de Amada da Deusa. — Eu sei, mamãe. — Sorriu Elphame. O bufo da égua era decididamente sarcástico, e a risada de Etain se misturou à da filha enquanto prosseguiam em harmonia pelo campo. — Onde deixei minha roupa? — murmurou Elphame meio para a mãe, meio para si mesma, enquanto vasculhava a margem do bosque. — Pensei ter deixado nesse tronco. Etain observou a filha se inclinar num tronco caído à procura do restante da roupa. Ela vestia apenas uma blusa sem mangas de couro, que estava bem presa ao redor dos seios fartos, e uma pequena tira de linho que envolvia as nádegas musculosas e era recortada bem acima dos quadris, antes que se afundasse num triângulo para cobri-la na frente. Criação da própria Etain.
O problema era que apesar de o corpo musculoso da moça ser coberto por uma luzidia pelagem equina a partir da cintura, e que ela tivesse cascos em vez de pés, exceto pelos extraordinários músculos da parte inferior do corpo, Elphame era muito semelhante a uma mulher humana. Então precisava de uma vestimenta que lhe desse a liberdade de exercitar a velocidade inumana com a qual fora presenteada, além de mantê-la decentemente coberta. Etain e a filha experimentaram muitos estilos diferentes antes de encontrarem um que satisfizesse com sucesso as duas necessidades. O resultado funcionara bem, exceto por deixar muito do corpo de Elphame visível. Pouco importava que as mulheres de Partholon sempre tivessem sido livres para exibir seus corpos com orgulho. Etain frequentemente desnudava os seios durante rituais de bênção para representar o amor de Epona pela forma feminina. Quando Elphame revelava as pernas unguladas, as pessoas reagiam com absoluto choque e espanto à visão do corpo da Escolhida, tão evidentemente tocado pela Deusa. Elphame odiava ser objeto dos olhares. Então se tornara um hábito para Elphame vestir-se de maneira conservadora em público, só tirando suas vestes esvoaçantes quando corria, quase sempre sozinha e bem longe do templo. — Ah, encontrei! — gritou ela, pulando por cima de um tronco não muito longe de onde estavam. Ela apanhou o corte de puro linho que fora tingido na cor das esmeraldas e começou a enrolá-lo ao redor da cintura delgada. A respiração já voltara ao normal; o brilho leve do suor que tinha feito as penugens dos braços nus cintilarem já havia secado.
Possuía uma silhueta espetacular. O corpo era esguio, atlético e perfeitamente talhado, mas não havia nada de rude ou masculino em sua compleição. A adorável pele morena parecia sedosa e atraía o toque; só depois de realmente tocá-la, a força primorosa dos músculos por baixo daquela pele podia ser plenamente percebida. Mas poucos ousavam tocar a jovem Deusa. Ela era alta, sobrepondo em vários centímetros o 1,70m de altura da mãe. Durante o começo da puberdade, havia sido magra e um pouco desajeitada, mas logo as curvas e a plenitude da feminilidade substituíram o jeito potrilho. A parte inferior do corpo era uma perfeita mistura de humano e centauro. Ela possuía a beleza e o encanto de uma mulher, a força e a graça de um centauro. Etain sorriu para a filha. Como desde o momento do nascimento dela, abraçou a singularidade de Elphame com um amor feroz e protetor. — Não precisa usar essa roupa, El. — Ela não percebera que havia falado seu pensamento em voz alta até a filha olhar rapidamente. — Sei que acha que eu não preciso. — A voz, geralmente tão semelhante à da mãe, de repente se endureceu com emoção contida. — Mas preciso. Não é a mesma coisa para mim. Não me olham como você. — Alguém disse algo para magoá-la? Diga-me quem é e essa pessoa conhecerá a ira de uma deusa! — Fogo verde faiscava nos olhos de Etain. A voz de Elphame perdeu toda a expressão ao responder à mãe: — Não precisam dizer nada, mamãe. — Preciosa... — A raiva se esvaiu dos olhos de Etain — ... sabe que as pessoas a amam.
— Não, mamãe. — Ela ergueu a mão para impedir que a mãe a interrompesse. — Amam você. As pessoas me idolatram e veneram. Não é a mesma coisa. — Claro que a veneram, El. Você é a filha mais velha da Amada de Epona e foi abençoada pela Deusa de uma maneira muito especial. Deveriam venerá-la.