Daniela Gonçalves de Oliveira Rosa - A DIMENSÃO ARTÍSTICA NA FORMAÇÃO DO PALHAÇO DE HOSPITAL

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS ESCOLA DE BELAS ARTES

DANIELA GONÇALVES DE OLIVEIRA ROSA

A DIMENSÃO ARTÍSTICA NA FORMAÇÃO DO PALHAÇO DE HOSPITAL

Trabalho de Conclusão de Curso na forma de Artigo apresentado ao Curso de Graduação em Teatro – Licenciatura – Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, para a obtenção de título de Graduada em Teatro.

Orientador: Eugênio Tadeu Pereira

Belo Horizonte 2017


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A DIMENSÃO ARTÍSTICA NA FORMAÇÃO DO PALHAÇO DE HOSPITAL DANIELA GONÇALVES DE OLIVEIRA ROSA

RESUMO: O presente trabalho apresenta a experiência de uma formação para palhaços que atuam em hospitais. O grupo participante não possui formação profissional na palhaçaria e fazem o trabalho nos hospitais de forma voluntária. Este texto ressalta a necessidade de uma formação técnica e artística direcionadas à linguagem do palhaço para uma atuação mais eficiente em hospitais, bem como discute a forma de utilização da figura do palhaço por pessoas que atuam nesses espaços. PALAVRAS-CHAVE: Palhaço. Hospital. Formação. Máscara.

RESUMEN:

El Presente trabajo presenta la experiencia de una formación para payasos que actúan en hospitales. El grupo participante no posee formación profesional en el arte del payaso y realizan el trabajo de forma voluntaria en los hospitales. Este texto resalta la necesidad de una formación técnica y artística, direccionadas al lenguaje del payaso para una actuación más eficiente en hospitales, así como se discute la forma de utilización de la figura del payaso por personas que actúan en esos espacios.

PALABRAS CLAVES: Payaso. Hospital. Formación. Máscara.

Apresentação O nomadismo de meus pais os levou a morar em Pará de Minas, interior de Minas Gerais, terra de Benjamim de Oliveira 1, palhaço negro que com o circo fugiu em 1882. Foi nessa cidade que conheci um grupo de pessoas interessadas na formação de palhaço para atuar

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Palhaço mundialmente conhecido. Nasceu na vila de Patafufo, atual cidade de Pará de Minas, Minas Gerais. Negro forro, filho de escravos, fugiu com o circo aos 12 anos de idade. Atuou como palhaço, músico, cantor, dançarino, ator, ensaiador, ginasta, acrobata compositor de música e peças teatrais (Reis, 2013).


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no hospital desse município. Este texto é sobre a experiência desta formação da qual fui condutora e quais reflexões fiz acerca da dimensão artística na atuação do palhaço no hospit al e a importância do treinamento na composição dessa figura tão presente no imaginário das pessoas. Neste texto serão abordados, de forma geral, as concepções da palhaçaria, o papel da improvisação, o nariz vermelho, a origem e a formação de palhaço para, então, tecer suas relações com o palhaço de hospital e a necessidade de conhecer sua tipologia cômica e suas características transgressoras nesse tipo de local. Além disso, será discutida a importância de se criar um espaço de confiança para a exposição pessoal e composição do palhaço a partir das próprias características daqueles que se aventuram nessa formação.

Palhaços no caminho

Palhaço, para mim, era somente aquele do circo. Por vergonha, eu dizia que não gostava. Alguns palhaços que vendiam mercadoria, eu os via como uma imitação de palhaço. Os Trapalhões? Não sabia que podíamos chamá-los de palhaços! No teatro, nunca os tinha visto. No filme “I clowns”, de Federico Fellini (1970) tive consciência de quantos palhaços eu tinha encontrado no meu caminho (figuras cômicas ou grotescas do cotidiano). Mas antes desse filme de Fellini, assisti o documentário “Doutores da Alegria, o filme” de Mara Mourão (2005) e ali conheci outros tipos de palhaço e outros lugares de atuação. Fui apresentada, então, à figura subversiva que me faria mergulhar muito fundo na “humanidade” presente em mim e em todo ser humano. Em 2008, ingressei no curso do Teatro Universitário da Universidade Federal de Minas Gerais. Diferente do que eu esperava do meu desempenho nos estudos de atriz, uma inadequação começou a aparecer nas práticas ao não compreender enunciados, na forma de fazer e de equivocar-me. Diferente da vida fora do teatro, comecei a gostar que rissem de mim. Ficou prazeroso improvisar e fazer cenas cômicas. Creio que as aulas de teatro popular de rua e máscaras teatrais, ministradas respectivamente por Fernando Limoeiro e Fernando Linares, me influenciaram na arte do palhaço. Um dia, a professora Helena Mauro, me disse que eu deveria estudar palhaçaria. Na acepção de Demian Reis, a palhaçaria se refere:

[...] a experiência cênica de um atuante (palhaço) que engaja a plateia (espectador) num estado de riso, com consciência (técnica), usando principalmente o dispositivo de expor (exposição) a si mesmo como objeto do riso do outro. Qualquer atuante que faz isso está usando, manejando e se movimentando no universo da palhaçaria.


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Subentenda-se que palhaçaria e arte do palhaço são definições aqui tomadas como praticamente sinônimos (REIS, 2013, p.35)

Identifiquei-me e passei a estudar essa nova área que se abria em minha formação de atriz. Desde então, resolvi investir em minha formação de palhaça e tive, como mestres, os palhaços professores: Esio Magalhães 2, Theano Vavaztiani3, Rodrigo Robleño 4, Lila Monti5, Raquel Sokolowicz6, Gabriel Chamè7 e Ronaldo Aguiar 8. No ano de 2013, comecei a integrar o Núcleo de Palhaços do Instituto HAHAHA9 . Encontrei nesse grupo um espaço de constante experimentação para minha palhaça, Rosa, tantos nos treinamentos semanais quanto nas visitas aos hospitais que eram realizadas duas vezes por semana. Junto ao Instituto, participei de três espetáculos atuando como palhaça. Atualmente, também integro a Cia Teatrino Vagamundos10 e o coletivo Roda Saia de Palhaças11.

Escola de palhaço, palhaço na escola

O teatro é o alicerce do meu percurso artístico. Com o tempo, o estudo da palhaçaria, começou a ter prioridade em minhas escolhas de expressão artística. Contudo, as técnicas aprendidas e os processos vivenciados na minha formação de atriz, foram e ainda são fundamentais para a composição da minha palhaça e para propor experiências pedagógicas. No meu percurso escolar no curso de Licenciatura em Teatro, da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, não tive acesso a disciplinas direcionadas à palhaçaria, especificamente. No entanto, foi possível encontrar subsídios nos processos artísticos para criação da minha palhaça, por exemplo, nas disciplinas de Improvisação, Oficina 2

Ator, palhaço e pesquisador teatral, sócio fundador do Barracão Teatro. Atuou em diversos espetáculo como ator e palhaço. Dirigiu diversos espetáculos. Foi palhaço dos Doutores da Alegria. 3 Palhaça grega. Residiu em Belo Horizonte onde ministrou pela primeira vez um curso de palhaço. 4 Ator, palhaço e formador. Dirigiu diversos espetáculos e ministrou diversos cursos de palhaço. 5 Palhaça, atriz, e formadora de palhaços argentina. Possui vários números e espetáculos solo e com parceiros. 6 Atriz, diretora e formadora argentina. 7 Palhaço, diretor e formador de palhaço argentino. 8 Ator, bailarino, palhaço e professor. Atua na ONG Doutores da Alegria. 9 Organização Não Governamental, sem fins lucrativos. Leva palhaços profissionais para cinco hospitais públicos de Belo Horizonte (Santa Casa, Hospital das Clínicas-UFMG, Hospital da Baleia, Hospital João Paulo II e João XXIII. 10 Cia argentina de bonecos e palhaço, atualmente sediada em Belo Horizonte. 11 Coletivo de mulheres palhaças, fundado em 2016 por palhaças de Belo Horizonte com o objetivo de fortalecer a palhaçaria feminina local. O coletivo tem realizado desde 2016 o espetáculo Roda Saia Palhaça com apresentações em Minas Gerais, tendo apresentado no Circovolante: Encontro Internacional de Palhaços em Mariana.


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de Consciência e Domínio do Movimento, Atuação Cênica A (especialmente, em um processo de criação com ações físicas, partindo de memórias de infância). Na disciplina Análise da Prática e Estágio em Teatro II, criamos cenas que foram apresentadas às crianças hospitalizadas do Hospital das Clínicas da UFMG (Coincidentemente, eu atuava como palhaça nesse mesmo hospital). Discutimos no processo, conduzido pela professora Dra. Marina Machado, a importância de levar para estas crianças um trabalho artístico e sincero. Relatos de crianças hospitalizas, teorias sobre a brincadeira no hospital, experiências pessoais, foram materiais para nossas reflexões. Nos estágios que fiz, não encontrei professores que trabalharam com seus alunos a linguagem do palhaço, entretanto, ao observar a aula, compreendia como sendo elementos do palhaço a espontaneidade e “ingenuidade” das crianças e o inevitável medo de exposição do ridículo dos adolescentes, por exemplo. De certa forma, o percurso para me tornar docente não me levou para escola normal, e sim, para outras possibilidades de formação, como nas oficinas ministradas de maneira autônoma em projetos sociais ou em projetos de contrapartidas de Leis de Incentivo do Estado. Diante dessa realidade, observei processos de formação, ministrados por palhaços profissionais do Instituto HAHAHA, para um grupo de palhaços que atuavam em hospital de forma voluntária. Sobre os processos de formação na linguagem da palhaçaria, Matos (2009) nos mostra que, com a decadência do circo e a busca de sistematização dos legados cômicos populares, as práticas de formação do palhaço, sofreram mudanças significativas. Ela conta que os processos de criação e formação do palhaço e de outros representantes da tipologia das máscaras cômicas, tiveram na oralidade sua materialidade. Na tradição circense, o pai passava as técnicas para o filho e estas eram transformadas através das gerações. Atualmente, observa a autora, e mesmo em menor grau, ainda há a relação mestre-discípulo. Todavia, os artistas têm sua formação de maneira bem autônoma. Os recursos pedagógicos que os interessados nessa área dispõem são os estudos e as experiências pessoais, exercendo sua arte frente a uma plateia. Contribui ainda para essa formação, o convívio e a troca de informações com diversos artistas em festivais e encontros de palhaços. Ela também observa, a crescente busca por oficinas e workshops direcionados ao ensino do palhaço (MATOS, 2009). A ONG Doutores da Alegria possui uma escola, na qual os professores são os artistas e palhaços da própria ONG (salvo alguns artistas convidados). Os cursos pagos são oferecidos a diversos públicos e direcionados à palhaçaria, incluindo o palhaço de hospital, cursos de


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máscaras teatrais e cursos de teatro. Essa escola também oferece gratuitamente a Formação de Palhaço para jovens de 17 a 23 anos em situação de vulnerabilidade e risco social. 12 No Rio de Janeiro, foi fundada pelo grupo Off Sina, a ESLIPA – Escola Livre de Palhaços. Ela tem a proposta inédita no Brasil, de um curso livre, gratuito, voltado para o estudo e formação da linguagem do palhaço. 13 Atualmente, em Belo Horizonte, os cursos direcionados para o palhaço de hospital são ofertados por palhaços profissionais autônomos, por palhaços profissionais da ONG Instituto Hahaha, pelo grupo Uniclown14 (ministrado por Rodrigo Robleño e convidados) e há também, cursos ofertados por pessoas sem formação profissional na linguagem do palhaço, integrantes de grupos voluntários que atuam nos hospitais. Há uma discussão sobre a capacitação para esse tipo de palhaço, pois tem-se a preocupação de ela ser conduzida por pessoas que não possuem formação nessa linguagem. Considera-se a possibilidade de as técnicas não estarem sendo transmitidas da melhor forma. Acredito ser importante para o formador da arte do palhaço, obter conhecimentos específicos da palhaçaria para transmitir ao aprendiz seus os procedimentos no exercício desta arte, que é um grande desafio, e, assim poder atuar tecnicamente e artisticamente em qualquer espaço.

Palhaços no hospital da terra de Benjamim de Oliveira: A experiência da capacitação que se refere este trabalho aconteceu no interior de Minas Gerais, na cidade de Pará de Minas. O convite para o primeiro encontro foi feito por uma professora de teatro da cidade. Várias pessoas pediam que ela organizasse uma oficina de formação e criação na linguagem do palhaço. Então, ela se encarregou de toda a organização. Essa formação aconteceu em cinco encontros, de oito horas cada um. Conduzir um indivíduo para que ele encontre seu palhaço, parecia uma atitude muito ambiciosa para mim, devido à minha pouca experiência na palhaçaria, comparada aos professores e professoras que conduziram meus processos para criação da minha palhaça. Sempre observei neles a capacidade de conhecer cada aluno, de descobrir cada palhaço. Pareciam ter um olhar muito apurado, muito atento a cada detalhe, a cada característica, a cada traço que o palhaço apontava. Pareciam “bruxas e bruxos” com um conhecimento profundo do

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Para maiores informações, acesse: https://www.doutoresdaalegria.org.br/escola/ Acesso em 19/01/ 2017. Para maiores informações, acesse: http://offsina.blogspot.com.br/p/eslipa.html Acesso em 19/01/2017. 14 Grupo de palhaços que atuam em diversos espaços, incluindo o hospital. Tem como coordenador artístico o professor Rodrigo Robleño. 13


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que é humano e os aspectos risíveis de cada indivíduo, e, portanto, aspectos risíveis de cada palhaço. Dada a oportunidade de conduzir essa formação, por mais que eu relutasse, pelo medo da possibilidade de transformar os processos de algum aspirante a palhaço em uma experiência traumática (como se ouvem relatos por aí), aceitei. Confiando que o caminho percorrido até aqui, como um palhaço que carrega em sua mala seus objetos de sobrevivência e nas mangas suas cartas, eu estaria presente e aberta para as surpresas que pudessem surgir. Dessa forma, vivi a experiência. Nesse grupo, no princípio, havia participantes com interesse em atuar no hospital e outros que não tinham este interesse. Essa formação se iniciou com um primeiro encontro constituído por um grupo de onze pessoas. A partir do segundo encontro, após formar um grupo para atuar nos hospitais, o grupo passou a ser de seis pessoas e a pesquisa foi direcionada também para o palhaço de hospital. Segundo o relato dos participantes, alguns dos motivos da não continuidade dos outros cinco participantes foram: não ter interesse no trabalho de palhaço de hospital, já trabalhar em um grupo de palhaço de hospital, não ter disponibilidade de tempo, não se sentir preparado para fazer o trabalho no hospital, dentre outras questões pessoais. A oficina de formação tinha como participantes: pessoas que nunca haviam frequentado um curso direcionado ao trabalho com palhaço; outras que haviam feito cursos direcionados ao trabalho do palhaço, mas não atuavam no hospital e pessoas que haviam feito cursos direcionados ao trabalho do palhaço e atuavam com esta linguagem no hospital. Neste último grupo, os participantes eram integrantes de um projeto, no qual os palhaços amadores fazem intervenções no hospital da cidade de forma voluntária. Na cidade de Pará de Minas existe apenas um hospital. Ele oferece atendimento tanto pelo SUS (Sistema Único de Saúde) quanto por planos particulares de saúde. Esse grupo atua nessa instituição. Os pacientes gostam e pedem que tenham palhaços no hospital. A reciprocidade pelos funcionários é boa. Em 2016, antes de esse grupo atuar nesse hospital, houve um episódio em que foi proibido o trabalho voluntário nessa instituição por qualquer pessoa. São duas possibilidades de esclarecimento sobre essa situação de que se tem notícia: uma é uma bactéria que se espalhou e, outra, é a de que alguns voluntários estavam equivocados sobre a forma de atuação, por exemplo, muito barulhentos e invasivos. O primeiro encontro da oficina teve como objetivo possibilitar para alguns o primeiro contato com a linguagem do palhaço e para outros (os que já fizeram cursos de formação de palhaço)

revisitar

seu

palhaço

e

aprofundar

na

pesquisa

pessoal do

mesmo.


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A princípio, a possibilidade da continuidade dessa formação foi incerta, pois os objetivos, desejos e disponibilidades eram variados em se tratando de trabalho no hospital. Algumas alunas que atuavam como palhaças de hospital no projeto mencionado, queriam criar um novo grupo com o mesmo objetivo, porém, isso demandava disponibilidade dos interessados a fim de firmar um compromisso para tal. Esse encontro foi “aberto”, ou seja, quem estava participando não teria o compromisso de entrar no grupo que, posteriormente, seria constituído com objetivo de atuar forma voluntária como palhaço no hospital. Então, após esse primeiro contato, algumas pessoas se reuniram e criaram uma companhia com propósito de atuar nos hospitais da cidade e da região. Atualmente, essa companhia atende a pessoas hospitalizadas sem distinção de idade. Há um número muito pequeno de crianças nos hospitais que elas atuam. Os asilos, os espaços de reabilitação de usuários de drogas, escolas, são, dentre outros, espaços onde a companhia faz intervenções com a linguagem do palhaço Os perfis dos participantes no primeiro encontro eram: Quatro mulheres que já trabalhavam como palhaças no hospital (juntamente com um outro grupo de palhaços que exerciam essa atividade em Pará de Minas), três dessas atuavam no teatro amador da mesma cidade e uma estudava música; Uma participante era professora, diretora e atriz de teatro; Uma atuava há pouco tempo no teatro amador da cidade; Uma com formação em pedagogia e trabalhava com teatro com alunos na escola; Três mulheres e um homem não tinham experiência em teatro ou em outra área da Arte. As idades desses participantes variavam entre 27 e 75 anos e eles trabalhavam em profissões diversas. Nos outros quatro encontros, os participantes que permaneceram ao até o fim das oficinas foram: três mulheres que trabalhavam como palhaças no hospital (as duas que atuam no teatro amador da cidade e a musicista). A que era formada em pedagogia e que trabalhava com teatro com alunos na escola; e, por fim, as duas que não tinham experiência em teatro ou em outra área da Arte. Todas as participantes, que continuaram na formação, eram mulheres com idades entre 27 e 50 anos. Essa observação merece um estudo à parte, que, devido ao recorte escolhido para este TCC, não será o foco do artigo, mas aqui, cabe uma breve reflexão. O trabalho humanitário


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através da linguagem do palhaço é feito por mulheres na sua maioria? Talvez não possamos responder com precisão, mas de toda forma, constato a existência de mulheres sendo palhaças em uma cidade do interior. Elas experimentam expor seu ridículo, sua forma de ver o mundo, suas fragilidades; romper padrões do corpo e do pensamento; rir de si mesmas e das parceiras desse trabalho. Elas desejam um mundo mais amoroso para seus filhos e para humanidade. Nessa experiência de formação se via grande companheirismo de umas com as outras, nos desafios das relações humanas e em um momento de extrema dor de uma delas, quando desafiada por uma doença grave. Estas mulheres compartilharam a dor e o riso. Como já anunciei, havia participantes que tinham experiência no teatro amador e pessoas que não tinham experiência nenhuma em teatro, ou mesmo em outra área artística. Diante disto, veio-me a questão: Qual seria a diferença no aprendizado do palhaço por pessoas com experiências em procedimentos pedagógicos do teatro e das que não tiveram esta experiência? Quais são suas necessidades? Fala-se da profissionalização do palhaço que atua em hospitais. Indago, como pode se dar esta profissionalização? Quais são os requisitos necessários para essa formação? Como contribuir para a profissionalização desse público? Como apresentar a figura do palhaço diferente da figura estereotipada difundida em nosso país? A questão da profissionalização do palhaço de hospital, tem sido muito discutida, pois muitas pessoas estão utilizando a figura do palhaço neste espaço de forma equivocada, sem pesquisa, sem conhecimento de toda a trajetória histórica desta tipologia cômica, fazendo um desserviço para a comunidade hospitalar. É sobre esse tema que passo a refletir no próximo item.

Palhaço de hospital é palhaço

Em 1991, Wellington Nogueira, inspirado no trabalho que ele realizava juntamente com o Michael Christensen em Nova York, fundou a ONG Doutores da Alegria. Ela foi formada por artistas de rua e palco que atuavam como palhaços vestidos de médicos dentro dos hospitais, “atendendo” as crianças da pediatria, onde muitas crianças conheceram pela primeira vez a figura do palhaço (MASETTI, 2011). Esse trabalho, pioneiro no Brasil, inspirou muitas pessoas que também quiseram levar o palhaço para o hospital. Indaga Soares (2007), de qual parte da genealogia da figura cômica, teria saído o palhaço que escolhe atuar nos espaços onde há pessoas em sofrimento. A autora escolhe o termo humanitário para se referir a esse palhaço conforme o tipo de ação que ele realiza. Muitas vezes,


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no senso comum, as pessoas definem esse palhaço como sendo bondoso, que trabalha pelo bem da humanidade, mas estas definições se referem à “abrangência de sua atuação do que seu comportamento” (SOARES, 2007, p.52). Para a autora, O palhaço humanitário também não é um herói. Como todo palhaço, ele é antes de tudo um homem que se presta ao ridículo. O que confere certo status à sua ação é apenas o fato de ele ser o veículo de um conforto que não podemos ver nem tocar, do conforto interior, insubstituível, espiritual. Não podemos viver sem o pão, não podemos viver sem o riso (SOARES, 2007, p. 53).

O palhaço existe desde as mais antigas culturas. Segundo Castro (2005), antigamente ele estava presente somente nos rituais sagrados. O riso servia para espantar o medo, principalmente o medo da morte. O palhaço não surgiu em um momento estabelecido, sua figura ao longo dos anos foi sendo construída e modificada, mas sempre com a função de fazer rir. De acordo com Matos (2009), em diversos momentos históricos, surgiram as figuras cômicas em diversas culturas. São elas, bobos, bufões, jograis e servos da commedia dell’arte procedem da mesma linhagem do palhaço. De acordo com Castro (2005), o palhaço fez tanto sucesso que os ricos e poderosos quiseram ter seu próprio palhaço, que era chamado para apresentar nas festas para garantir aos convidados o riso e a diversão. Surge então a profissão cômico. Vemos o palhaço no cinema, na televisão, no teatro, na rua, tantos lugares, inclusive no hospital. Para Soares (2007), o palhaço que atua nos hospitais e nos campos de batalha, na presença de situações conflituosas amenizando o sofrimento, está associado: Aos palhaços primitivos das sociedades sagradas; as tradições carnavalescas, aos bobos da corte, às tradições teatrais populares inscritas na rua, nos mercados, nas praças. Encontram-se no mecanismo das suas atuações as mesmas estruturas da parodia, da sátira, do exagero que provocam desordem nas relações sociais do ambiente onde agem (Op. Cit. p.53).

Não é só pela forma que identificamos um palhaço. Ele pode estar usando suas roupas exageradas, seus sapatos desproporcionais, perucas com carecas enormes, ou pode usar e ou estar vestido com roupas sóbrias. De acordo com Castro (2005), sabemos que é um palhaço por sua capacidade de nos fazer rir. Da forma como o conhecemos no ocidente, herança do advento do circo, segundo Bolognesi (2003), o palhaço, em suas roupas exageradas, denuncia “a incompatibilidade e as desmedidas entre um corpo que cobre e, de outro, a aberração da vestimenta como indicador da


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‘imbecilidade’ de quem a usa” (Op. Cit. p.57). Os sapatos muito grandes fazem com que o palhaço tenha um andar especial. Com sua “estupidez” e ingenuidade, o palhaço apresenta ao mundo as fragilidades e as fraquezas humanas. Sua sensibilidade e humanidade faz com que as coisas o penetre e afetem sua pessoa. Os traços que lhe caracterizam, insinuam que ele não tenha nenhum compromisso com qualquer estilo de vida e isso lhe permite “zombar de tudo e todos impunimente” (BURNIER, 2003, p.208). A presença do palhaço contribui positivamente com o ambiente hospitalar. De acordo com Morgana Masetti:

A capacidade do palhaço de incorporar qualquer fato ao momento favorece a possibilidade de lidar com eventos geradores de tensão. Ele ajuda a lembrar a vulnerabilidade da condição humana em um ambiente onde se exige perfeição. Com isso favorece solução de conflitos e dificuldades. O palhaço nos leva diretamente ao sentimento, sem análises. Desse modo, aumenta nossa capacidade de nos emocionarmos, estimula que se aceitem muitas possibilidades e diferentes reações expandindo limites de comportamento. Sua ação é caracterizada pela imprevisibilidade, ensina que nada persiste e favorece nossa ligação com o presente. Ajuda a desconstruir a lei hospitalar, sem impor ideias ou gerar servidão porque ele não quer governar (MASETTI, 2011, p.41).

Importa o palhaço estar no hospital por sua flexibilidade, por nos fazer lembrar a condição humana, quando apresenta suas imperfeições e sua inadequação. A conexão do palhaço com o público se faz através de sensações e emoções e não pela racionalidade. O palhaço se relaciona com o presente e lida com o inesperado. Sua figura transgressora auxilia na desconstrução da lei hospitalar, pois o palhaço, visto como um idiota, zomba de todos, sem querer impor ideias, nem “governar”.

Clown ou Palhaço? Meu entendimento sobre a palavra clown associada à figura do palhaço veio somente mais tarde, quando comecei a estudar no Teatro Universitário. No círculo de pessoas no qual eu convivia, dizia-se somente a palavra “palhaço” para se referir ao artista cômico presente no circo, na rua, nos aniversários e, às vezes, para nominar alguém de forma pejorativa. O termo palhaço, segundo Soares (2007), foi amplamente adotado no circo brasileiro. A autora informa que no circo o verbete “clown” também é utilizado para denominar o


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Branco 15, e o verbete “palhaço” para denominar o Augusto16. Segundo a autora, o termo “clown” também é usado para designar o palhaço que está no teatro (com atuação mais intimista, interiorizada). A palavra inglesa do século XVI “clown” deriva de clod, homem rústico do campo e também homem desajeitado e grosseiro (BOLOGNESI, 2003). Palhaço vem do italiano paglia, que traduz “palha”, material utilizado para encher os colchões cobertos por um tecido listrado que fazia a roupa primitiva, afofada para proteger este cômico das quedas (RUIZ apud BURNIER, 2009). Em sua tese, Soares (2007) explica porque opta por utilizar a terminologia “palhaço” no seu programa de capacitação para palhaços de hospital. Para ela, o uso da palavra “palhaço” auxilia os estudantes de teatro, que chegam na sala de aula sem nenhuma experiência anterior a esta linguagem, a se distanciarem da ideia de personagem que contém o termo clown, facilitando o “processo de subjetivação interior para investigar sua comicidade” (Op. Cit. p.31). A autora ressalta também que o termo está mais próximo do universo da criança (op. Cit.). Escolho usar a palavra “palhaço” neste TCC (salvo quando o autor usar a palavra clown) porque: foi o termo usado pelos participantes da oficina quando me fizeram o convite para esta formação; pelas considerações de Soares em sua tese; por ouvir no hospital as crianças chamarem esses atuantes por “palhaços”; por esta palavra estar no meu entendimento desse personagem desde a minha infância e porque, pelo que percebo, esta palavra é mais usada pelo povo brasileiro.

Procedimentos de formadora aprendiz Sendo esta a minha primeira experiência como formadora e não como aluna em processos destinados ao aprendizado do palhaço, busquei munir-me de procedimentos que se aproximassem mais de minha experiência, tornando-a um processo mais concreto para mim e de acordo com a minha realidade. Pensar na proposta de uma oficina de formação para palhaços levou-me a fazer uma reflexão sobre o como se deu minha formação: como tomei consciência dos aspectos ridículos

Branco é uma das personagens da dupla cômica (branco e augusto) presente no circo. Ele “representa o poder, o conhecimento e a ordem e a inteligência” (Soares, 2007, p.48) o branco não existe sem o augusto. 16 Augusto é uma das personagens da dupla cômica (branco e augusto) presente no circo. Ele sinaliza o “caos, a fragilidade, o instinto, a estupidez, a tolice” (Op. Cit. p.48). O augusto não existe sem o branco. 15


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em mim? Quais são os aprendizados técnicos que tive e os que quero e preciso desenvolver? Quais os conhecimentos sobre esta arte que precisei e preciso saber? Observando a forma como os professores conduziram os processos no ensino da arte do palhaço em que estive presente (como aluna ou ouvinte), minha experiência pessoal nesses cursos, a consciência do meu processo de palhaça e um olhar da Licenciatura atento para o processo do aluno, fizeram-me escolher quais procedimentos utilizar na proposta de formação aqui exposta. Após refletir sobre esses processos, indaguei sobre qual formação deve ter um palhaço para atuar no espaço hospitalar. Mas, antes, pensei em refletir sobre a presença do palhaço no contexto hospitalar. Por que sua figura é necessária no hospital? Conforme Soares:

Onde ele é menos esperado, é que o palhaço é mais necessário. A presença do palhaço no hospital se justifica precisamente porque ele é um desordeiro. A sua desmedida e as suas provocações encontram eco e resposta na violência, na paixão, na urgência das lutas para sobreviver que se travam, diariamente, num hospital (SOARES, 2007, p.56).

Concordo com Soares (2007) em sua proposta metodológica para formar palhaços de hospital17. A autora propõe a especialização e o treinamento em ambiente real das práticas e conhecimentos específicos desse ambiente, mas reforça a importância da presença da figura transgressora do palhaço no hospital. Os exercícios propostos para essa formação são parte das experiências que constituíram minha formação como atriz nas aulas do Teatro Universitário, da Graduação em Licenciatura em Teatro, nos processos criativos de espetáculos com a Tirana Cia de Teatro 18, nos treinamentos de Improvisação com a Uma Cia de Teatro 19 e nas práticas em aulas de danças. Também foram conteúdo das oficinas os exercícios propostos por professores destinados à formação de palhaço que participei, bem como os conteúdos ministrados pelos palhaços formadores do Instituto HAHAHA em nossos treinamentos. Também foram experimentados exercícios da proposta de Metodologia de Formação para palhaços de Hospitais, apresentados na tese de Soares (2007). Os professores da palhaçaria que tive trabalharam nossas características pessoais na criação dos palhaços. Segundo Matos (2009), esse trabalho pessoal é algo que está sempre em

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Apresentada em sua tese (2007) um programa de capacitação para alunos de teatro da UNIRIO no projeto de extensão Enfermaria do Riso 18 Companhia de teatro, por colegas do Teatro Universitário e por mim, da qual fui integrante até 2015. Com eles tive a experiência com o teatro popular de rua. 19 Companhia de improvisação como espetáculo de Belo Horizonte.


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processo e transitoriedade, não é uma criação acabada, pelo contrário, dá liberdade para transitar em diversas possibilidades criativas. Durante toda a formação nessa oficina, observei esses princípios e foram propostos exercícios com o objetivo de que os participantes tivessem consciência dos seus aspectos risíveis. O primeiro encontro foi especialmente dedicado a essa consciência. Nos outros quatro encontros, houve exercícios para o aprendizado técnico de alguns princípios do palhaço. A formação não foi dividida em módulos previamente. O planejamento de cada aula/encontro foi criado a partir das demandas levadas a cada dia pelas participantes e por minha observação do que seria necessário naquele instante. Os desafios que emergiram na experiência no hospital se apresentavam nos encontros em forma de questões. Buscávamos trabalhar expondo estas questões em conversas e exercícios práticos. Quando foi preciso, o planejamento da aula foi alterado. O planejamento de aula, da forma que foi abordado no curso de Licenciatura em Teatro da UFMG, foi um dos maiores aprendizados. A utilização prática desse planejamento, feita a partir de uma reflexão anterior baseada em conhecimentos pedagógicos e também artísticos, políticos e filosóficos, me possibilitou traçar um caminho para o aprendizado de um aluno nos objetivos que se deseja alcançar, porém, sempre valorizando o processo de cada aluno e também do professor. No processo desta formação para palhaços de hospital, senti que minhas escolhas foram certeiras, outras vezes, senti que não foram. Cada encontro possibilitou muitos questionamentos acerca do “como” e do “quê” eu estava propondo para os processos pessoais de cada aluna e do grupo. Ao mesmo tempo, fazia reflexões do meu próprio processo pessoal como palhaça.

Uma postura de autoridade

Nas oficinas e cursos que fiz durante minha formação de palhaça, os professores geralmente tinham como procedimento pedagógico uma postura de autoridade. Em todas as experiências que tive como aluna todos os alunos entenderam essa proposta pedagógica como um jogo, até porque, fora do momento de aula, os professores eram extremamente afetuosos. Com esta postura, os professores faziam perguntas, determinavam que se executasse ações, provocavam os palhaços que agiam em improvisos e assim iam tomando consciência dos

seus

próprios

aspectos

risíveis.


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Esta atitude de autoridade está associada ao Monsieur Loyal, que seria uma espécie de dono do circo, onde os palhaços, apresentam suas habilidades ao Monsieur na esperança de serem contratados (BURNIER, 2009). De acordo com Jardim: [...] nos processos de aprendizagem, a coordenação é fundamental. No trabalho de iniciação à máscara do palhaço, torna-se imprescindível. Pois é o coordenador – seja Monsieur, Madame, Senhor ou Senhora, ou qualquer figura que assuma generosamente o jogo da autoridade – o principal responsável pelo delicado período de descoberta. Ele é o iniciador que instaura os parâmetros, condutor dos sucessos e parceiro nos fracassos, sem perder de vista o controle das situações de constrangimento e exposição nas quais os aprendizes devem ser colocados a todo instante [...] (JARDIM apud SOARES, 2007, p.113).

Um dos princípios da Proposta de capacitação de Soares (2007) é a passagem de autoridade pela Madame Loyal (que é o nome da figura de autoridade que ela assume como coordenadora do processo) para o próprio palhaço, que passa a ter autonomia dos seus atos, da sua criação, favorecendo um trabalho autoral. A minha condução, a figura de autoridade, surgia quando nos jogos eu destacava quem errava ou quem acertava, os mais inteligentes, os que não entendiam, os que sabiam dar explicação, os que eram mais rápidos ou mais lentos, etc. Também surgiu esta figura quando o palhaço estava em cena ou em destaque e eu buscava indicar à consciência do ridículo e outros procedimentos do palhaço em cada indivíduo. Na minha experiência ao conduzir esse processo, esta figura de autoridade surgiu de forma “automática”. Entendi-a como um jogo. Pareceu muito com a relação de hierarquia ao jogar com outro palhaço, quando assumo uma postura de autoridade, podendo fazer uma relação com as atitudes como a do Branco dando ordens ao Augusto. A experiência de conduzir um outro indivíduo a agir (aqui no caso os participantes) me remeteu à experiência de conduzir o meu parceiro palhaço a agir. Mas não em um jogo racional, tampouco de forma impositiva sem perceber ‘o que’ o outro me dá e me propõe. É uma descoberta através de uma percepção do outro, de uma escuta do outro, sempre atenta e aberta.

Preparando o espaço de trabalho Um dia em uma roda de conversa, disse-nos uma participante: “Quero minha identidade [...] no meu trabalho. Na vida eu brinco! Onde estou à vontade, ela (sua palhaça) sai”.


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A necessidade primeira de cada encontro era fazer com que este grupo pudesse sustentar as experiências individuais e coletivas que estavam por vir. O exercício de descoberta do palhaço implica em uma exposição em diversos níveis, como anunciei anteriormente. Cada participante trazia suas características físicas, sociais, emocionais, dentre outras e com elas as atividades eram desenvolvidas. Esse espaço de criação deveria ser um espaço para que cada uma tivesse liberdade para apresentar seu palhaço, e não uma personagem e, com espontaneidade, exercitar sua imaginação. Foram propostos exercícios de improvisação para percepção do outro e do espaço, em dupla e coletivamente. Houve exercícios de deixar o próprio corpo na confiança de outra pessoa; de caminhar com os olhos fechados ou cair no colo de outra pessoa. E, também, exercícios que expunham as preferências ou o repúdio por coisas banais ou importantes. São práticas normalmente pautadas no prazer de estar junto com o outro. A terminologia “clown pessoal” foi utilizada no trabalho pedagógico vinculado, a princípio, à escola francesa de Jaques Lecoq. Para ele, a pesquisa do próprio clown é a pesquisa do próprio ridículo. Lecoq pedia aos seus alunos que fossem “eles mesmos, o mais profundamente possível, e que observem o efeito que produzem no mundo, a saber, no público. Fazem então diante do público, a experiência da liberdade e da autenticidade” (LECOQ, 2010, p.219). Uma das propostas dessa formação era fazer o participante, por meio de experimentações, tomar consciência de seus modos de jogar, de expressar, de se expor, dos seus aspectos risíveis e, aos poucos, ir construindo repertórios para poder acioná-los diante da plateia e se relacionar com ela. De acordo com Gilberto Icle:

Trabalhar com o clown envolve a poética de tornar consciente as características ridículas para delas tomar partido, acionando diante do público um estado clownesco, mas que uma ação dessa natureza[...]. Processa-se num caminho complexo de experimentações, no qual a percepção tem papel preponderante e, auxiliada por outros mecanismos cognitivos, é capaz de construir repertórios de estados e ações ridículas, para num último momento serem acionadas na presença do público. (ICLE, 2010, p. xxii).

Acredito que todos os exercícios (individuais, em dupla, coletivos) são oportunidades para o indivíduo conhecer em si suas características. Estar atento em perceber, em si mesmo , por exemplo, como é a forma de se relacionar com o outro, com o parceiro, com a plateia, os modos de se colocar no mundo, as próprias estratégias. Do que gosta, as preferências, as maneiras de fazer as coisas, as especificidades físicas, etc. Como reage aos desafios impostos, como se sente, como resolve. Possui habilidade ou não em uma coisa ou outra, etc. Foram


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propostos também exercícios em que as participantes levassem previamente para aula uma música que gostasse, objetos, elementos para contribuir para a consciência de si. O condutor também contribui para esta autodescoberta, solicitando através de improvisações que responda perguntas sobre si, faça algumas ações, dentre outras. Há uma metáfora que chegou até mim através da oralidade e diz que o palhaço é como se o indivíduo fosse visto com uma lupa, ou seja, ele é uma exageração do ridículo, dos próprios sentimentos, das fragilidades, da forma como se relaciona com o outro e com o mundo.

A improvisação Um dos maiores desafios do trabalho no hospital, segundo as participantes, é a improvisação. Elas relatavam “não saber o que fazer” quando adentravam no quarto ou estavam diante de um paciente. Algumas se queixavam que a parceira não “tomava a iniciativa” no jogo, e a que não tomava iniciativa se queixava que a outra parceira “fazia tudo sozinha”, não se sentido parte da criação improvisada. Ao mesmo tempo, durante os jogos propostos durante a formação, se percebia uma ansiedade em “fazer algo”, sem ter atenção ao outro, a si mesmo, qualidades estas essenciais para o jogo e para o palhaço. Segundo Spolin (2005), a nossa necessidade de aprovação é tão grande que faz com que nós nos paralisemos quando estamos em processo criativo cênico. De acordo com Gontijo (2015), o erro e o fracasso são aspectos inerentes ao jogo e não devem ser temidos, pelo contrário, eles “são terrenos férteis para o jogo e para cena, muitas vezes até mais férteis que que um possível ‘acerto’” (Op. Cit. p.6) Para a autora, para improvisar é preciso abandonar as noções de certo e errado para, então, poder ter liberdade para criar (Op. Cit). Segundo Gontijo, jogar “implica relação entre si e algo que está de fora” (p. 6). De acordo com a autora, para o aluno conquistar um “estado de jogo”, o professor ou diretor deve suscitar no aluno atitudes de curiosidade, o desejo, disponibilidade e o prazer. Na prática dessa formação, a improvisação foi utilizada nos exercícios destinados à descoberta do palhaço, à escuta de si e do outro. Também foram propostos outros exercícios de improvisação que impunham nas participantes, através de jogos, qualidades como: prontidão (estado de decisão), atitude, escuta (percepção do outro e do que está em volta), disponibilidade, dentre outras. O objetivo era de que a participante praticasse também o exercício de sua espontaneidade e liberdade. A improvisação possui diversas formas de abordagem e, diferentemente de como pode se pensar, da forma usada no cotidiano, não é algo que se faz de última. Segundo Soares (2007),


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é uma prática que une todos os elementos da atuação, sendo muito utilizada nos exercícios de descoberta do palhaço e de sua criação autoral e também no jogo da máscara. A todo tempo nesta formação, se fazia o uso da improvisação, quando a participante, por exemplo, respondia às perguntas e fazia ações, solicitadas através da minha condução. Também improvisaram a partir de um roteiro combinado, inspirado em algum caso do hospital. Houve improvisação com objetos (individual, dupla, trio, coletiva), com o próprio figurino, com o espaço, dentre outros. O treinamento da improvisação é fundamental no trabalho do palhaço do hospital, quando ele joga, na interação com os pacientes, para lidar com o inesperado e na transformação do espaço hospitalar

Troca de poder

Foi proposto um exercício apresentado na tese de Soares (2007). O objetivo desse exercício, segundo a autora, é trabalhar a capacidade de se adequar ao jogo do palhaço. Dois jogadores improvisam em uma situação de hierarquia com papéis, por exemplo, de professor/aluno, patrão/empregado. Eles devem agir na qualidade de ação que cada papel carrega no senso comum, sendo que um é a autoridade e o outro é o submisso. Ao sinal, sem trocar os papéis, eles trocam a qualidade de sua ação. Este exercício foi muito importante para colocar as palhaças em uma qualidade que ainda elas não tinham exposto na prática de formação. Segundo a autora, esse exercício serve de base para as improvisações de dupla, nas quais poderão, mais tarde, exercitar o branco e o augusto. Pude perceber que ele foi muito importante nessa proposta de formação para essas participantes, porque possibilitou outras qualidades em um jogo, antes de tachar que a palhaça é somente “submissa” ou “autoritária” ou que é branca ou augusta

O corpo, a máscara e a figura do palhaço no hospital

O corpo do palhaço possui uma função muito importante na realidade hospitalar, pela sua capacidade de transportar questões relacionadas à estrutura física do corpo humano. Conforme Masseti, a atuação do palhaço:

Primeiro, permite valorizar o corpo e emoções de pacientes e as pessoas que o cercam – algo que vai muito além de um invólucro físico preenchido de órgãos. É no corpo que pulsam medos, ansiedades frente a situação vivida. Há, portanto, um resgate da


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intimidade entre mente e corpo. Segundo, oferece pistas de como esse corpo pode viver de modo integrado. Muitas vezes, nas relações estabelecidas dentro do hospital, a busca de explicações bem como a separação da vida emocional e profissional são apresentadas como caminho para viver as questões humanas. Tudo isso exige um grande gasto de energia, enquanto o palhaço nos revela o óbvio: olha só, apenas abandone-se ao que está sentindo, pare de se esforçar e as coisas começarão a acontecer! (MASETTI, 2011, p.57).

Em um momento na oficina, observei que faltava um corpo mais expressivo nas palhaças que estavam se apresentando. Seus corpos mantinham as mesmas expressões do cotidiano. Assim, achei necessário incluir nos treinamentos mais práticas de treinamento físico corporal, incluindo exercícios que havia experimentado na prática, nos treinamentos de máscaras teatrais e a máscara do palhaço. Conforme afirma Silva “o corpo é o principal material a ser instrumentalizado e este conceito é uma unanimidade entre os professores, que utilizam várias técnicas para expandir os movimentos e reflexos, para alcançarem uma nova consciência de expressividade” (2015, p.21). Para o francês Jaques Lecoq, a máscara do clown era “a menor máscara do mundo” (2010, p. 214), portanto, a que menos esconde e a que mais revela o que está escondido em cada indivíduo. Pedagogicamente, a máscara auxilia na exposição de si mesmo e também nas suas técnicas para a expressão cênica. De acordo com Silva: Não há dúvidas que a máscara é um veículo que comunica todo um universo semiótico que revela todas as características e particularidades de um personagem. Em relação a formação da personagem palhaço ou clown, vemos que a consciência dessa ferramenta fornece subsídios essenciais para estruturação corporal e de comunicação com o público (SILVA, 2015, p.31).

Concordando com Silva, a máscara é uma ferramenta que contribui na criação do palhaço. Porém, pergunto: ter consciência dessa ferramenta para auxiliar na estruturação corporal seria importante para o treinamento do palhaço do hospital? Ela poderia melhorar a comunicação com o público? A maioria das participantes não tinha experiência em treinamentos de teatro e tão pouco em máscaras teatrais. Por mais que eu tivesse um trabalho com a máscara do palhaço e a experiência de estudar um pouco de máscaras teatrais, foi nesse momento, ao observar as participantes, que pude compreender a importância de entender o nariz vermelho como uma máscara, assim como a necessidade de um treinamento especifico para ela. Além disso, é muito importante o entendimento do que representa o nariz vermelho. Existe um palhaço que foi construído no imaginário das pessoas, sem levar em consideração toda a herança genealógica dessa tipologia cômica, e de certa forma, ela foi levada para os


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hospitais. De acordo com Gontijo, “em grande medida, a figura é utilizada apenas com caráter de fantasia, sem que o indivíduo que porta a máscara tenha realizado um estudo aprofundado sobre as características, origens e funções sociais deste arquétipo, em nossa cultura e em outras” (GONTIJO, 2015, p.27). É comum ver pessoas utilizando os elementos que caracterizam a figura do palhaço como a vestimenta, os sapatos, perucas, criam vozes, e portam um nariz vermelho, porém o corpo faz apenas movimentos vazios, sem significados, nada acontece, a máscara não tem expressão, apenas um corpo que sem associação com a máscara. Segundo Lecoq (Apud ALBERTI e PIIZZI, 2013, p. 9) “Uma boa máscara é uma máscara que muda de expressão enquanto se move. Se permanece igual, mesmo quando o ator muda de atitude, então é uma máscara morta.”. Indago, se o exercício da máscara, técnico e artístico, pode ser um bom treinamento para que os palhaços dessa formação, tenham o corpo mais expressivo Nessa formação em questão, devido à carga horária curta, não foi possível aprofundar no treinamento da máscara. Além disso, seria importante o estudo aprofundado dessa técnica. Mesmo assim, nos encontros, propus alguns exercícios inspirados na experiência como aluna de Fernando Linares e Esio Magalhaes. As participantes, neste treinamento, experimentaram qualidades físicas baseadas em diferentes de matérias da natureza, de emoções, de arquétipos. Também foram utilizados exercícios para o corpo reagir em prontidão, exercícios de aquecimento para o corpo ficar mais disponível e exercícios que impulsionava o corpo a utilizar outros planos, outras velocidades, outras qualidades de ação, exercícios para triangulação, foco do olhar, ritmo, dentre outros. Pareceu haver um certo cansaço nas participantes dessa formação com alguns exercícios que exigiam certa disponibilidade física e técnica. Ao mesmo tempo que acredito que o treinamento focado nas do palhaço máscara pode ser um se os exercícios questionamento sobre a intensidade do treinamento para as pessoas que não trabalham profissionalmente como palhaços ou atores que, muitas vezes, não têm uma prática física constante. A máscara é um instrumento didático para adquirir técnicas que contribuem com a manifestação cênica do palhaço. Com ela, trabalha-se a triangulação, na qual o palhaço estabelece contato com espectador para conduzi-lo ao seu foco de interesse. A máscara possibilita a justeza dos movimentos, implica a improvisação e o jogo, ajuda a manter o estado do palhaço, dá qualidade ao olhar, estimula a liberdade e prazer de estar em cena (MATOS, 2009).


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Considerações Finais No paciente, a doença se manifesta no corpo. O objeto risível do palhaço é o próprio corpo. Corpos pulsando as emoções. Corpos de todo tipo, de características e experiências diversas, tantas singularidades! Fica-me o desafio pessoal como palhaça e como condutora dessa formação para palhaços de hospital de levar para este ambiente um corpo que condiz à máscara do palhaço. Não penso em virtuosismo, nem acrobacias, ou algo mais que possa existir em termos de habilidades, mas descobrir como pode cada palhaço se expressar com personalidade, encontrando dentro de si, seus aspectos risíveis, manifestando dessa forma, o seu próprio palhaço e não qualquer modelo para se copiar por aí. Cada palhaço é tão bonito e tão potente porque é singular. Pergunto-me se um dos motivos, pelo qual a atuação do palhaço tem sido feita de forma equivocada por algumas pessoas que não possuem formação nessa linguagem, pode ser a falta de informação do que é o palhaço, suas origens, características e função social. Acredito que um dos pontos para trabalhar nessa formação, seria inserir o estudo da origem do palhaço e suas transformações que vêm surgindo ao longo da história até os dias de hoje, utilizando a literatura existente, vídeos, imagens, de forma que seja levado para a prática. Considero também importante que mais pessoas tenham acesso ao ensino de qualidade da palhaçaria, para que ela possa estar disponível aos palhaços amadores que atuam em diversos espaços e para quem quiser. Sinto ainda, após essa experiência, que formar palhaço é uma proposta muito ambiciosa, pelo menos para mim. Há que ter muita responsabilidade ao conduzir o aprendiz de palhaço a encontrar em si aspectos tão profundamente humanos para, depois, ter coragem de expô-los. Reconheço minhas fragilidades, na condição de ser humano que sou, em não conseguir, ainda, enxergar no outro, suas fragilidades, tanto quanto sua fortaleza, para que ele possa, consciente disso, explodir em potência criativa. Mesmo assim, ao mostrar para outro que o fracasso e o erro fazem parte das tentativas de acerto, apresento a mim tantas outras possibilidades que surgem ao estar no risco de viver no presente. Quando rimos, temos a chance de perdemos o medo. Referências Bibliográficas ALBERTI, C. e PIIZZI, P. Museu Internacional da Máscara: a arte mágica de Amleto e Donato. São Paulo. Editora É Realizações, 2013.


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BOLOGNESI, M.F. Palhaços. 1.ed. São Paulo: Editora UNESP, 2003. BURNIER, L.O. A arte de ator: da técnica à representação. 2.ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2009. CASTRO, A. V. de. O Elogio da Bobagem: Palhaços no Brasil e no Mundo. Rio de Janeiro: Editora Família Bastos, 2005. GONTIJO, T.T. de A. O estado de jogo e a curiosidade ou caminhos possíveis de pedagogia para o Palhaço ou A descoberta pessoal de um caminho pedagógico para o palhaço e os desdobramentos e contribuições dessa linguagem na escola, como possibilidade de um novo horizonte. 40 f. Trabalho de Graduação (Licenciatura em Artes - Teatro) – Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, 2015. ICLE, G. O ator como Xamã: configurações da consciência no ator extracotidiano. 1.ed. São Paulo: Perspectiva, 2010. LECOQ, J. O corpo poético: uma pedagogia da criação teatral: Tradução de Marcelo Gomes – São Paulo: Editora Senac São Paulo: Edições SESC SP, 2010. MASETTI, M. Ética da alegria no contexto hospitalar. 1.ed. Rio de Janeiro: MMD, 2011. MATOS, D. A formação do palhaço: técnica e pedagogia no trabalho de Ângela de Castro, Esio Magalhães e Fernando Cavarozzi. 182 f. Dissertação (Mestrado em Teatro) – Centro de Artes, Universidade de Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2009. REIS, D. M. Caçadores de risos: o maravilhoso mundo da palhaçaria. 1. re. Salvador, EDUFBA, 2013. SILVA, P.E. da A formação do palhaço circense. f. Dissertação (Mestrado em Artes – Teatro) Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, 2015. SOARES, A.L.M. Palhaço de Hospital: proposta metodológica de formação. 228 f. Tese (Doutorado em Teatro) – Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. SPOLIN, V. Improvisação para Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2005. Filmes DOUTORES da alegria, o filme. Direção: Mara Mourão, Produção: Fernando Dias. São Paulo. Mamo Filmes e Grifa Cinematográfica, 2005, 1 DVD. I CLOWNS. Direção: Federico Fellini, Itália, 1970, 1 DVD. Sites consultados https://www.doutoresdaalegria.org.br/escola/ Acesso em 19/01/ 2017. http://offsina.blogspot.com.br/p/eslipa.html Acesso em 19/01/2017)


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