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desenho palavra e linha e invento um livro de narrativas compostas
Alice Maria dos Santos Gonçalves
DESENHO PALAVRA E LINHA e invento um livro de narrativas compostas
Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Colegiado de Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais,como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Artes Visuais
Habilitação: Artes Gráficas Orientadora: Prof. Fernanda Goulart
Belo Horizonte Escola de Belas Artes da UFMG 2018
Não tenho certeza de nada, exceto da santidade dos afetos do coração e da verdade da imaginação. John Keats
AGRADECIMENTOS
À Fernanda, pela dedicação, inspiração e pela orientação generosa de todos esses anos - tanto na arte quanto na vida. Nesses quatro anos, ganhei uma professora, uma amiga, e uma segunda mãe. À Elisa, pelo carinho, atenção, e torcida. Por me atentar o olhar para a espacialidade, para a casa, para a cidade e para o corpo. Para os lugares de afeto que habito e que me habitam. À Tânia, pelos ensinamentos em serigrafia, por passar horas a fio me auxiliando até que eu terminasse todas as impressões, por me ensinar sobre o valor da paciência e persistência. Como ela mesma diz: “Quem faz 99 faz 100”. À Nathaly, Heloísa, Karina, Fernando, Maria, Bilda e aos demais amigos, pela troca de experiências, pela presença, pelo apoio sem fim. Pelos rabiscos, riscos, traçados e fotografias, pela nossa arte. Essa estrada se tornou ainda mais bonita com vocês caminhando comigo. À minha família, mina funda de matéria poética, que me instiga, incentiva, ampara e dá forças. Por sempre acreditarem em mim e no meu trabalho, e por alimentarem meus sonhos. À Manoel de Barros e Mário Quintana, pois enquanto eu lia suas poesias pensava que um dia poderia me tornar uma contadora de histórias também. Vejam só, aqui estou eu.
´ SUMARIO
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~ ................................................. Apresentacao 12
Primeiras linhas ............................................ 15 ~
~ .................. 18 ~ Desenho com divisao e multiplicacao ~
~ ................................................. 26 Ambientacoes
A ternura pelo avesso ..................................... 34 ´ Dialogos com outras linguagens ....................... 38
Palavras compostas ........................................ 44 ´ Inventario de narrativas ................................. 48 ´ .............................................. 56 Ponto e virgula ^ ................................................... 58 Referencias
~ APRESENTAÇÃO
~ Conto ao senhor e´ o que sei que sei e o senhor nao ~ sei sabe; mas principal quero contar e´ o que eu nao se sei, e que pode ser que o senhor saiba. ~ Rosa Guimaraes
Eu descobri que não conhecia o meu próprio desenho até me pegar tentando escrever sobre ele. O desenho que nasce quase nunca sabe o que vai ser quando crescer. Eles nascem quando querem, e também já sofri vários abortos espontâneos. Assim que os vejo escolho um nome, já foram tantos que até perdi as contas. Meu avô por muito tempo guardou a folhinha com nomes de santos atrás da porta, ao lado do violão. Folhinha era um calendário impresso em folhas únicas, geralmente com as fases da lua, os nomes dos santos e as datas notáveis. Hoje os calendários perderam a paciência de ficarem explicando tudo. Eu procurava pela santa do meu nome, sempre me procurei em todos os lugares. Talvez ela fosse alta e tivesse um sorriso largo, mas meu avô não sabia dizer. Ele quase não consultava a folhinha, só a colocava ali para fazer companhia para o violão. Mas eu guardei alguns dos nomes para mais tarde. Com nome ou sem nome os personagens não tem hora para servir, de manhã cedinho, no fim da tarde, ou à 1h da manhã. Sem data e hora marcada vão se acomodando, em fila indiana, fazendo história. Tudo começa com uma linha, e a história vem depois da curva, do contorno - que é nome de Avenida de Belo Horizonte - que é nome do traço que faz Maria. Na hora do registro, que é nome de marcação do papel para imprimir e cortar, que é nome que se dá quando se dá nome às coisas, o nome foge da cabeça. Daí desenho um personagem e o chamo de Maria. Maria é nome de avó, de mãe, de tia, de amiga. Maria é meu segundo nome. Tem horas que eu falo mais de Maria do que gostaria, acho que ela nem sabe. Acho que nem eu sei tanto
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assim de Maria. A Maria desenhada em abril mal conhece a Maria desenhada em dezembro, os personagens não conhecem nada a não ser a cena em que nela estão. Talvez desconfiem que more alguém ao lado. De vez em quando alguma coisa do lado de lá lhes atravessa as páginas, como a bola do vizinho que às vezes cai no nosso quintal. O traço se faz contínuo de linha que não termina, e dos laços que se criam à medida que ela se estende. A solidão de cada personagem se emenda na solidez de cada traço, a linha se descobre soberana e se faz solta. É mais ou menos assim com as linhas de trem. A vida é narrada a qualquer hora do dia, em terceira pessoa, pelo próprio sujeito. Durante as semanas dá para guardar algum acontecimento e no domingo desenhar com calma, escrever um texto e falar da chuva da noite anterior. A linha é fluida, os corpos dos personagens são lânguidos, suas costas são curvas, seus braços compridos e os olhos incertos. Os corpos se permitem ser o que quiserem. Em alguma parte da infância há de se questionar de onde vêm as coisas do mundo, e em alguma parte da vida isso servirá para alguma coisa. Todos esses personagens surgem para uma conversa, e nem sempre tenho todas as respostas para suas perguntas. Mas se bem elaborada, até uma pergunta solta no ar se sustenta sozinha, assim como os balões, e as bolhas de sabão. Empresto-lhes uma folha de papel para habitarem, e o tamanho da folha abarca a imensidão de cada um. São seres simples de expressão sempre indiferente, curiosa e preguiçosa. Cada pescoço, com sua languidez e envergadura, denota uma vontade de escorar em um ombro. Os braços tentam a todo o momento abraçar o mundo e cutucar uma estrela. Seria assim comprida a alma de todos os sonhadores? Tem dias que o cabelo de um personagem está maior, e algum deles usa um chapéu azul. Nos fins de semana andam todos descalços e descabelados, compram uma bacia, arrumam um gato, trocam a mobília, consertam o abajur, reformam a casa, alugam uma loja, atravessam a rua, escrevem uma história. Eles parecem viver sempre a espera de algum acontecimento. As famílias raramente são completas, quase sempre há alguém ocupado demais para ser desenhado. As linhas de cada desenho, assim como as linhas das nossas mãos, também servem para serem lidas, e todas elas conduzem a história até um destino. Não é muito difícil encontrar a linha do coração, ou as linhas da personalidade. Na curiosidade da vida descubro que todos nós não passamos de personagens desenhados em épocas diferentes. Cada traço é único, e nem se passar por cima, usar um carbono, tirar um xerox, a linha de Maria será igual à de João. Porque cada linha tem sua história. Umas são mais finas, outras mais grossas, umas mais firmes, outras mais apagadas.
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que mais tarde viria a ser nomeado de A ternura pelo Avesso. Certa de que acabara de descobrir algo inédito, que, de modo surpreendente, me completava, ainda me sentia, no entanto, insegura de lidar com a escrita em um curso de Artes Visuais. O que me preocupava era como saber conduzir o desenho e a escrita para que um não se sobrepusesse a presença do outro. Assim, comecei a articular narrativas para que o meu desenho não precisasse de dizer tudo sozinho, para que permitisse uma abertura em que o texto pudesse acompanhá-lo, para que eu pudesse me expressar também por essa outra forma de arte que é a literatura. Ambos conversariam em pé de igualdade, e nessa cumplicidade estabelecida, eu acabaria encontrando a principal motivação do meu trabalho e, por que não dizer, minha essência como artista. Afinal, foi esse diálogo que me possibilitou inserir-me no campo editorial. Sou artista gráfica, desenhista e escritora. Mesmo sendo artista, acredito que meus livros não podem ser categorizados como livros de artista ou, de todo modo, não me interessa inseri-los nessa categoria. Muitos livros de artista possuem forte vínculo com a palavra, outros tantos livros ilustrados são considerados livros de artista,
primeiras linhas ~
Deixa-te levar pela crianca que foste.
o livro de artista não é de nha literatura. O tempo po da percepção e do contato houver intenção, até mesm fazer que um livro comum Para Ulisses Carrion “a fim velha arte é necessário lê-l quentemente não precisa exato momento que você Silveira afirma que o livro d cia de elementos visuais e f fotonovelas, etc. - e “finge livro de artista como catego quistada é intencional, con Concordo com Neide Dias Interessa-me a relação entr envolve a feitura dos livros balho, mas tampouco sou assim, nem mesmo quand
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Jose´ Saramago
Eu descobri o desenho muito antes da poesia e, para ambos, precisei aprender a observar. Sinto que a poesia me exigiu ainda mais compreensão, de mim mesma. Acabou por vir mais tarde. O desenho me exigia sentir, sentar e reproduzir, mas também aprimorar o traço, conquistar o papel, o lápis, a mão e, mais tarde, o mouse. Me exigia desenhar todos os dias, por anos e anos. Eu comecei a compreender o meu estilo e as técnicas possíveis, mesmo não as utilizando. Comecei a compreender que para desenhar é preciso ter paciência e respeito com aquilo que se observa, com aquilo que se sente e que se quer retratar. Não me lembro quando foi que eu comecei a desenhar só me lembro de sempre estar na companhia do meu bloco de desenho (que geralmente acabava em duas semanas), algumas canetinhas, lápis e giz de cera. Lembro-me de observar minha mãe pintar: “as cores mais claras devem vir primeiro”, ela me dizia. Mas o traçado, o contorno e a linha pura acabaram me interessando mais do que a pintura. Gostava de observá-la, porém, mais do que isso, gostava das cores chapadas. De vez em quando treinávamos juntas alguns desenhos circulares à caneta, para melhorar a coordenação motora. Mas depois eu desenhava do meu jeito, como bem entendia. O primeiro desenho que fiz quando criança foi um círculo, exercício que realizei por uns bons anos. De início a única concepção que temos do mundo é de que ele é redondo. E com o tempo, a partir do que vamos conhecendo e desconhecendo, transformam-se os contornos. Já faz muito tempo que não desenho círculos. Com minha avó aprendi a desenhar galinhas, que mais pareciam patinhos. Com meu avô devo ter aprendido a fazer casinhas e igrejas, de tanto observá-lo desenhando. No tempo livre ele me permitia folhear seu caderno, que era guardado no maleiro do guarda-roupa. Suas casas e igrejas de cores vivas eram riscadas e medidas meticulosamente
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com a régua, para não sair nada do lugar. Do meu avô, no entanto, mais que o desenho, herdei seu perfeccionismo. Minha mãe me introduziu a escrita, me ensinou a ler, a escrever e, o mais importante, a gostar dessas duas coisas. Enquanto eu não completava idade para entrar na escola, escrevíamos nos blocos de caligrafia para arredondar a letra. Aos poucos ela ia me ensinando sobre a beleza e o mistério que se escondiam por trás das palavras. Por já ter sido alfabetizada em casa aos dois anos de idade, acabei não frequentando o jardim de infância. Dos dois aos seis anos de idade eu estudei em casa, minha mãe escrevia as palavras e eu as contornava. Por um bom tempo foi assim, até eu construir minha própria caligrafia. Para mim tudo era desenho, e o que mais me satisfazia era a sensação de transcrever um texto para o papel e perceber a vivacidade da linha. Eu fui para a escola pela primeira vez aos sete anos de idade, e minha primeira professora também se chamava Alice. Ela era brava e exigente, e não gostava quando eu escrevia os textos no caderno com o lápis de ponta grossa. Enraivecida, ela gritava o meu nome, e eu não sabia se ela gritava comigo ou com ela mesma. Levei um tempo para me acostumar com isso. Ela passou a utilizá-lo no diminutivo, Alicinha, que poderia ser um apelido carinhoso ou um método para nos diferenciarmos. Em um dia de chuva voltando para casa, além de dividirmos o mesmo nome e o mesmo caminho, dividimos o guarda-chuva. Lembro-me de segurar em seu braço, torcendo para que a chuva não durasse muito tempo, evitando que por impulso ela voltasse a gritar novamente. Por muito tempo eu analisei o meu nome, e o repetia na frente do espelho até que ele me soasse muito estranho. Talvez eu tivesse mais cara de Maria e, se assim fosse, não precisaria mais dividir um nome com a minha professora. Depois de alguns anos deixei de ter contato com ela, e descobri outra Alice, na novela das 18h. Descobriria muitas outras em muitos outros lugares. Descobriria muitos outros nomes. Ao me deparar com tantos nomes no mundo, percebia que além de muitas pessoas dividirem um mesmo nome – um mesmo nome dividia muitas pessoas. Eu tive mais contato com a literatura e com alguns escritores importantes a partir dessa época. Da primeira à quarta série, eu tinha uma disciplina na escola que se chamava Biblioteca. Um horário só para nos dedicarmos à leitura, e eu gostava muito das poesias e dos textos curtos que a bibliotecária lia. Minha bibliotecária se chamava Marilene. Ela era muito magra e tinha os dedos muito compridos, e eu me lembro de ficar observando-os por muito tempo. Quando ela batia palmas, um som estridente ecoava por toda a biblioteca. Dez anos depois, os dedos que faziam música de Marilene me serviriam de inspiração para que eu desenhasse as mãos de meus personagens.
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Naquele momento eu me concentrava na leitura, e no que ela me oferecia. Líamos muito Cecília Meireles e Vinícius de Moraes e, no meio do caminho, eu encontrei Mário Quintana. Ele me falou sobre o tempo, sobre a infância, sobre a memória, sobre a ciranda das palavras – e um dia me convidaria a entrar na roda. Eu ainda não sabia que me tornaria escritora. Tinha em mim a convicção de que seria uma grande bailarina. Com onze anos de idade me matriculei nas aulas de balé do colégio, freqüentei por alguns meses, mas descobri que não era o que eu queria. Eu só gostava da palavra balé. Gostava de sua sonoridade, assim como a de Jaborandí, tango, Eulália e abajur. Eu sempre escolhi as palavras pela sonoridade e pelo afeto, talvez mais do que pela experiência. Embora muito apaixonada pelas palavras, eu ainda não conseguia perceber o que isso significava. Nessa época eu começava a pensar somente em me tornar uma desenhista, embora já desenhasse há muito mais tempo. Decidi que essa seria a resposta que eu daria quando alguém me perguntasse: “O que você vai ser quando crescer?”
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DESENHO COM DIVISÃO E MULTIPLICAÇao Desanuviou em mim a ideia de que as coisas existiam alheias ao meu desejo. Viver exigia legendar o mundo. ´ Bartolomeu Campos de Queiros
À medida que eu desenhava, obsessivamente, presenciava o amadurecimento do traço, das formas e, por fim, das histórias que os desenhos começavam a contar. Após terminar o colégio, eu decidi cursar a originou outras palavras, como: linear, linotipo na e linhagem. Artes Visuais universidade. Passado alguns semestres, chegou um AMBIENTAÇÕES ltima palavra tem relação commomento a genealogiaem de uma quefamília, o meu desenho me mostrou estar pronto pra dividir endência de uma pessoa, e porque não, de um personagem. o espaço com mais alguém, outra língua, outra linguagem. A poesia que todos os meus personagens se compreendem em uma e de linhagem. Por serem fruto trabalho de uma mesma medo pegou desprevenida aos dezenove anos de idade, quando co-para dentro. As viagens se fazem a, e nesse sentido, se compreenderem de um mesmo mecei dentro a escrever durante os exercícios da disciplina Artes Gráficas B, de desenho. Henry viria Miller a ser voltada ao editorial. Nela concebi o livrinho que mais tarde meira coisa que faço ao começar um desenho é o rosto do nomeado A ternura nagem, que me ajuda a compreender todode o resto. É mais pelo avesso. Certa de que acabara de desconos assim quando vejo uma pessoa pela primeira vez.que, Quan-de modo surpreendente, me completava, ainda brir algo inédito, Quando eu comecei a criar personagens, só desenhava os bustos revo para um desenho, todos os sentimentos expostos pelos me sentia, no entanto, insegura de lidar com a escritaeem um cursode interação na página. Depois de um tempo, algum elemento nagens são meus. Todos os rostos desenhados é o meu própassei a me interessar Visuais. O que me preocupava era como saber conduzir o por enquadramentos maiores, que gosto de osto e, por esse motivo, parecede queArtes todos esses personagens pensar como cenas ou cenários. Desenhar um ambiente doméstico gum momento são a mesma pessoa. Mas ao tempo, desenho e amesmo escrita para que um não se sobrepusesse aé como presença planejardo a decoração de uma casa de verdade. Cada coisa situação que me motiva a desenhá-los, faz com que sejam outro. Assim, comecei a articular narrativas para que o vai meu desenho encontrando o seu lugar e é onde um objeto da cena costuma etamente diferentes. Cada um tem seu estado de espírito, chamar por outros precisasse de dizer uma aber-com que possui familiaridade. stá estritamente ligado ao quenão acontece na cena em que es- tudo sozinho, para que permitisse Embora eu não faça referência ao cenário ao narrar as histórias, ele seridos. Sempre tem um personagem maisque engenhoso que opudesse acompanhá-lo, para que tura em o texto eu pudesse é ponto chave para o corpo das narrativas. Costumo retratar muito que consegue se sair melhor em determinada situação, ou metem expressar a literatura. íntimos em meus desenhos, minha ligação com minha rsonagem mais desajeitado que dificuldade também em realizar por essa outra forma de arte queoséespaços própria casa meesfaz concentrar as histórias que se passam no amAmbos conversariam a tarefa. Uns eu desenhei com mais paciência e outros comem pé de igualdade, e nessa cumplicidade biente familiar. Em casa eu absorvo a variedade das conversas da s. As narrativas surgem em horários alternadoseu a cada dia, e tabelecida, acabaria encontrando a principal motivação do meu semana, os acontecimentos recorrentes e corriqueiros, o peso da l lembrar o que eu pensava no momento de cada desenho. trabalho e, por que não dizer, minha essência como artista. foi vezes ela influencia no meu trabalho. Tento rotina Afinal, e como muitas as coisas que se repetem com freqüência durante a semana, esse diálogo que me possibilitou inserir-me no campo analisar editorial. e o que fica e o que muda dentro dessas repetições. Quase sempre Sou artista gráfica, desenhista e escritora. Mesmo sendo acre- em algum lugar, e é onde eu busco retratar o háartista, um gato dormindo meu gato, manso e preguiçoso que sempre cabe em qualquer lugar dito que meus livros não podem ser categorizados como livros de para descansar. Em algum momento um personagem se encontrará artista ou, de todo modo, não me interessa inseri-los nessa categoria. sozinho, buscando solucionar algum problema ou envolvido com as Muitos livros de artista possuem forte vínculo com a palavra, outros coisas ao seu redor, que pode ser a descoberta das pétalas de uma flor,mas a inquietação tantos livros ilustrados são considerados livros de artista, muitoscom as goteiras no telhado, ou a reflexão sobre algum acontecimento,no divã de um analista. não. Não parece haver um consenso no que tange à definição dessa que à medida que desenho, a relação que crio entre percategoria artística. Em alguns casos, os chamamos dePercebo ”livro-obra”, sonagens, coisas e bichos tende a ser cada vez mais forte do que a quando quebram com os paradigmas de um livro comum, desafiando própria relação entre personagem e personagem. O modo como eles lidam com a casa, os objetos, os móveis, a cidade e os animais, ilustra o meu próprio comportamento em relação a todas essas coisas. É como se todos esses personagens direcionassem a atenção para as coisas, preocupados demais por não estarem conseguindo resolver algum problema, ou na tentativa de fugirem de alguma socialização, em um dado momento.
as características que geralmente encontramos em um livro. Trata-se de objetos experimentais, que podem apresentar os mais diversos discursos dentro das mais variadas poéticas. Os livros de artista se individualizam, são livros marginais e cada vez mais sua definição se expande. Wlademir Dias Pino, em depoimento à Paulo Silveira, diferencia os livros de arte dos livros artísticos: os primeiros trazem reproduções de obras de arte, e os outros, por sua vez, não buscam a reprodução, mas a ornamentação. O livro de artista muitas vezes evita a reprodução, tornando-se independente e adotando uma “expressão física”. (SILVEIRA, 2016, p. 268) Para Clive Phillpot, o livro de artista pode ser apenas um livro tradicional, mas também pode ser um livro-objeto ou um livro-obra, “pertencendo tanto à arte como à bibliofilia. Podendo ser “únicos ou múltiplos”. (idem, p. 47) Para Paulo Silveira, um livro tradicional comporta “a percepção, a fisicalidade, o ritmo de leitura e seu conteúdo de memória”. Mas o que mais importa em um livro de artista é o seu objetivo, que vai além do modo de leitura ao qual estamos acostumados. Para ele o livro de artista não é de todo modo literário, mesmo que contenha literatura. O tempo pode estar além das palavras, no momento da percepção e do contato com o objeto. Mas acreditando, que se houver intenção, até mesmo uma “leitura tradicional sozinha” pode fazer que um livro comum seja considerado um livro de artista. (Idem, p. 43) Para Ulisses Carrión, “a fim de compreender e apreciar um livro da velha arte é necessário lê-lo completamente. Na nova arte, você frequentemente não precisa ler todo o livro. A leitura pode parar no exato momento que você entendeu a estrutura total do livro”. (idem, p.75) Silveira afirma que o livro de artista se apropria com muita frequência de elementos visuais e formas gráficas - quadrinhos, almanaques, fotonovelas, etc. - e “finge ser o que não é”. Para ele “a origem do livro de artista como categoria não é orgânica ou espontânea. É conquistada é intencional, construída. Ele é o que é porque quer ser.” (idem, p. 94) Concordo com Neide Dias Sá, “o livro de artista tem muitos nomes”. (idem, p. 265)
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artistas interessantes que me alimentaram, em maior medida, ilustradores e quadrinistas. Gosto muito do trabalho de Juanjo Saéz, um artista-escritor espanhol, autor de um livro intitulado A arte: conversas imaginárias com a minha mãe. Juanjo consegue retratar com muita originalidade e sinceridade o que ele entende por arte e para opta por todo um desenho com ummantém traçado muito simples, um esboço quê ela serve.Ele Durante o livro ele diálogos com a mãe, quase infantil, sem nenhum rigor estético, e empresta sua caligrafia para repletos de questionamentos e espécies de éinstruções. Como contar as histórias. Sua letra - que para mim quase um desenho - traz em uniformidade para as páginas ilustradas. Sempre emprega as mesmas um manual, ele vai direcionando o leitor para cada tema importante cores nos desenhos: verde, rosa, magenta e um contorno preto. As rasobre asda palavras em um textoàouvida. outro, como nos diárelacionado àsuras história arte,aparecem mas também As instruções rios e nos blocos de anotações. Assim como Pepo Perez introduz o livro que ele se prontifica dar muito quedesenhista”. existem nos de Juanjo,aele nãopassam se considera artista,longe “mas umdas simples livros de arte.Seu Juanjo cita suaspor obras favoritas de Calder, Duchamp, desenho me atraiu ser estranhamente engraçado. O mais curioso é que durante toda a história, seus personagens são representados Dali, Beuys, Picasso, abordando-as livremente, a partir do que comsem rosto, o que Juanjo justifica a partir de sua insatisfação pessoal os resultados. Há muita sinceridade em seu traço e em sua fala, preende. No com decorrer das páginas, os desenhos se misturam a etexo desenho torna-se misterioso e ainda mais atrativo. tos narrados e balões de fala, que vão se alternando à medida que a história é contada.
Interessa-me a relação entre palavra e imagem, e o pensamento que envolve a feitura dos livros ilustrados. Eles falam do meu próprio trabalho, mas tampouco sou uma ilustradora. Não gosto de me definir assim, nem mesmo quando desenho para os meus textos. Sou uma desenhista que também escreve e, ademais, não costumo ilustrar para outros escritores. Eu desenvolvi um estilo de desenho muito cedo, depois descobri a escrita e reuni as duas coisas, mas não me sinto ilustrando quando crio. Tenho como resultado um livro ilustrado, mas a intenção é outra. Meu pensamento quando desenho e escrevo é o mesmo, as formas de materialização é que são diferentes. Eu divido as responsabilidades dentro de um mesmo pensamento, e cada linguagem se responsabiliza por transmitir uma parte. Ao ilustrar o texto de outro escritor, sinto que o meu desenho mudará de figura e talvez seja importante que ele mude. Ao longo da minha trajetória, tive contato com o trabalho de muitos artistas interessantes que me alimentaram, em maior medida, ilustradores e quadrinistas. Gosto muito do trabalho de Juanjo Saéz, um artista-escritor espanhol, autor de um livro intitulado A arte: conversas imaginárias com a minha mãe. Juanjo consegue retratar com muita originalidade e sinceridade o que ele entende por arte e para quê ela serve. Durante todo o livro ele mantém diálogos com a mãe, repletos de questionamentos e espéciesEle de instruções. Como em um com manual, opta por um desenho um traçado muito simples, um esele vai direcionando o leitor paraboço cadaquase tema importante relacionado infantil, sem nenhum àrigor estético, e empresta sua cahistória da arte, mas também à vida. As para instruções que se prontifiligrafia contar asele histórias. Sua letra - que para mim é quase ca a dar passam muito longe das que existem nos livros de arte. Juanum desenho - traz uniformidade para as páginas ilustradas. Sempre jo cita suas obras favoritas de Calder, Duchamp, Dali, Beuys, Picasso, emprega mesmas cores desenhos: verde, rosa, magenta e um abordando-as livremente, a partir do queas compreende. No nos decorrer contorno preto.narrados As rasuras sobrede as palavras aparecem em um texto das páginas, os desenhos se misturam a textos e balões ou outro, como nos diários e nos blocos de anotações. Assim como fala, que vão se alternando à medida que a história é contada.
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Pepo Perez introduz o livro de Juanjo, ele não se considera artista, mas um simples desenhista.
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Seu desenho me atraiu por ser estranhamente engraçado. O mais curioso é que durante toda a história, seus personagens são representados sem rosto, o que Juanjo justifica a partir de sua insatisfação
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Essa liberdade que a arte nos concede ao trabalhar, permite que possamos definir o nosso estilo, dentro do que consideramos ser mais confortável. Cada artista descobre quais são as suas particularidades, seja pelo traçado, pela paleta de cor, pela composição, pelos excessos e pelas ausências. Gosto de quando o pescoço dos meus personagens cresce sem limites, e os braços perdem a noção do tamanho normal, prolongando-se pelas páginas. Gosto dos olhos serem somente pequenas bolinhas pretas, e dos dedos se formarem numa multiplicação de linhas, como tentáculos. Quase não desenho bocas, que poderia ser uma referência à minha timidez. Mas também sinto que os personagens funcionam bem sem ela, ficam mais serenos, mais sérios. O que sei é que a linha sempre me permitiu que eu fizesse dela o que quisesse, assim como Juanjo faz. Quanto à escrita, eu comecei a escrever por gosto, mas também por influência dos livros que lia, pelos meus questionamentos incessantes, e pela necessidade de falar. Essa coleta freqüente que faço dos acontecimentos e percepções me leva a emendar sentimentos de modo contínuo. À medida que as coisas vão acontecendo surge um desenho e uma narrativa à espera do acontecimento seguinte. Eu desenho à medida que as coisas acontecem - e, quando não desenho, escrevo um lembrete, e guardo para desenhar depois. Meus cadernos de anotações nunca seguem uma linearidade, frases e palavras de assuntos diversos flutuam pelas páginas.
Assim é o meu desenho, que através das linhas atravessam as páginas, e se comportam de maneiras diferentes dependendo da posição que assumem na composição. De início as desenhava pela necessidade de atribuir mais movimento à composição, mas cada uma tem seu propósito original. Junto aos personagens, elas começam a assumir características próprias. Surgem as mangueiras, as ramas que saem dos vasos de plantas e multiplicam-se, os varais que cruzam o quintal das casas, os fios dos postes de iluminação e as cordas. Essas linhas costumam vazar pelas bordas das páginas, evidenciando uma sensação de incompletude, mas também de seguimento - que faz sentido tanto para desenhar e escrever - como para viver. Lembro-me de uma vez ter escutado alguém dizer que “o corte também faz fluir”, e a sangria no meu trabalho fala um pouco dessa fluidez das linhas. Sangrar é palavra dura, mas também é palavra gráfica. Na arte, sangrar significa quando os elementos ultrapassam as bordas da página. As linhas que permito atravessar as páginas surgem também na possibilidade e desejo de fazermos parte de outros lugares, e ali passarmos a pertencer. Elas se partem e se repartem, criam raízes e se multiplicam, são linhas repletas de significados como as linhas de Deleuze. Em Diálogos (1998), o autor traça esquematicamente o perfil de três tipos de linhas. A linha flexível, a linha dura e a linha de fuga. A primeira é caracterizada como uma linha mais autônoma que provoca quedas, desvios, que se precipita e causa modificações. Ela está relacionada com os nossos anseios, ações e percepções. Já a linha dura é responsável pelas divisões, trata-se de uma linha de segmento, que separa a vida, e define o lugar de cada coisa e de cada indivíduo em uma sociedade. A linha de fuga, por sua vez, é uma linha nômade, variável e retorcida. Ela fala das abstrações, do singular, e das adequações pelos lugares que passa. As coisas, as pessoas, são compostas de linhas bastante diversas, e que elas não sabem, necessariamente, sobre qual linha delas mesmas elas estão, nem onde fazer passar a linha que estão traçando: em suma, há toda uma geografia nas pessoas, com linhas duras, linhas flexíveis, linhas de fuga etc. (DELEUZE, 1998, p. 9)
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Além dessas linhas de Deleuze, ao analisar a etimologia da palavra linha descobri que ela vem do Latim línea, e do Grego linon, que significa fio de linho, corda. Mas também descobri que essa palavra originou outras palavras, como: linear, linotipo e linhagem. Essa última palavra tem relação com a genealogia de uma família, a descendência de uma pessoa, e porque não, de um personagem. Penso que todos os meus personagens se compreendem em uma espécie de linhagem. Por serem fruto do trabalho de uma mesma pessoa, e nesse sentido, se compreenderem dentro de um mesmo estilo de desenho. A primeira coisa que faço ao começar um desenho é o rosto do personagem, que me ajuda a compreender todo o resto. É mais ou menos assim quando vejo uma pessoa pela primeira vez. Quando escrevo para um desenho, todos os sentimentos expostos pelos personagens são meus. Todos os rostos desenhados é o meu próprio rosto e, por esse motivo, parece que todos esses personagens em algum momento são a mesma pessoa. Mas ao mesmo tempo, cada situação que me motiva a desenhá-los, faz com que sejam completamente diferentes. Cada um tem seu estado de espírito, que está estritamente ligado ao que acontece na cena em que estão inseridos. Sempre tem um personagem mais engenhoso que o outro, que consegue se sair melhor em determinada situação, ou um personagem mais desajeitado que tem dificuldade em realizar alguma tarefa. Uns eu desenhei com mais paciência e outros com menos. As narrativas surgem em horários alternados a cada dia, e é difícil lembrar o que eu pensava no momento de cada desenho.
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AMBIENTAÇÕES As viagens se fazem para dentro. Henry Miller
Quando eu comecei a criar personagens, só desenhava os bustos e algum elemento de interação na página. Depois de um tempo, passei a me interessar por enquadramentos maiores, que gosto de pensar como cenas ou cenários. Desenhar um ambiente doméstico é como planejar a decoração de uma casa de verdade. Cada coisa vai encontrando o seu lugar e é onde um objeto da cena costuma chamar por outros com que possui familiaridade. Embora eu não faça referência ao cenário ao narrar as histórias, ele é ponto chave para o corpo das narrativas. Costumo retratar muito os espaços íntimos em meus desenhos, minha ligação com minha própria casa me faz concentrar as histórias que se passam no ambiente familiar. Em casa eu absorvo a variedade das conversas da semana, os acontecimentos recorrentes e corriqueiros, o peso da rotina e como muitas vezes ela influencia no meu trabalho. Tento analisar as coisas que se repetem com freqüência durante a semana, e o que fica e o que muda dentro dessas repetições. Quase sempre há um gato dormindo em algum lugar, e é onde eu busco retratar o meu gato, manso e preguiçoso que sempre cabe em qualquer lugar para descansar. Em algum momento um personagem se encontrará sozinho, buscando solucionar algum problema ou envolvido com as coisas ao seu redor, que pode ser a descoberta das pétalas de uma flor, a inquietação com as goteiras no telhado, ou a reflexão sobre algum acontecimento,no divã de um analista. Percebo que à medida que desenho, a relação que crio entre personagens, coisas e bichos tende a ser cada vez mais forte do que a própria relação entre personagem e personagem. O modo como eles lidam com a casa, os objetos, os móveis, a cidade e os animais, ilustra o meu próprio comportamento em relação a todas essas coisas. É como se todos esses personagens direcionassem a atenção para as coisas, preocupa-
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dos demais por não estarem conseguindo resolver algum problema, ou na tentativa de fugirem de alguma socialização, em um dado momento. Meus personagens são tímidos, e a timidez sempre me pareceu um sentimento muito confuso. Algo que sempre fez parte de mim, mas que eu nunca compreendi de verdade. No colégio, eu passava o recreio desenhando dentro da sala, ou sentada, lendo em algum canto da biblioteca. Quando eu não estava desenhando, estava transcrevendo algum texto. Costumava selecionar trechos que eu gostasse muito dos livros que lia, e os escrevia no caderno para PONTO VÍRGULA reler depois. Era esse o tempo livre que eu tinhaE para isso. Afazer LUGR ÍV EAsOTNOP conversas surgiam, mas com pessoas que compartilhavam do mesmo interesse que eu, e com as quais eu sentisse mais liberdade para conversar. Sempre tive mais facilidade em conversar com pessoas tímidas, talvez por acreditar que eu seria maisculminanteda compreendida. O ponto adetnaniEmmluc otnop O bora tímida, sempre tive muitos amigos, gosto de permanecer vidamas é a compreensão oãsneerpmoc a é adiv da vida. quieta. Observo todo mundo com muita curiosidade, mas como al- .adiv ad guém que se interessa pela singularidade de cada um. Sempre achei G. Santayana anayatnaS .G extraordinário o fato do mundo estar cercado de pessoas de todos os jeitos, e não ter absolutamente ninguém igual a ninguém. Eu observava as pessoas, mas me permitia também observar as coide nat sescorreções arf sa ropmode c licAo íformigas fidfalar é om ocarte otne is literatura, ,arutaretil sinto e etracomo oA compor as fras sas. Encantava-me -pelas que desenhavam oed raléafdifícil to da primeira como da última linha desse discurso. Porque e a r o b m e e u q r o P . o s r u c s i d e s s e d a h n i l a m i t l ú a d o m o c a r i e m i r p a d ot quintal da casa dos meus avós, e peloseuinúmeros desenhos quelugar surconvicção -sim ad e ,recnetrep ihlocstenha e euq plena ragul o d oãçcivndo oc anelp que ahneescolhi t ue pertencer, e d giam no teto da casa, Nos que pra com o meu -abarquando t uem o maocinfiltração etnesão rf arp iulhe qassumo adretirava ierimeusque sacascas. eassumirei uq e om udaqui ssa euq oãfrente s dias de sol, esperava poeira fresta lho, explicar o qu ,sónpela euq o racilpxefina somque atnesei tentrava oque dnauéqmuito opela xelpcomplexo m oc otiuda mquando éjaeuq ietentamos s ,ohl que resta nela, alternando suas oãncores. airótsihSempre amitlú assme eartistas, eusenti q é refazemos.O zmuito id atser sensível em eume q Oà .sovida, medizer zaf ,séatque sitraessa última histó termina muito diferente de quando começou, e r p m e S . s o n a s ê r t á h , u o ç e m o c o d n a u q e d e t n e r e f i d o t i u m a n i m ret há três anos. S mas ao mesmo tempo excêntrica por dar muita atenção para tantos começo com um nome en com um rosto, o c m é b m a t a d i v a s a m , o t s o r m u m o c e e m o m u m o c o ç e m omas c a vida també detalhes. Mas o que ouço dizer é quemeça esse é umDesenhar lugar comumé tarefa de .airótafsitas otium sam ,audráassim. aferat é adiv a rahvida neseD .missaárdua, açem mas muito satisf todos os artistas. .ale moc somecsan áj eDar também uq onome ãssfioràs p écoisas – méb mat sasi–océ sprofissão à emon raque D já nascemos co
mais como ‘Maria ’asoR airaM‘ omoc ,adnQuando ia licífid se siatem m é dois semonomes n siod é me t es difícil odnauainda, Q Maria’, e ‘marca-p .’ossap-acram‘ e ’uéc-aehn‘Alice arra‘ o moc mmas ébmtambém at sam ,’acomo iraM e‘arranha-céu’ cilA‘ e Para Sergio Fingermann “o olhar inventa um lugar queitraolha o somsem so ,sotnemagiEssas l ertnepalavras metsixepartidas, euq ,sadque pexistem sarvalapentre sassEligamentos, os m mundo – o lugar da 2007, p.se92) Fingerdesenham asuq pontes que ligam cidade à outra, e as fi seõfascinação.” çafi sa e ,artuo à(DERDYK, edaque dic a mu m agil e tnop sa m ahneuma sed e uq mann afirma ser este o testemunho e o legado do artista. dos postes de iluminação. ,nefíh ed emon o zart mébmat euq saM .oãçanimMas uli edque setstambém op sod traz o nome de seorintromete conversa -esed sod ,sarvalap sadtraço asrevgráfico noc anque etem tni es euqna ocfi árg oçartdas palavras, dos ,adiv a ednapxe said sonhos, revercdas sE .narrativas onaiditoc e oddo e cotidiano. savitarran sEscrever ad ,sohnos dias expande Essa apreensão de -detalhes cotidianas ser sa edivdas id socoisas bma radesenhá-los tn uj ,lepap eexpande déatratada hlof aaefolha dnpor apxde eDespapel, ol-áhnejuntar sed ambos divide divide páginas nilson Lopes como euma m-otiquestão mreP .airótestética sih a aponsabilidades, telpgeradora moc e sanigde áp suma a eas divpoética, id ,sedaedicompleta libasnop a história. Perm E de .oçeao mopensamento c o óes permito-lhes! é esse ,am rofartista am ugalguma la enquanto ed E forma, !sehl-oesse timreép só e o começo. que é um termo que se aplica do
ele cria. Trata-se de um campo de estudo que evidencia suas reflexões e inspirações. Mas vale ressaltar que, embora parecidos, poética não é o mesmo que poético. Esse último se compreende como uma linguagem, própria da poesia.
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Para Denilson, “propor uma poética do cotidiano para a contemporaneidade, quando este é dilacerado pelas transformações urbanas e midiáticas, implica enfrentar o embate ético e estético de pensar os espaços e as narrativas da intimidade, especialmente o da casa.” (LOPES, 2007, p.83) Sempre tentei compreender ao máximo os lugares nos quais eu me inseria, assim como, a relação que eu construía com eles. Isso aguçava a minha criatividade na hora de desenhar e escrever. Vou tentando reunir detalhes que apreendo de vários lugares, e muitas vezes consigo transformar tudo em uma coisa só. Por exemplo, como eu já havia dito, eu sempre gostei muito da palavra abajur. Mas a sua luz, especificamente, sempre me atraiu de uma forma encantadora. Não só a dos abajures, mas também a dos pisca-piscas de árvores de natal. Em outro momento, minha avó me ensinou a amar as plantas, a compreender suas propriedades, já que ela é adepta da medicina alternativa. Eu nunca consegui parar de desenhá-las. Nos meus desenhos, sempre há alguma lâmpada, e algum vaso de planta inseridos em algum lugar da casa. Certa vez resolvi juntar as duas coisas, por notar essa repetição, e por talvez nunca ter chegado onde eu realmente gostaria com ela. Eu sempre fui muito questionadora, ou as coisas precisam fazer sentido para mim ou invento um sentido para elas. Além do fascínio, eu sempre as observei com a esperança que de alguma forma elas me respondessem o porquê de estarem ali ou serem assim. Mas há muito mais perguntas no mundo do que respostas.
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Por muitas vezes eu desenhei e escrevi na ânsia de perguntar. Nesse momento em que eu me mantinha quieta e calada observando tudo a minha volta, eu sentia a importância e a beleza que havia em viver. A timidez que eu costumava acreditar ter me distanciado do mundo era o que mais me aproximava dele. Perceber a influência da minha personalidade em minha criação me faz perceber que o desenho e a escrita funcionam para mim como um espelho. Eu me vejo refletida em cada cena, e mesmo quando eu penso estar me privando de qualquer envolvimento com a história, estou ali. Até no personagem indiferente no canto do papel, que evita dar sua opinião. Ao começar a criar personagens, assumi a responsabilidade de compartilhar minhas experiências. São poucos os que falam da beleza dos dias, ou da intensidade de seus sentimentos. São poucos os que param para olhar para o céu, para escrever uma frase, ou desenhar uma nuvem. Com a pressa constante, quase não se dão conta de quantos desenhos uma nuvem faz por dia.
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Beatriz Sarlo (1994) fala dessas experiências como algo que todos vivenciam, mas que somente algumas pessoas conseguem transformar em substância de um “objeto estético.” Para Sarlo,“Ninguém é obrigado a viver a situação em que a arte nos coloca. Entretanto, por princípio, ninguém está dela excluído.” (SARLO,1994, p.126)
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A autora traça alguns perfis de artistas, o que ela chama de “biografias em miniatura” buscando afirmar que não existe só um tipo de artista.“Não se é artista de uma só maneira porque a rede invisível de experiência e cultura, razão e imaginação, do que se sabe e do que nunca se poderá saber, é tecida sempre com fios diferentes.” Em seus instantâneos, Sarlo descreve poeticamente a personalidade desses artistas anônimos: “Pintura e razão. Falava diante de seus quadros e não admitia que o espectador ficasse ensimesmado nas peripécias de sua visão. Acreditava que é preciso falar da pintura e que a arte (não só a pintura, mas também o cinema, os romances, a música) é uma matéria que o discurso captura, rodeia, interroga, contradiz”. (idem,1994, p.129)
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“Escreve como se olhasse a linguagem de soslaio, não por desconfiança (isto seria quase um lugar-comum), e sim como se não tivesse lembranças da linguagem, como se esse instrumento fosse algo que ele conhece perfeitamente mas que, ao mesmo tempo, parece lhe um território estranho do qual precisa apropriar-se.” (idem, 1994, p.137)
Dentro das narrativas a vida sempre me pareceu menos fragmentada do que na vida real, as histórias fluem com mais simplicidade, são mais imaginativas e as conversas parecem mais leves e soltas.
“É fascinante o tipo de saber que o texto literário produz, saber paradoxal que é tão mais vinculado à realidade quanto mais exercita sua autonomia em relação a ela; que é tão mais penetrante e abrangente quanto mais aberto e especulativo. O caráter paradoxal da experiência literária se explica pelo fato de esta tornar possível o questionamento da oposição entre real e ficcional. Entretanto, para se investigar de que maneira a dicotomia é transgredida, não basta que se afirme que a literatura opera a suspensão de limites, não basta que se utilize o argumento de que o real contem elementos ficcionais e de que a ficção traz elementos da realidade. Se se deseja fazer jus a complexidade da experiência proporcionada pela literatura, é imprescindível que se rompa com o próprio sistema de oposições, que se conceba uma relação que incorpore, ao par comumente convocado para a equação que tenta descrever o funcionamento do “mecanismo” literário, uma terceira noção, cuja presença redefine o papel dos outros dois termos. Esse terceiro ingrediente é o imaginário.” (BRANDÃO, 2005, p.9)
A partir da leitura em Beatriz Sarlo, vejo o quão importante é poder ser duas - não ser artista de uma só maneira - ser artista-escritora. Reconheço no trabalho pronto a beleza de poder corresponder aos meus desenhos com palavras, e vice-versa. Todos esses perfis capturam essa natureza múltipla que os artistas possuem, com toda a sua riqueza. Enquanto leio todos esses registros percebo como é fantástico o pensar e o agir de cada ser artista, quando descritos.
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A TERNURA PELO AVESSO ´ Enquanto ele falava, eu ia pensando, as historias em que as pessoas transformam a vida, as vidas em que ´ as pessoas transformam as historias.
Nathan Zuckerman
A ternura pelo avesso, como comecei a contar, começou a ser concebida em 2015, a partir de uma proposta de atividade da disciplina Artes Gráficas B. Eu começava a sentir o chão em que estava pisando e a me sentir confortável no mundo das publicações. A atividade em questão propunha a criação de uma publicação de no mínimo dezesseis páginas, e tínhamos a liberdade de escolher o material e o tema com o qual trabalhar. Eu tinha em casa um velho dicionário de nomes próprios e a vontade de começar a escrever histórias para esses nomes. Todos eles se apresentavam a mim como personagens, mas que ali vagavam sem rosto e vida. De tudo, só tinham um significado aberto, generalizante. Resolvi assumir a ideia como projeto, e decidi que escreveria e ilustraria as histórias. Estava certa de que não me interessava utilizar textos de outros autores, pois naquele momento eu sentia muito a necessidade de escrever. De fato seria meu primeiro exercício de escrita e foi naquele momento que me descobri - apesar do medo que essa palavra me traz – escritora. De início era algo muito novo para mim, e hoje, quase três anos depois, eu ainda tenho dificuldade de lidar com tal condição. A verdade é que eu nunca busquei ser escritora, acho que ela é mais uma condição do que um desejo. Eu amo a escrita, ela me pertence e eu pertenço a ela, mas trata-se de uma relação muito despretensiosa. Ela foi entrando aos poucos na minha vida. Assim como relata Mário Quintana: “Comecei a ser poeta como um cachorro que cai n’água e não sabia que sabia nadar”. Cada personagem apresentava sua história, tinha um rosto, mas habitava papéis esboçados e, no máximo, a tela do computador. Comecei a pensar na materialidade como transmissora de uma mensagem im-
portante, e de como os desenhos poderiam se comportar num suporte específico. Há algum tempo eu vinha me interessando pelo tecido, por sua trama, e pelo significado desse termo que comporta muito bem todos os acontecimentos que seriam narrados. A trama de um tecido é um conjunto de fios que se cruzam no sentido transversal do tear, entre os fios da urdidura. Na literatura, trama é o desenrolar dos acontecimentos, transformando uma ação em enredo. O tecido se manifestava para mim a todo o momento como pele, com sua textura, com suas marcas, com sua fibra. Durante o processo da costura, o tecido que é perfurado, alinhavado, arrematado, sustenta as suas próprias linhas, que o constitui como tecido, mas sustenta também linhas outras, que vêm dos novelos. Comporta as marcas quando um ponto é desfeito, e nos apresenta um avesso, confuso, desfigurado, algumas vezes embolado, cheio de nós e, surpreendentemente, cheio de beleza.
Para bordar usei um bastidor, desses que toda bordadeira usa. Um suporte redondo de madeira, no qual o tecido é esticado, para facilitar o entre e sai da agulha. Mais do que técnica adotei-o como formato para minha publicação. Em páginas redondas e soltas, os personagens se apresentaram na parte da frente do tecido e os textos foram afixados atrás. Assim surgiram Anésio, Ranya, Samir, Maya, Edésia, Nimbus, Sheila, Astride e algum tempo depois, Abner. Cada um tinha um nome, uma idade, um rosto e um significado.
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Após ter o livro pronto, eu sentia que o meu trabalho estava carregado de melancolia, mas que eu conseguia trazê-la com delicadeza, e ser compreendida. Lidar com meus próprios sentimentos e com o sentimento dos outros sempre me pareceu muito difícil. Transformá-los em arte e literatura me parecia mais difícil ainda. Desenhar e escrever é macio e duro ao mesmo tempo, e provocar o riso e a empatia era o que eu mais desejava ao falar da vida e da dor.
Como definir a dor? Pensava eu, quando criança, que era quando ralava os joelhos. Por mais que a gente tente, rasure, escreva, esboce, a dor é muito particular e subjetiva. Fernanda me disse um dia que a dor depois de um tempo tende a passar, mas que ela serve para vermos o que há de bom depois dela. Mas sei que a dor também motiva a nos protegermos enquanto a ferida não cura. A literatura e a arte tornam-se para mim como uma espécie de curativo, de efeito catártico, e que resguarda o incômodo. A dor se dissolve aos poucos, não desaparece por completo, mas é amenizada. Vira memória, história, cicatriz. Falar da dor ajuda a compreendê-la melhor, mesmo que seja nas entrelinhas, por debaixo dos panos ou dos curativos. Trata-se de mergulhar no incômodo para tentar extrair dele algo bom. De início, o título da minha publicação era Pequeno catálogo de particularidades humanas. Naquela época, Fernanda Goulart inaugurava um selo independente, o Mil folhas, e me convidou para editar o projeto em uma
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nova materialidade. Um novo desafio: tornar a publicação reprodutível, o que o bordado não permite, e repensar seu título, preservando o que eu buscava ao escolher o tecido, a costura e, consequentemente, o avesso, na publicação inicial. A partir de então, o livrinho passou a se chamar A ternura pelo avesso.
Optamos pelas técnicas de risografia para o miolo e serigrafia em papel vegetal para a capa. Tecnologias muito usadas em outros momentos da história e em outros suportes. Ambas as técnicas têm baixo custo e são relativamente acessíveis para jovens artistas e escritores, que as vêm utilizando novamente, numa rede de distribuição independente. As cores impressas em riso apresentaram-se com uma textura nova no meu trabalho, levando em conta que no livro de tecido, a cor era proveniente das aplicações em feltro. Toda essa história, que ate então era somente o resultado de um trabalho final de disciplina, recebeu um selo editorial e um prefácio. Mas, acima de tudo, um pontapé inicial para que eu começasse a pensar não apenas em multiplicar meus trabalhos, mas em ser uma escritora-artista. Ao publicá-los, eu faria com que essas histórias circulassem e chegassem até as pessoas. Foi com esse projeto que me sentI desenhista, escritora e fazedora de livros. A ternura pelo avesso me possibilitou encontrar uma estrada para seguir pelo resto da vida.
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DIÁLOGOS COM OUTRAS LINGUAGENs Para compreender uma voz, escute todas as outras. Roberto Juarroz
A ternura pelo avesso me faz pensar em dois filmes que me inspiraram muito na criação desses personagens: O fabuloso destino de Amélie Poulain, escrito por Guillaume Laurant e dirigido por Jean-Pierre Jeunet e Mary e Max : Uma amizade diferente, um filme australiano em Stop-Motion de gênero humor-negro/drama de Adam Elliot. Ambos me encantaram pelos fatos narrados detalhadamente, pela surpresa da vida que sempre bate na porta todos os dias, pela ênfase das manias, defeitos e trejeitos de todos os personagens, pelos prazeres rotineiros repletos de sensibilidade. Eu assisti este filme pela primeira vez aos dezessete anos, e me identifiquei com Amelie em muitas cenas, com seus pensamentos e percepções. Ela tem uma excentricidade que eu acho que também tenho, que de início me parecia estranha, mas que passou a ter um significado muito importante para mim, após ver o filme. Amélie me motivou a desenhar e escrever sobre a vida, a partir de coisas muito simples que eu presenciava, e que me pareciam importantes e delicadas. Em Amélie Poulain destaco dois momentos, nos quais a voz em off de um narrador apresenta os personagens detalhadamente, em sua fragilidade e intimidade. Raphael Poulain não gosta: De urinar ao lado de alguém. Não gosta: de notar um olhar de desdém por suas sandálias, sair da água e sentir seu calção de banho grudar, Raphael Poulain gosta: De arrancar grandes tiras de papel de parede, enfileirar seus sapatos e engraxá-los com esmero. Esvaziar a caixa de ferramentas, limpá-la e arrumá--la de novo. Amandine Poulain não gosta: que seus dedos enruguem na água quente do banho, que alguém de quem não gosta encoste nela,
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que os lençóis marquem suas bochechas de manhã. Amandine Poulain gosta: das roupas dos patinadores da TF1, de dar brilho no assoalho com pantufas, esvaziar a bolsa, limpá-la bem... e arrumá-la de novo.
Ao me deparar com essas sensíveis descrições, que se repercutiam por todo o filme, eu pude perceber o quão importante era o papel do narrador, que reflete sobre os acontecimentos e conhece muito bem todos os personagens, até mais do que eles. Walter Benjamin afirma que todo bom narrador é dotado de um “senso prático” e que toda verdadeira narrativa possui em si uma “dimensão utilitária”. Benjamin atribui ao narrador o caráter de uma pessoa sábia e conselheira.” A animação Mary e Max também traz a voz de um narrador-observador, acompanhada da delicadeza e sutileza dos personagens feitos em massinha de modelar. A história, baseada em fatos reais, narra à vida de uma garotinha de oito anos, chamada Mary Daisy Dinkle, da Austrália, e de Max, um velho judeu, obeso e solitário que sofre com a Síndrome de Asperger. Mary encontra o endereço de Max, em uma lista de endereços do correio de Nova York e se prontifica a lhe escrever uma carta. Max, espantado, responde à sua carta e a correspondência acaba perdurando por quase duas décadas. Na tentativa de entenderem seus sentimentos mais profundos e os problemas na família, a história é povoada por uma troca de perguntas ingênuas e de respostas sinceras - e que por muitas vezes soam mais ingênuas ainda. Os personagens quase não falam, mas emitem alguns sons, ruídos. A voz do narrador se faz presente com mais frequência. As falas surgem somente durante a leitura das cartas, que a meu ver é onde se concentra toda a beleza da narrativa. Durante a troca de cartas, Mary cresce e amadurece, mas Max parece continuar o mesmo. O mundo de Mary é representado em um tom de sépia e por algumas variações de marrom - que é a cor de sua mancha de nascença. O mundo de Max é representado em preto e branco e com alguns detalhes em vermelho. A animação trata da descoberta da dor e da descoberta de si mesmo, da autoaceitação e da fragilidade da vida. Caro Senhor M. Horowitz, Meu nome é Mary Daisy Dinkle, e tenho oito anos, três meses e nove dias. Minha cor preferida é marrom e minha comida preferida é leite condensado, e em segundo lugar é chocolate. Tenho um galo chamado Étel, ele não põe ovos, mas um dia vai pôr. Minha mãe gosta de fumar, de críquete e Xerez, e meu pai gosta de brincar
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com pássaros mortos em seu quartinho. De onde vêm os bebês na América? Eles vêm das latinhas de refrigerante? Na Austrália eles nascem nas canecas de cerveja. (...) Minha professora, a senhora Pendergast, disse que eu devia sorrir mais. Contei para minha mãe e ela desenhou um grande sorriso em mim. Cara Mary Daisy Dinkle, Primeiro eu vou responder a sua pergunta, infelizmente, na América, os bebês não vem em latas de refrigerante. Perguntei a minha mãe quando eu tinha quatro anos, e ela disse que eles vêm de ovos colocados pelos rabinos. (...) Divido minha casa com um peixe, alguns caracóis com nomes de cientistas famosos, e um periquito chamado Senhor Biscoito, e finalmente um gato chamado Hal. Hal é uma abreviação de halitose, da qual ele sofre. (...) Quando eu era pequeno inventei um amigo invisível chamado Senhor Ravióli, meu psiquiatra diz que não preciso mais dele. Por isso ele fica sentado num canto, lendo. (...) Quando eu era jovem, queria ser qualquer pessoa menos eu mesmo. O Dr. Bernard Hazelhof disse que, se eu estivesse em uma ilha deserta, eu teria que me acostumar com a minha própria companhia, só eu e os cocos. Ele disse que eu teria que me aceitar, com meus defeitos e tudo, e que nós não escolhemos nossos defeitos.
As pessoas sempre me confundem. Mas tento não me preocupar com elas. Nova York é um lugar agitado e barulhento, eu gostaria de morar em um lugar mais silencioso, como a lua. Acho os seres humanos interessantes, mas é difícil entendê-los, mas acho que vou entender e confiar em você. (Max)
Em Um sopro de vida (1978) de Clarice Lispector, a narrativa segue por um caminho igualmente belo ao de Mary e Max, mas apresenta autor e personagem a partir de uma nova perspectiva. Clarice cria um autor que cria uma personagem chamada Ângela Pralini. Ângela também é escritora e, como personagem, discorre sobre sua existência no mundo, e sobre o mistério que envolve a criação literária. A história se desenvolve a partir de um extenso diálogo entre Ângela e seu criador, trazendo à discussão o limite existente entre a figura do escritor e a do personagem. No decorrer da narrativa a personagem e o escritor direcionam inúmeros questionamentos um para o outro, mas também para si mesmos. Questionam-se na busca de se compreenderem e de compreenderem o poder da escrita no mundo, para ao fim do discurso, compreenderem-se como um só e se fundirem.
AUTOR – Minha vida me quer escritor e então escrevo. Não é por escolha: é íntima voz de comando. (...) Ei-la falando como se fosse comigo, mas fala para o ar e nem sequer para si mesma e só eu aproveito do que ela fala porque ela é de mim para mim. Ângela é o meu personagem mais quebradiço. Se é que chega a ser personagem: é mais uma demonstração de vida além escritura, como além-vida e além-palavra. ÂNGELA. – Falando sério: o que é que eu sou? Sem resposta.
Há muita desordem no mundo de Mary e Max, mas há muita beleza também. A síndrome de Asperger, a qual Max sofre, faz com que ele apresente muita dificuldade de socialização, interpretação, e uma falta de interesse de compartilhar suas experiências com os outros. Max vive dentro de uma bolha, mas Mary também. Durante a troca de cartas eles vão permitindo que ela se rompa, e aos poucos passam a confiar mais um no outro.
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Então tiro o corpo fora. Sou Strauss ou só Beethoven? Rio ou choro? Eu sou nome. Eis a resposta. É pouco. De repente eu me vi e vi o mundo. E entendi: o mundo é sempre dos outros. Nunca meu. ÂNGELA. – Só me interessa o que não se pode pensar – o que se pode pensar é pouco demais para mim. AUTOR. – Todo o mundo que aprendeu a ler e escrever tem uma certa vontade de escrever. É legítimo: todo o ser tem algo a dizer. Mas é preciso mais do que a vontade de escrever.
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ÂNGELA. – Quem faz minha vida? Sinto que alguém manda em mim e me destina. Como se alguém me criasse. Mas também sou livre e não obedeço ordens. AUTOR. – Eu inventei Ângela porque preciso me inventar. Ângela é uma espantada.
Criar personagens, assim como todos esses autores que cito, também coloca em prova a percepção que tenho sobre mim. Enquanto eu crescia, eu percebia que ser filha única me garantiu passar muito mais tempo sozinha do que eu gostaria. Mas também me garantiu ter muito mais tempo livre para me aprimorar na escrita e no desenho. Descobrir algo que eu gostasse de fazer, aprender a escutar o meu silêncio e transformá-lo em matéria viva. Criar personagens também é uma forma que eu busco de criar uma espécie de companhia. Assim como em algum momento disse o autor de Ângela Pralini: “Será que eu criei Ângela para ter um diálogo comigo?”
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PALAVRAS COMPOSTAS
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Palavras Gosto de brincar com elas. ´ Tenho preguica de ser serio.
pela poeticidade que a grande maioria delas trazia, como se tivessem sido inventadas com esse propósito.Os dicionários carregam consigo, com certeza, um ar de mistério. Quando estava prestes a começar a desenvolver um trabalho com elas, senti um pouco de dificuldade em saber por onde começar. Eu desejava que essas palavras se comportassem como palavras-norteadoras, ou palavras-tema da história que eu fosse contar. Antes de tentar atribuir algum significado a elas, eu esperava que elas atribuíssem um significado ao meu trabalho.
Manoel de Barros
- Diante da complexidade da página branca, tem horas que me dá um branco. Onde fica o começo?
O meu interesse por palavras compostas surgiu durante as aulas da Julia Panadés, no ateliê II de Artes Gráficas. Todos os dias eu levava para a aula um caderninho velho, repleto de palavras que eu encontrava, e que ia registrando.O que eu tinha no momento se resumia a uma mistura de palavras compostas com palavras simples, e muitas delas eram nomes de plantas. Mas o meu interesse maior era por essas palavras que traziam outras como braço direito, e que sustentavam o peso de uma palavra vizinha. Como uma boa acumuladora, eu ainda não sabia o que fazer com elas. Durante algumas conversas com Julia, resolvi que desenvolveria algumas séries de narrativas, e cada palavra se responsabilizaria por uma história. Mas como eu ainda estava tentando compreender a natureza dessas palavras, acabei escolhendo uma para começar e as outras eu guardei para mais tarde. Comecei por um exercício com a palavra pombo-correio, e me aventurei a escrever um manual de como treinar um pombo para enviar cartas. No manual, havia métodos para se encontrar um pombo até dobrar um envelope, despachar a caixa e despachar o pombo. Por fim, escrevi uma carta. Fiz todos os desenhos que ilustravam o passo-a-passo, e montei um livretinho que era basicamente uma folha A3 dividida em oito partes, com um corte no meio.Ao dobrar a folha, ela se transformava em um tipo de folder. Esse primeiro exercício me permitiu compreender como eu poderia trabalhar com essas palavras compostas, que na verdade não era muito diferente de como eu vinha trabalhando. Eu coletei todas as palavras no Dicionário Houaiss, guardei essas “duplas” palavras por um bom tempo, e à medida que eu encontrava outras que fizessem parte desse grupo, eu separava. Eu me encantava
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Eu sempre tive um pouco de receio dos começos. Há um livro de Noemi Jaffe, chamado Livro dos começos, que me ajudou a pensar que não existe só uma maneira de começar algo. Trata-se de um livro de páginas soltas, onde a autora explica, de maneira poética e dramática, o que significa começar, de modo que o leitor, complementariamente, pode escolher qual página do livro ler primeiro. Cada página traz uma letra do alfabeto, que corresponde à primeira letra da primeira palavra que dá inicio a cada texto. Durante todo o tempo que eu tentava trabalhar no meu projeto, eu sentia medo de tê-lo começado errado. Mas também sentia que esse projeto não era tão diferente do projeto de nomes de pessoas, no qual concebi A ternura pelo avesso. A diferença estava nas palavras, mas o método de concepção seria o mesmo. Em uma das páginas do livro que corresponde a letra S, Noemi Jaffe aconselha: “se estiver muito preocupado com o começo, esqueça. Vá fazer outra coisa e, quando menos esperar, ele aparecerá. Provavelmente cairá sobre sua cabeça quando você estiver guardando a louça ou se preparando para dormir.” (JAFFE, 2016)
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Fernanda sempre me disse que a escrita é uma arte lenta. Cada palavra, cada frase, cada traço, tem o seu tempo. É uma tentativa vã tentar desrespeitar o tempo da escrita. Já tive inúmeros bloqueios por não compreender o espaço que o texto precisa para se compreender como texto. Por muitas vezes tentei forçar o nascimento de uma frase, sem que ela estivesse pronta para vir. A escrita vem para o meu trabalho de uma forma muito espontânea, mas gradual. O texto decanta por um bom tempo nas folhas de rascunho. As frases e palavras que absorvo e registro, durante alguma leitura ou conversa, me ajudam com o enredo das histórias. Gosto muito dos provérbios, cresci sendo alimentada por eles e hoje eles me ajudam com as metáforas dentro do texto. Diante da lista que eu tinha de palavras compostas, resolvi adotar como critério de seleção o afeto e a memória. Inventei muitas memórias enquanto desenhava. Gostaria de ter contado a Anésio (um dos meus primeiros personagens), que sofria de Alzheimer, que a memória também pode ser inventada.
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´ INVENTaRIO DE NARRATIVAS
alguma temática em comum. Categorizar todas as palavras compostas que não fosse somente por ordem alfabética. Segundo Maria Esther Maciel (2009) “Na esfera da criação literária, a função burocrática que a lista adquiriu ao longo dos tempos é minada pelo fato de ela se desviar da ordem hierárquica para entrar na esfera do arbitrário, do subjetivo e do conjectural.” Para ela a lista é o “princípio constitutivo do inventário”.
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~ que nenhum outro imita. Escondo-a do Jose, ´ A colecao ~ ria nem jogue fora esse museu de sonho. por que nao INVENTÁRIO DE NARRATIVAS
Sempre fui adepta das listas, dos diagramas, dos manuais, que são sistemas de classificação e ordenação muito inteligentes. Mas a partir do momento que eu me permitia poetizá-los, eu sentia que os desenhos e as histórias concediam certa maleabilidade a essas estruturas tão engessadas.
Carlos Drummond de Andrade A coleção que nenhum outro imita. Escondo-a do José, por que não ria nem jogue fora esse museu de sonho. Carlos Drummond de Andrade
O trabalho que apresento como conclusão de meu curso em Artes Visuais começa como um inventário extenso e complexo de palavras eOtermina uma invenção mais sintetizada, mais trabalho com que apresento como conclusão de meu cursoeem Artesíntima. Visuais começa como um inventário e complexo de palavrasimagiOs desenhos são acompanhados deextenso narrativas que misturam com uma invenção mais sintetizada, mais íntima. Os denaçãoeetermina realidade, como de costume. Nemetodos os personagens senhos são acompanhados de narrativas que misturam imaginação e possuem um nome, emNem A ternura pelo avesso, mas todos realidade, como decomo costume. todos os personagens possuem ganham vocábulo Criei cada desenho e texto na esperança de pelo queAvesso, depois um um nome, como emcomposto. A ternura masfosse todos posganham um composto. Mantenho ainda a por sangria dos trabalhos e os desenhos sível ordenar todas asvocábulo narrativas alguma temáticaanteriores, em comum. Mantenho aindacromática a sangria dos trabalhos no anteriores, e os duas desenhos tiveram sua paleta ampliada, lugar das cores haCategorizar todas as tiveram palavras compostas nãonofosse somente sua paleta cromáticaque ampliada, lugar das duas cores habituais. À medida que os enquadramentos ficavam maiores, bituais. À medida que os enquadramentos ficavam maiores, torna- tornapor ordem alfabética. va-se mais difícil equilibrá-las. trabalho com quatro, ou cinco va-se mais difícil equilibrá-las. Hoje Hoje trabalho com quatro, ou cinco em uma mesma composição, eetenho optado por tons cores cores em uma mesma composição, tenho optado por mais tons mais “Na esfera da criação literáSegundo Maria Esther Maciel (2009) em maioria sua maioria pasteis. leves, leves, em sua ria, a função burocrática que a listapastéis. adquiriu ao longo dos tem-
Segundo Amir Cadôr (2016), uma lista pode ser prática, mas também pode ser poética, e funciona como um “catálogo ou rol consistindo em uma série de nomes, figuras e palavras”. Ele afirma que podemos caracterizar as listas práticas em três tipos, “sendo que o mais comum é um registro de eventos, situações, pessocujo uso típico seria é um inventário de pessoas, objetos Na as, literatura, a lista poética apresentada como uma “figura deou eseventos”, o que ele denomina de “lista retrospectiva”. Existem tilo, a enumeração, que em sua forma mais simples coloca em serie as listas que funcionam como uma espécie de guia para ações elementos da mesma categoria.” futuras, como um itinerário para mapear rotas e uma lista de comas que “listas que funcionam como Ao pras. reunirExistem todas astambém narrativas euléxicas”, tinha, percebi que alguns gruum “inventário de conceitos, um protodicionário ou enciclopédia pos já começavam a se configurar ali, como categorias. Reconheci embrionária.” (CADÔR, apud GOODY, 1977)
os personagens que se interligavam por algum tipo de espera, outros pelas descobertas, caminhos, adaptações, observações, diáloliteratura, a lista poética é apresentada como uma “figura de gos,“Na e pelo corpo. Em comum sempre haverá o corpo, é como se estilo, a enumeração, que em sua forma mais simples coloca em de serie alguma forma ele o categoria.” centro, um (CADÔR, ponto de2016, partida. A partir elementos da fosse mesma p. 71) desse momento comecei a esboçar cada categoria.
pos é minada pelo fato de ela se desviar da ordem hierárquica para entrar na esfera do arbitrário, do subjetivo e do conjectural.”Para ela a lista é o “princípio constitutivo do inventário”.
Faço com que as camadas de cor se desloquem dentro do contorno, Faço com as camadas de- esbarrando cor se desloquem dentro como do contore elasque se sobrepõem a ele nas cores vizinhas, no, e elas se sobrepõem a ele esbarrando nas cores vizinhas, como uma falha de registro. METÁFORA? uma falha de registro. Os preenchimentos que se deslocam evideciam que háum uma certa imperfeições. Cadatambém história faz recorte debeleza alguma nas passagem importante do cotidiano, como as viagens de ônibus, o trânsito parado importante ,a hora de Cada história faz um recorte de alguma passagem do dormir, a hora do banho e do café, as noites de insônia, as ligações cotidiano, como as viagens de ônibus, o trânsito parado ,a hora de recebidas, as festas de aniversário, as músicas que tocam no rádio, dormir,asanovelas hora do e do quebanho assisto na TV. café, as noites de insônia, as ligações recebidas, as festas de aniversário, as músicas que tocam no rádio, as novelas que assisto na TV. Criei cada desenho e texto na esperança de que depois fosse possível ordenar todas as narrativas por
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Percebi também, que muitas narrativas se apresentavam pertencentes também à outras categorias que eu havia criado, mas só cabia a mim decidir para onde direcioná-las.“Cada vida é uma enciclopédia,
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De início pensei que estava criando um dicionário, e até poderia ser. Considerando que talvez esse trabalho possa se estabelecer na fronteira entre dicionário e inventário. Ao terminar, me deparei com os desenhos e suas histórias, com a lista de palavras compostas, e no que ela se transformou. O livro que apresento como um inventário de narrativas compostas, também não deixa de ser um dicionário desconstruído. As histórias se organizam por categorias afetivas, e cada grupo se responsabiliza por relacionar cada narrativa a partir de alguma característica em comum. Precisei inventar uma forma de reconhecer cada narrativa, imaginar um lugar em que elas pudessem pertencer em conjuntos, por identificações. A partir de então, surgem os grupos que se aproximam por algum tipo de espera, outros pelas descobertas, caminhos, adaptações, observações, diálogos, e pelo corpo. No fim, o caminho de todas as palavras, desenhos e narrativas que compõem o meu livro se cruzam. Embora cada personagem busque se aventurar por estradas diferentes.
O livro se divide em sete categorias distintas, mas todas elas se pertencem de alguma forma. Cada categoria representa uma parte do toda, uma parte de uma frase que representa a finalidade da existência de cada personagem, de cada desenho, de cada texto e de cada vida. A palavra composta reinventa a linguagem do dicionário, e cada história se compreende como um desvio, compondo um possível Desdicionário, resultante de um inventário e de uma invenção.
Inventário no Dicionário Houaiss, significa: “Levantamento minucioso; rol, lista”. Invenção significa: coisa criada; invento; descoberta.
qual e´ o grau de desenvoltura
quando tem alguma coisa diferente
´ ´ Ultimo capitulo: ~ Joao se casa com Etelvina.
Bernadete foge com o circo.
bom-tom . . . . . . . . . . . . . natureza-morta . . . . . . . . maria-fumaca . . . . . . . . . carta-resposta. . . . . . . . . ´ .......... arranha-ceu bicho-da-seda . . . . . . . . . ~
Quinze anos assistindo a mesma emissora, e os atores nunca perceberam ´ que alguem os observava.
18 20 22 24 26 28
As novelas nunca acabavam em pizza.
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Durante os intervalos, as mocas se emocionavam com as propagandas de margarina.
MAL-ACABADO 32
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zen-budismo . . . . . . . . . . . 46 cara-metade . . . . . . . . . . . 48 bota-fora . . . . . . . . . . . . 50 baixo-ventre . . . . . . . . . . . 52 ar-condicionado . . . . . . . . 54 ~ . . . . . . . 58 ´ relacoes-publicas sem-pulo . . . . . . . . . . . . . 60 ~
Ao elaborar um inventário, é possível introduzir alguns critérios de ordem aos objetos listados – os mais antigos, os maiores, os mais preciosos. As palavras também podem ser ordenadas, independentemente de seu significado – por ordem alfabética, que é a forma mais utilizada, mas também por tamanho das palavras, por número de sílabas, ou por letras finais, como nos dicionários de rimas. (CADÔR, 2016, p. 66)
param para observar mal-entendido . . . . . . . . . . 30 mal-acabado . . . . . . . . . . . 32 bem-te-vi . . . . . . . . . . . . 34 passa-fora . . . . . . . . . . . . 38 . . . . . . . . . . . 42 ´ olho-d’agua cara-pintada . . . . . . . . . . . 44
ENQUANTO TENTAM SE ADAPTAR mil-folhas . . . . . . . . . . . . . casca-grossa . . . . . . . . . . . mesa-redonda . . . . . . . . . . bem-posto . . . . . . . . . . . . . sem-teto . . . . . . . . . . . . . eta-ferro . . . . . . . . . . . . . belas-letras . . . . . . . . . . .
62 64 66 68 70 72 74
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Maria Esther Maciel, discorre sobre uma “poética do inventário”, exemplificando com a poesia de Carlos Drummond de Andrade, que é definida por um “gesto taxonômico de inventariar coisas quanto o de inventar formas poéticas alternativas, híbridas a partir de suas inúmeras listas, catálogos, recenseamentos e enumerações.” (MACIEL, 2010, p.70) Segundo ela, Drummond reinventa com ironia tais dispositivos de classificação, evidenciando que esses sistemas de organização se mostram insuficientes perante a nossa necessidade de dar sentido à multiplicidade e ao caos do mundo. Eu desenho palavra e linha, dando origem a um livre inventário de narrativas compostas. É preciso se permitir imaginá-lo, se concentrar em cada desenho, em cada vocábulo e verbete, e se deixar levar por sua história. No virar das páginas, a vida de cada personagem é definida pela busca de se encontrar no mundo, de compreender qual é o seu lugar e de se adaptar a ele. Mas também de aprender a esperar o tempo das coisas acontecerem.
e sempre encontram um caminho para seguir
~ . . . . . . . . . . . 78 pedra-sabao ~ ´ . . . . . . . . . . 80 joao-ninguem . . . . . . . . . . . 82 ´ sem-numero lugar-comum . . . . . . . . . . . 84 porta-voz . . . . . . . . . . . . . 86 troca-troca . . . . . . . . . . . . 88 mal-ouvido . . . . . . . . . . . . 90 livre-pensador . . . . . . . . . 92
navio-tanque . . . . . . . . . . . 110 caca-minas . . . . . . . . . . . . 112 marca-passo . . . . . . . . . . . 114 puxa-puxa . . . . . . . . . . . . . 116 forca-tarefa . . . . . . . . . . . 118 rio-grandense-do-norte . . . . 120 maria-mole . . . . . . . . . . . . 122
fazem da espera esperança ~ . . . . . . . . . . . 94 mao-aberta deus-dara´ . . . . . . . . . . . . 96 pouco-caso . . . . . . . . . . . . 98 dois-pontos . . . . . . . . . . . 100 pisca-pisca . . . . . . . . . . . 102 tapa-olho . . . . . . . . . . . . . 104 banho-maria . . . . . . . . . . . 108
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falam um pouco de tudo
Cada artista tem o seu propósito de criação, e minhas histórias quase sempre nascem de um interesse particular de coletar palavras, desenhar personagens, e ressignificar o mundo a partir de todas essas coisas. Não faço uso de balões de fala, pois gosto de narrar. Sempre trabalhei com narrativas breves, que se trata de um tipo de escrita em prosa. Meus textos se desenvolvem em poucas linhas, no entanto são capazes de compreender grandes acontecimentos. A espetacular clínica da Monga, de Tai Cossich é um livro muito interessante que traz como exemplo a autonomia da imagem sem a fala dos personagens. Esse livro se apresentou para mim como algo tentador, pois parte de sua narrativa é construída por um desenho desprovido de texto. O livro ilustra e “narra” uma sessão de psicanálise, e a interação do psicanalista com seu paciente se desenvolve através de desenhos, letras soltas, desenhos de balões de fala, e desenhos dentro de balões de fala. A temática de cada conversa se modifica no virar das páginas e os desenhos crescem no desenrolar da história.
Quando criança eu tinha muita dificuldade com os livros de figuras, eu queria saber o que contavam. Quando não contavam nada, eu escrevia alguma palavra ou alguma coisa parecida com o que eu já havia lido em algum lugar, para me satisfazer. Eu sentia a necessidade do laço imagem e texto desde muito nova, porque eu começava a fazer comparações com a vida, com as novelas e com os filmes. Havia as cenas, mas sempre havia ali também a voz do personagem e/ou alguma legenda. E ali eu começava a articular as falas, mesmo que em pensamento, para essas coisas que não tinham texto. A espetacular clínica da Monga retoma a linha de raciocínio dos livros de figuras da minha infância, que hoje me faz pensar muito sobre a potência de um discurso não-verbal. O desenho ganha autonomia como se ele também escrevesse. O texto só aparece na segunda parte do livro, e Tai cria um personagem chamado Monga, uma mulher gorila. Essa mulher gorila escuta a partir do ponto de vista do psicanalista as histórias que são contadas em seu
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CARA-METADE
divã. Durante todo o livro os personagens buscam compreender seus sentimentos expondo o que são e o que vivem. A autora consegue trabalhar questões densas de uma forma muito compreensível, serena e lúdica. O desenho surge em um traçado muito sutil, na cor preta, em alguns lugares com preenchimentos, e em outros só com a presença da linha. Enquanto trabalho nas minhas histórias, procuro atentar o olhar para todas as coisas a minha volta, destacar o que me sensibiliza no dia-a-dia, e tentar fazer algo com isso. Extrair do cotidiano o que ele tem de mais ordinário, de mais precioso e imaginativo. Essa é sem dúvidas uma das ferramentas mais importantes que possuo.
´ No bairro dos timidos, todos os vizinhos andam bem juntinhos.
Nos dias de feira, quando voltam para casa, se amontoam pelas ruas. Ao perceberem que ~ ~ sao observados, vao se escondendo, uns ´ dos outros. atras 48
s e m - n u´ m e r o
´ Segundo as estatisticas, mais de 67% dos observadores de trens gostam de contar causos, ~ ´ de contar vagoes. alem
De acordo com a qualidade da conversa, eles se distraem, ~ param de contar os vagoes, e acabam perdendo a conta. 83
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´ PONTO E ViRGULA
O ponto culminante da vida ~ da vida. e´ a compreensao G. Santayana
Ao falar de arte e literatura, sinto como é difícil compor as frases tanto da primeira como da última linha desse discurso. Porque embora eu tenha plena que escolhies-pertencer, e da missão até as pessoas. Foi comconvicção esse projeto do quelugar me sentidesenhista, critora eque fazedora de livros. A ternura pelo Avesso assumo e que assumirei daqui me prapossibilitou frente com o meu trabalho, sei encontrar uma estrada para seguir pelo resto da vida. que é muito complexo quando tentamos explicar o que nós, artistas, fazemos. O que me resta dizer é que essa última história não termina muito diferente de quando começou, há três anos. Sempre começo com um nome e com um rosto, mas a vida também começa assim. Desenhar a vida é tarefa árdua, mas muito satisfatória. Dar nome às coisas também – é profissão que já nascemos com ela. Quando se tem dois nomes é mais difícil ainda, como ‘Maria Rosa’ e ‘Alice Maria’, mas também como ‘arranha-céu’ e ‘marca-passo’. Essas palavras partidas, que existem entre ligamentos, os mesmos que desenham as pontes que ligam uma cidade à outra, e as fiações dos postes de iluminação. Mas que também traz o nome de hífen, traço gráfico que se intromete na conversa das palavras, dos desenhos, das narrativas e do cotidiano. Escrever os dias expande a vida, desenhá-los expande a folha de papel, juntar ambos divide as responsabilidades, divide as páginas e completa a história. Permito-me e permito-lhes! E de alguma forma, esse é só o começo.
DIÁLOGOS EM REUNIÃO Para compreender uma voz, escute todas as outras.
A ternura pelo avesso me faz pensar em dois filmes que me inspiraram muito na criação desses personagens: O fabuloso destino de Amélie Poulain, escrito por Guillaume Laurant e dirigido por Jean-Pierre Jeunet e Mary e Max : Uma amizade diferente, um filme australiano em Stop-Motion de gênero humor-negro/drama de Adam Elliot. Ambos me encantaram pelos fatos narrados detalhadamente, pela surpresa da vida que sempre bate na porta todos os dias, pela ênfase das manias, defeitos e trejeitos de todos os personagens, pelos prazeres rotineiros repletos de sensibilidade. Eu assisti este filme pela primeira vez aos dezessete anos, e me identifiquei com Amelie em muitas cenas, com seus pensamentos e percepções. Ela tem uma excentricidade que eu acho que também tenho, que de início me parecia estranha, mas que passou a ter um significado muito importante para mim, após ver o filme. Amélie me motivou a desenhar e escrever sobre a vida, a partir de coisas muito simples que eu presenciava, e que me pareciam importantes e delicadas. Em Amélie Poulain destaco dois momentos, nos quais a voz em off de um narrador apresenta os personagens detalhadamente, em sua fragilidade e intimidade. Raphael Poulain não gosta: De urinar ao lado de alguém. Não gosta: de notar um olhar de desdém por suas sandálias, sair da água e sentir seu calção de banho grudar, Raphael Poulain gosta: De arrancar grandes tiras de papel de parede, enfileirar seus sapatos e engraxá-los com esmero. Esvaziar a caixa de ferramentas, limpá-la e arrumá¬-la de novo. Amandine Poulain não gosta: que seus dedos enruguem na água quente do banho, que alguém de quem não gosta encoste nela,que os lençóis marquem suas bochechas de manhã. Amandine Poulain gosta: das roupas dos patinadores da TF1, de dar brilho no assoalho com pantufas, esvaziar a bolsa, limpá-la bem... e arrumá-la de novo.
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^ REFERÊNCIAS
Filmes: MARY e Max. Direção: Adam Elliot, Produção: Melanie Coombs. Austrália: Icon Entertainment International, 2010, 1 DVD.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Boitempo II – Menino antigo, Rio de Janeiro, Editora Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.
O FABULOSO destino de Amélie Poulain. Direção: Jean-Pierre Jeunet, Produção: Arne Meerkamp van Embden; Claudie Ossard; Jean Marc Deschamps. França: Miramax, 2001, DVD.
BRANDÃO, Luis Alberto. Grafias da identidade: Literaturas contemporâneas e o imaginário nacional, Rio de Janeiro/ Belo Horizonte: Lamparina editora/ Fale (UFMG), 2006. CADÔR, Amir, O livro de artista e a enciclopédia visual. Belo Horizonte: Editora Ufmg, 2016. DELEUZE, Gilles ; PARNET, Claire. Diálogos, São Paulo: Escuta, 1998. DERDYK, Edith. Disegno. Desenho. Desígnio, São Paulo: Editora Senac, 2007. LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1978. LOPES, Denilson. A delicadeza, Brasília: Editora UnB, 2007. MACIEL, Maria Esther, As ironias da ordem: Coleções, inventários e enciclopédias ficcionais. Belo Horizonte: Editora Ufmg, 2010. SAEZ, Juanjo. A arte conversas imaginárias com a minha mãe. São Paulo: Wmf Martins Fontes, 2013. SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós moderna. Rio de Janeiro: Ufrj, 1994. SILVEIRA, Paulo. A página violada: da ternura à injúria na construção do livro de artista. Rio Grande do Sul: UFRGS Editora, 2001.
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