“do outro”. Com isso, entende-se que a busca do reconhecimento implica certa reciprocidade – um processo iniciado por representantes de dois brasis nas cédulas do cruzeiro real. Dessa forma, percebe-se o quão esse breve processo monetário tratou os aspectos fragmentários da pós-modernidade, assim como da identidade nacional. Valorizar regionalismos – ainda mais os de um Brasil crioulo, representado por uma mulher negra com atributos de religiões de matrizes africanas – remodela culturas nacionais a partir desses sistemas culturais marginalizados que se interpenetram e se cruzam. Se identidades são considerados por Néstor Canclini (2005) como “objetos de encenação” – representando historiografias oficiais, por exemplo –, e se o dinheiro é um elemento da cultura material e narrativa oficial da identidade nacional, então o papel-moeda é, historicamente, um objeto de encenação da memória nacional. Ao se levarem em conta os conflitos sociais que acompanham a globalização e as mudanças multiculturais, fica implícito que o que ocorre com as indústrias é bem mais do que aquilo que vemos nos espetáculos da mídia. Parece necessário, pois, precisar nossa afirmação inicial: a identidade é uma construção, mas o relato artístico, folclórico e comunicacional que a constitui se realiza e se transforma em relação a condições sócio-históricas não redutíveis à encenação. A identidade é teatro e é política, é representação e ação. (CANCLINI, p. 138, 2005)
Ao aplicar isso às três cédulas em questão, percebe-se a possibilidade – da mesma forma do novo dólar com Harriet Tubman – de um deslocamento de poder ao converter patrimônios simbólicos tradicionais em uma concepção popular de “povo”. Historicamente, as identidades se constituem em contextos institucionais de ação, os conflitos se processando através de uma ordem sujeita a interações estabelecidas por um discurso oficial – como o papel-moeda –, que trabalha minuciosamente questões de representação. Não é irrelevante, portanto, os dois brasis retratados no cruzeiro real, por fazer circular um bem cultural (quase sempre) restrito à classe dominante. O fundamental aqui é entender que esse processo foi interrompido pelo real.
O real não-narrado No dia dez de janeiro de 1994 fui chamado no Gabinete do Meio Circulante, no centro da cidade, onde recebi essas incumbências e aí não nos restou outra alternativa a não ser utilizar desenhos notórios de fácil percepção e fixação pelo público e mais do que isso usar coisas já gravadas em outras ocasiões pregressas porque eu não teria tempo de fazer gravuras manuais. (...) A decisão foi o que: a Efígie da República que já estava gravada desde 1989, os reversos seriam animais da fauna brasileira, sem guardar nenhum compromisso com estar em extinção ou não estar em extinção. O depoimento de Carlos Roberto de Oliveira, então Diretor Técnico da Casa da Moeda e Superintendente do Departamento de Matrizes, sintetiza o processo criativo do real, executado em seis meses. As “incumbências” citadas por ele envolviam, dentre as decisões gráficas, uma superstição que uma manutenção do padrão visual teria um impacto psicológico negativo. Trata-se aqui particularmente de uma troca gráfica que agisse como uma “descontaminação” da percepção dos signos prévios de valor, sendo a eliminação de um elo da memória inflacionária. Ou seja, “a percepção coletiva do valor do numerário da nova família poderia ser contaminada se houvesse semelhança visual com as cédulas de padrões monetários anteriores, que sofreram com a inflação. Talvez esse aproveitamento gerasse a sensação coletiva de que as novas cédulas sofrem da mesma forma de desvalorização”. (SILVA, p. 244, 2008). Apesar dessa perspectiva, as decisões em relação ao real eram movidas majoritariamente pelo curto prazo. Amaury Silva relata que os animais, por exemplo, foram uma solução “para evitar problemas e ganhar tempo”. De acordo com o ex-projetista da Casa da Moeda, as pesquisas iconográficas dos padrões monetários anteriores são realizadas com “tranquilidade”, numa relação simbiótica com os familiares dos homenageados e de instituições