Marcelle Chaves Ferreira Pinto - DIVERTIDA MENTE: A RUPTURA A PARTIR DO OLHAR DA MEMÓRIA

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DIVERTIDA MENTE: A RUPTURA A PARTIR DO OLHAR DA MEMÓRIA Marcelle Chaves Ferreira Pinto Carlos Henrique Falci

RESUMO: Este artigo tem como objeto de pesquisa o filme Divertida Mente (2015), que aborda a ruptura com a infância, sendo que a trama principal ocorre dentro da mente da personagem Riley, de onze anos de idade. Desta maneira, a investigação pretende analisar este processo, do ponto de vista da memória e do esquecimento, a partir da análise da arquitetura da mente empregada pelo filme. Palavras-chaves: cinema, psicologia, memória, infância, adolescência, ruptura.

ABSTRACT: This article focuses on the film Inside Out (2015), which discusses the rupture with childhood, and the main plot takes place within the mind of character Riley, the eleven-year-old. In this way, the investigation intends to analyze this process from the point of view of memory and forgetfulness, as well as to understand the architecture of the mind employed by the film. Key Words: cinema, psychology, childhood, memory, adolescence, rupture.

1 INTRODUÇÃO Na história do cinema, os filmes representaram os mais diversos e inusitados ambientes, como na lua, em um planeta alienígena, em um possível mundo dos mortos, entre inúmeros outros. É importante que o espectador possa compreender e, se for o caso, se identificar com o universo do filme. Um ambiente, se é que podemos chamar assim, que muito nos cativa e indaga, é a mente humana. Lidamos com nosso cérebro, pensamentos e memórias a todo instante, no entanto ela é um conceito abstrato, uma vez que não podemos vê-la ou tocá-la. Na busca pela compreensão da mente, Eysenck e Keane (1994) citam uma metáfora de Platão, que associou a mente a um aviário, cujos pássaros aprisionados representavam as memórias, e cada pássaro capturado seria uma memória


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recordada. Existem diversas outras metáforas como a de Platão, mas como representar visualmente a mente humana, de forma a compreendermos seu funcionamento? Em 2015 foi lançado o filme “Divertida Mente”, dirigido por Pete Docter, cineasta e roteirista americano. A trama central se passa dentro da mente da personagem Riley Andersen, desde seu nascimento e concepção de sua primeiríssima memória, que foi conhecer seus pais, até o momento em que se passa o filme, aos onze anos de idade. Sua primeira memória é um grande evento no qual inaugura sua história, e nos é apresentado o mecanismo de organização de suas memórias. Sua mente possui uma sala de comando central, que é gerenciada por cinco emoções bases personificadas, como: Alegria, Tristeza, Medo, Nojinho e Raiva. Suas memórias estão sempre relacionadas a estas emoções, e são representadas por esferas coloridas brilhantes, cujas cores representam sua natureza emocional. Por exemplo: a cor que representa a personagem Tristeza é o azul, neste caso, memórias tristes terão a mesma cor. Existe uma classificação das memórias. As mais importantes, ou seja, as que carregam experiências muito significativas, e que formatam traços de sua personalidade, constituem o que é chamado de “Memórias Base”. Estas são mantidas em um local especial dentro da sala de comando. Como suporte, as Memórias Base criam “Ilhas” que as representam. Por exemplo, existe a ilha da família: criada a partir de memória base que carrega momentos importantes com seus pais, sempre que novas memórias associadas à sua família são adquiridas, a ilha é ativada. As demais memórias adquiridas durante o dia, no momento em que Riley dorme, são enviadas para o “Longo Prazo”. E por fim, há o penhasco do “Esquecimento”, que é um local escuro para onde são enviadas memórias que não têm sido solicitadas há algum tempo, o que significa que elas vão perdendo o brilho e tendem a desaparecer. O Plot da história se dá quando Riley descobre que sua família irá se mudar para São Francisco, isso faz com que ela deixe para trás seus amigos, todas as relações e histórias construídas em seus 11 anos de vida. Na chegada à nova casa, a mudança não ocorre conforme planejado, e, devido a estas circunstâncias, sua relação com seus pais não é a mesma. Estes acontecimentos atípicos fazem a personagem sentir-se deslocada e abandonada. Suas memórias, que antes eram


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majoritariamente alegres, estão agora relacionadas às demais emoções: nojo, medo, raiva e tristeza. Em seu primeiro dia de aula na nova escola, em sua apresentação pessoal para a turma, Riley nota que tudo que a definia, tudo o que ela fazia em sua antiga cidade, já não existe mais. Isto cria uma memória base triste, uma terrífica novidade na sala de comando, pois as memórias base sempre foram alegres. Para tentar evitar que a nova memória base se instale, Alegria provoca um acidente fazendo com que ela, Tristeza e todas as memórias bases sejam transportadas para o Longo Prazo, desativando assim todas as ilhas de personalidade de Riley. Após o ocorrido, Nojinho, Raiva e Medo têm grande dificuldade em comandar a mente de Riley sem Alegria, que, enquanto isso, tenta retomar a sala de comando com as memórias Bases. É possível notar que a mudança para outra cidade foi o primeiro e principal fator determinante de ruptura que causou a desordem na mente da personagem. No decorrer da história são apresentados diversos outros momentos de interrupção que afetam sua personalidade e que, especialmente, rompe uma conexão com a infância, como o esquecimento do amigo imaginário, Bing Bong. Peter Docter, quando iniciou a escrita do roteiro de Divertida Mente, buscou consultoria científica a Dacher Keltner e Paul Ekman, ambos psicólogos e pesquisadores da área da expressão emocional humana. Ekman é conhecido por pesquisas sobre emoções e suas relações com as expressões faciais. Segundo os consultores, os questionamentos de Docter e sua equipe eram, geralmente, sobre as relações entre emoção e memória, assim como emoções e fluxo da consciência, especialmente atreladas à vida emocional de uma criança de onze anos de idade. É correto afirmar que o foco principal do filme são as emoções, e, especialmente sobre a compreensão e aceitação do sentimento de tristeza. Inclusive, em um artigo da revista The New York Times, escrito pelos consultores Keltner e Ekman, eles assumem o posicionamento que, “Tristeza é a grande estrela do filme, uma vez que Divertida Mente é um filme sobre perda e o que as pessoas ganham quando guiados por sentimentos de tristeza.” (KELTNER; EKMAN, 2015, p.10, tradução nossa). 1 De maneira geral, os artigos encontrados sobre o filme, enfocam na questão das emoções de Riley. Diferente dos demais, no presente projeto, não será 1

“But the real star of the film is Sadness, for “Inside Out” is a film about loss and what people gain when guided by feelings of sadness.” (KELTNER; EKMAN, 2015, p.10.)


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abordada este aspecto do filme. O objetivo é explicar como é trabalhada a questão da ruptura com a infância a partir do ponto de vista da memória. A investigação se apoiará em alicerces psicológicos relativos à memória e esquecimento, sem entrarmos no mérito científico dessas associações, apenas como essas teorias motivaram a arquitetura da mente e o enredo do filme.

2 METÁFORA DA MEMÓRIA O que é uma memória? Memórias são matéria? São quantificáveis? Bem, não possuímos respostas precisas para estas perguntas. Todavia, segundo Brockmeier (2010), no senso comum cotidiano e científico ocidental, existe a assunção de que há um material específico, biológico, neurológico e espacial para a memória. Ele acrescenta que muitos acreditam que as memórias estão localizadas na mente ou cérebro das pessoas. Eysenck e Keane (1994) consideram que a memória humana possui uma estrutura e processos, sendo a primeira referente à organização do sistema de memória e os segundos às atividades que ocorrem dentro desta estrutura. Dentre os processos, há o armazenamento de memórias, para o qual os autores utilizam o conceito de “Metáfora Espacial”, em que “as memórias são tratadas como objetos armazenados em localizações específicas da mente. O processo de recuperação envolve uma busca através da mente para que se possam encontrar as memórias específicas.” (Eysenck e Keane, 1994, p.119). Ainda segundo o Eysenck e Keane (1994), a metáfora do aviário de Platão é considerada uma das primeiras metáforas espaciais, e todas elas existem com o mesmo propósito, que é a busca pela compreensão da arquitetura da mente humana, através de uma associação com mecanismos do cotidiano humano. Segundo Brockmeier (2010), desde a antiguidade, diversas variações de metáforas espaciais surgiram, mas trataremos de metáforas que envolvam o conceito de arquivo, que é uma das mais utilizadas para descrever memória. Segundo esse princípio, existiria um sistema de memória que possui a capacidade de “codificar”, “armazenar” e “recuperar” memórias. Dentre as metáforas de arquivo, existem inúmeras variações que envolvem associações com armazém, palácio, caverna, livro, biblioteca, por exemplo. Para ilustrar, utilizaremos a metáfora de Broadbent (1971), que sugere um sistema de memória organizado de forma análoga a uma biblioteca, ou seja, itens catalogados (codificação), e os que possuem assuntos relacionados, são armazenados próximo. Brockmeier (2010) afirma que


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mesmos os estudos mais modernos, apesar de não utilizarem uma metáfora para descrever o processo de armazenamento, se baseiam nestes três pilares: codificação, armazenamento e recuperação. Não há dúvidas de que Divertida Mente faz uso da metáfora do arquivo. As memórias são representadas como objetos, que seriam as esferas de memória. Estes possuem seus “locais específicos”, que seriam: a sala de comando da mente de Riley e o longo prazo. No decorrer do dia, as esferas vão preenchendo as prateleiras da sala de comando e no momento em que Riley dorme, marcando o fim daquele dia, as memórias são enviadas para o Longo Prazo, que, segundo os “manuais da mente de Riley” é um local onde existem “labirintos intermináveis de prateleiras” repletos de memórias. A descrição do Longo Prazo é semelhante à descrição de uma biblioteca com grande número de livros. A recuperação através da busca ocorre de duas maneiras: a primeira utilizando memórias presentes na sala de comando, e a segunda utilizando memórias que estão no Longo Prazo. É seguro dizer que o filme concretizou, visualmente, sua própria metáfora espacial da memória, segundo o conceito apresentado por Eysenck e Keane (1994). Serão demonstrados como os três pilares são projetados no filme. A relação das memórias com as emoções, e, por consequência visual, as diferentes cores, é a primeira maneira de codificação. A definição de memórias base é uma segunda maneira, embora não é um processo que ocorre com frequência. Segundo Ondaatje (2007, p.136) “Vivemos permanentemente na recorrência de nossas próprias histórias, seja qual for a história que contamos”. Aos onze anos de idade, as histórias em recorrência de Riley eram marcadas por memórias que envolviam: bobeira, amizade, hockey, honestidade e família, as quais constituíam suas “ilhas de personalidade”. O transporte das memórias da sala de comando para o longo prazo é feito, supostamente, pelo topo da mente de Riley, como se fosse o céu, e seguem brilhando em múltiplas direções. Neste momento em que elas são armazenadas notamos que não há uma ordem cronológica ou uma fila para executar o processo. No entanto, elas provavelmente seguem uma lógica de grupos por afinidade, conforme Alegria leu no “Manual da Mente: Recuperação de memória a longo prazo, volume 47: como ver memórias de longo prazo por subgrupos”. Estes elementos nos


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fazem acreditar que este armazenamento segue a lógica da metáfora de Broadbent (1971) como uma lógica de bibliotecas. Em diversos momentos, as emoções, principalmente a Alegria, recupera memórias, seja para direcionar as ações de Riley ou para consolá-la. Elas podem estar na sala de comando ou no longo prazo. Para fazer uso de uma memória adquirida no mesmo dia, o processo é simples e rápido, basta buscá-la na prateleira presente na sala de comando e colocá-la em uma espécie de projetor para ser exibida para Riley. E quando se trata de uma memória que já foi para o Longo Prazo, é feita uma solicitação através do módulo de comando, e a memória é enviada e projetada para ela.

3 LEMBRAR E IMAGINAR - A METÁFORA DA INFÂNCIA No filme há um personagem chamado Bing Bong, ele é considerado o amigo imaginário de Riley. Sua primeira aparição se deu aos 6 minutos e 6 segundos, Riley tinha três anos de idade nesta sequência, e ela o desenha na parede da sala de sua casa. Neste momento, ela traduz sua imaginação através de um desenho, marcando assim, o nascimento de Bing Bong. Durante a ação, ela canta uma música que nos apresenta quem ele é e que diz em seu trecho principal: "Meu amigo pra brincar... Bing Bong, Bing Bong! Em seu foguete a voar... Bing Bong, Bing Bong!". FIGURA 1: A PERSONAGEM RILEY DESENHANDO BING BONG.

Fonte: Filme Divertida Mente (2015).


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Este evento certamente acarretou em uma memória, e que, acrescido à imaginação, constituiu a personificação do amigo imaginário. Mas o quão imaginário realmente é Bing Bong? É no período da infância que a imaginação é mais aflorada, pois o mundo ao redor é repleto de novidades. As experiências, por, muitas vezes, não serem compreendidas, geram um mistério que faz com que a criança busque respostas às suas indagações em propostas de sua própria mente. A imaginação pode ser guiada também por histórias que lhe são contadas ou até mesmo por uma carência, o que gera na criança a necessidade de criar algo que possa preencher este vazio. Assim, Bing

Bong

carrega

uma

bolsa

imaginária

que

possui

uma

capacidade

aparentemente ilimitada de itens que podem ser carregados. Alegria se surpreende ao ver Bing Bong retirando inúmeros elementos da bolsinha, e ele retruca: “O que? Ela é imaginária!”. Quando existe o elemento da imaginação, existe uma “realidade” criada, que se adapta aos desejos ou necessidades do criador. Brockmeier (2010) afirma que, em termos neurológicos, quando recordamos, não somos capazes de distinguir quando se trata de uma memória de um fato ocorrido no mundo real ou da imaginação de um acontecimento (o que ele chama de lembrança “imaginada”). Em ambos os casos de recordação, segundo estudos mencionados por Brockmeier (2010), os circuitos e processos neurais envolvidos são os mesmos. Nesta perspectiva, levando em conta que Riley possuía memórias de momentos reais vividos junto a Bing Bong, poderíamos considerar que ele extrapola a existência apenas em sua mente ou imaginação. E, como defende Brockmeier (2010), em muitos casos as lembranças “imaginadas” são mais plausíveis e envolventes que o mundo real. Quando Alegria encontra Bing Bong pelo Longo Termo, eles relembram momentos em que ele e Riley tiveram experiências juntos, como tocar em uma banda, brincar com o foguete, etc. Ele lamenta ao dizer que “amigos imaginários não têm sido muito solicitados ultimamente”. Esta foi a primeira pista dada pelo filme de que a infância têm ficado para trás. Nas memórias citadas por Bing Bong, Riley tinha por volta de três anos de idade, ou seja, ela era claramente uma criança, enquanto que, no momento atual, em que ela possui onze, é um período de transição entre a infância e adolescência, considerada a pré-adolescência. Neste momento fica evidente que Bing Bong, caracterizado pelas atitudes sem julgamento, pela diversão e, especialmente a imaginação, representa uma


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metáfora para a infância, e mais que isso, no momento atual, a metáfora da infância em decadência. As memórias das brincadeiras com Bing Bong, assim como a presença da figura do amigo imaginário já não têm sido solicitadas há algum tempo, Isso demonstra que Riley está deixando esta fase para trás. O filme nos apresenta diversos momentos de ruptura com a infância, que serão tratados em nosso próximo tópico.

4 ESQUECIMENTO COMO RUPTURA COM A INFÂNCIA O último destino possível de uma memória é o esquecimento. No filme, este local é representado por um vale escuro, repleto de memórias e objetos que estão em processo de desaparecimento, por fim eles desaparecem, se tornam pó. Memórias presentes no Longo Prazo, que não são requisitadas por um grande período de tempo, vão paulatinamente desbotando, ou seja, perdendo o brilho. No filme há os personagens chamados metalúrgicos, que são funcionários que vistoriam o Longo Prazo, buscam por memórias desbotadas e analisam sua importância, caso eles a julgue irrelevante, as enviam para o esquecimento, ou “lixão” como eles chamam. Alegria, enquanto está perdida no Longo Prazo, os encontra e quer impedir que eles enviem para o esquecimento memórias que carregam, segundo eles: “os nomes de cada uma das princesas dos desenhos”, mas eles, sem hesitar, as descartam de toda forma. Neste acontecimento, fica mais evidente ao espectador que o momento atual se trata de uma ruptura com a infância. Augé (2001, p.23) propõe que: Recordar ou esquecer é fazer um trabalho de um jardineiro, selecionar, desbastar. As recordações são como as plantas: há algumas que é preciso eliminar rapidamente para ajudar as outras a desabrochar, a transformar-se, a florescer. (AUGÉ, 2001, p. 23).

Esta metáfora corresponde ao trabalho dos metalúrgicos, que estavam justamente eliminando memórias do passado, neste caso, da infância de Riley, para dar espaço às novas memórias que estão por vir. Augé (2001) também argumenta ser evidente que nossa memória ficaria saturada se tivéssemos que manter todas as imagens da infância, especialmente de nossa mais tenra infância, e afirma, porém, que ficam vestígios desta fase. Durante o passeio pelo longo prazo, é possível observar que todas as prateleiras estão abarrotadas de memórias, desta forma o


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trabalho de seleção e eliminação dos metalúrgicos é um trabalho constante, pois é importante esquecer, abrir espaço para as memórias do presente e para as que virão no futuro, ser capaz de saborear o novo e o instante. Alegria e Tristeza, enquanto tentavam retomar a sala de comando, guiadas por Bing Bong, entram na terra da imaginação, ele diz que vai lá sempre, e alega que praticamente manda neste local. Lá existem diversas estruturas e objetos frutos da imaginação e memórias de Riley, como o “bosque das batatas fritas” 2, uma cidade feita de nuvens e um rio de lava. No último é possível reconhecer os móveis da sala da casa de Riley, de quando ela, aos três anos de idade, brincou de “o chão é lava” 3. Eles se deparam com algo novo, que é uma máquina que produz namorado imaginário, Bing Bong disse nunca tê-lo visto por lá. Esse novo elemento da Terra da Imaginação revela o surgimento de demandas inéditas, e obviamente, mais um elemento que reforça que Riley está caminhando para uma nova fase de sua vida. Mais adiante eles se deparam com outras construções sendo destruídas e enviadas para o esquecimento, como o castelo de biscoito, o mundo das princesas, o museu dos ursos de pelúcia, e especialmente, o foguete de Bing Bong. Estes seriam outros acontecimentos que expressam a ruptura com a infância. Augé (2001) defende que existem três formas de esquecimento. A primeira é a do retorno, em que esquecemos o presente para recuperar o passado perdido. A segunda, a do suspenso, em que o passado e o futuro são esquecidos, ignorados, e é valorizado o instante presente, sem a preocupação com o que antecede o instante ou o que o sucede. E a terceira é a do recomeço, que consiste em “reencontrar o futuro esquecendo o passado, criar condições de um novo nascimento” (AUGÉ, 2001, p. 69). Dentre as três formas, a última representa o que têm ocorrido na mente de Riley, que é um novo nascimento, as boas vindas a uma nova fase. A mente da personagem vive uma espécie de reforma, onde elementos, como já citados, referentes à infância, são descartados para dar lugar ao novo, a pré-adolescência. A fábrica de namorados imaginários, certamente, é apenas o começo.

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Uma espécie de Jardim repleto de batatas fritas enormes e comestíveis. Brincadeira que consiste em imaginar que o chão está repleto de lava, então você deve evitá-lo, subindo em algum lugar. 3


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Quando Alegria e Bing Bong estão tentando sair do Esquecimento, eles utilizam o foguete voador de Bing Bong, cujo combustível é a música que Riley criou especialmente para ele. Após algumas tentativas de retorno ao Longo Prazo junto à Alegria, Bing Bong notou que não existia mais espaço para ele na vida de Riley, pois, como ele já havia dito antes, ela “está grandona e não caberá mais em seu foguete, ir para lua, nem pensar”. Mas ele viu que seu papel naquele momento era sacrificar sua própria existência para que a mente de Riley voltasse a seguir seu curso normal. E assim ele o faz, ele pula do foguete tornando possível o retorno de Alegria, quando ela chega, o foguete se desfaz. Bing Bong está no lixão, e já não possui todos seus membros, pois ele está desaparecendo, e pede à Alegria que leve Riley à lua por ele. O esquecimento do amigo imaginário é a ruptura mais explícita com a infância, e reforça a importância do esquecimento, do abrir espaço para o novo, visto que, se Bing Bong não tivesse deixado ser esquecido, Riley não teria conseguido retomar ao Longo Prazo. Seu pedido final: “leve ela à lua por mim”, são os vestígios da infância, pois Bing Bong pediu à Alegria que realize esta ambição da infância de Riley, ela disse que tentaria. Por fim, para retornar a sala de comando, Alegria utiliza inúmeros namorados imaginários como suporte. O retorno de Alegria marca a despedida da infância e as boas vindas à pré-adolescência. Uma vez que Alegria e Tristeza retomam a sala de comando, que estava em decadência com Tristeza no comando, fazem com que o módulo de controle volte a funcionar. Tristeza comanda a mente de Riley fazendo com que ela desista de fugir, volte e reencontre seus pais. No reencontro, ela se impõe a eles dizendo que a casa dela era em Minnesota e não em São Francisco, e ninguém a perguntou se ela gostaria de mudar, conclui dizendo que quer ir embora, mesmo que eles fiquem bravos. Essa fala carrega traços de um indivíduo autônomo, comportamento mais típico de um adulto, o que reafirma que ela não é mais apenas uma criança. Após o retorno para casa, durante a conversa com os pais, Alegria e Tristeza comandam a mente de Riley juntas, e, por ser um momento importante, se instituiu uma nova memória base, cuja natureza era mais complexa, híbrida das duas emoções. A sala de comando estava totalmente desconfigurada, as memórias bases antes lá presentes haviam retornado, porém utilizadas como suporte para que Riley pudesse expor seus sentimentos, o que ocasionou que elas não se


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qualificaram mais como memórias bases, por isso abriu-se espaço para outras novas e mais complexas memórias bases. Como resultado desta mudança na personalidade e nas memórias bases, as ilhas antes existentes foram restauradas e ampliadas, e novas foram inseridas, como a “Ilha dos Vampiros Românticos”, “Ilha Fashion” e a “Ilha dos Boys Band” 4, Medo espera ser “apenas uma fase”. Um novo, maior e mais complexo módulo de controle foi instalado. Raiva está animado, pois agora tem acesso à “lista inteirinha de palavrões”. Brockmeier (2010) se refere a estudos que afirmam que o cérebro é uma estrutura mutável, inconstante, e que, independente da idade, ele está em permanente mudança, se adaptando a novas circunstâncias. Sem dúvidas, isso se aplica ao cérebro de Riley.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Apesar desta pesquisa não ter englobado todas as estruturas e acontecimentos do filme, foi possível notar que o enredo foi construído, majoritariamente, apoiado em pesquisas e teorias psicológicas e científicas reais. Estes estudos, em suma, normalmente não cativam a todos os públicos, especialmente ao público infantil, mas o filme foi capaz de despertar interesse em público com amplo espectro de idades. A estética, a ludicidade e, principalmente, a forma didática e lógica como foi apresentada e desenvolvida a estrutura e os processos da mente da personagem, tornaram possível um entendimento desde crianças a adultos de idades mais avançadas. Não apenas atrelado ao fato do filme ter um embasamento científico, outro motivo, e talvez o principal, pelo qual o filme cativou a muitos, é a temática. Ele trata de processos que são humanos, que o público já experimentou ou que experimentará algum dia, que são processos de mudança, recomeço, incerteza, etc. Com esta pesquisa, é possível inferir que o conhecimento da mente humana, das pessoas como seres racionais e sentimentais é muito precioso quando se trata da construção de um produto direcionado às pessoas, que no caso se trata de um enredo de filme. O uso de conhecimentos da psicologia, antropologia, neurociência, entre outras áreas que investigam o ser, pode ser utilizado como um recurso literário e

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Representa as bandas musicais das quais Riley é fã.


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cinematográfico com potencial de resultados extraordinários. Existe todo um espectro da mente a se explorar, que vai além da representação do “louco” e dos distúrbios mentais, que é comum no cinema, como o filme Psicose (1961) dirigido por Alfred Hitchcock, Laranja Mecânica (1971) dirigido por Stanley Kubrick, Garota Interrompida (1967) dirigido por James Mangold, entre outros. Assim como Divertida Mente, os filmes citados, e inúmeros outros, usufruem de conhecimentos da área da psicologia e neurociência para a construção de seu enredo, porém com um diferente enfoque, nos distúrbios mentais. Para além do estudo das patologias, estas áreas do conhecimento buscam compreender a mente humana e seus processos naturais, que, apesar de grandes descobertas, ainda carrega grandes mistérios, que, por consequência, são passíveis de grande interesse do espectador. O filme em análise, foi capaz de representar cinematograficamente o aspecto científico dos processos da mente, relacionados às memórias, emoções e mudanças, a partir da mente de uma criança de onze anos de idade. Existem inúmeros outros processos e aspectos da vida que podem ser explorados no cinema em uma perspectiva similar à de Divertida Mente, como o processo de se apaixonar, se tornar mãe ou pai, envelhecer, etc.

6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AUGÉ, Marc. Les formes de l’oubli. Paris: Ed. Payot & Rivages, 1998. Publicado em português: As formas do esquecimento. Almada: Íman Ed., 2001.

BROADBENT, D. E. Decision and stress. London: Academic Press. 1971.

BROCKMEIER, Jens. Culture & Psychology. After the Archive: Remapping Memory. Sage. 2010. Disponível em: <http://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/1354067X09353212>. Acesso em: 10 de abril de 2018. EKMAN, Paul; KELTNER, Dacher. The Science of ‘Inside Out’. The New York Times. 5 de julho 2015. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2015/07/05/opinion/sunday/the-science-of-insideout.html>. Acesso em: 30 de janeiro de 2018.

EKMAN, Paul. Biografia. 2018. Disponível em: <https://www.paulekman.com/paul-ekman/>. Acesso em: 30 de junho de 2018.


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EYSENCK, M.W.; KEANE, M.T. Psicologia Cognitiva: um manual introdutório. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.

KELTNER, Dacher. Biografia. 2016. Disponível em: <http://keltner.socialpsychology.org/>. Acesso em: 30 de junho de 2018. ONDAATJE, Michael. Divisadero. Toronto, McClelland & Steward. 2007

7 FILMOGRAFIA

Divertida Mente. Pete Docter. Estados Unidos da América: Pixar Animation Studios e Walt Disney Pictures, DVD. 2015


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