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3. Estética, dispositivo e mídia digital
from Rodrigo Campos Rocha - Mariposas, vaga-lumes, instagrammers: subjetivações e dispositivos digitais
by Biblio Belas
Embora seja uma máquina que produz subjetividades, como pensa Agamben, ou uma "máquina de fazer ver e de fazer falar", segundo Deleuze (1993), o dispositivo não é necessariamente uma máquina concreta, é antes um conjunto de linhas. O dispositivo se compõe de linhas de visibilidade, linhas de enunciação, linhas de força, linhas de subjetivação, que se entrecruzam e se misturam. A linha de subjetivação é um processo, a produção de subjetividade em um dispositivo. A linha de visibilidade, o regime que regula o visível e o invisível, e a linha de enunciação, o regime que regula o enunciável e o indizível. Em cada dispositivo, as linhas atravessam limiares em função dos quais são estéticas, científicas, políticas, etc. Do ponto de vista do indivíduo, as linhas que o atravessam são diferenciadas em três qualidades: duras, maleáveis e de fuga. As linhas duras compreendem as normas e a estratificação, as linhas maleáveis (rizoma) permitem o fluxo, a desestratificação relativa, e as linhas de fuga, a ruptura e a experimentação, a desconstrução (DELEUZE e GUATTARI, 1995). O cruzamento dessas linhas implica em processos de sedimentação, trânsito ou ruptura de subjetivações, e destes processos de subjetivação-dessubjetivação resultam as subjetividades. Agamben (2009, p.46-49) observa que, na sociedade contemporânea, os processos de dessubjetivação ganham força. Os dispositivos com os quais temos que lidar na atual fase do capitalismo agem menos pela produção de um sujeito que pela dessubjetivação (p.46). Tais processos de dessubjetivação não dão lugar à recomposição do sujeito, como que ocorria no caso do dispositivo da confissão-penitência na igreja, um momento dessubjetivante que servia para restaurar a o processo de subjetivação. Além disso, ocorre a indiferenciação recíproca entre processos de subjetivação e processos de dessubjetivação, e tal indiferenciação leva à produção de "sujeitos espectrais". As sociedades contemporâneas se apresentam assim como corpos inertes atravessados por gigantescos processos de dessubjetivação que não correspondem a nenhuma subjetivação real.
3. Estética, dispositivo e mídia digital
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Buscando identificar o que há de novo nas mídias digitais, Manovich (2001b) enumera cinco princípios fundamentais - representação numérica, modularidade, automação,
variabilidade e transcodificação. A transcodificação produz a mais substancial consequência da informatização: a conversão da mídia, de todas as mídias, em dados. A mídia informatizada combina aspectos tradicionais da cultura humana com convenções maquínicas específicas da organização computacional de dados. Manovich argumenta que as "novas mídias" são compostas de duas camadas distintas: uma camada cultural e uma camada computacional. A primeira, com categorias como composição e perspectiva, estória e trama, mimese e catarse, tragédia e comédia; a segunda, com categorias como processamento, classificação, função e variável, algoritmo, banco de dados. Como as novas mídias são criadas, distribuídas e armazenadas por e em computadores, a camada computacional afeta cada vez mais a camada cultural das "novas mídias". A maneira como o computador modela o mundo, representa os dados e permite operar sobre eles, as convenções da interface homemcomputador, tudo isso "influencia a camada cultural das novas mídias: sua organização, seus gêneros emergentes, seus conteúdos"4 (2001b, p.64). A camada computacional também seria afetada pela camada cultural, mas o único argumento dado por Manovich é que o uso do computador como "máquina de mídia" vem influenciando a aparência das interfaces. Aqui Manovich se refere ao cultural como um aspecto da mídia-máquina. Para demonstrar que a visualidade da interface de um computador descende do cinema, toma o cinema apenas como uma forma cultural, adotando uma perspectiva formalista. Interessado meramente em "analisar continuidades entre a interface do computador e formas culturais, linguagens e convenções anteriores"5, Manovich (2001, P.79) conclui que uma mídia pré-existente (culturalmente assimilada) influencia outra mídia que lhe sucede no tempo. Manovich também irá abordar o cultural em seu sentido mais amplo e, além de um exame formal das novas mídias, procura verificar os efeitos da “revolução computacional” na cultura visual. A "infoestética" proposta por Manovich (2001a) diz respeito não somente aos objetos das novas mídias (websites, jogos, instalações interativas, animações computacionais, vídeo digital, interfaces homem-máquina), pois não se trata apenas de uma estética dos dados, das formas baseadas no computador, mas das tendências estéticas e estratégias criativas que podem ser encontradas através das várias áreas da cultura contemporânea. A infoestética não seria "apenas a estética dos dados, a infoestética é a nova
4Tradução do autor. No original: influence the cultural layer of new media: its organization, its emerging genres, its contents. 5Tradução do autor. No original: I am interested in analyzing continuities between a computer interface and older cultural forms, languages and conventions
cultura da sociedade da informação"6 . Manovich inspira-se no conceito de "informacionalismo" de Manuel Castells. O informacionalismo seria o paradigma que vem substituir o industrialismo, segundo Castells, com o aumento da capacidade humana de processamento de informação e comunicação promovido pelas revoluções na microeletrônica, software e engenharia genética. Considerando o informacionalismo paradigma tecnológico da base material das sociedades no início do século 21, Manovich se pergunta sobre seus efeitos na esfera da estética. Como Castells analisa o impacto das tecnologias da informação não só no trabalho intelectual, mas em todas as áreas da economia, Manovich projeta a influência das mídias digitais em outras mídias e áreas da cultura. Sua abordagem da questão da cultura e da arte na sociedade da informação, entretanto, se restringe a uma perspectiva formalista, tecnicista e semiótica.
Em seu Manifesto, Manovich quer inaugurar a "infoestética" como sucessora do modernismo e do pós-modernismo em razão de uma máquina-mídia, o computador: "nunca uma mesma máquina foi motor da economia e a principal ferramenta de representação"7. A lógica apresentada parece simples: ao surgir uma nova ferramenta técnica, deve surgir uma nova arte. "As novas estéticas da cultura da informação se manifestam mais claramente no software e nas interfaces do computador"8, argumenta. As novas formas culturais da sociedade da informação se encontram nas aplicações de computador empregadas na indústria e na ciência: simulação, visualização, banco de dados. A inauguração de um novo movimento-período estético na história compreenderia um único desafio: "descobrir como empregar essas ferramentas para criar uma nova arte."9 Em sua "infoestética", Manovich concebe estética como resposta estilística às novas tecnologias da informação. Baseia-se na tese de que o desenvolvimento do computador é determinante para o desenvolvimento de novas formas culturais e artísticas, ou seja, de que a revolução técnica gera uma revolução estética. Justamente o oposto desta tese é defendido por Rancière (2005, p.49), que afirma que "a revolução técnica vem depois da revolução estética".
6Tradução do autor. No original: "INFO-AESTHETICS is not only the aesthetics of data. INFO-AESTHETICS is the new culture of INFORMATION society." (Info-Aesthetics Manifesto) 7Tradução do autor. No original: "Never before a single machine was an engine of economy -- AND the main tool for representation" -INFO-AESTHETICS, Manifesto 8Tradução do autor. No original:"new aesthetics of information culture manifests itself most clearly in computer software and it interfaces"- INFO-AESTHETICS, Summary 9Tradução do autor. No original:"I argue that computer applications employed in industry and science –simulation, visualization, databases – are the new cultural forms of information society. The challenge before us is to figure out how to employ these tools to create new art " (Info-Aesthetics, Summary)
A proposição de que as artes mecânicas (fotografia e cinema) induziriam uma modificação no paradigma artístico remete a uma tese mestra do modernismo, tese que vincula a diferença das artes à diferença de suas condições técnicas ou de seu suporte ou medium específico. Ao insistir em uma essência formal do medium, das técnicas e características da tecnologia, Manovich tem portanto uma visão modernista (GALLOWAY, 2012, p.03). A mesma vinculação entre o estético e o onto-tecnológico se vê na tese benjaminiana sobre a arte na era da reprodução técnica. Para Rancière, entretanto, não é a natureza técnica da fotografia que a constitui como arte, mas a tematização do indivíduo comum, anônimo, qualquer. Essa desierarquização da representação possibilita que a reprodução mecânica (que se dirige a qualquer um) seja qualificada como arte, e é esta qualificação estética que possibilita o desenvolvimento da reprodução mecânica, e não o contrário.
O regime estético moderno compreende a ruína de um sistema hierárquico de representação, uma vez que tematiza o anônimo, a vida ordinária de um qualquer. Ao mesmo tempo, desenvolve uma linguagem capaz de abordar qualquer tema: o realismo. Mas essa desieraquização, que desvincula tema e forma e dá visibilidade ao qualquer um, antes de ser fotográfica ou cinematográfica, ocorreu na literatura e na pintura, afirma Rancière. A estética da modernidade proporciona visibilidade ao ordinário, ao anônimo, ao comum, com as mesmas tintas e telas com que quer dar visibilidade a tudo. Essa desierarquização, essa nova distribuição das competências do visível e do enunciável significa uma nova "partilha do sensível", uma revolução estética. A nova ciência histórica e as artes da reprodução mecânica se inscrevem na mesma lógica da revolução estética:
"Passar dos grandes acontecimentos e personagens à vida dos anônimos, identificar os sintomas de uma época, sociedade ou civilização nos detalhes ínfimos da vida ordinária, explicar a superfície pelas camadas subterrâneas e reconstituir mundos a partir de seus vestígios, é um programa literário, antes de ser científico". (RANCIÈRE, 2005, p.49)
A conexão entre estética e política é fundamental à concepção de "partilha do sensível" proposta por Rancière (2005). A política ocupa-se do que se pode ver e do que se pode dizer sobre o que é visto, assim como de quem tem competência para ver e dizer, baseando-se em um sistema de formas a priori (num sentido kantiano) que determina o que se pode sentir, fazendo um recorte do visível e do invisível, da palavra e do ruído, que define o
que está em jogo na política como forma de experiência. Este sistema que se encontra na base da política é a estética. Transformações estéticas resultam em transformações políticas e sociais, por isso, os movimentos artísticos são importantes. Sem o programa estético do idealismo alemão, Marx não poderia pensar o trabalho como essência genérica do homem. A ideia de trabalho como transformação da matéria sensível e sua apresentação à comunidade origina-se da ideia de arte como transformação do pensamento em experiência sensível à comunidade (no conceito de produzir, o fazer e o tornar visível se fundem). Uma estética contém uma visão de sociedade, projeta e potencia uma sociedade, pois se trata de uma partilha. Se a estética grega constituiu-se a partir da divisão e da distribuição entre as formas, os temas e as práticas artísticas de acordo com a hierarquia das classes sociais, era justamente contra a divisão entre aqueles que podem ver e dizer sobre o que se vê e aqueles que podem apenas ver, contra tal hierarquia social, que se colocava o idealismo alemão. Antes de Rancière, a ideia de que um regime estético predetermina procedimentos científicos foi apresentada por Paul Virilio (1994), em sua análise do desenvolvimento de procedimentos policiais e judiciais que substituem o ponto de vista e a narrativa-testemunho de uma testemunha real por tecnologias supostamente isentas das deficiências do olho humano e das aberrações da subjetividade. Uma pessoa só pode ver o que se encontra dentro do seu espectro visível, definido tanto pelos limitações da visão quanto pelos limites e deslimites da imaginação. Impressões digitais, câmeras de alta definição, sensores infravermelhos e aparelhos de telepresença produzem provas incontestáveis, ao passo que testemunhas cometem erros. Virilio (1994, p.45) identifica, na valorização do detalhamento, da objetividade do olhar da máquina ou da máquina que olha, "o nascimento do hiperrealismo na representação legal e policial". O hiper-realismo permite a construção do "ponto de vista policial", que substitui a visão humana, a impressão subjetiva, pela visão artificial, o registro objetivo, que as "máquinas que veem" proporcionam. A estética compreende um sistema relacionado não apenas à distribuição, mas também a produção, a regulação e a gestão/governo das visibilidades e das enunciabilidades. Tais processos implicam em papéis relativos a quem vê ou escuta/lê, a quem fala ou mostra, e estes papéis também são modos de subjetivação - produzem espectadores, artistas, críticos, colecionadores. Encontram-se aí as linhas principais de um dispositivo, assinaladas por Deleuze, a linha da visibilidade, a linha da enunciação e a linha da subjetivação. Nesse sentido, se pode entender a estética como dispositivo, ou falar de um "dispositivo estético".
Galloway (2012, p.64) entende o computador como uma mídia não-óptica, ou não-visual, e afirma que "qualquer um que queira encaixar computadores na estrutura da 'cultura visual' está sofrendo de uma desafortunada fetichização da interface física, como se o monitor de computador fosse um substituto adequado para o meio como um todo"10. Se o cinema pode ser uma ontologia, o computador é uma ética. Pois "o computador instancia uma prática, não uma presença, um efeito, não um objeto."11 Enquanto a linguagem opera (primariamente) no nível da descrição e da referência, a fim de codificar o mundo, o cálculo opera no nível da computação e do processo, a fim de agir sobre o mundo ou de simular agir sobre o mundo. O computador precisa ser compreendido em termos de ética, ou de política, por isso a análise formalista de Manovich se mostra equivocada. Se o cinema foi a mídia definidora do século vinte, as interfaces digitais semelhantes a games são algo mais que uma mídia.
Manovich negligencia a questão política na sua abordagem formalista da estética digital. Esse formalismo, entretanto, representa um gesto político, ainda que um gesto muito diferente daquele representado pelo radicalismo formal de Diziga Vertov, no início do século XX, e que Manovich quer continuar. A experimentação poético-tecnológica de Vertov significou uma nova estratégia ao realismo socialista soviético, uma inovação que exaltava a potencialidade da nova mídia-máquina, e o potencial da "câmera-olho" como documentário, em detrimento das ficções teatralizadas. O realismo socialista é um exemplo de um dispositivo estético-ideológico, o novo regime estético proposto por Vertov seria outro. O propósito do seu "cinema-verdade" era servir a mesma ideologia socialista. Ainda que propusesse menos uma transgressão do que uma alternativa de dispositivo estético ao socialismo soviético, o formalismo de Vertov era inovador na época12. Nos dias de hoje, a abordagem formalista das "novas mídias" feita por Manovich se insere em um contexto bastante diferente. Os princípios cinemáticos de Vertov encontram-se incorporados ao código (e Manovich de certa forma confirma isso, com sua tese de que a "imagem cinética" inaugurada pelo cinema tem continuidade na tela do computador, mas não aponta suas
10 Tradução do autor. No original: "anyone wishing to cram computers into the framework of 'visual culture' is certainly suffering from an unfortunate fetishization of the physical interface, as if the computer monitor were an adequate substitute for the medium as a whole" 11Tradução do autor. No original: "The computer instantiates a practice not a presence, an effect not an object." 12DzigaVertov lançou O Homem com a Câmera" em 1929