Manuel Alegre: Breve Antologia, por Ivone, Mariana, Matilde e Rodrigo

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Manuel Alegre Breve Antologia 2017/2018 Disciplina de Português Professora Cristina Matias

Escola Secundária Dr. Jorge Augusto Correia Realizado por Ivone Penteado, nº5 Mariana Correia, nº 7 Matilde Falcão, nº10 Rodrigo Viegas, nº13 12ºE

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Índice Prefácio .............................................................................................................. 2 Biografia do autor ........................................................................................... 7 Poemas de Manuel Alegre ................................................................................. 8 Nambuangongo meu amor ............................................................................ 9 Última Página ................................................................................................ 10 Como Ulisses te busco e desepero............................................................... 11 Minha pena minha espada ......................................................................... 12 Coisa amar .................................................................................................... 13 As Sete Penas do Amor Errante ................................................................... 14 O Cavaleiro .................................................................................................. 15 Coração Polar ............................................................................................... 16 Vírus .............................................................................................................. 17 Réquiem ........................................................................................................ 18 A Perigosa Mão de Deus ............................................................................. 19 Análise do poema “A perigosa mão de Deus” ................................................. 20 Bibliografia ....................................................................................................... 22

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Prefácio

O que é a poesia? A primeira resposta que nos ocorrerá falará de um género literário definido pela métrica dos seus versos e rimas, uma configuração de imagens ordenadas de maneira a evocar o belo e o esteticamente agradável. Para Aristóteles, a chave da poesia era − mais que a métrica, o ritmo e o verso − a sua capacidade mimética com que traduz imitações da natureza e das ações e sentimentos derivados da condição humana (isto, porém, num tempo em que qualquer obra, inclusive textos científicos, eram apresentados em composições poéticas). Mas será a poesia apenas isto?

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A revolução artística que se verificou no final do século XIX com o Impressionismo veio também afetar a produção literária. A preocupação principal da poesia não mais era apenas rimar, mas antes transmitir uma mensagem, a par do advento dos ideais socialistas. Em Portugal, a poesia assume este compromisso social com Cesário Verde, poeta deambulante que em palavras pinceladas em olhares fugazes retratava a realidade social da cidade de Lisboa. Apesar de tudo, Cesário Verde mantém uma cuidada preocupação com a estrutura métrica dos seus poemas: o verso livre ganha maior expressão em Portugal com o Futurismo, em particular na poesia de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa. Com a ascensão do Estado Novo, instalando-se a opressão em Portugal, a poesia assume então uma postura combativa disfarçada pela metáfora, como é exemplo a obra poética de Miguel Torga. Surge uma nova geração de poetas contemporâneos, delatores das violações dos direitos individuais e humanos perpetrados pelo regime salazarista. Manuel Alegre, já na altura um fervoroso líder estudantil e crítico da ditadura, destacado para combater na Guerra Colonial, impressiona-se com a desnecessidade do confronto bélico e recusa-se a combater. Captura o terror vivido em poemas como “Nambuangongo meu amor”1:

Em Nambuangongo tu não viste nada Não viste nada nesse dia longo longo A cabeça cortada E a flor bombardeada Não tu não viste nada em Nambuangongo. retratando na primeira pessoa o ocultar dos crimes de guerra e o conflito facínora que se travava em África numa aberta afronta ao regime. Preso político, mais tarde exilado, torna-se no característico “poeta da resistência”. Para Manuel Alegre, o poeta é mais que um artista, mais que um fingidor, é sim «um homem a cantar/ um homem que está nu com todos os seus músculos/ a soluçar numa guitarra destroçada/ e todavia iluminada e viva2» (Alegre 2000:142), um relator da atualidade comprometido com a defesa da liberdade, e é então isso que faz por ser. Ao longo dos seus poemas, é característica a vertente socialista com que, a seu ver, denuncia a incorreta estruturação da sociedade, apesar de na altura ainda não se definir como militante do Partido Socialista português, como ocorrerá pouco tempo depois do 25 de Abril de 1974.

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“Nambuangongo meu amor”, in Praça da Canção,1965 “O poeta” in Praça da Canção, 1965

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Do seu exílio em Paris brotam poemas plenos de saudosismo do país que pinta como «uma fronteira violada entre um pinheiro e a lua3» (Alegre 2000:196), poemas que falam das notícias parcas e dispersas, de um Portugal feito «pátria derramada/ na Gare de Austerlitz.4» (Alegre 2000:202). Exilado e remoto, surge assim a apologia do «guerrilheiro/ que traz a tiracolo/ uma espingarda carregada de poemas5» (Alegre 2000:60) em defesa da posição tomada face à Guerra Colonial, retomada na sua obra Che (1997), onde Alegre afirma veementemente que uma guerrilha não precisa de partir de um movimento armado, que uma guerra não tem necessariamente de culminar num confronto bélico: compete a cada um de nós proclamar-nos em confronto com a injustiça e combatê-la, assim exortando a um ativismo político reforçado e exercido pelos cidadãos. Serve-se da figura mítica de Ernesto “Che” Guevara, revolucionário argentino em solo cubano, para demonstrar como a revolução pode ser feita em qualquer parte sem no entanto se perder a identidade com a pátria.

É sempre possível acordar uma manhã e dizer não vou. E decidir ficar em casa. Fechar-se no próprio quarto e proclamar a serra é aqui.6 Manuel Alegre parte também em combate contra o imperialismo em prol do cultivo de uma identidade e entidade nacional, servindo-se múltiplas vezes da batalha de Alcácer Quibir e da figura do rei D. Sebastião como alegoria para a Guerra Colonial. O mais duro apelo à renúncia das grandezas de um império para se direcionarem as atenções para a construção de um «outro Portugal em Portugal» (Alegre 2001:50) surgirá também em O Canto e as Armas, no poema “É preciso um país”:

Não mais Alcácer Quibir. É preciso voltar a ter uma raiz um chão para lavrar um chão para florir. É preciso um país. chegando nesta obra inclusive a incitar o enterro de D. Sebastião, numa alusão à necessidade de pôr em prática os mitos. É esta abordagem pragmática aos 3

“Paris não rima com o meu país”, I, in O Canto e as Armas,1967 “Portugal em Paris” in O Canto e as Armas,1967 5 “Praça da Canção – Apresentação” in Praça da Canção,1965 6 In Che, 1997 4

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simbolismos da mitologia portuguesa que o destaca de Fernando Pessoa com a sua Mensagem, onde o poeta modernista coloca figuras históricas ao nível de mártires messiânicos − Alegre sugere que a concretização do Portugal por cumprir reside no trabalho cívico, não em utopias vindouras. Alegre nunca esquece, porém, a identidade peregrina no português, já abordada por Pessoa, e retrata-a ao longo do Livro do Português Errante (2001), uma obra sempre em articulação e diálogo com vários outros autores portugueses, desde Saramago (sendo exemplo “A perigosa mão de Deus”) e Sophia de Mello Breyner (“Carta a Sophia ou O Quinto Poema do Português Errante”) ao omnipresente na sua obra lirismo camoniano, estabelecendo uma forte intertextualidade que o sagra como um ávido conhecedor da tradição literária portuguesa e um seu continuador e inovador. Marca da sua obra é o tom coloquial, oralizante e metafórico com que expõe as suas ideias, à semelhança de outros autores seus contemporâneos como José Saramago ou Vasco Graça Moura. Deste modo se abordam os temas de forma exotérica, apesar da forte codificação metafórica já referida − nunca abandonada mesmo caída a ditadura − , e assim Manuel Alegre canta o amor como uma Ilha de Ítaca, ou exprime, à maneira de um Antero de Quental, a refutação de temas religiosos ou bíblicos (como no “Sermão da Montanha” ou em “A perigosa mão de Deus), sem nunca perder a orientação de poetas clássicos como Dante Alighieri (1265-1321) ou o mestre deste, Virgílio (70 a.C.-19 a.C.) Em 2001, Manuel Alegre condensa uma larga parte da sua obra em Obra Poética, reunindo poemas que pautam toda uma carreira e seguem o desenvolver de Portugal ao longo da linha diegética que cobre a obra do poeta. Nesta antologia, isso é verificável pela seleção sintética de poemas que demonstram a metamorfose do espaço contemporâneo: nos poemas retirados de Praça da Canção ou O Canto e as Armas (obras estas compreendidas entre 1965 e 1967), transparece no cenário social a guerra, o exílio; já a partir de 1976 (ultrapassada a ditadura, o Verão Quente e o PREC), Manuel Alegre alonga-se sobre a temática do amor, numa cruzada para quebrar tabus remanescentes da sociedade fascista e tradicionalista; vincada a República, estabelecidos os baluartes da democracia, retoma-se a tradição literária, através de poemas comunica-se com outros autores, captura-se da essência do que é ser português em Portugal. O que é, afinal, a poesia? Manuel Alegre, no seu site, entende-a como uma «experiência mágica, algo que está aquém e além da literatura». Vê-a nascida da dança e do ritmo − ritmo esse elemento primordial, nascido da «batida do coração e da própria pulsação da terra». Como declara no seu “Quase um autorretrato”: «É outra 5


forma de escrita. Intensa, densa, tensa. Como o amor. E talvez a morte». Manuel Alegre impressionou-se outrora com André Gide7, que declara ter chegado à conclusão que cada um é o que imagina que é; talvez a poesia seja isso mesmo: talvez seja relativa, subjetiva, verdadeiramente questão de ritmo − o produto do que cada um quer fazer com o ritmo das coisas.

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André Gide (1869-1951), escritor francês galardoado com o Prémio Nobel da Literatura em 1947,

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Biografia do autor Manuel Alegre de Melo Duarte nasceu a 12 de maio de 1936 em Águeda. Mais tarde veio a estudar Direito na Universidade de Coimbra, cidade onde dirigiu o jornal A Briosa e onde foi redator da revista Vértice e Colaborador da Via Latina. Foi também em Coimbra que fundou o CITAC (Centro de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra), membro do TEUC (Teatro de Estudantes da Universidade de Coimbra), e distinguiu-se como campeão nacional de natação e como atleta internacional pela Associação Académica da Universidade de Coimbra. Tendo apoiado abertamente a candidatura de Humberto Delgado8, e assim chamando para si as atenções do regime salazarista, foi mobilizado em 1962 para Angola, onde foi preso pela PIDE durante 6 meses, por se recusar a participar na guerra colonial. Exila-se, primeiro em Paris, vindo depois a passar dez anos em Argel, onde foi o principal responsável e locutor da emissora A Voz da Liberdade, tornando-se assim um ícone de resistência ao regime ditatorial. Embora no exílio, as suas obras escapam clandestinamente à censura e tornam-se símbolos da intervenção portuguesa. Regressa finalmente a Portugal a 2 de Maio de 1974, dias após o 25 de Abril. Torna-se militante do Partido Socialista, pelo qual foi membro do Conselho do Estado desde 1995. Em 2005 candidatou-se à Presidência da República, como independente, tendo obtido mais de 1 milhão de votos nas eleições presidenciais de 22 de Janeiro de 2006, ficando em segundo lugar, à frente do candidato do PS, Mário Soares. A 23 de Julho de 2009 despediu-se do lugar de Deputado, tendo exercido funções durante 34 anos. No ano de 2017, foi galardoado com o Prémio Camões e doutorado "honoris causa" pela Universidade de Pádua, universidade essa que, em 2010, inaugurou a cátedra Manuel Alegre, dedicada ao estudo da língua portuguesa. A sua obra conta com um vasto reconhecimento internacional, estando traduzida em mais de sete línguas.

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Célebre militar português, conhecido como “o general sem medo” por ter encabeçado o principal movimento de tentativa de derrube do regime salazarista através das eleições presidenciais de 1958. Foi assassinado em Olivença, Espanha, em 1965, por agentes da PIDE.

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Poemas de Manuel Alegre

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Nambuangongo meu amor In Praça da Canção, 1965

Em Nambuangongo tu não viste nada não viste nada nesse dia longo longo a cabeça cortada e a flor bombardeada não tu não viste nada em Nambuangongo.

Falavas de Hiroxima tu que nunca viste em cada homem um morto que não morre. Sim nós sabemos Hiroxima é triste mas ouve em Nambuangongo existe em cada homem um rio que não corre.

Em Nambuangongo o tempo cabe num minuto em Nambuangongo a gente lembra a gente esquece em Nambuangongo olhei a morte e fiquei nu. Tu não sabes mas eu digo-te: dói muito. Em Nambuangongo há gente que apodrece.

Em Nambuangongo a gente pensa que não volta cada carta é um adeus em cada carta se morre cada carta é um silêncio e uma revolta. Em Lisboa na mesma isto é a vida corre. E em Nambuangongo a gente pensa que não volta.

É justo que me fales de Hiroxima. Porém tu nada sabes deste tempo longo longo tempo exactamente em cima do nosso tempo. Ai tempo onde a palavra vida rima com a palavra morte em Nambuangongo.

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Última Página In Praça da Canção, 1965

Vou deixar este livro. Adeus. Aqui morei nas ruas infinitas. Adeus meu bairro página branca onde morri onde nasci algumas vezes. Adeus palavras comboios adeus navio. De ti povo não me despeço. Vou contigo. Adeus meu bairro versos ventos. Não voltarei a Nambuangongo onde tu meu amor não viste nada. Adeus camaradas dos campos de batalha. Parto sem ti Pedro Soldado.

Tu Rapariga do País de Abril tu vens comigo. Não te esqueças da primavera. Vamos soltar a primavera no País de Abril. Livro: meu suor meu sangue aqui te deixo no cimo da pátria Meto a viola debaixo do braço e viro a página. Adeus.

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Como Ulisses te busco e desespero In O Canto e as Armas, 1967

Como Ulisses te busco e desespero como Ulisses confio e desconfio e como para o mar se vai um rio para ti vou. Só não me canta Homero. Mas como Ulisses passo mil perigos escuto a sereia e a custo me sustenho e embora tenha tudo nada tenho que em te não vendo tudo são castigos. Só não me canta Homero. Mas como Ulisses vou com meu canto como um barco ouvindo o teu chamar - Pátria Sereia Penélope que não te rendes – tu que esperas a tecer um tempo ideia que de novo teu povo empunhe o arco como Ulisses por ti nesta odisseia.

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Minha pena minha espada In O Canto e as Armas, 1967

Dois países num país Canto o escravo ou o senhor Canto a dor que se não diz Canto a dor Minha pena a quem prendeu Guitarras com que cantavas Solta as aves que cresceram Nas palavras Rasga os silêncios e canta Vestida de terra e lua Solta o vento na garganta Desce à rua Minha pena baioneta Meu navio a minha enxada Minha pena de poeta Minha espada Esta rua é teu país E a quem se senta no trono Vai e diz, vai e diz Os homens não têm dono

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Coisa Amar In Coisa Amar, 1976

Contar-te longamente as perigosas coisas do mar. Contar-te o amor ardente e as ilhas que só há no verbo amar. Contar-te longamente longamente. Amor ardente. Amor ardente. E mar. Contar-te longamente as misteriosas maravilhas do verbo navegar. E mar. Amar: as coisas perigosas. Contar-te longamente que já foi num tempo doce coisa amar. E mar. Contar-te longamente como doi desembarcar nas ilhas misteriosas. Contar-te o mar ardente e o verbo amar. E longamente as coisas perigosas.

Ilustração 1 Gustav Klimt , O Beijo, 1908 óleo sobre tela,1,8x1,8m, Österreichische Galerie Belvedere, Viena, Áustria

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As Sete Penas do Amor Errante In Atlântico, 1981 Eu não sei se os teus olhos se gaivotas mas era o mar e a Índia já perdida as ilhas e o azul o longe e as rotas minha vida em pedaços repartida. Eu não sei se o teu rosto se um navio mas era o Tejo a mágoa a brisa o cais meu amor a partir-se à beira-rio em uma nau chamada nunca mais.

Eu não sei se os teus dedos se as amarras mas era algo que partia e que ficava. Ou talvez cordas de guitarras ó meu amor de embarque desembarque. Eu não sei se era amor ou se loucura mas era ainda o verbo descobrir ó meu amor de risco e de aventura não sei se Ceuta ou Alcácer Quibir. Eu não sei se era perto se distante mas era ainda o mar desconhecido ou Camões a penar por Violante as sete penas do amor proibido. Eu não sei se ventura se castigo mas era ainda o sangue e a memória talvez o último cantar de amigo amor de perdição amor de glória. Eu não sei se teu corpo se meu chão mas era ainda a terra e o mar. E em cada teu gesto a grande peregrinação das sete penas do amor lusíada. 14


O Cavaleiro In Atlântico, 1981

Talvez o espere ainda a Incomeçada aquela que louvámos uma noite quando o abril rompeu em nossas veias. Talvez o espere a avó o pai amigos e a mãe que disfarça às vezes uma lágrima. Talvez o próprio povo o espere ainda quando subitamente fica melancólico propenso a acreditar em coisas misteriosas. Algures dentro de nós ele cavalga algures dentro de nós entre mortos e mortos. É talvez um impulso quando chega maio ou as primeiras aves partem em setembro. Cargas e cargas de cavalaria. E cercos. Conquistas. Naufrágios naufrágios. Quem sabe porquê. Quem sabe porquê. Entre mortos e mortos algures dentro de nós. Quem pode retê-lo? Quem sabe a causa que sem cessar peleja? E cavalga cavalga. Sei apenas que às vezes estremecemos: é quando irrompe de repente à flor do ser e nos deixa nas mãos uma espada e uma rosa.

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Coração Polar In Senhora das Tempestades, 1998

Não sei de que cor são os navios quando naufragam no meio dos teus braços sei que há um corpo nunca encontrado algures e que esse corpo vivo é o teu corpo imaterial a tua promessa nos mastros de todos os veleiros a ilha perfumada das tuas pernas o teu ventre de conchas e corais a gruta onde me esperas com teus lábios de espuma e de salsugem os teus naufrágios e a grande equação do vento e da viagem onde o acaso floresce com seus espelhos seus indícios de rosa e descoberta.

Não sei de que cor é essa linha onde se cruza a lua e a mastreação mas sei que em cada rua há uma esquina uma abertura entre a rotina e a maravilha há uma hora de fogo para o azul a hora em que te encontro e não te encontro há um ângulo ao contrário uma geometria mágica onde tudo pode ser possível há um mar imaginário aberto em cada página não me venham dizer que nunca mais as rotas nascem do desejo e eu quero o cruzeiro do sul das tuas mãos quero o teu nome escrito nas marés nesta cidade onde no sítio mais absurdo num sentido proibido ou num semáforo todos os poentes me dizem quem tu és. Ilustração 2 William Turner, Chichester Canal, c.1828, óleo sobre tela, 6,54x13,46cm, Tate Britain, Londres 16


Vírus In O Livro do Português Errante, 2001

O buraco de ozono está nos versos há um rio poluído um efizema a cidade morrendo-se e dois terços da humanidade fora do poema.

Há um vírus nas sílabas de abril um tóxico no ritmo e na palavra há pássaros que trazem Chernobyl e já não fala a água que falava.

Na terzza rima alteração genética há uma aranha a cantar de cotovia de pernas para o ar Hegel e a estética

Eis o inferno. E já não há Virgílio para guiar-me a um reino de harmonia. Por isso o meu cantar é outro exílio.

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Réquiem In O livro do Português Errante, 2001

Há mortos que demoram a morrer é inútil sepultá-los eles voltam demoram-se por vezes numa sombra num braço de cadeira ou no rebordo partido de uma chávena. Ou então escondem-se em pequenas caixas sobre as mesas. Há objectos que ficam cheios deles são como o resto transmudado dos ausentes sua marca na casa e no efémero. Por isso custa tanto retirar o prato e o talher arrumar os fatos desfazer a cama. Há mortos que nunca mais se vão embora. Há mortos que não param de doer.

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A Perigosa Mão de Deus In O livro do Português Errante, 2001

Deus é maneta diz Saramago só tem a mão direita à direita da qual todos se sentam Eu canto a outra mão de Deus a que traz o Diabo pela trela a que por vezes puxa para o outro lado e escreve sempre por linhas tortas a mão esquerda de Deus a mão de sombra a mão do medo a mão do nada a mais perigosa mão de Deus aquela que de repente solta o espírito o enxofre a guerra o vento mau. É a mão esquerda de Deus que aperta o coração acelera o pulso desarticula o ritmo. Os poetas estão sentados à esquerda da mão esquerda de Deus até mesmo Antero. É com ela que Deus abana o Mundo com sua chuva e com seu fogo sua onda gigante e seu terrível terramoto. Não é verdade que Deus seja maneta Deus é canhoto.

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Análise do poema “A perigosa mão de Deus”

“A Perigosa Mão de Deus” é um poema exemplar da continuidade da tradição literária na obra de Manuel Alegre. O poema marca-se pela intertextualidade com vários autores portugueses, como José Saramago, Eça de Queirós e Antero de Quental O poema abre-se com uma referência à obra Memorial do Convento, de José Saramago, aludindo ao momento em que a personagem Baltasar Sete-Sóis inquire o padre Bartolomeu Lourenço acerca da perda da sua mão, recebendo como resposta que, na opinião do padre, o próprio «Deus é maneta», posto que não encontrou, durante os seus estudos, nenhuma alusão à mão esquerda de Deus. No entanto, Manuel Alegre opõe à mão da criação − e à direita da qual se sentam os justos − , a mão da destruição, «a que traz o Diabo pela trela» (v. 6), responsável por todo o dano infligido à humanidade, abandonando-se então numa desenfreada enumeração metafórica que isto mesmo ilustra: “a que por vezes puxa para o outro lado/ e escreve sempre por linhas tortas/ a mão esquerda de Deus/ a mão de sombra a mão do medo/a mão do nada/ a mais perigosa mão de Deus/ aquela que de repente solta o espírito/o enxofre a guerra o vento mau./ É a mão esquerda de Deus que aperta o coração/ acelera o pulso/ desarticula o ritmo.” (vv.7-17). Chega mesmo a afirmar que, em oposição aos justos, os poetas se sentam «à esquerda da mão esquerda» (v. 18), e, contrariando Eça de Queirós (que nomeia Antero de Quental, seu contemporâneo, de «um génio que era um santo» nas suas Notas Contemporâneas) e o próprio Antero de Quental (que no seu poema “Na mão de Deus”, declara que «na sua mão direita/ Descansou afinal meu coração»), afirma que até mesmo Antero se inclui entre esses poetas – em possível alusão à alma conturbada que partilham muitos poetas, e por do mesmo modo não partilharem desse favoritismo de Deus por quem cumpre a Sua vontade (os poetas são assim retratados como incómodos à sociedade em que vivem). Será sempre de salientar que Manuel Alegre se marca pelo intervencionismo da sua poesia, e este poema, terminado quase que em chave d’ouro, culmina numa alargada denúncia à precariedade da condição humana, pautada pela instabilidade da própria Terra em que vive: “É com ela que Deus abana o Mundo/com sua chuva e com seu fogo/ sua onda gigante e seu terrível/ terramoto.” (vv.21-24) e pela fugacidade da vida: “É a mão esquerda de Deus que aperta o coração/acelera o pulso/ desarticula o ritmo.” (vv.15-17), quando, num grito herético, declara que «Deus é canhoto» (v.26).

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Este poema será, então, endereçado aos crentes, que defendem a Humanidade tutelada pela providência divina: Deus não apenas escreve direito por linhas tortas, como por elas escreverá com a mão esquerda; os feitos da Humanidade não se alcançaram por providência divina, mas sim pelo esforço contra as adversidades colocadas por esta. A figura de Deus surge, deste modo, na poesia de Alegre como uma entidade alheia, sem laivos paternais, somente cruéis.

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Bibliografia Alegre, M. (2000). Obra Poética (2ª ed.). Lisboa: Publicações Dom Quixote. Alegre, M. (2001). Livro do Português Errante (2ª ed.). Lisboa: Publicações Dom Quixote. Alegre, M. (s.d.). Biografia. Obtido de Manuel Alegre: http://www.manuelalegre.com/101000/1/,000021/index.htm Alegre, M. (s.d.). Quase um auto-retrato. Obtido de Manuel: http://www.manuelalegre.com/101000/1/,000020/index.htm ? Macedo, G. N. (2017). Algumas notas sobre Aristóteles e a definição de poesia. Obtido de Estadão: http://cultura.estadao.com.br/blogs/estado-da-arte/algumas-notas-sobre-aaristoteles-e-a-definicao-de-poesia/ Significado de Poesia. (s.d.). Obtido de Significados: https://www.significados.com.br/poesia/

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Escola Secundรกria Dr. Jorge Augusto Correia Marรงo 2018

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