Passaporte para um dia feliz
Hoje, quando estava a conduzir para casa, perto da minha antiga escola, parei na passadeira. Dei prioridade, como dita a regra, ao peão que muito atento olhava para os dois lados e não se atrevia a passar sem os carros estarem completamente imóveis. Talvez lhe dê mais segurança ou talvez seja sermão dos pais, mas o que é certo é que o moço lá focou as suas forças na travessia retilínea. Ia, desengonçado, com a sua mochila, a saltitar nas linhas brancas. Lembrei-me que também o fazia. Era como um jogo. A regra era simples: não tocar no alcatrão preto. Não era um jogo de estratégia, de equipa ou de sorte, e cálculo pouco tinha… era uma brincadeira de significado. Talvez se só pisasse o branco, a escuridão da vida não me apanhasse. E assim vivia na ingenuidade ignorante, na crença de que o contacto entre a sola de borracha dos meus ténis e o alcatrão pintado de branco eram como um passaporte para um dia feliz. E eram mesmo talvez. Trata-se de acreditar. Damos significado a tudo e é isso que nos constrói, mas o que será o conceito de significado se não uma concordância abstrata em número e forma?
Talvez as minhas riscas brancas em alcatrão sejam agora outro ritual qualquer… outra mera crença secreta. O que me parece é que a confiança das riscas brancas já não volta, ficaram apenas os restos mortais da necessidade de significado e talvez, pelas gavetas e no meu inconsciente profundo, os amuletos da sorte. Que saudades que tenho de sentir essa leveza de acreditar sem questionar.
Num segundo, passou a criança como uma gazela na mira do predador, aos saltos energéticos, fugaz e feliz… E assim segui o meu caminho, como quem vê um pássaro a regressar ao ninho.
Joana Monteiro, 12.º A2. Professora: Ana Rita Diniz Semana da leitura, 2021