Psicologia: ficha clínica de um paciente

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PSICOLOGIA

[TRABALHO CRIATIVO

Ficha Clínica nº 197-53

Psiquiatra: Vladyslava Shoturma

Hospital Psiquiátrico Conde de Ferreira

Biblioteca da Escola Secundária Dr. Jorge Augusto Correia, Tavira


HOSPITAL PSIQUIÁTRICO CONDE DE FERREIRA

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História Clínica Psiquiátrica

Identificação pessoal

Nome: Marcelo Reis Sexo: Masculino Idade: 28 anos Data de Internamento: 6 de abril de 2012 Raça: Caucasiana Religião: Ateu Morada: Rua das Andorinhas, nº 29, 4400-571 – Vila Nova de Gaia Estado civil: Solteiro

Motivo de internamento

O paciente foi encaminhado pela Casa da Misericórdia do Porto por ter sido encontrado nas ruas a prostituir-se a fim de poder comprar drogas, algo que tem vindo a fazer há algum tempo. Foi, portanto, internado devido ao abuso de substâncias ilícitas e risco de exposição. O paciente já tinha sido anteriormente internado no Hospital Psiquiátrico Júlio de Matos, em Lisboa, a pedido do mesmo.

Antecedentes Hereditários

Avô paterno esquizofrénico; Avó materna morreu de cancro (não especificado).

Antecedentes Familiares

O núcleo familiar do paciente é formado por 4 membros: o paciente, a mãe, o pai e a irmã mais nova. Os pais encontram-se hoje divorciados, ambos pertencentes a uma classe socioeconómica baixa. O paciente viveu com a mãe e a irmã até aos 9 anos de idade. Na altura a mãe prostituía-se, tendo trazido inclusive clientes para casa com os filhos presentes. Aos 9 anos


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foi abusado sexualmente por um tio materno. Nessa altura mudou-se para a casa do pai, período de tempo marcado pela violência doméstica e discussões acesas, muito stressante para ambos. O pai é toxicodependente. Aos 15 anos de idade o paciente foi expulso de casa pelo pai e foi morar para as ruas, tornando-se sem-abrigo. Começou então a prostituir-se e a abusar de drogas. Mais tarde, depois de ter sido internado pela primeira vez, volta a morar com a mãe e a irmã, desta vez com o padrasto também, sendo que é com eles que mora atualmente.

Antecedentes Escolares

Sofreu tanto de bullying quanto de abusos sexuais na Escola. Era um aluno mediano e concluiu o 12º ano de escolaridade. Não prosseguiu os estudos.

História Ocupacional

Teve, entre outros de curta duração, 3 empregos mais ou menos estáveis e de longa duração. O primeiro, numa loja de uma cadeia de fast-food, durou cerca de 3 anos. O segundo obteve-o aos 22 anos numa loja de música; trabalhou aí durante 4 anos e foi a partir daí que cresceu o seu interesse pela música, tendo começado a tocar bateria. Formou uma banda e pouco tempo depois começou a atuar em pequenos bares locais. O último emprego que teve foi num bar local, no qual era, de dia, empregado de mesa, e à noite, músico, juntamente com os seus colegas de banda.

Condição aquando do internamento do paciente

Na primeira entrevista realizada ao paciente este revela já ter sido internado anteriormente, em Lisboa, a pedido do próprio, visto os seus “11 amigos” o incomodarem frequentemente. O paciente justificou o uso de drogas como uma tentativa de esquecer os “11 amigos”, de não os ouvir nem ver. Conta que estes “amigos” o acompanham há 13 anos, desde 1999, fazendo uso do seu corpo. Conta também ter-se encontrado em várias situações que pensa terem sido vivenciadas por “eles”, situações tais como perceber estar em algum lugar e não saber como lá chegou, ou estar a usar roupa que não se lembra de ter comprado ou até de estar com pessoas que não se lembra de ter sequer conhecido. Estes episódios parecem trazer muita dor e sofrimento ao paciente, visto muitas pessoas à sua volta, inclusive


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amigos, lhe chamarem mentiroso e dissimulado. Admite também que muitos relacionamentos amorosos acabaram por causa da interferência dos “demónios” (o paciente era muito inconstante no que tocava à forma como se sentia relativamente a estas “personalidades”, chamando-lhes ora “amigos” ora “demónios”; chegou a referir-se a eles como “nós”), tendo até recomeçado a abusar de substâncias ilícitas por causa disso. Também foi despedido várias vezes de pequenos trabalhos pois “eles” atrapalhavam-no. Ao longo das entrevistas com o paciente notaram-se episódios de esquecimento de outra natureza, que consistiam em dificuldade em lembrar-se (ou não se lembrar sequer) de episódios relacionados com o abuso sexual, mostrando, na maior parte das vezes, sinais de dissociação, assumindo uma nova personalidade. Apresentava-os (os sinais de dissociação) também em conversas cujo assunto o deixavam ansioso ou em entrevistas mais demoradas: mudava bruscamente de tom de voz, postura, fisionomia da cara, modo de falar e respondia como sendo outra pessoa. Durante essas mudanças de comportamento foram detetadas 6 das 11 personalidades de idades e características diferentes. Três dessas personagens eram do sexo feminino: Helena (uma menina de aproximadamente 4 anos que apenas chorava), Laura (uma criança de 7 anos que se queixava de falta de carinho e atenção, muito carente) e Viviane (uma mulher adulta, sedutora e hipersexualizada; nos momentos em que o paciente adquiria esta personalidade apresentava trejeitos ultra afeminados). As restantes três personalidades (masculinas) identificadas, todas elas com traços agressivos e violentos, foram Gabriel (o mais agressivo de todos, tinha muita raiva e ódio dentro de si, tendo já agredido fisicamente amigos, segundo um familiar), Luís (o mais sensato e inteligente das personagens masculinas, sendo que é ele quem aparece mais vezes) e Rafael (o mais manipulador e cínico; não apresenta remorso algum em prejudicar alguém).

Condição atual do paciente

O paciente recebeu alta a 3 de maio. Ficou internado 28 dias, sob o cuidado e acompanhamento diários de uma equipa multiprofissional. Se no início o paciente se mostrava triste, ansioso, depressivo e isolado, antes de receber alta já apresentava melhorias acentuadas no seu estado psicológico. Compreende melhor, tal como a sua família e amigos, a doença da qual sofre e lida razoavelmente bem com a mesma. O paciente é acompanhado agora em consultas externas bissemanais, sendo estas normalmente sessões de psicoterapia. Toma também, diariamente, carbamazepina (1200 mg), olanzapina (10 mg), lítio (900 mg) e


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sertralina (50 mg). Este tratamento é, até certo ponto, uma extensão do tratamento que o paciente recebia enquanto estava internado.

Notas e Considerações

Tendo em conta: 1) A rutura de identidade do paciente, caracterizada pela presença de, pelo menos, 6 estados de personalidade (para além das outras 5 descritas pelo paciente) mais ou menos distintos, acompanhada por alterações de comportamento, na consciência, na memória e na perceção; 2) O facto de o paciente se referir várias vezes a si mesmo tanto por outros nomes quanto por “nós” (ou seja, o paciente e as diferentes personalidades que coexistem dentro dele);

3) As lacunas recorrentes na recordação de eventos quotidianos e informações pessoais;

4) Os traumas vividos durante a infância e adolescência;

5) A amnésia parcial a eventos pessoais traumáticos, nomeadamente aqueles vividos durante a infância (maus tratos, abuso sexual);

6) O quadro de solidão, depressão, tristeza, ansiedade e os traços antissociais;

7) Os traços de transtorno de personalidade Borderline detetados aquando do seu internamento no Hospital Psiquiátrico Júlio de Matos;

É aceitável concluir que o paciente reúne as características e sintomas necessários para ser diagnosticado com o Transtorno Dissociativo de Identidade ( TDI) - doença assim classificada segundo o DSM IV (título em português: Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais).


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A causa exata do transtorno é difícil de acusar nem é bem definida; porém, sabe-se que os transtornos dissociativos, na sua grande maioria, têm raízes em eventos traumáticos, quer tenham eles acontecido durante a infância quer durante a adolescência (e até mesmo durante a vida adulta, em raros casos). A dissociação pode servir inicialmente como uma função adaptativa, tornando mais tolerável o medo e a dor psicológica que acompanham o trauma. Com o tempo, no entanto, a dissociação distorce o desenvolvimento da personalidade, a integração contínua de lembrança e a perceção das emoções. Os estados de self (o centro responsável pelo desenvolvimento da personalidade) separados e dissociados (ou seja, os alters) são, primeiro, desdobrados de forma adaptativa, numa tentativa, por parte da criança abusada (como é o caso do paciente), de se distanciar da experiência traumática. Logo os alters ganham formas secundárias de autonomia e a personalidade do indivíduo passa a consistir, na verdade, na soma total de todas as personalidades. Desta forma, o paciente, quando confrontado com situações de ansiedade que se assemelham aos traumas vivenciados, assume a personalidade que melhor se adaptaria a essa situação, numa tentativa de se defender. O TDI também está altamente associado ao abuso de substâncias ilícitas e à dependência química- o que se verifica no caso do paciente. Estes factos reforçam ainda mais o diagnóstico dado a Marcelo Reis (o paciente).

Vladyslava Shoturma Nº 27, 12 A2 Ano letivo 201772018 Professora: Edite Azevedo


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