CONCURSO LITERÁRIO MARIA AMÁLIA VAZ DE CARVALHO 2016
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TEXTOS PREMIADOS MENÇÕES HONROSAS ENTREVISTAS ILUSTRAÇÕES
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umpriu-se a 2.ª edição do Concurso Literário Maria Amália Vaz de Carvalho e foram entregues os prémios aos contemplados no Dia da Formatura, uma bonita festa onde se reuniu a comunidade educativa e foram igualmente entregues outros prémios. Nesta publicação, apresentam-se os textos dos premiados, as menções honrosas e ainda outros textos concorrentes. Além disso, publicamos também as entrevistas com os vencedores do primeiro e segundo prémios e ainda as ilustrações que os alunos do 10.º I realizaram sobre os textos distinguidos. É digno de registo o facto de a presente edição ter mais do que triplicado o número de participantes em relação à edição do ano anterior. Mostra que o concurso ganhou visibilidade na escola e motivou outros concorrentes a participar. Não menos digno de registo foi o facto de a Associação de Estudantes se ter envolvido, pela primeira vez, nesta atividade e a vários níveis, quer na sua divulgação quer participando no júri, através da Catarina Ferreira, a quem agradecemos. Este contributo da Associação de Estudantes, que esperamos se repita nas edições posteriores, foi absolutamente decisivo para o sucesso da atividade. A 2.ª edição do Concurso contou ainda com uma outra novidade, a qual deu bastante visibilidade à atividade: o Prémio do Público. Os textos premiados (depois de escolhidos pelo júri, mas antes de divulgada a ordem dos prémios) foram apresentados à comunidade, através das redes sociais, e pediu-se que votassem no texto que achassem melhor. Cientes do enviesamento a que este tipo de consulta está sujeito e de que as votações podem não refletir uma opinião isenta e imparcial, cumpriu-se o objetivo principal: dar a ler ao maior número possível de interessados os textos dos alunos. Quanto aos textos, eles aí estão para serem novamente apreciados. Apesar de o regulamento não determinar tema, é possível descortinar uma linha temática a partir dos desfechos da maior parte das histórias. Dir-se-ia que encerram uma visão de acordo com a qual o mundo é um lugar hostil para se viver. Várias personagens despedem-se violentamente, algumas até de dedo acusador em riste. 1
Ilustração da capa de Matilde Shaw
1.º Prémio — Miguel Mauritti (11.º A)
3-6
2.º Prémio — Maria Santos (10.º I)
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3.º Prémio — Ana Lourenço (12.º I) Entrevista c/ Miguel Mauritti
10-12
13-16/29-33
Entrevista c/ Maria Santos
17-19
Menção Honrosa - Guilherme Martins 21-22... Menção Honrosa - Mariana Silva
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Textos Pontuados - Diogo Oliveira
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Textos Pontuados - Marta Oliveira
27-28...
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1.º Prémio O Epílogo O mundo ao contrário
Eu
► Miguel Mauritti ◄
nunca pedi que isto me acontecesse. Eu nunca quis ser a pessoa em que me tornei. Nunca pedi por isto e, se me lembro corretamente, nunca fiz nada para o merecer. Eu sempre fui obediente. Eu sempre fiz o que me mandaram. Eu sempre rezei na igreja, e antes de ir dormir, ajoelhado pelo lado da minha cama, à noite. Mesmo depois de me terem mandado embora eu fiz isso. Eu sempre fui fiel a Deus. Podem perguntar -Lhe. Nunca o ofendi com as minhas ações, e nunca ousei ofendê-Lo. Não. De nenhuma maneira. Eu jamais faria tal coisa, perguntemLhe, alguém terá de acreditar no que digo. Foi por isso que nunca percebi por que foi que esta maldição me foi lançada. Não a desejo a ninguém, porque embora eu não veja por que foi que isto me fez tão monstruoso, o que eu sofri nesta vida não deve ser desejado a nenhuma pessoa, por muito detestável. Cristo sempre disse para amar os nossos inimigos e eu, nem que esteja sozinho nisso, planeio cumpri-lo. Portanto, antes de começar, gostaria de dizer umas últimas coisas aos poucos de vocês que alguma vez falaram comigo. Às minhas mães, gostaria de pedir desculpa, por me ter de ir embora, mas não consigo, simplesmente não consigo aguentar mais disto. À minha querida irmã, desejo-lhe as melhores das felicidades, sempre estiveste lá para me ajudar, 3
não posso dizer mais nada. E ao teu filho, o meu querido sobrinho, só espero que não tenhas de passar pelo mesmo que eu. Ninguém merece tanto ódio. Agora, parece-me um bom momento, já que chego ao fim, para comentar a minha vida, e, por uma última vez, olhar para o que foi deixado para trás e, como o fiz várias vezes, tentar perceber onde foi que eu cometi o pecado que fez o Senhor amaldiçoar-me. Eu nasci como qualquer outro, sem nenhum sinal na testa que antecipasse a minha queda, um presságio divino a contar o meu futuro. Como tantos outros, eu tive as minhas duas mães, a trabalharem para voltar a casa e tratar de mim e da minha irmã. Comíamos bem, brincávamos com todos os outros, as nossas mães contavam-nos histórias e todos os domingos, sem falta, rezávamos na igreja, no seio da comunidade. Não culpem nenhuma delas, pois não fizeram nenhum mal. Se foi a maneira de me criarem que me fez o que sou, então existem legiões como eu, que simplesmente preferem pecar na mentira do que aceitar o frio da verdade. Eu fui avisado. As minhas mães sempre me disseram para me comportar adequadamente, e o sacerdote da nossa Igreja disse-nos por vezes incontáveis sobre os perigos da heterossexualidade. Eu lembro-me bem de como todos se esforçaram para evitar que isto acontecesse. Havia este professor na minha escola, tinha eu sete anos, que foi descoberto a viver com uma mulher em casa, em segredo.
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muitas vezes na igreja, uma palavra que era demasiado comprida para eu escrever na altura, e por algum motivo achei melhor não perguntar às minhas mães ou ao professor. Tudo o que eu sei foi que não demorou muito tempo até o professor ser substituído por outro, que não era tão excelente na sua profissão, nem tão inspirador para os seus alunos. Nunca ouvi falar mais acerca do outro professor. Ele parecia ter desaparecido. Depois desse desaparecimento, eu fiz algo que, anos depois, contemplei ser a razão da minha desgraça. Eu rezei por ele. O professor tinha sido uma boa pessoa e tinha feito bem o seu trabalho, razões suficientes para pedir a Deus que o ajudasse. Cheguei a pensar, anos depois, que tivesse sido esse o meu pecado original, mas depois lembrei-me daquilo que tinha sido recitado tantas vezes na igreja. Ama os teus inimigos. Parece-me que essa lição devia ser aplicada mais frequentemente, não apenas quando é útil a quem a recita. Pedir misericórdia pelo pior dos pecadores não é, em si, pecado. Quando cheguei a essa conclusão, fiquei de certa forma infeliz. Por momentos, parecia que a minha busca pelos motivos divinos tinha terminado. Afinal, ainda tinha que explorar muito mais fundo, em lugares muito mais escuros.
Não
foi muito depois desse episódio que eu comecei a mostrar o que, mais tarde, alguns daqueles que me tinham conhecido chamavam os sintomas da minha condição, aquilo que, em retrospetiva, eles identificavam como os sinais daquilo em que eu me tornaria. No recreio, mesmo desde pequenos, todos sabiam como é que as coisas funcionavam, como um instinto mais antigo que o ser: raparigas jogariam futebol, arranhariam os joelhos e entrariam em lutas, e rapazes fariam teatro, brincariam com as suas bonecas e com as suas festas de chá. Todos, isto é, exceto eu, claro. Nunca gostei de teatro... Parecia-me apenas uma mentira levada demasiado longe, e que toda a gente sabia Gustavo Pinho ser mentira. Falar com bonecas parecia-me ridículo, porquê falar com algo que nunca responderá? E nunca gostei muito do sabor de chá imaginado. Mas havia coisas de que gostava. Lembro-me, desde pequeno, eu ia com a minha irmã para o parque, e quando ela me mandava ir brincar com os outros rapazes, eu ficava a vê-la e às suas amigas a passar a bola entre cada uma. Quando pedia para jogar, nunca me deixavam, dizendo que "não
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Miguel Mauritti
11.º A
era um desporto para rapazes". Só quando o número de jogadores era ímpar é que eu podia jogar com elas, e mesmo assim nunca me passavam a bola, e era sempre o último escolhido para formar as equipas. Mas eu não me importei muito com isso. O importante era que podia jogar. E à medida que as ia vendo, comecei a aprender os ossos do ofício, a ver as jogadas, prever movimentos e antecipar situações. Essa experiência marcou o início do percurso que me levaria onde estou. Onde estive, aliás.
tras. No entanto, ela nunca parecia incentivada a correr atrás da bola, ou a fazer as jogadas. Embora fosse escolhida sempre antes de mim, eu era bastante melhor do que ela. Quando as suas companheiras de equipa se fartavam da sua incompetência, ela vinha ter comigo e ajudava-me a preparar-me para as peças em que as minhas mães tinham insistido que eu participasse, num esforço de me fazer... masculino. Eu vi que esse era o seu elemento. Ela decorava as falas mais depres-
E também foi lá nesses jogos que conheci aquela pessoa que se viria a tornar, por vezes, a minha única amiga no mundo. Sentirme-ia mal se a deixasse de fora, mesmo depois de tudo o que aconteceu, mas sei que é mais seguro para ela ficar sem nome. Eu conheço este mundo demasiado bem.
sa do que eu, e tinha muito mais expressividade. Ela começou a fazer-me companhia nos almoços em que eu era abandonado, e a acompanhar-me a casa no fim do dia de aulas.
Ela era uma rapariga que, como qualquer outra da sua idade, jogava futebol, com as ou-
No dia de São Valentim, eu já sabia que nenhum rapaz me tinha escrito uma carta, e eu só o tinha feito ordenado pelas minhas mães. Foi com surpresa que, ao serem distribuídas as cartas, uma veio com o meu nome. Mesmo sem estar assinada, eu conhecia a
LITERÁRIO MARIA AMÁLIA VAZ DE CARVALHO 2016 2016 5 Semana da LeituraCONCURSO
O epílogo: o mundo ao contrário
letra que ocupava tanto espaço nos meus papéis do clube dramático. Uns dias depois, ela deu-me o primeiro beijo, escondidos num sítio só nosso. A esse seguiram-se muitos outros, sempre em segredo, tal como era o nosso dar de mãos ou os nossos encontros. Ninguém poderia saber. Ambos sabíamos que tudo acabaria mal caso isso acontecesse. Aparentemente, eu subestimei a capacidade do caos acontecer. Embora nunca tenhamos sido apanhados no flagrante pecado, um dia, anos depois, ela veio ter comigo e disse que tínhamos de parar de ir lá e de nos ver. Ela nunca deu motivos, e nunca mais falou comigo. Anos depois, pensei em culpá-la, por ser como era. Pensei para mim próprio que seria contágio, ou pressão para manter a única amiga que tinha no mundo. Não fui capaz de lhe fazer isso, no entanto. Ela pode-me ter esquecido há muito tempo, mas em mim terá sempre um lugar muito especial, e não a poderia trair assim. Com esse último abandono, eu percebi que não podia ficar na minha terra nativa, se pretendia sobreviver à punição que me tinha sido lançada. Mas toda a minha vida tinha ouvido falar da grande cidade, onde pessoas como eu podiam viver em paz, sem o medo do autode-fé a persegui-las. Sem mais opções aparentes, tentei fugir para esse aparente paraíso, onde eu podia parar de fugir de mim próprio. Era um rapaz acabado de crescer, ainda muito ingénuo às maneiras do mundo. Demasiado ingénuo, na verdade, para meu próprio bem, devo admitir. Provavelmente se tivesse prestado mais atenção à missa do Senhor Padre, saberia muito bem que o aparente paraíso na Terra estará sempre condenado a tornar-se num inferno. Os primeiros dias foram bons. Era, por fim, livre. Tinha trabalho como assistente de uma treinadora de uma equipa de futebol pequena, que respeitava e apoiava os meus conselhos, uma grande tutora. Ela ensinou-me muito do que eu devia saber, para o futuro que devia ter tido. Por isso, também a protegerei de vocês, permitindo o seu anonimato. E por muito que lhe tenha de agradecer, também lhe posso apontar alguns dedos, sen-
do que foi ela que me apresentou à vibrante comunidade de bares heterossexuais existentes na cidade em que fui adulto. Ela levou-me consigo para o seio dessa micro sociedade em que me inseriu, por vezes à força. Eu era um rapaz campestre, sem muito conhecimento de como este novo admirável mundo funcionava. Eu era a vítima perfeita. Fui passado de mulher para mulher, de amante para amante nessas noites. Coisas foram-me feitas que eu não pude acreditar. Enquanto eu chorava pela inocência perdida, num canto do quarto, ouvia-os falar. Descobri que estas pessoas, por muito que fizessem por trás de portas fechadas, eram, do outro lado da porta, personalidades sérias, de negócios, políticos e artistas. Nada do que se passava comigo as assombrava no dia seguinte. Eu imediatamente me quis tornar uma delas. Talvez tenha sido esse o meu pior pecado. Passar de vítima a jogador do meu sofrimento. O resto da história já a sabem. Nenhum segredo pode viver assim eterno, e à medida que eu me tornei maior, mais popular e mais conhecido, no momento em que o meu sonho de dirigir uma equipa e ter o meu nome escrito nos anais de um grande clube se concretizou, tudo me caiu, e tudo foi revelado a todos sobre a criatura que eu realmente era. Seguiu-se o previsível: a minha queda do favor e da posição, a minha ostracização por todos os que me eram próximos e longínquos, a perseguição pelos serviços ditos de informação, e eis que tudo culmina, talvez-não surpreendentemente, com a minha mão a conduzir uma pistola, comprada em segredo, até ao lado da minha cabeça, pronta. Eu sei o que vem a seguir. Vão-se todos querer absolver, porque homicídio ainda é pior do que o meu crime. Dedos vão ser apontados e acusações vão ser feitas quanto à minha morte. Mas por uma vez o condenado falará, e deixo já o meu juízo. Ouça quem quiser a verdade sobre o culpado.
V
ocês mataram-me todos.
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2.º Prémio Penumbra
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► Maria Santos ◄
ais uma vez encontro-me sentada numa rua qualquer de Lisboa com um cigarro roubado na mão e poetas falhados a meu lado. Está escuro e frio, e estou rodeada de beatas, amores não retribuídos e lágrimas. Suor cai a pique da minha testa. Tenho na minha outra mão uma velha amiga que me ajuda a superar os momentos complicados da vida: a heroína. Que pura e bela a pedra que, dentro de segundos, irei derreter numa colher ferrugenta e injetar. Bailar entre a vida e a morte já faz parte da rotina. Pego no meu telemóvel uma última vez. Reparo que são quatro e um quarto da manhã e que a minha mãe me ligou três vezes. Desculpa, mamã. Nunca fui, nem nunca serei, a querida filha que idealizaste. Aliás, tu querias um filho, mas infelizmente, Deus não te concedeu essa dádiva. Acordou um dia e pensou, "Olha, esta mulher de meia idade que está a fazer tratamentos de fertilidade há uma dúzia de anos não merece um herdeiro que continue o legado e o nome de família. Por isso, toma lá uma inferior rapariga" (Sim, o Redentor é sexista). Olho para o céu e observo as estrelas. Lembro-me da tal matéria de treta que aprendi no nono ano em físico-química sobre anosluz, e como alguns dos corpos celestes que vemos provavelmente já se tornaram noutra coisa, como um buraco negro, o que me remete para a perceção. Nós vemos aquilo que queremos ver, não a realidade. Toda a gente me vê como a doce e inocente Maria, no entanto, já não sou a Maria; sou um tudo feito de imensos nadas. Já não me recordo de quem outrora fui. Sou um poço de miséria e de ódio. Sugo toda a felicidade à minha volta e emito tristeza e problemas. Sou uma tragédia à espera de acontecer, um fósforo prestes a ser incitado. Mas já chega de falar sobre mim. Quero falar dela, e como ela me deixa. Ela é a harmoniosa melodia à meia noite e meia que me ilude e que me deixa a pensar que talvez a vida ainda tenha algum sentido. Deixa-me 7
num estado que nenhum poema pode descrever. Ela é doce, mas morde. Ela é negra como os meus olhos e deixa marcas no meu corpo. Ela faz-me bem. Mas quando está prestes a deixar-me uma outra vez, ela é má. E convence-me que não consigo viver sem ela. Ela atordoa-me, deixa-me confusa e exaltada. Mas mesmo assim, a minha vida continua a girar em torno dela. Todos os caminhos me levam a ela, e sem ela já não passo um dia desde os meus tenros catorze anos, quando a conheci através de um amigo. Para relatar este encontro, preciso de falar um pouco do meu passado. Nasci em Paris há dezassete anos. Mudei-me para Portugal quatro anos depois devido à falência do negócio do meu pai. Isso assinalou o início do fim da minha aparentemente perfeita família. Os meus pais decidiram separar-se quando eu
Maria Ana Rafael
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Od int so v ksi y Ole CONCURSO LITERÁRIO MARIA AMÁLIA VAZ DE CARVALHO 2016
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Maria Santos
(10.º I)
tinha sensivelmente dez anos. O meu pai cansou-se da minha mãe, e eu percebo porquê. Ela é uma puta. Fiquei a cargo dela depois do divórcio, e não ouvi nada sobre o meu pai desde então. Não sei se regressou a França, se ainda está vivo, nada. Tenho para mim que não aguentou estar falido num país onde um futuro não pode ser cultivado, e se matou. Mas ele não é relevante para a minha história.
A
minha mãe casou-se de novo com o psicólogo que me estava a tratar desde o divórcio. Ele é senil, mas rico, e a minha querida progenitora não passa de uma interesseira. Ainda estão casados. Eu odeio-o. Abomino-o. Não passa de um abusador de crianças. É pior que um padre. Gostava muito de ir ao meu quarto durante a noite, por isso comecei a fugir. A pequena Maria de treze anos, que parecia ter mais idade, escapava-se todas as noites e encontrava conforto nos bancos da rua cobertos de orvalho ou em casas desconhecidas, maioritariamente pertencentes a homens mais velhos. No meu décimo quarto aniversário decidi fugir durante uns tempos. O ambiente em casa estava mau. Com a ausência permanente da minha mãe, o meu padrasto procurou refúgio na empregada, e esta, sendo vulnerável, cedia sempre aos encantos do velho. Fiquei desaparecida durante duas semanas, e essas foram as melhores duas semanas da minha vida. Aproximei-me de Lou, um rapaz mais velho que andava no meu colégio, aquele que me introduziu ao maravilhoso mundo dos estupefacientes. Tinha uma história parecida com a minha e deu-me abrigo no apartamento que partilhava com três outras pessoas. Foi o mais perto que estive e que alguma vez estarei de sentir alguma coisa. Quando estávamos num outro nível de existência, deitados num colchão encharcado, ele confessava o seu amor platónico por mim, pela minha pele morena e sardas tímidas, pelos meus olhos escuros e pelos meus caracóis cor de avelã que, ao sol, reluziam como delicadas folhas de ouro. Mas quando voltávamos à realidade, eu deixava de ser um ser etéreo e passava a ser uma criatura nojenta. O romance morreu, e fomos nós que o matámos. São agora cinco e dezoito da manhã. Pondero ligar à minha mãe para me despedir. Sim, despedir. Esta vai ser a minha última noite neste planeta. Uma mísera vida com um mísero fim. Overdose. Já estou a sentir os 9
Penumbra
olhares dos médicos ao se aperceberem do caso que têm em mãos. Só mais uma de muitas adolescentes deprimidas que perdeu controle e decidiu pôr termo à sua existência. Um fim honesto, e até um pouco egoísta. A verdade é que tenho vindo a ser consumida pela minha própria mente, e apercebo-me disso agora. E eu não quero ser prisioneira de mim mesma. Recuso-me a viver sob o efeito de anti depressivos, ou ser internada num hospital psiquiátrico. Recuso-me a ser intitulada de maluca e ridicularizada por uma doença mental que eu desenvolvi, mas que não tive intenções de o fazer. Ainda me resta um pouco de dignidade, suficiente para fazer o que é correto. Liguei-lhe algumas vezes. Foi sempre parar à caixa de correio. Deixei-lhe uma mensagem de voz simples e direta. Disse que a amava, o que é mentira, mas não quero que ela pense que a culpa é dela. A culpa não é de ninguém em específico, a culpa é de um todo de ações e más escolhas. Gostava de me poder despedir de Lou pessoalmente, mas o meu cavaleiro andante desapareceu (pela centésima vez) há uns dias. Porque é que as pessoas são tão inconstantes? Talvez obtenha resposta para todas as questões que tenho quando chutar pela última vez. Oh, sim, já consigo sentir o êxtase, o coração a bater com mais força que o normal, tudo à minha volta a girar e, por fim, a escuridão. O vazio. O meu querido e adorado vazio. A paz. A minha definição de paraíso. Estou a mentir, outra vez. O Paraíso, para mim, era nos braços de Lou. O calor do seu corpo, a sua respiração no meu pescoço, as suas mãos calosas e a sua maneira de me amar, se é que alguma vez me amou. Eu sei que o amei, com tudo o que tinha em mim. E quero acreditar que ele também o fez, mesmo que me esteja simplesmente a iludir outra vez. Por entre o silêncio da madrugada e dos gritos aflitos de quem sofre, ouço a morte chamar por mim suavemente. Está na hora. Desculpa. Amo-te.
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3.º Prémio 8 de Março ► Ana Lourenço ◄
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onsidero-me feminista porque defendo os direitos humanos, e "feminismo" e "direitos" estão intimamente ligados. Não me lembro de não ter defendido alguma vez os direitos humanos, mas apenas mais tarde, já recentemente, vi que os princípios que defendo se assemelham aos valores feministas. Há quem diga que o facto de haver um dia dedicado às mulheres é discriminatório, não podia discordar mais! Temos dias para tanta coisa, o abraço, o beijo, a árvore e só criticam o dia da mulher. Não acho que quem reprova este dia esteja a ter uma atitude machista, penso apenas que não entendeu o conteúdo desta data. O dia 8 de Março serve para fazermos uma retrospetiva de todo o passado feminino e daí valorizarmos as diferenças. Vermos que hoje já não temos que pedir autorização ao nosso marido para ir viajar, para atender o telefone, para dar um recado ao vizinho, vermos que hoje podemos votar e percebermos que votar não é um privilégio mas sim um direito. Nenhuma destas coisas são privilégios, são direitos que foram conquistados com o esforço dos nossos antepassados, ainda estamos a meio de uma longa viagem com rumo à liberdade. Uma liberdade onde possamos decidir livremente e sem preconceitos, ter ideias próprias e escolhermos o que fazer com o nosso corpo, desde adotar um estilo clássico a fazer um piercing na zona genital (visto de um ponto de vista radical).
es em vez de ir jogar à bola, eu escolhi ir ver o filme da Hello Kitty em vez de ir brincar com peões. Mas o que conta é que naquele tempo em que estava com mais crianças da minha idade e apenas com alguma supervisão de um adulto nenhuma "pessoa grande" me dizia "não brinques com isso que são coisas de rapazes". Estamos a vivenciar a era em que teoricamente podemos fazer tudo mas na prática temos que pedir licença à sociedade para dar um passo. Estamos na era do machismo subtil. Ninguém diz que as mulheres não foram feitas para o desporto mas também nunca são a primeira opção. Todos dizem que os homens devem "ajudar" nas tarefas domésticas mas é sempre a dona de casa sorridente que aparece nos anúncios de produtos de limpeza. Quando estamos num espaço público e alguém faz um gesto inadequado dizem "a tua
Passei a maior parte do meu tempo de infância num ATL visto que, tal como a maior parte da minha geração, tinha os meus pais a trabalhar e tinha que ficar aos cuidados de alguém. Sou apologista de que devemos tirar o melhor partido de cada situação e por isso aproveitei para experimentar todo o tipo de brincadeiras, desde brincar com barbies, jogar futebol, maquilhar-me ou brincar com berlindes. Sempre optei mais pelas brincadeiras mais ditas "femininas" mas eu tive a sorte de poder escolher isso! Eu escolhi ir vestir barbiCONCURSO LITERÁRIO MARIA AMÁLIA VAZ DE CARVALHO 2016
Ana Oliveira
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Ana Lourenço
(12.º I)
alguém faz um gesto inadequado dizem "a tua mãe não te deu educação?" Já ninguém grita num café que o lugar das
mulheres é na cozinha, apenas dizem subtilmente que não sabem partir ovos e pedem às "queridas" que lhes façam uma omelete. Já não pedem descaradamente porque os tempos mudaram, se antes ficava bem mostrarem que eram machos e assumirem que tinham casado com uma empregada que fazia tudo de forma voluntária, agora precisam de mostrar que são modernos e aceitam e apoiam que as mulheres façam tudo desde que a cama esteja feita quando chegarem a casa. Ouvi hoje num debate feminista algumas das palavras mais sábias de sempre, "damos demasiado valor às palavras, precisamos de um termo sem género que coloque a mãe e o pai em pé de igualdade". A palavra mais parecida com "Humanos" é "Homem" e com "Parental" é "Pai" e este facto inconscientemente leva-nos a elevar o sexo masculino para um grau mais elevado. Todos os dias adicionamos tantas palavras novas ao nosso dicionário que devíamos encontrar uma que fosse unissexo, que não diferenciasse nem as mães nem os pais. O objetivo não é nem nunca foi tirar
Maria Santos
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8 de Março
direitos a ninguém, é promover a igualdade entre todos e até agora ainda não vi nenhuma desvantagem nisso. Mas claro que ainda
sou apenas uma miúda com 18 anos que tem um mundo inteiro por explorar.
Diana Gonçalves CONCURSO LITERÁRIO MARIA AMÁLIA VAZ DE CARVALHO 2016
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E N T R E V I S TA S
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O mundo ao contrario de Miguel Mauritti Carolina Almeida e Maria Martins
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elo segundo ano consecutivo, realizou-se o Concurso Literário Maria Amália Vaz de Carvalho, no âmbito do Projeto aLer+ do Plano Nacional de Leitura. A edição de 2016 teve como novidade o “Prémio do Público”, em que o texto mais votado receberia um prémio extra. Miguel Mauritti, aluno do 11.ª A, repetente no concurso, foi o vencedor e arrebatou também o “Prémio do Público”. Aluno do curso de Ciências e Tecnologias, Miguel põe em xeque a ideia feita de que os alunos de ciências não são bons nas letras e ainda leva para casa um cheque para se abastecer de livros no valor de 70€, além do prémio extra. Com um variado leque de interesses, o autor desde sempre notou que tinha criatividade nas mais diversas áreas. Algo que foi confirmado aquando da realização dos seus testes psicotécnicos, em que o resultado final deu… inconclusivo! Parafraseando o próprio, paguei para me dizerem que podia fazer tudo o que quisesse. Não se contenta com pouco, procurando sempre participar nas atividades escolares nas quais se empenha ao máximo. No passado ano letivo, participou no Concurso Literário e no Concurso Tecnológico, tendo conquistado o 2.º e 1.º lugar, respetivamente. O carro, que lhe valeu o prémio, pode ser visto no laboratório de Física, no piso B. Este ano, além daqueles dois concursos, marcou presença nas Olimpíadas de Filoso-
fia e nas Olimpíadas de Físico-Química, apurando-se nesta última para as Olimpíadas Nacionais, a realizar-se no dia 3 de junho. Todo o seu percurso leva-nos a pensar que estamos perante um, como se costuma agora dizer, “jovem empreendedor” (esperamos que não nos leve a mal a designação). Simpático, bom colega e inteligente foram os adjetivos utilizados pela amiga que o acompanhou durante a sessão fotográfica. P: Conquistaste o primeiro prémio do Concurso Literário e o Prémio do Público. Como te sentiste ao receber a notícia? R: Recebi a notícia na forma de uma mensagem de parabens. Demorei algum tempo a perceber onde queriam chegar com “Parabens! Primeiro lugar!” mas presumi que, eventualmente, os resultados teriam saído. Como e obvio, fiquei bastante satisfeito por ter ganho o premio. P: Também participaste no Concurso Literário do passado ano letivo, recebendo o segundo prémio. Isto revela uma grande inclinação para a escrita. É uma das tuas paixões? R: Sem duvida. Lembro-me que, desde muito pequeno, era elogiado pela minha criatividade. Nessa epoca, os elogios eram mais direcionados para as artes visuais, dado que ainda nao sabia escrever, mas eu sempre gostei de contar uma historia. A palavra escrita deu-me o meio ideal para o fazer e o meu dever foi aproveita-lo. P: Tanto no texto do ano anterior, Ela ensinou-o a dançar, como em O epílogo: o mundo ao contrário adotas um tom crítico em rela-
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ção a assuntos controversos. Porém, houve uma nítida evolução no espaço de um ano. A que se deveu? R: Embora os dois textos tenham de facto essa semelhança, pois a crítica social e uma coisa que eu gosto bastante de fazer a varios aspetos da nossa sociedade, acho que eles diferem demasiado para que se faça uma comparaçao assim tao linear. Os temas, o registo e toda a crítica feita mudaram de facto! Mas a perceçao do leitor sera muito mais imparcial do que a minha. Claro que fico feliz se o consenso e que houve uma evoluçao, positiva espero, da minha escrita. Significa apenas que estou a crescer como pessoa e escritor. Mais vale isso do que o contrario. P: Esta edição do Concurso Literário teve uma novidade: o Prémio do Público. O que achaste desta iniciativa? R: Com toda a honestidade, quando ouvi falar do Premio do Publico, recebi a ideia com algum ceticismo. Pareceu-me desde o início que o anonimato, tao importante na escolha do texto pelo juri, seria virtualmente impossível de manter. Pensei que estava errado. Mas o Premio do Publico, nao so foi muito democratico na forma de eleger o vencedor, como permitiu tambem uma maior divulgaçao do concurso. Primeiramente havia tres textos publicados discretamente a serem lidos pelo juri e por mais meia duzia de pessoas. O Premio do Publico deu maior notoriedade ao concurso, envolvendo um maior numero de alunos nesta iniciativa. Contribui assim como incentivo a leitura na nossa comunidade escolar. [Esclareça-se o metodo do Premio do Publico: o juri, composto por 5 professores e uma aluna da AE, escolheu, de entre 19, os 3 textos vencedores (1.º, 2.º e 3.º premios), e, sem divulgar a ordem, deu a palavra a comunidade escolar, que escolheu, por acaso (ou nao) na mesma conformidade.] P: Quem acompanhou as votações verificou que o teu texto e o da Maria Santos, Penumbra, estiveram ao despique, angariando cada um mais de uma centena de Gostos. Pediste para que votassem em ti? Era assim 15
tão importante ganhares o Prémio do Público? R: Eu posso dizer que a culpa foi minha; eu subestimei o quao facil e reconhecer aquilo que escrevo. A corrida dos votos que aconteceu ao longo da competiçao começou quando incentivei as pessoas da minha turma a irem ler os textos do Concurso Literario e a votarem. Elas perceberam que eu tinha entrado no concurso ao lerem os textos e qual era o meu, e genuinamente gostaram. Houve este movimento entre a turma para votar em mim, elogiando-me o texto. Acho que foi um gesto muito bonito e, quando a corrida começou, eu achei por bem fazer esse “movimento” deles servir o meu proposito. A partir daí, foi competiçao. Ate acho que esta corrida focou alguma atençao no Concurso Literario, aumentando o numero de leitores dentro e fora da comunidade escolar, o que e sempre bom… P: Leste os textos dos outros participantes? O que achaste deles? R: Sim, li os textos assim que saíram. Os textos sao, todos eles, muito diferentes uns dos outros. Por isso tenho que felicitar o juri do concurso por conseguir selecionar, entre textos tao diferentes, os premiados. Parece-me que essas diferenças intertextuais se notam particularmente com o texto 8 de Março, que ganhou o terceiro lugar. Um texto muito interessante, e que me pareceu um excelente tributo a nossa patrona escolar, falando da emancipaçao feminina, um tema que tambem me interessa. No entanto, tambem achei interessante ter existido alguma tematica comum em alguns dos textos, nomeadamente os narrativos, no que toca ao final marcado pelo suicídio, como acontece no texto Penumbra e O surgimento da consciência, bem como no meu proprio texto, o que e intrigante, tendo em conta as diferenças entre eles. E possível que seja um reflexo interessante da visao que a nossa geraçao tem da sociedade; quem sabe se nos reveremos neste pormenor quando estudarmos a literatura da nossa geraçao, daqui a umas decadas?! Isto porque espero, tendo en-
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contrado tanto talento nesta competiçao, voltar a encontrar os nomes dos meus colegas em capas de livros, os quais lerei com bastante interesse.
ciedade, nao seja discriminado, quer pela cor da minha pele, quer pela minha orientaçao sexual ou qualquer outro fator ridículo que tantas vezes e utilizado contra os nossos concidadaos. Estes sao os criterios aceites como “certos” pela P: Alguma vez te imaginaste a seguir a escrita nossa sociedade e cultura. E percetível que nem como carreira, apesar de estares no curso de todos tivemos essa sorte, portanto, fiz sempre Ciências e Tecnologias? questao de tentar lutar contra essa discriminaR: Essa pergunta ja me foi feita as vezes suficiençao. Discriminaçao essa que, mesmo nao me tes para, caso recebesse um centimo por cada atingindo pessoalmente, nao quero a afligir os vez que a mesma e formulada, me permitir comoutros. Acho que uma figura cujo exemplo eu prar os livros que quisesse sem me preocupar segui nesse aspeto foi o presidente americano com o dinheiro para o almoço. Ainda assim, eAbraham Lincoln. Nasceu livre e nasceu branco, me difícil de responder. Suponho que nunca e, no entanto, a grande luta da sua vida foi pelo olhei para a escrita como uma carreira em si, direito daqueles que nao nasceram livres e pelos mas como algo que simplesmente faço. Talvez afro-americanos. Estes, sem um hobby. Isso nao quer o seu apoio, teriam tido difidizer que a nao leve a serio, Estive sempre alerta pa- culdades acrescidas para mas a minha experiencia tambem me diz que eu esra os problemas da nossa aproveitar a liberdade que e inerente a qualquer Hocrevo melhor quando tesociedade, principalmente mem. Tenho de admirar nho algo mais vital a minha vida escolar para fazer, por no que toca à discrimina- mais a pessoa que defende os outros, mesmo sem beexemplo, estudar para um ção, uma atitude que acho neficiar com isso, do que teste. E tambem nao conaquela que defende os oucordo muito com essa disincompatível com uma tros em proveito proprio; junçao feita entre o curso sociedade verdadeiramen- parece-me que, no primeiro de Ciencias e Tecnologias e a literatura. Vale a pena te sã e que, portanto, deve caso, e mais seguro ver que os motivos sao de facto allembrar que foi o medico ser combatida.” truístas. Adolfo Correia da Rocha
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que trouxe a literatura portuguesa o contributo de Miguel Torga, laureado com o Premio Camoes pela sua grande obra. P: Este ano, falaste de um tema muito polémico através da inversão da realidade. A tua inspiração teve de vir de algum lado. Terá sido de vivências pessoais? R: Eu nunca levei muito a letra o conselho “Escreve sobre o que conheces”. Estive sempre alerta para os problemas da nossa sociedade, principalmente no que toca a discriminaçao, uma atitude que acho incompatível com uma sociedade verdadeiramente sa e que, portanto, deve ser combatida. Tive a sorte de ter nascido com atributos que fazem com que, na minha so-
P: Também participaste no Concurso Literário do passado ano letivo, recebendo o segundo prémio. Isto revela uma grande inclinação para a escrita. É uma das tuas paixões? R: Sem duvida. Lembro-me que, desde muito pequeno, era elogiado pela minha criatividade. Nessa epoca, os elogios eram mais direcionados para as artes visuais, dado que ainda nao sabia escrever, mas eu sempre gostei de contar uma historia. A palavra escrita deu-me o meio ideal para o fazer e o meu dever foi aproveita-lo. P: Tanto no texto do ano anterior, Ela ensinou-o a dançar, como em O epílogo: o mundo ao contrário adotas um tom crítico em rela-
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Maria Santos Descobrindo Penumbra Maria Delmar Ferreira
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epois de uma incessante procura pela Maria Santos da turma de Artes do 10.º J por toda a escola Maria Amália Vaz de Carvalho, fui para casa sem a encontrar. Já em desespero quase total e aplicando as minhas capacidades de localização de pessoas como só o Facebook me permite, lá encontrei um perfil que coincidia com as poucas características da autora do texto C que me tinham sido proporcionadas por um dos jurados do Concurso Literário da ESMAVC. Mesmo não tendo a certeza de que a rapariga de cabelo cor de rosa e piercing no 17
nariz da foto de perfil era realmente a autora do texto C, arrisquei enviar-lhe uma mensagem a propor-lhe uma entrevista. Respondeu-me uns minutos depois e, simpaticamente, aceitou a minha proposta. Assim começou esta entrevista: Maria Delmar- Queria começar, como não poderia deixar de ser, pelo início: Penumbra — o culminar e o indício de uma peripécia fatal. Porquê este título especificamente? Maria Santos- Gosto muito da palavra Penumbra. Acho que as letras combinam tão bem e sinto que o seu significado nos remete muito à personagem principal, a pequena Maria. MD- “Mais uma vez encontro-me sentada numa rua qualquer de Lisboa com um cigarro roubado na mão e poetas falhados a meu lado”. Imediatamente, esta frase ativa os sensores da curiosidade que nos
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fazem questionar sobre a veracidade ou o carácter autobiográfico de todo o texto. É Penumbra uma reflexão acerca das tuas experiências pessoais ou é meramente ficcional? MS- O texto em si é ficção mas confesso que, mesmo inconscientemente, o baseei um pouco na minha vida. MD- Que música é que aconselharias o leitor a ouvir enquanto lê o teu texto? Maria Delmar- Queria começar, como não poderia deixar de ser, pelo início: Penumbra — o culminar e o indício de uma peripécia fatal. Porquê este título especificamente? Maria Santos- Gosto muito da palavra Penumbra. Acho que as letras combinam tão bem e sinto que o seu significado nos remete muito à personagem principal, a pequena Maria. MD- “Mais uma vez encontro-me sentada numa rua qualquer de Lisboa com um cigarro roubado na mão e poetas falhados a meu lado”. Imediatamente, esta frase ativa os sensores da curiosidade que nos fazem questionar sobre a veracidade ou o carácter autobiográfico de todo o texto. É Penumbra uma reflexão acerca das tuas experiências pessoais ou é meramente ficcional? MS- O texto em si é ficção mas confesso que, mesmo inconscientemente, o baseei um pouco na minha vida. MD- Que música é que aconselharias o leitor a ouvir enquanto lê o teu texto? MS- Pessoalmente, nunca consigo ler e ouvir música. Acho que a melodia ideal para ler o meu texto seria mesmo os barulhos duma rua qualquer de Lisboa e os silêncios dos poetas. Mas para as pessoas que apreciam ter uma música no fundo, aconselho You’re Lost Little Girl e Riders on the Storm, ambas duma fantástica banda, The Doors. Notícias do Fundo, dos Ornatos Violeta. E a música que ouvi en-
quanto criava o texto, Wish you were Here, dos fantásticos Pink Floyd. MD- Ao longo do texto, o leitor vai sendo sugado para o fatal mundo de Maria. Qual a razão que te levou a escrever este texto tão frio, misterioso e sombrio? MS- Este meu texto é sobre droga, obviamente. As drogas sempre foram muito romantizadas especialmente em livros e músicas, e a heroína é sempre o veneno de eleição. Posso dizer que fui muito influenciada pela cultura das estrelas do rock, viver rápido e morrer jovem. Mas não queria que fosse uma história vulgar; queria que fosse uma boa descrição de como este estupefaciente pega nas pessoas e lhes retira tudo quanto seja inocência, senso comum, e como lhes deixa de rastos, completamente estafados e a desejar sempre uma nova dose. MD- Qualquer escritor põe, inevitavelmente, um pouco de si próprio nas palavras que escreve. Em que aspetos, como adolescente que és e para além da homonomia, te identificas com a Maria? MS- Maria é, mesmo que eu não o queira admitir, uma pequena reflexão de mim. Quase que é como um reflexo turvo de mim num rio
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Posso dizer que fui muito influenciada pela cultura das estrelas do rock – viver rápido e morrer jovem. Mas não queria que fosse uma história vulgar; queria que fosse uma boa descrição de como este estupefaciente pega nas pessoas e lhes retira tudo quanto seja inocência
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Não digo que o meu texto não seja só mais um pedaço de informação para juntar a essa a que me refiro, mas digo que pus tudo o que tinha em mim nele, e espero que isso transpareça. atribulado, ou um “eu” num universo paralelo. Identifico-me imenso com a forma que ela se entrega a Lou, a sua maneira de pensar, o seu enorme desejo para acabar tudo e a insatisfação que ela sente com a vida em geral. MD- Por um lado, é fácil identificarmo-nos com as inevitáveis frustrações da adolescência de Maria, no entanto, dificilmente nos associamos ao ódio que ela sente pelo pai. Quais são os teus maiores ódios? MS- Ódio é uma palavra muito forte e um sentimento muito subestimado. Odeio quando não consigo produzir arte, seja por que razão for. Odeio que me acordem, odeio que não me levem a sério, odeio que me mexam no cabelo mesmo sabendo que o peço imensas vezes e odeio que me chamem de paradoxo, mesmo sabendo que no fundo o sou. MD- E os teus maiores medos?
os dias somos confrontados com tanta informação que nos tornamos nuns mortos vivos com olhos vazios, olheiras e cigarros nas mãos. Não digo que o meu texto não seja só mais um pedaço de informação para juntar a essa que me refiro, mas digo que pus tudo o que tinha em mim nele, e espero que isso transpareça. MD- “Mas quando está prestes a deixar-me uma outra vez, ela é má. E convence-me que não consigo viver sem ela.” O teu texto, apresenta-nos cruamente o mundo desta personagem inquietante, um mundo de decadência, um mundo próximo e facilmente alcançável por qualquer adolescente que o procure. De acordo com as tuas vivências, achas que é possível, a partir de apoios sociais, psicológicos, medidas políticas ou maior intervenção em ambiente escolar, resgatar pessoas destas espirais de decadência? MS- Sinceramente, não sei. Acho que cada um faz o que quer fazer e se escolhem ir pelos caminhos das realidades ofuscadas pouco há a fazer por eles. Mesmo que haja uma intervenção de fora, o que se passa dentro da cabeça de cada um passa-se na cabeça de cada um, e não há maneira de ver ou mudar ou ajudar pessoas que têm uma enorme fome pela destruição. A não ser que elas mesmas tomem a iniciativa após terem saciado esse apetite.
MS- Temo pouca coisa. Aranhas, talvez. Também tenho medo da ignorância, de perder a minha essência e consequentemente o meu interesse, e de acordar um dia com o cabelo negro.
MD- “Sim, despedir. Esta vai ser a minha última noite neste planeta. Uma mísera vida com um mísero fim. Overdose.”- O que dirias à tua homónima nestes últimos momentos da sua existência?
MD- Maria, em alguns comentários, confronta alguns princípios religiosos: “Sim, o Redentor é sexista”. Quiseste apenas ser espirituosa ou acreditas mesmo nisso?
MS- Dar-lhe-ia um sincero abraço, choraria com ela e agarrá-la-ia até o seu último suspiro. Não lhe diria nada porque sei o quanto ela adora ouvir os silêncios dos que gritam aflitos. Para além disso, não sei se a pequena Maria me quereria ouvir, acho que preferia ouvir Lou a proferir o seu amor platónico por ela uma última vez. F
MS- Não sou religiosa. Queria realmente que este texto causasse um impacto no leitor, o fizesse sentir alguma coisa verdadeira. Todos 19
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Rita Custódio CONCURSO LITERÁRIO MARIA AMÁLIA VAZ DE CARVALHO 2016
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Menção Honrosa O Surgimento da Consciência ► Guilherme Martins ◄
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ra a terceira música que Martim ouvia. Um amigo tinha–lhe recomendado umas músicas diferentes... – Para onde irá o mundo com tanta revolução? – Questionou Martim quando a música terminou. – Para um sítio melhor! – Exclamou uma voz. Martim tirou os headphones para ouvir o que lhe estavam a dizer. – O quê, mãe? – Não disse nada – devolveu a mãe – Pareceu–me ter ouvido qualquer coisa – afirmou Martim, colocando novamente os headphones. – Um sítio muito melhor! – Repetiu a voz. Martim ficou horrorizado! Era dos seus headphones que vinha a resposta à sua pergunta! Era uma voz grave e seca que lhe dizia: – O mundo vai para um para um sítio muito melhor e esse sítio é já aqui. Levantou-se do sofá onde estava, em frente à televisão e foi para o seu quarto. Verificou o mp3. Nenhuma música a tocar, mas a voz continuava a dizer-lhe «Melhor, muito melhor!». Desligou os headphones do telemóvel, mas a voz continuava: «Melhor, muito melhor!" Martim sentiu-se tolo ao perguntar, no entanto, como não fazia ideia do que estava a acontecer, decidiu fazê-lo. – Quem está aí? És Deus? – Indagou Martim, assustado. – Deus não existe! – Retorquiu a voz dos headphones algo ofendida –contam-te essa história para te impedirem de pensar. – Continuou a voz.
– Espero que não sejas um Diabo! – Exclamou Martim quase a chorar. – O único diabo aqui és tu! Tu és o único que fazes mal aos outros! –Continuou a voz. – Não! Não sou! – Disse Martim, desta vez a chorar. – Temes o diabo, porque te temes a ti mesmo e porque os outros temem que tu encontres outros motivos para ter medo. – Rosnou a voz, em tom de desafio. – Deus! Ajuda-me, Deus! – Suplicou Martim. – Cala–te! – Ordenou a voz – faz alguma coisa útil. Levanta-te! Levanta-te! Enquanto a voz pronunciava estas últimas sílabas, o rapaz sentiu os músculos a contraírem-se e, num só movimento, levantou-se. A voz estava a forçá-lo a andar. Aterrorizado, tirou os headphones dos ouvidos e atirou-os ao chão. – Não me consegues tirar da tua cabeça – exclamou a voz, agora mais presente – vamos lá para fora – ordenou. Martim sentiu as pernas a mexer-se contra a sua vontade. – Vou dar uma volta – exclamou ao passar pela sala onde estavam os pais. A mãe acenou com a mão sem desviar os olhos da televisão. Martim abriu a porta e ia chamar o elevador, quando algo o impediu. – Moras no terceiro andar! Vai a pé! O termo Ecologia diz-te alguma coisa? Ou também é uma das palavras censuradas pelos teus educadores para te poupar à verdadeira dor: a Verdade? Martim obedeceu. Desceu pelas escadas e saiu para a rua. Caminhou em direção ao centro da cidade. Não era muito longe. A voz Continua na pag. 33
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Beatriz Pinto
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Ângela Aguiar
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Menção Honrosa Um fechar de olhos... ► Mariana Silva ◄
Um fechar de olhos; Tenho-te em frente e não sei parar o que me para por esperar demasiado tempo para ter em frente alguém que faça sentido em todos os sentidos. Nada disto faz sentido e a vida faz com que o sentido de tudo se aferre no meu inconsciente da maneira mais dura possível. Mas a tua falta de dramatismo ou a falta de o transparecer; E eu que alucino com o que não sei controlar e não consigo controlar o que me corrói à velocidade com que alucino. Estas falsas palavras vão preenchendo os espaços vazios que se voltam a esvaziar à noite quando o silêncio se apodera de mim. A tua falta de desejo; Queria perceber o porquê, mas a pergunta não sabe sair. Provavelmente não passa de uma dúvida efémera e por falar no provável, provavelmente nunca terei uma resposta. A minha compreensão; E o mais triste de tudo é que, sem me aperceber, voltei a esperar pela tua existência. Vivemos a esperar tanto. Esperei tanto que no fim, já não estava à espera.
festa em dias cinzentos. Dias que nem dependem da cor e eu que não passo de uma exceção à teoria de quem pode ou não ser daltónico. A falta de controlo sobre mim, perante ti; Eu que confesso aquilo que ninguém pergunta, talvez porque faltam poetas, amores ideais ou talvez porque me falta dignidade. Ou porque o que me falta não são os sonhos, são as oportunidades de partilhá-los contigo. Os pesadelos que contam histórias verídicas ao expoente da loucura; Nunca imaginei imaginar tanto por entre quatro paredes. Já perdi horas de nada, horas em que esqueci de pestanejar, a observar aquilo que só os sonhadores conseguem ver no mundo. As tuas emoções. O movimento dos teus olhos; Só queria que alguém falasse quando os meus olhos existem sem querer, mas aí ninguém vê. Por isso, larga as minhas asas, deixa-me descobrir novos céus. Tic tac; As horas que passaram e aquelas que teimam em não avançar; Uma casa vazia;
A forma como sou estranha e inesperada sem razão;
A minha ideia das tuas;
Gosto de escrever e falar comigo própria sobre qualquer assunto porque parece que nunca é o mesmo. Somos camaleónicos, mas nunca ao mesmo ritmo. Sabes que cada palavra não passa de uma forma de agudizar a minha claustrofobia social que só se mani-
Um ruído que acompanha o abrir dos meus olhos;
A vontade de deixar de ter vontade;
Eu; Tu; Uma noite.
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TEXTOS PONTUADOS PELO JÚRI A noite era fria e lá fora... Diogo Oliveira 12.º E
A noite era fria e lá fora chovia. Pingava água do teto, gota atrás de gota, o ritmo constante da decadência. Na cozinha, um homem de barba de três semanas lavava os muitos pratos sujos que se tinham acumulado durante a semana. A televisão passava a novela da noite, nada que o interessasse, eram todas iguais. Por cima do ruído da água que corria, ainda se distinguiam os gritos do casal ao lado, gritos que aumentavam dia após dia e que o faziam interrogar-se sobre quando seria o divórcio. O pior seria o destino das crianças (que naquele instante estariam no quarto fechadas, vendo televisão ou falando com os amigos por qualquer meio que não transmita a gritaria), era sempre esse o maior problema e que os pais constantemente esqueciam. Ficariam marcadas para a vida, tal como ele ficou, até se poderia adivinhar se se prestasse atenção. No entanto, sobe-se o volume da televisão e concentramo-nos na malvadez daquele vilão, que malvado és, como é possível que sejas assim. Sentou-se no sofá e descansou as pernas, sentia-se cansado depois de um dia inteiro sentado a ouvir frases como "não estou interessado" ou "talvez noutro dia, agora não posso" para os casos mais educados. Em casos mais raros, casos de pessoas como os seus vizinhos, descarregavam nele as suas angústias emocionais, já lhes bastava a mulher a chatear, agora vinha este boneco, palhaço, cabrão perguntar-lhes se não queria mudar para a Vodafone! Claro que não querem, porque é que estes gajos telefonam a uma pessoa que se matou a trabalhar o dia todo é que não se percebe, não deixam ninguém descan25
sar. Nada disto o afetava, era até o ponto alto do seu dia quando gritavam com ele, ter-se que calar e ouvir, porque ser mal-educado é uma impossibilidade num destes trabalhos, é mau para o negócio. De resto, pouco mais havia de interessante no seu trabalho, na sua vida aliás. Vivia sozinho, não tinha ninguém na sua vida, nem gato, nem cão, nem mulher, nem homem. Não fazia desporto, nem qualquer outra atividade recreativa, nada que o prendesse ao chão do mundo para além da gravidade. Não tinha sido sempre assim a sua vida, já houvera magia na sua vida quando era novo. E muita. Também quisera ser mágico quando a magia lhe apareceu à frente. Percebeu pouco depois que a ilusão se explica e a magia desaparece tão rapidamente quanto apareceu. Sentia agora que a magia nunca lhe voltaria a sorrir, restavam apenas memórias de contos de fadas. Guardava uma foto dela entre as páginas de um exemplar de d’ Os Maias. Sempre achara que Carlos e Maria Eduarda deviam ter ficado juntos. O poder do amor supera qualquer coisa, pensava ele antes de experimentar que destrói qualquer coisa. Destruiu-o, mas ele não tinha arrependimentos, nunca tinha sido tão feliz, tão completo. E como ela era linda, ele derretia-se perante ela... Começou a chorar. Como podia, mas como podia ter sido tão estúpido? De verdade, tinha estragado tudo, incluindo a sua própria vida. Pegou no telefone, marcou nove números e deixou chamar. Ela atendeu: – Estou sim? Quem fala? – Ouviam-se crianças alegres a brincar. – Maria... És feliz? – Quem fala? Não... És tu, João? Desligou. Ainda havia muita dor, tanta dor, dor pelo que fez, pelo que perdeu, pelo que não tinha agora. Não tinha mesmo nada na
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sua vida senão saudade e dor. Dormir era o melhor que podia fazer, sonhar a sua droga. Trabalhava para comer, comia para dormir, dormia para sonhar. E vivia assim o resto da sua vida esperando a chegada da Morte, vestida de preto e com a sua foice, dizendo-lhe que podia sonhar o resto da sua vida, que a foto seria algo real e palpável, que seria feliz assim que morresse. Contrariamente ao que se poderia pensar, João tinha medo da morte, de ser atropelado, de ser baleado por algum delinquente enquanto comprava as drogas que o ajudavam a dormir, de se atirar da Ponte 25 de Abril. Se era medo de mais dor ou esperança de voltar a ser feliz que o faziam ter medo da morte ninguém saberia, nem ele próprio. Nos dias piores, como era o caso deste dia, ia buscar a fotografia dela e observava intensamente cada detalhe da face, relembrando as memórias do dia em que a tinham tirado. Depois lembrava-se de como tinham começado, dos melhores momentos, das saídas com os amigos, das noites no quarto dele, das manhãs seguintes. Quando se lembrava do fim, chorava. Ficava no cadeirão a chorar durante muito tempo, antes de finalmente ir dormir. Nessas noites sonhava com ela e dormia demasiado, recusava-se a acordar. As drogas ajudavam-no a controlar e prolongar o sonho, podia fazer ali o que não tinha feito na realidade, dizer o que não tinha dito, corrigir os erros do passado. Sonhou muito com a sua morte nessa noite. Sonhou que a Morte a matava, que a cara sem rosto da Morte apreciava vê-lo morrer devagar. Depois Maria aparecia e beijava a Morte, faziam amor à frente dele em vez de ajudálo. Minutos agonizantes depois ele morria e o sonho acabava, apenas para recomeçar noutro igual em que morria de maneira diferente. Acordou diferente. Sentia-se vazio, um vazio diferente do que sentia anteriormente. Não tinha necessidade de pensar em muito, de pensar em nada aliás. A dormência que o en-
chia vinha da sobrecarga de pensamentos, de emoções negativas, de falta de alegrias e desejos, exceto o de voltar ao passado. Não sabia porque tinha acordado assim ou o que significava para a sua vida, mas agradeceu uns momentos de consciência limpa. Tomou um pequeno-almoço inglês, bacon com ovos e torradas. De seguida vestiu-se e passeou à beira-mar. Ainda só eram sete da manhã, mas aquilo era o que lhe apetecia fazer e pela primeira vez em muito tempo tinha vontade de fazer algo para além de sofrer. Sentou-se pouco depois na ponta de um rochedo. O mar estava bravo, cada onda molhava-o com salpicos. Ficou sentado durante o que pareceu muito tempo. Refletiu sobre a noite passada, sobre a vida já o tinha feito desde que estragou tudo com a Maria. A Morte tinha gozado com ele toda a vida, tentando-o e ele resistindo. Lembrava-se vagamente de a Morte e a Maria serem a mesma entidade no fim do sonho, como se todo aquele espetáculo fosse uma metamorfose, a morte dele o sinal que tinha sido completada. Se pusesse tudo em perspetiva, não havia fios que o segurassem à vida. Neste momento, e desde há muito, levitava porque imaginava que os fios existiam. Quando os procurava, eles desapareciam. Quando os procurou, quando saltou da ponta do rochedo, nenhum fio o segurou. No entanto, foi genuinamente feliz antes de morrer, enquanto gritava de dor e agonia da queda e dos litros de água que lhe enchiam os pulmões. Semanas depois, Maria viria a saber da morte de João. O seu maravilhoso marido e os seus fantásticos filhos não conseguiam compreender a razão daquela mulher linda e alegre se ter ido abaixo com a morte de um eremita. De facto, ela não era feliz, nunca o tinha sido. Viveria triste e dormente o resto dos seus dias, abraçando a única foto dele que restava.
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Primeiras Segundas Vezes Marta Oliveira 10.º D Beatrice vestia uma t-shirt branca, um casaco verde e umas calças pretas, naquele primeiro dia de aulas. Filha de pais imigrantes que não conseguiram singrar na vida musical, como sempre quiseram, dedicados aos cheques do estado e ao tráfico mas, maioritariamente, consumo de drogas, eram o que se pode chamar uns maus pais. Beatrice trabalhava em 2 part-times para se conseguir sustentar a si e ao seu irmão de 6 anos, Jack; ele era a única razão pela qual ela ainda não tinha saído da espelunca onde vivia, a tal que os seus pais toxicodependentes chamavam de casa. Bea, como os amigos lhe chamavam, iniciou aquele primeiro dia de aulas com um olhar vazio, ao contrário da sua mente, que estava atolada de problemas e questões. Pensava como é que iria pagar a luz, questionava-se se conseguiria ir buscar Jack a horas depois do trabalho, perguntas que nenhuma miúda de 16 anos tinha de se fazer, preocupações de uma mãe e não de uma estudante, adolescente e, principalmente, de uma miúda que tem a vida pela frente. Beatrice sonhava ser psiquiatra para um dia conseguir curar pessoas más como os seus pais e era esse o objetivo pelo qual ela vivia, mas tudo mudou quando ela viu o Frederico. Frederico era um miúdo alto com os olhos cor do mar, o cabelo loiro com pequenos caracóis e um perfume inebriante, um perfume que Bea nunca tinha cheirado na vida, era simplesmente um cheiro apaixonante de alguém que vivia a vida com um olhar apaixonado. Ao longo da primeira aula da manhã, Bea27
trice sentia-se observada e sempre que olhava para Frederico tinha a sensação de que algo muito rápido se movimentava, como se algo se desviasse. Só semanas mais tarde soube que eram os olhos de Frederico a fugirem dos seus, demasiado envergonhados para confrontarem os pequenos olhos verdes de Bea. Nesse dia, durante as aulas, Beatrice e Frederico trocaram muitos olhares envergonhados, mas nem uma única palavra, até que, no final do dia, Frederico foi falar com Bea: – Olá! – disse ele demasiado envergonhado para tirar os olhos do chão. Eu sou o Frederico, mas toda a gente me trata por Kiko... eu gostava muito de te conhecer melhor, acabou de estrear um filme muito interessante no cinema, será que gostarias de ir vê-lo comigo, se não quiseres eu percebo, afinal, por que é que haverias de ir ao cinema com um estranho, tens aqui o meu número de telefone, envia-me a tua morada e eu vou buscar-te a casa, se quiseres, claro. Kiko disse tudo isto tão rápido que Bea mal teve tempo de processar toda a informação, só sabia que não estava acreditar. Apesar de a intenção de Kiko a conhecer melhor a assustar um bocadinho, porque tinha a certeza que mal ele soubesse de que família Bea vinha, iria fugir a sete pés, não estava a acreditar que ele estava a falar consigo mesmo ali, ao seu lado, com aquele perfume que a deixava tonta, a perguntar se ela queria sair com ele. Lá se conseguiu recompor mentalmente; ao longo da vida, Bea tinha aprendido que não vale a pena mostrar o que sentimos, porque as pessoas interpretam sempre mal, mas finalmente disse: – Gostaria muito de ir contigo. Frederico respondeu: – Passarei em tua casa às 8 horas, fico à espera da morada, agora tenho de ir. Ele começou a andar, mas ainda houve tempo para Beatrice dizer: – O meu nome é Beatrice, mas toda a gen-
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te me trata por Bea. Kiko respondeu: – Eu sei – e desapareceu na multidão que costumava estar sempre nos corredores daquela pequena escola. Eram oito da noite em ponto e lá estava ele, como combinado. Vestia umas calças beges, uma camisa e um casaco; levava uma rosa encarnada na mão, mas a melhor parte era que, mesmo estando ele ainda à entrada da casa, já sentia o seu aroma, um perfume diferente de todos os outros, era o único, era o aroma que mais caracterizava Kiko. E assim foi em todos os encontros que eles tiveram, ele sempre bem vestido e sempre com o seu perfume e a sua rosa encarnada. Tudo começou com uns olhares envergonhados, progrediu com umas idas a jantar e a dançar e com um namoro de sonho. Bea e Kiko apaixonaram-se loucamente um pelo outro até que, um dia, tudo desabou. Kiko vivia cada dia como se fosse o único, mas, principalmente, como se fosse o último, literalmente e, por isso, tinha guardado uma carta para cada uma das pessoas mais importantes da sua vida. Tudo desmoronou no dia em que Kiko teve um acidente de carro, foi um grande milagre ele ter sobrevivido. Bea estava na escola quando, depois de muito estranhar que Kiko não estivesse na aula e não lhe tivesse dito nada, a professora a chamou no final e disse que Kiko tinha tido um acidente e estava internado no hospital. Antes que a professora tivesse tempo de explicar o estado de Kiko, Bea saiu correndo até finalmente encontrar um táxi que a levasse até ao hospital. Quando lá chegou, deparou-se com a irmã de Kiko, que chorava desalmadamente, tal como ela, que então lhe explicou que Kiko tinha perdido todas as memórias dos últimos quatro anos. Bea não conseguia assimilar toda aquela informação e pensar nas consequências para as outras pessoas, a única coi-
sa em que conseguia pensar era que Kiko já não se lembraria dela. Bea não aguentou e não conseguia acreditar que o seu Kiko se tinha esquecido tão rapidamente dela, que bastava uma pancada na cabeça para ele esquecer todos os momentos mágicos que eles já tinham passado juntos, simplesmente não era possível. Subiu para o quarto dele no hospital e lá estava Kiko, estendido numa maca dentro de um quarto; ao lado dele, podíamos ver a sua mãe que também chorava enquanto um médico explicava algumas questões médicas que ninguém queria ouvir. Kiko estava a dormir, ele parecia um anjinho e, mesmo com aquele exagero de cicatrizes e arranhões, continuava a ter aquela cara pela qual Bea se tinha apaixonado. Entrou no quarto e não compreendia, o quarto cheirava a Kiko, mesmo estando ele numa cama de hospital e, não estando naquele quarto há muito tempo, já tinha conseguido infestar o quarto com o seu cheiro e, quando Bea se apercebeu disso, caiu no chão a chorar freneticamente, batendo com as mãos e os pés no chão e pedindo a Deus para trocar de lugar com Kiko. A mãe dele levantou-se e agarrou-se a ela a chorar, dizendo repetidamente que tudo acabaria bem. Quando Kiko acordou, Bea viu realizado o seu pior pesadelo; ele não se lembrava dela, como estava previsto, e ficou muito confuso; quando ela lhe disse que eles namoravam, pediu-lhe que saísse do quarto de imediato. Bea obedeceu e saiu chorando sem parar, mas estava decidida que não iria desistir de Kiko assim, ela não acreditava que era aquilo que o universo queria para ela. Quando estava a caminho de casa, lembrou-se que Kiko uma vez lhe tinha contado da carta que tinha escrito para ela e, de seguida, correu para casa dele e entrou pela janela, como já tinha feito muitas vezes, quando eles namoravam, e levou consigo a carta. Estava datada de três semanas depois do primeiro dia em que se conheceram. Chegou a casa e, depois de um bom banho Continua na pag. 35
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Continuação da pag. 16
ção a assuntos controversos. Porém, houve uma nítida evolução no espaço de um ano. A que se deveu?
Pediste para que votassem em ti? Era assim tão importante ganhares o Prémio do Público?
R: Embora os dois textos tenham de facto essa semelhança, pois a crítica social e uma coisa que eu gosto bastante de fazer a varios aspetos da nossa sociedade, acho que eles diferem demasiado para que se faça uma comparaçao assim tao linear. Os temas, o registo e toda a crítica feita mudaram de facto! Mas a perceçao do leitor sera muito mais imparcial do que a minha. Claro que fico feliz se o consenso e que houve uma evoluçao, positiva espero, da minha escrita. Significa apenas que estou a crescer como pessoa e escritor. Mais vale isso do que o contrario.
R: Eu posso dizer que a culpa foi minha; eu subestimei o quao facil e reconhecer aquilo que escrevo. A corrida dos votos que aconteceu ao longo da competiçao começou quando incentivei as pessoas da minha turma a irem ler os textos do Concurso Literario e a votarem. Elas percebe-
P: Esta edição do Concurso Literário teve uma novidade: o Prémio do Público. O que achaste desta iniciativa?
R: Com toda a honestidade, quando ouvi falar do Premio do Publico, recebi a ideia com algum ceticismo. Pareceu-me desde o início que o anonimato, tao importante na escolha do texto pelo juri, seria virtualmente impossível de manter. Pensei que estava errado. Mas o Premio do Publico, nao so foi muito democratico na forma de eleger o vencedor, como permitiu tambem uma maior divulgaçao do concurso. Primeiramente havia tres textos publicados discretamente a serem lidos pelo juri e por mais meia duzia de pessoas. O Premio do Publico deu maior notoriedade ao concurso, envolvendo um maior numero de alunos nesta iniciativa. Contribui assim como incentivo a leitura na nossa comunidade escolar. [Esclareça-se o metodo do Premio do Publico: o juri, composto por 5 professores e uma aluna da AE, escolheu, de entre 19, os 3 textos vencedores (1.º, 2.º e 3.º premios), e, sem divulgar a ordem, deu a palavra a comunidade escolar, que escolheu, por acaso (ou nao) na mesma conformidade.]
P: Quem acompanhou as votações verificou
que o teu texto e o da Maria Santos, Penumbra, estiveram ao despique, angariando cada um mais de uma centena de Gostos. 29
ram que eu tinha entrado no concurso ao lerem os textos e qual era o meu, e genuinamente gostaram. Houve este movimento entre a turma para votar em mim, elogiando-me o texto. Acho que foi um gesto muito bonito e, quando a corrida começou, eu achei por bem fazer esse “movimento” deles servir o meu proposito. A partir daí, foi competiçao. Ate acho que esta corrida focou alguma atençao no Concurso Literario, aumentando o numero de leitores dentro e fora da comunidade escolar, o que e sempre bom…
P: Leste os textos dos outros participantes? O que achaste deles?
R: Sim, li os textos assim que saíram. Os textos sao, todos eles, muito diferentes uns dos outros. Por isso tenho que felicitar o juri do concurso por conseguir selecionar, entre textos tao diferentes, os premiados. Parece-me que essas diferenças intertextuais se notam particularmente com o texto 8 de Março, que ganhou o terceiro
sa geraçao tem da sociedade; quem sabe se nos reveremos neste pormenor quando estudarmos a literatura da nossa geraçao, daqui a umas decadas?! Isto porque espero, tendo encontrado tanto talento nesta competiçao, voltar a encontrar os nomes dos meus colegas em capas de livros, os quais lerei com bastante interesse.
P: Alguma vez te imaginaste a seguir a escri-
ta como carreira, apesar de estares no curso de Ciências e Tecnologias? R: Essa pergunta ja me foi feita as vezes suficientes para, caso recebesse um centimo por cada vez que a mesma e formulada, me permitir comprar os livros que quisesse sem me preocupar com o dinheiro para o almoço. Ainda assim, eme difícil de responder. Suponho que nunca olhei para a escrita como uma carreira em si, mas como algo que simplesmente faço. Talvez um hobby. Isso nao quer dizer que a nao leve a serio, mas a minha experiencia tambem me diz que eu escrevo melhor quando tenho algo mais vital a minha vida escolar para fazer, por exemplo, estudar para um teste. E tambem nao concordo muito com essa disjunçao feita entre o curso de Ciencias e Tecnologias e a literatura. Vale a pena lembrar que foi o medico Adolfo Correia da Rocha que trouxe a literatura portuguesa o contributo de Miguel Torga, laureado com o Premio Camoes pela sua grande obra.
P: Este ano, falaste de um tema muito polélugar. Um texto muito interessante, e que me pareceu um excelente tributo a nossa patrona escolar, falando da emancipaçao feminina, um tema que tambem me interessa. No entanto, tambem achei interessante ter existido alguma tematica comum em alguns dos textos, nomeadamente os narrativos, no que toca ao final marcado pelo suicídio, como acontece no texto Penumbra e O surgimento da consciência, bem como no meu proprio texto, o que e intrigante, tendo em conta as diferenças entre eles. E possível que seja um reflexo interessante da visao que a nos-
mico através da inversão da realidade. A tua inspiração teve de vir de algum lado. Terá sido de vivências pessoais?
R: Eu nunca levei muito a letra o conselho “Escreve sobre o que conheces”. Estive sempre alerta para os problemas da nossa sociedade, principalmente no que toca a discriminaçao, uma atitude que acho incompatível com uma sociedade verdadeiramente sa e que, portanto, deve ser combatida. Tive a sorte de ter nascido com atributos que fazem com que, na minha sociedade, nao seja discriminado, quer pela cor da minha pele, quer pela minha orientaçao sexual
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ou qualquer outro fator ridículo que tantas vezes e utilizado contra os nossos concidadaos. Estes sao os criterios aceites como “certos” pela nossa sociedade e cultura. E percetível que nem todos tivemos essa sorte, portanto, fiz sempre questao de tentar lutar contra essa discriminaçao. Discriminaçao essa que, mesmo nao me atingindo pessoalmente, nao quero a afligir os outros. Acho que uma figura cujo exemplo eu segui nesse aspeto foi o presidente americano Abraham Lincoln. Nasceu livre e nasceu branco, e, no entanto, a grande luta da sua vida foi pelo direito daqueles que nao nasceram livres e pelos afro-americanos. Estes, sem o seu apoio, teriam tido dificuldades acrescidas para aproveitar a liberdade que e inerente a qualquer Homem. Tenho de admirar mais a pessoa que defende os outros, mesmo sem beneficiar com isso, do que aquela que defende os outros em proveito proprio; parece-me que, no primeiro caso, e mais seguro ver que os motivos sao de facto altruístas.
P:
Estão implícitas críticas no teu texto, muitas dirigidas à sociedade e aos seus estereótipos. Citando-te, “Havia este professor na minha escola, tinha eu sete anos, que foi descoberto a viver com uma mulher em casa, em segredo. […] Tudo o que eu sei foi que não demorou muito tempo até o professor ser substituído por outro, que não era tão excelente na sua profissão, nem tão inspirador para os seus alunos.” Dito assim, parece ridículo. Ao contrário, seria um escândalo. A homofobia é um tema que te inquieta? A orientação sexual dos indivíduos define-os como boas ou más pessoas? R: Sim, a homofobia e sem duvida algo que me inquieta bastante. Acredito veementemente que o facto de nos, como sociedade, considerarmos que o “negociar” de direitos a casais homossexuais, em funçao da sua sexualidade, seja legítimo, e um pensamento perigoso. Significa que estamos dispostos a admitir que os nossos direitos sao negociaveis, e que a nossa igualdade en-
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quanto membros da sociedade nao e necessaria. Estamos tambem a atacar pessoas por um estilo de vida diferente e a causar-lhes danos emocionais pela nossa incapacidade de tolerancia. Isto e uma traiçao a “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” na qual a nossa sociedade se baseia. Valores pelos quais tantos lutaram. A homofobia e uma ideologia ridícula e que eu gostaria de pensar ultrapassada. No entanto, vejo muitas vezes esta a usurpar direitos aos cidadaos e considerada um valor moral, algo que para mim e inadmissível. E o dever de qualquer pessoa sensata colocar-se contra essa açao, como eu fiz neste texto.
P: Também teceste algumas críticas à Igreja. Qual é a tua opinião sobre a posição da Igreja quanto a este assunto?
R: Bem, em boa verdade, eu sou Catolico Apostolico Romano, crismado recentemente. Mesmo assim, critiquei, de facto, a Igreja no meu texto. Nao o nego e nao vou ser apologetico. Acho que a crítica foi bem colocada e foi adequada. Quando se critica a sociedade como eu fiz, tem de se ter um princípio fundamental e enuncio: “Nada nem ninguem estao acima de criticismo, discordia e satira”. A Igreja e uma instituiçao muito poderosa. As suas palavras vibram nos ouvidos de milhoes; entre esses milhoes encontrar-seao doutorados, teologos, muitos letrados, mas tambem iletrados, indoutos e crianças, a quem as palavras chegarao. E como se diz, com grande poder vem grande responsabilidade. Se as palavras da Igreja chegam tao longe, entao e necessario cuidado aumentado da sua parte para que a mensagem nao possa ser distorcida quando dada aos menos cultos. Caso contrario, por muito boas que sejam as suas intençoes, a Igreja sera tao culpada do odio e da violencia como qualquer um daqueles que atiraram as primeiras pedras.
P: Todavia, em outras passagens do teu texto, fica a sensação de que a homossexualidade não foge às tuas críticas, nomeadamente
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quando retratas a comunidade secreta a que a personagem principal foi apresentada. Qual foi o teu objetivo? R: De novo, nada nem ninguem acima de criticismo, discordia e satira. O retrato negativo que eu fiz dessa comunidade tambem foi uma crítica a certas maneiras dessa subcultura, nao da sexualidade em si dos indivíduos que a compoem. Acho realmente que, lendo as descriçoes das comunidades homossexuais nas decadas de maior perseguiçao, no final do seculo passado, onde toda a cultura metrossexual atual se formou, conseguimos encontrar alguns aspetos com os quais nao concordamos tanto e, portanto, tambem devem ser criticados ao fazer esta analise.
P: Identificas-te com alguma situação retratada no teu texto? És mais de jogar à bola ou de teatro?
R: Honestamente, nenhuma das duas, embora me tenham dito que tenho mais utilidade a atuar numa peça do que a chutar uma bola. Eu fui mais aquele rapaz que ficava a desenhar, escre-
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toda a honestidade, quando ouvi falar do Prémio do Público, recebi a ideia com algum ceticismo. Pareceu-me desde o início que o anonimato, tão importante na escolha do texto pelo júri, seria virtualmente impossível de manter.
ver ou inventar uma historia qualquer para fazer role-play nas minhas brincadeiras infantis. Mas de qualquer forma acho que, na nossa sociedade, qualquer rapaz que ouse fazer algo mais do que chutar um esferoide de pano de um lado para o outro durante a sua hora de almoço tem tendencia a poder sentir alguma discriminaçao
Nos somos moldados por essa sociedade, esculpidos nas suas ideias, de certa forma. Essa ansia de pertencer, de conformar, que nos impomos a nos proprios e de facto muito perigosa, principalmente quando nos leva a comportamentos intoleraveis.
por parte dos seus pares.
P: Não conseguimos parar de pensar nisto:
P: Achas que somos todos nós vítimas da so-
como surgiu o pseudónimo com que assinaste o texto [Leopoldo G. B. Távora]?
R: De certa forma, sim. O Homem e um ser social e a socialidade e um perigo para uma especie. O ser humano funciona de maneira a querer ser parte de um grupo e estamos feitos de maneira a fazer tudo para manter esse grupo. Característica que, para uma especie com tanto potencial como a nossa, se pode tornar bastante perigosa.
R: Eu decidi continuar o meu uso do heteronimo para fazer um pequeno trocadilho, como no ano passado, desta vez usando as iniciais do nome para escrever a sigla LGBT, tendo em conta que o tema principal do texto era a homofobia. Tambem me pareceu que o apelido Tavora era apropriado para falar de um grupo que foi perseguido. F
ciedade em que vivemos?
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Continuação da pag. 21
Guilherme Martins
(12.º B)
mantinha-se calada, mas Martim sabia que ela ainda estava dentro de si. Sentia-a. – Levanta-o! – Exclamou subitamente a voz, quando passaram por um caixote de lixo que estava caído no chão. Martim assim fez. – Muito bem! Estás a progredir. Não te custa nada e evitaste que se espalhasse todo o lixo pela rua. Martim sentia algum orgulho pelos seus atos. – É essa a sensação de ser boa pessoa – exclamou a voz. – Agora olha! Olha para ali! – Martim sentiu o pescoço a virar e viu, sentado no chão, um homem a pedir. – Não penses que é um mendigo – interrompeu a voz – é alguém que tem muito para te ensinar. Vai ter com ele – ordenou. Assim fez. Chegou perto do homem e perguntou: – Quer almoçar comigo? O homem fitou-o surpreendido, mas mais surpreendido ficou Martim ao ver que ele desenhava, num pedaço de papel, a rua onde estavam. Não era um simples esboço descritivo, o autor realçara os pontos de maior interesse, conferindo-lhes maiores dimensões. Uma janela que ocupava metade da fachada de um prédio, um balde de lixo cheio até ao topo, ao lado, uma senhora com um largo e bonito sorriso. Estas eram algumas das características pitorescas da pequena grande representação, elaborada pelo pequeno grande homem que permanecia sentado no chão. Enquanto Martim observava o desenho, o homem mantinha-se muito atento ao olhar do pequeno rapaz, que se erguia à sua frente. Pegando no lápis, captou o olhar de Martim, rasgou um pouco de papel e desenhou-lhe apenas um ponto desajeitado, entregando-lho em seguida. – Este és tu. Olhas e não vês. Não és mais do que alguém que, a uma enorme distância, olha esta rua, por isso desenhei-te como se 33
fosses alguém a uma enorme distância, um ponto indefinido. – Quer almoçar comigo?– Repetiu Martim como se não tivesse ouvido nada do que fora dito pelo homem. Não parecendo minimamente incomodado por ter sido ignorado, o homem esboçou um sorriso e os dois (acompanhados pela Voz, que ainda estava presente na cabeça do rapaz) dirigiram-se a um restaurante que não ficava distante. À entrada, o empregado franziu os olhos ao ver o homem que normalmente se deitava à porta do restaurante. – Esplanada ou cá dentro? – Questionou o empregado. – Esplanada – respondeu Martim sem saber porquê. Simplesmente sentia vontade de responder e respondeu. Era certamente a Voz que o controlava. O empregado acompanhou-os e os dois sentaram-se. Fizeram os pedidos e o homem da rua interrompeu o silêncio. – Olha à tua volta – proferiu o homem – as pessoas estão cheias de pressa para chegar a casa e não voltar a sair de lá. Andam de um lado para o outro, sem realmente saberem porquê. Vejo-os todos os dias e todos os dias têm a mesma cara, a cara de alguém que está a morrer lentamente. E morrem. Na verdade, sofrem de uma doença que as mata todos os dias ao longo de anos. Chama-se vida sem sentido. Nenhuma outra palavra foi proferida durante o almoço. Quando se despediram, o homem abraçou Martim com força e partiu. – É isso que eles têm para dar – exclamou a Voz – melhor do que praticamente tudo o que vocês têm. O fim da tarde chegava (como passa depressa o tempo quando não nos esforçamos para que ele passe!). Martim subia a avenida de regresso a casa. Desorientado, sujo, mas satisfeito, apercebia-se agora o quanto a sua vida tinha sido um equívoco. – Qual vida? – Perguntou a voz.
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O Surgimento da Consciência
Anabela Rodrigues – A que desperdicei até aqui. – Retorquiu Martim – Como posso arrepender-me de tudo o que tenho feito e que não significa nada? – Deixa o arrependimento para os crentes. Na vida não há lugar para tal coisa. Mas só porque tal não se justifica. Voltou para casa. Abriu a porta e viu os pais, que permaneciam onde estavam quando saíra, em frente à televisão.
O resto do dia correu normalmente, sem incidentes. Jantaram em família, em frente à televisão, rezaram quando apareceu um padre na televisão que disse para o fazerem e deitaram-se. Tudo estava normal, exceto uma coisa: Martim questionava-se porque fazia o que fazia.
Já estava deitado, quando a voz se fez ouvir de novo e lhe disse: – Amanhã, quando acordares, vai parecer tudo um sonho. Acredita no que quiseres. Espero ver-te do outro lado. Quando acordou, Martim olhou para o quadro de Cristo, que estava em frente à sua cama. «Estamos a precisar de umas mudanças. O mundo vai começar a ser um lugar melhor, mas não este mundo... O outro mundo». Levantou-se, abriu a janela, sorriu e saltou. «O que está do outro lado da vida?» Foi o último pensamento de Martim.
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Continuação da pag. 28
Marta Oliveira
(10.º D)
para se tentar acalmar, sentou-se na cama, pegou no envelope e cheirou-o: impressionante como o cheiro dele se agarrava a tudo com a sua passagem. Abriu com muita calma, quase com medo do que a carta poderia ter escrito e, por mais que confiasse em Kiko, Bea tinha medo do que a carta poderia dizer. Tinha medo, pôs em julgamento todos os momentos que passou com Kiko com receio que estivesse escrito que era tudo uma fachada com um fim fútil, mas depois o cheiro veiolhe outra vez ao nariz e pôs de parte qualquer tipo de pensamento negativo sobre a sua relação com Kiko. Limpou as lágrimas e começou a ler a carta: “Três semanas foi mais do que suficiente, mais do que suficiente, para eu me apaixonar louca e desesperadamente por ti. No espaço de três semanas, tu conseguiste que eu passasse de um simples rapaz tímido, com vergonha de falar com alguém que lhe era minimamente estranho, para ser aquilo que sou hoje quando escrevo esta carta. Hoje, sou um rapaz que anda com o peito cheio, não como uma galã, mas como alguém que tem segurança em si mesmo e que sabe que terá sempre uma pessoa incrível para lhe dar apoio e o proteger, ando quase como um velhinho em que os seus passos contam muitas histórias, mas ao contrário dele, os meus contam muitos sonhos, muitas expectativas, muitas esperanças. Eu sempre vivi todos os dias como se fossem os últimos, mas agora já não quero! Bea, só de pensar que o nosso último dia juntos está a chegar, sinto vontade de chorar. Mas se tudo correr como planeado, não estará a chegar, mas se estás a ler esta carta... Querida Bea, és e sempre serás o amor da minha vida e para teres esta carta é porque alguma coisa me aconteceu e, por isso, fica a saber que esteja eu onde estiver tu estarás sempre no meu pensamento. Eu nunca vou desistir de nós e espero que também não o 35
faças! Com todo o amor, Kiko.” Bea chorava como nunca, chorava por todas as emoções possíveis e imagináveis: amor, tristeza, felicidade, raiva. Bea adormeceu agarrada ao envelope porque, naquele momento, era a única prova que tinha do amor de Frederico. Quando acordou, milagrosamente a sua mãe estava sóbria, e conseguiu perceber que não teria de se preocupar com Jack nas próximas três horas, era o tempo que, em média, a sua mãe aquentava sóbria e, por isso, vestiuse e saiu a correr de casa para visitar Kiko. Vestia a mesma roupa que no dia do seu primeiro beijo a Kiko, tinha esperança de que lhe ressuscitasse algumas memórias. Quando chegou ao hospital e ao quarto de Kiko, estavam lá todos, primos, tios os seus pais e irmãos, todos se riam, incluindo Kiko. Afinal ele não se tinha esquecido de nenhum deles e eles não pareciam incomodados com o facto de Kiko se ter esquecido das pessoas que conheceu ao longo da sua adolescência. Bea entrou no quarto, mas teve de parar quando aquele cheiro lhe atacou novamente o nariz, depois lá conseguiu continuar. Entrou no quarto e ninguém parecia reparar nela, apesar de Bea ser uma visita regular em casa dele, mas Kiko reparou. Lá estava ele a olhar fixamente para ela, como naquele primeiro dia de aulas. Bea também olhava fixamente para Kiko. Debaixo daquela imensa quantidade de cicatrizes e arranhões, estavam os olhos azuis de Kiko a olhá-la fixamente como sempre fazia. Kiko, por sua vez, estava a reparar na roupa dela, olhando meticulosamente para todos os detalhes, mas Bea só conseguia pensar na última frase que Kiko escreveu naquela carta “Eu nunca vou desistir de nós e espero que também não o faças!”. Bea sabia que Kiko não tinha culpa de não se lembrar dela, mas questionava-se se vale-
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Primeiras Segundas Vezes
ria o esforço recuperar o que não passava de um amor de adolescentes, não que Bea não amasse Kiko, porque amava, mas ela continuava a lembrar-se da sua família e de como ela só lhe traria problemas e chatices se ele continuasse com ela. Era esta a oportunidade de Kiko namorar com alguém normal, alguém com menos problemas e alguém corajoso que não se deixasse levar por medos. Bea já chorava porque estava com uma grande decisão nas mãos, a decisão do futuro da sua relação com aquele “homem” na cama de um hospital. Perguntava-se se sairia ou ficaria. Bea estava pronta a sair, quando a irmã de Kiko a agarrou no braço e disse: – Bea, fica; o médico disse que isto pode ser temporário e nós acreditamos que sim!! O Frederico ontem começou a contar umas histórias e ninguém estava a perceber nada, porque ele contava as histórias que tinham acontecido contigo, só que não se lembrava com quem estava, por isso, partia do princípio que era eu! O olhar dele ao contar essas histórias era mais apaixonante do que o normal, os olhos dele brilhavam tanto como estas luzes brancas do hospital! Ele ainda não o sabe, mas eu sei que, lá no fundo, ele se lembra de ti!! Eu sei disso, ele não se calava de ti antes do desastre e continua a falar de coisas que aconteceram quando ele estava contigo, só que sou eu no teu lugar! É tudo muito confuso mas fica, por favor, por ele!!
Bea decidiu, nesse preciso momento, que iria conquistar Kiko como da primeira vez, que iria voltar a ter o seu namoro de sonho, que a sua vida iria correr como sempre quis e que isso apenas aconteceria se estivesse com Kiko. Como acontece ao longo da vida de um bebé também acontece ao longo de uma relação, as chamadas primeiras vezes, o primeiro encontro, o primeiro beijo e, por aí em diante, e são os melhores e os que ficam na memória. Bea tinha a oportunidade de refazer esses momentos outra vez, reviver as primeiras vezes. Ao contrário do que costumava fazer com tudo na sua vida, Bea tentou olhar uma segunda vez para este incidente, mas com uma visão positiva. Bea aproximou-se da cama de Kiko e deulhe um beijinho na bochecha. Ele corou, mas não se deixou intimidar, pois sabia que ela era a sua namorada antes do acidente. Kiko, finalmente, quebrou o silêncio e disse: – Nunca pensei que iria ter uma namorada tão bonita! Bea ficou encarnadíssima, antes já estava habituada aos consecutivos elogios de Kiko mas, tal como ela queria, este era uma das muitas segundas primeiras vezes e muitas mais se seguiram. E viveram felizes para sempre.
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