VIVER JUNTOS Maria Rita Kehl95 1. Olhar no olho do outro Viver juntos é viver nas cidades. Não é viver em família, nem entre amigos. Viver juntos não é um problema da vida privada, mas da vida pública. Só a vida urbana nos obriga a conviver com uma multidão de desconhecidos; estamos permanentemente na dependência do contato com pessoas que não escolhemos. O imperativo do amor cristão não resolve o problema da relação com o outro. O amor não pode ser objeto de uma lei. A lei do amor cristão pode ter sido um avanço civilizatório, mas ao longo da história provocou mais lutas fratricidas (em nome de Deus), do que alianças fraternas. Não posso ser obrigada a amar meu semelhante para conviver com ele. A alternativa civilizada seria uma indiferença respeitosa. Talvez seja o único modo de suportar o excesso de contato com o outro. Mas a indiferença não pode ser completa. O preço de conviver com o desconhecido não pode ser o desconhecimento de sua existência. O outro é, bem ou mal, um semelhante. Aí reside seu valor, seu poder perturbador e também seu caráter problemático. Seu gozo é irmão do meu embora ele não seja meu irmão. O que eu temo, na proximidade com o semelhante, é o mesmo que temo em mim. Por isso procuro não me reconhecer nele, para não reconhecer o mal em mim. Freud batizou esta intolerância de “narcisismo das pequenas diferenças”. É por não querer me identificar com meu semelhante, naquilo que ele mais se parece comigo, que eu o discrimino. 2. Eu é um outro O homem urbano é o homem comum. Para viver com ele de maneira minimamente solidária é preciso reconhecer que somos, todos nós, tão comuns quanto ele. Só assim, em minha banalidade pedestre, estarei disponível para perceber que tudo o que diz respeito a ele também diz respeito a mim.
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Psicanalista, doutora em psicanálise pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), atua desde 1981 como psicanalista na clínica com adultos. Também é jornalista, ensaísta, poetisa, cronista, crítica literária brasileira. Em 2010, venceu o prêmio Jabuti de literatura, na categoria ‘’Educação, Psicologia e Psicanálise’’ com o livro O tempo e o Cão – A atualidade das depressões e recebeu o prêmio Direitos Humanos do governo federal na categoria ‘’Mídia e Direitos Humanos’’.
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