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Maria Angélica Carreras
O QUE QUERIA SABER SOBRE O AMOR E PERGUNTEI A LACAN
Maria Angélica Carreras94
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No Dia das Mães comecei a pensar sobre o tema, pareceu-me oportuno refletir sobre o primeiro amor daquela que sempre será “certíssima”. Por ter-nos albergado com amor no seu ser além da biologia, porque um filho se inscreve também no corpo. O importante é ser “adotado” por um além para além de seu sexo biológico, que não é o da sua sexuação. Homenagem às mães remontam à Grécia antiga, ocasião de festejos às deusas mães Rhea e Cybele, elas mesmas mães dos deuses. No cristianismo, a igreja, por ser a Santa, remete à mãe e, por extensão, a todas aquelas que recebem a homenagem dos seus filhos. Nos Estados Unidos, se enlaça à causa política de reivindicação pelas más condições de saúde da população diante da guerra civil, para promover a união e a paz. É importante pensar na função social política destas mulheres – mães – nas lutas abolicionistas, sufragistas etc. Porém, o espírito do capitalismo, na busca por uma eficácia de estabelecer a sociedade de consumo, torna esta data junto com o sentido cristão do Natal, transformando assim, a mãe e o menino Jesus em objetos de mercado para deleite dos shoppings de luxo ou de rua. Não há cultura que não dedique homenagem às mães. Não será que aqui temos a origem desse amor a dois, evidentemente narcísico, modelo de fusão e completude, onde o sexo está excluído? Em nossa cultura ocidental e cristã a mãe é virgem na ausência de homem, Outro, para encarnar seu desejo de mulher. Entre a santa e a outra, a mãe nunca se confunde com a segunda, de tal forma que o vociferado “você é filho da...” é ofensa imperdoável. Retorno do recalcado. Certo é que a mãe merece nossa homenagem porque não só lhe devemos a vida material, mas também a entrada no mundo simbólico. O desejo da mãe cava o lugar primeiro da simbolização entre presença e ausência, que o aprendiz de falaser, na escuta de Freud transforma no fort-da da lógica binária em tempos da arbitrariedade do desejo materno. A genialidade de Freud lhe permite escutar o sujeito emergente. Será que o sonho-pesadelo da recuperação funcional é o que se encontra no ódio aniquilante, porque disjunto do amor exige a perfeição de colmar a falta do Outro sem deixar resto? Pensamos encontrar algo desta ordem no casal quando um deles só encontra saída na passagem ao ato feminicida e/ou suicida. O crocodilo fecha a boca na violência assassina.
94 Psicanalista, membro da Biblioteca Freudiana de Curitiba.
Enquanto mãe há uma... porque dois não... o pai que incertus est só o será ao assumir a função terceira limitando a lógica binária que impede predizer o que ocorrerá. Pai que, encarnando o pai simbólico, poderá nomear seu filho, incluindo-o na linhagem familiar e no âmbito social. Já não será igual a outro filho, por ter um nome que, se reconhecido pelo pai, ocupará seu lugar na metáfora paterna desdobrado em Pai Real e Pai do Real. O pai simbólico, morto, é objeto de amor eterno, pois portando a castração o desejo se articula à Lei e regula os gozos. Pai amado por impedir uma repetição infernal de palavras impostas, alucinações ou delírios de um ser que não consegue chamar de seu esse corpo fragmentado. O neurótico pode acreditar que tem um corpo, é verdade, porque essa primeira imagem antecipatória de um domínio e unidade lhe confere um efeito extraordinário, ao mesmo tempo em que constitui o eu. Freud escreve sobre essa forma de amor incipiente e às vezes permanente. Trata-se do narcisismo, tão presente no amor. O pai de nome impronunciável deverá se encarnar. Em O mito individual do neurótico, Lacan (2008) observa que em nossa cultura há sempre uma discordância entre o percebido pelo sujeito no plano real e a função simbólica. O Complexo de Édipo freudiano, que Lacan chama Nome-do-Pai, abre uma dupla eficácia: normativa e patologizante. A família é justamente essa terra que, sendo a própria, não deixa de ser estrangeira. Pura H. Cancina (2014) define o “pai simbólico enquanto significante, dado irredutível do mundo dos significantes, significante impronunciável, nome sem atributos, lugar vazio criado pela mãe para que um homem possa ocupá-lo eventualmente...à sua maneira”. Porque é necessário que um pai real encarne o significante e fazendo-o do seu modo, o será desde seu sintoma. Pai real também pai do real que transmite o impossível de um saber inconsciente sobre a paternidade. Como lidar com o real, impossível de ser eliminado da estrutura? Só com o pai imaginário, descrito por Lacan nas categorias da falta. Aí o encontramos sendo o agente da privação. O impossível para o pai imaginário se transforma em privação. Pai superegóico, perverso, gozador, feminilizante como testemunham os poetas, o cinema e os que se submetem à psicanálise para se libertar da coerção deste Outro escravizante, ávido de satisfação. Por exemplo, O Homem dos Ratos, na escuta de Freud, atormentado por uma dívida impagável. Lacan, sem anular esta construção teórica, propõe no Seminário XXII acrescentar ao tema da paternidade a pèr-versión. Versão paterna entre símbolo e sintoma. Ser desejado pelo Outro materno é poder se alojar na fenda que secreta gozo fálico, ao mesmo tempo que significação fálica que a metáfora paterna escreve com fios para tecer
neuroses selvagens que a psicanálise delimita nomeando inibição, sintoma e angústia. Escolhas inconscientes de neuroses que ao demandar uma escuta analítica permitirá ao sujeito empreender um caminho demarcado pelo amor de transferência para vencer o não quero saber nada disso. Voltamos a encontrar o amor, esse sentimento que surge da fenda aberta pela linguagem, como suplência do desencontro estrutural dos amantes no ato sexual. Lacan persiste na interrogação desse infortúnio do desencontro, e nos ensina no Seminário XX, a não colocar o casal na cama e, por uma exigência lógica, partir da noção de limite. Ele propõe pensar esta problemática a partir da lógica matemática. Destacamos algumas elaborações referentes à relação entre gozo, amor e desejo. É verdade que o amor pode ser ignorância do desejo quando sustentado no imaginário. No Seminário XXI (1973-1974) Lacan, interpela o borromeano para investigar as regras do jogo do amor. O nó permite-lhe confirmar que o amor pela imagem, essência da simetria, amor narcísico, não é o mais recomendado para encontrar a regra do jogo do amor. A ménage a trois agora deve ser pensada em termos de “o número dois se regozija por ser ímpar...engendrado por um e três”. Que o amor permita ao gozo condescender ao desejo, como diz Lacan, sempre e quando os tolos da estrutura estejam advertidos que esse sentimento cativante implica um dizer. Ativo por obedecer às regras daquilo que é parte da falha no Outro. Uma e Outra vez, posto que índice do infinito, na repetição da impossibilidade. Embora ao Real possa-se avançar pelo ato de escrever, este encontra um limite ao não conseguir escrever a relação sexual. O amor permanece como signo em relação ao gozo. O dizer de Lacan, no começo do Seminário XX (1972-1973) postula: “O gozo do Outro, do corpo do Outro que O simboliza não é o signo do amor”. Será que sonhar em fazer coincidir sexo e amor, ato e carta, não expressa o anseio de uma fusão sem resto? O que a clínica mostra é que a paixão sexual bate em retirada quando o amor se fraterniza. De qualquer modo, o amor não tem bons sentimentos, como diz Raimundo Carneiro (2007) na interessante narrativa em que o amódio fraturado libera o ódio mortífero. O gozo introduz uma alteridade irredutível, enquanto o amor como signo admite a ilusão da reciprocidade. Não é que amar é ser feito namorado? Relação entre i com I, Ideal que a partir do Outro da demanda concerne à intimidade subjetiva. O mal-entendido do amor repousa na demanda de ser compreendido, que não é justamente o fracasso do amor, senão o inevitável da dimensão na qual ele se expressa. Assim o vemos no sofrimento daquele que, pedindo um olhar, encontra no outro o fracasso de sua expectativa, pois não é de onde me olhas que eu te vejo.
Também o olhar do amado pode nos transformar naquilo que é nosso ideal. Então, como não sofrer na ausência desse olhar transformador? Lacan não cessa de repetir que não há relaçãoproporção-sexual entre homem e mulher ou entre Um e Outro, embora com a mesma anatomia que não é destino, senão a-tomos: todos e não todos. No Seminário XXIII (1975-1976), O Sinthoma, Lacan considera que pode haver relação sexual quando não há equivalência, caso da mãe com o bebê. Também ela tem função do inconsciente na medida que faz suplência ao nãotoda fálica. Nesse mesmo seminário Lacan aborda Joyce para dizer que entre James e Nora, sua mulher, existia relação sexual, sempre e quando Nora não estivesse grávida. Como falar do amor sem fazer intervir o gozo, aquele que resta como pergunta. O gozo da mulher em alguma parte a torna ausente de si mesma. Lacan interroga a sua audiência feminina e só recebe silêncio absoluto, pois esse gozo se experimenta no corpo, na escrita, na maravilhosa escultura de Bernini de Santa Teresa em pleno êxtase sagrado. Efeito de sua relação com S (Ⱥ) lugar que no borromeano denominará de verdadeiro furo. O homem, se todo fálico entra como significante, castração mediante não estando impedido de se inscrever no todo fálico que de todo modo não convém à relação sexual e que tem relação com o φ, esse significante que não tem significado e que no homem se suporta pelo gozo masturbatório, do idiota do ideos grego, pessoal, privativo, gozando com o órgão e impedido de gozar do corpo da mulher, já que ele tomará nesse corpo os recortes que os objetos a inscrevem no fantasma perverso polimorfo. Seguindo Lacan no Ainda, entramos no consultório do analista porque aí falando do amor também se goza. Na inauguração do discurso analítico quando o analisante relata as desventuras do amor na vida, conduz ao amor de transferência. Mas pareceria que não é só de falar ao outro do discurso que o amor se expressa. Na consideração do amor, o único que se pode fazer com seriedade é a letra, carta de amor (lettre d’amour). Na aula de 13 de março de 1973, do Seminário XX, Lacan joga com o trocadilho alma e amor A alma, esse escândalo para o pensamento racional, teria um efeito do amor, sem sexo. Nesse sentido, hommosexuelle, as mulheres quando estão enalmoradas almam a alma mesmo quando se trata do homem que dizem amar. Figura da neurose selvagem histérica que ao tentar fazer semblante de homem, ou de Deus, para melhor criá-lo do nada, apagando as marcas da família de origem ou assumindo a hombría para melhor conduzir a relação. Assim, o amódio impera na relação amorosa para recuperar seu fôlego na distância a tal ponto de não existir amor maior que o que se exprime pela amada/o da qual se está separado/a. No dizer de alguém, nada une tanto como a distância...
O amor cortês, forma refinada de suprir a não relação sexual, desconhecendo que somos nós que lhe colocamos obstáculo. O amor cortês representa, segundo Lacan, uma formação cultural e poética que lhe serve de modelo de sublimação na medida em que a Dama encarna a Coisa. Ela não é idealizada, mas representa um parceiro elevado à dignidade da Coisa (PORGE, 2019).
Mas quando a dança do casal muda de melodia, abuso de poder moral, subjetivo, sexual pode ser pensado como uma forma de restituir a relação com o outro transformando-o de inimigo em Outro do desejo. A rotina da vida cotidiana, o cuidado dos filhos, os projetos financeiros etc. geralmente não coincidem e a liberdade de cada um e a sua expectativa de vida se veem ameaçadas. O que se está disposto a perder em benefício da família, do casamento? A esse respeito, Gerard Pommier escreve sobre o efeito erótico da cólera. Abordemos as fórmulas quânticas da sexuação para diferenciar a posição sexuada dos que se inscrevem no Todo fálico e no Não-todo. Ao homem ou àquele do Todo só lhe resta o recurso à perversão apoiado o objeto “a” como causa. “O que se vê no parceiro quando se é homem é aquilo com que a gente se suporta a si mesmo...narcisicamente. Por isso almoral.” Lacan diz, coloquem alma nisso. Também no Seminário XI (1963-1964) encontramos “amo em ti algo mais do que tu, por isso te mutilo”. E a mulher? Aquela que para ser edipiana não precisou cometer o ato primordial, parricida, como afirma Claude Noele Pickmann (2018). O Édipo feminino se transforma no dizer de Freud, na estrutura do Não-todo. Será por isso que a mulher ama no homem a maneira com a qual ele faz frente ao saber com que ele alma? (Seminário XX, aula de 13/03/1973). O tema do amor e do ódio também o reencontramos nesta aula “quanto mais se presta o homem a que a mulher o confunda com Deus, é dizer com aquilo que ela goza, menos ele odeia e menos é”. Significativa associação de Deus, inconsciente com o S (Ⱥ). O inconsciente escapa ao ser, seu movimento é saber fazer com lalíngua. Será que daí pode nascer um amor não narcísico que faça uma certa relação entre dois saberes inconscientes? O amor aponta ao sujeito (Seminário XX, aula de 16/01/1973) “Um sujeito não tem grande coisa a fazer com o gozo, porém na medida em que seu signo é susceptível de provocar o desejo, aí está a mola do amor”. Pela contingência pode se dar o encontro de sintomas, afetos que em cada indivíduo marca o traço de seu exílio dessa relação que não há, e que por um instante pode dar a ilusão de cessar de não se escrever. No final de Encore, um sopro de esperança advertida. Na falta de relação e ao sabor da contingência, do acaso, uma relação de sujeito a sujeito pode acontecer.
O encontro, por ser contingente, carrega as letras do dizer verdadeiro, não anula a falta de relação sexual, porém avança pelo escrever. Enfim, a suplência que é o amor cessa de não se escrever dando oportunidade que entre dois sujeitos se possa fazer a carta d’(a)muro (a/mour) (Seminário XXI, aula de 13/11/1973). Seria possível inventar algo menos estereotipado que a perversão? Desafio de um hetero erotismo. Lacan o propõe, porém sem muita esperança, ao não vislumbrar anúncio de um resultado tão promissor. Silvia Amigo (2014) propõe uma quarta identificação, uma vez extinta a transferência: trânsito de sintoma ao sinthome sendo possível amar seu inconsciente em lugar de gozar dele. Tempo de ter vencido o desejo de não saber, dando lugar ao analista que se arrisca no desejo de saber. Por estar advertido do não-todo e fora dos limites do pai Ideal, o sujeito poderá desejar e amar, vivendo a experiência de viver o amor que permita ao gozo condescender ao desejo. Encontros e reencontros não previsíveis, senão que fazem surpresa. O amor visa o ser (do Outro) que “ia ser” ou “que por ser, fez surpresa” (Seminário XX). Sem condições de tempo pois, como expressa o poeta Vinícius de Moraes, “que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CANCINA, P. El puzzle de um padre. Buenos Aires: Letra Viva, 2014.
LACAN, J. O mito individual do neurótico, Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2008.
_______ Seminário XI (1979). Rio Janeiro: Zahar Ed., 1979.
_______ Seminário XX (1972-1973), versão crítica Ricardo Rodriguez Ponte, circulação interna da Escuela Freudiana de Buenos Aires.
_______ Seminário XXI (1973-1974), Os não-tolos vagueiam, circulação exclusiva para membros da espaço Moebius, Bahia, 2016.
_______ Seminário XXII (1974-1975), versão para circulação interna.
_______ Seminário XXIII (1975-1976). Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2007.
PORGE, E. O arrebatamento de Lacan. São Paulo: Aller Ed., 2019.