Ficheiro modelo nov

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Rede Concelhia de Clubes de Leitura ROMANCES HISTÓRICOS – Novembro

Lista de livros lidos pelos membros do Clube de Leitura da - Biblioteca Municipal de Silves O cavaleiro inexistente de Italo Calvino O ano da morte de Ricardo Reis A cidade do fim de Miguel Real Tentação da serpente de Deana Barroqueiro Memórias de Adriano de Marguerite Yourcenar A casa das sete mulheres de Letícia Wierzchowski - da Biblioteca da Casa do Povo de Alcantarilha e Armação de Pêra Balada do Remexido de José Manuel Palma Da importância geopolítica do Algarve na defesa marítima de Portugal nos séc. XV a XVIII. O Algarve nas costas medievais portuguesas do séc. XV de Alberto Iria O cavaleiro inexistente de Italo Calvino Texto inspirado na personagem Bradamante (ou, Soror Teodora), do livro de Italo Calvino, "O cavaleiro inexistente”. Bradamante, não sei se me extasio, qual divindade suprema ou, se te escarneço e te estoque, com tua própria lança. És hábil como escriba, Soror Teodora. Esta história por ti, a conheço quando na tua clausura, a guerreira em ti não a reconheço 1


... és a monja. És fria mas apaixonada, Bradamante. Quando teu convento o abandonas e vestes tua armadura em tua mente, em teu corpo ... és a guerreira. Em guerras, não dás quartel. Em paixões, quartel não tens. Feres e matas... e bravatas esses feitos. Mas em amores ferida aberta, não tendo eleitos. Um dia, porém... Agilulfo, esse também, guerreiro, mas um gerreiro que não existe. Esse sim, sem medida, paixão em ti, desmedida. Este, INEXISTENTE, morre. Outro, Rambaldo, lhe veste a armadura; um EXISTENTE, que arranca a tua amargura do teu claustro, permanente. E esta história, por ti contada, jamais saberei se termina, se continua...

José Paulo Vieira 2


O ano da morte de Ricardo Reis

O ano da morte de Ricardo Reis: retrato de Portugal dos anos trinta quando a consolidação da ditadura em Portugal se fazia sentir com toda a intensidade, publicado em 1984 quando, dez anos passados sobre a Revolução dos Cravos, esta não tinha alterado tão profundamente o nosso país quanto o desejara o autor. Pessoa está morto, mas está vivo, Reis nunca existiu, mas morrerá em 1936, ano da grande consolidação da ditadura salazarista e das grandes ditaduras na Europa: a de Hitler na Alemanha, Mussolini em Itália e Franco em Espanha. Avisado da morte de Pessoa através de um telegrama de Álvaro de Campos, Reis que se encontrara exilado por motivos políticos (dado que era monárquico), regressa a Portugal em Dezembro de 1935. Pessoa visitá-lo-á várias vezes durante os oito meses seguintes (tempo que demora a ser esquecido e a esquecer-se) e serão de tal forma amigos inseparáveis que Reis acompanhá-lo-á até ao Cemitério dos Prazeres para sempre. Recoloca-se, assim, o heterónimo pessoano numa História real, havendo menos uma ficcionalização da História que uma historicização do fictício, ao mesmo tempo que a obra propõe o questionamento das noções de verdade, realidade e criação. Aparentemente paradoxal é a ficcionalização do mais racionalista dos heterónimos, do mais alheado para servir uma reflexão de fundo histórico, ideológico, mas o que Saramago nos mostra é a impossibilidade de reduzir a vida à contemplação de um espectáculo. Lídia surge no romance agora como anunciadora do paradoxo entre a poesia e o quotidiano. Da degradação de Lídia (de musa a criada) sobreleva um traço positivo: uma humanização que ela jamais teve (como Reis também, aliás). Embora a obra homenageie toda a poesia, fá-la dobrar-se às contingências históricas, fá-la sentir-se deslocada porque naquele tempo de 1936 ela deixou de significar. No seu duelo com a História, ela parece momentaneamente derrotada. Sobre a questão de ser português, a obra questiona o destino imperial(ista) do povo eleito, a nação mitificada – e, por isso, paralisada – que não soube olhar abertamente a sua História, tornando-se por isso facilmente manipulável. Daí que este romance não exiba um realismo documental (embora faça de Reis testemunha fictícia de factos verídicos), mas ao apropriar-se de discursos jornalísticos revele-os através de uma espécie de comentários irónicos do romance relativamente à história que os jornais (re)produzem (e não é por acaso que reiteradamente se alude a Rockfeller que, velho e doente, é poupado de angústias mundanas – e humanas – porque para ele é feito um jornal de mentira, um único exemplar diário que lhe pinta o mundo cor-de-rosa. Paradoxalmente, é também o doutor Sampaio que diz a Ricardo Reis que a verdade ele tem é de procurar na rua, porque os jornais não cobrem bem o acontecido.)

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Por outro lado, para além da insuficiência da palavra perante o facto, o romance também problematiza o estatuto da verdade por ela criada (é Lídia que diz que o seu irmão lhe dissera “…há muitas verdades e estão umas contra as outras, enquanto não lutarem não se saberá onde está a verdade”. Mas se “O ano da morte de Ricardo Reis” reformula o padrão tradicional do romance histórico (reconstruindo ambientes e acontecimentos históricos de Lisboa em 1936), ele afasta-se do modelo tradicional de ficção histórica pelo estatuto do narrador (sempre opinativo) e pela função das personagens (Pessoa que existiu aqui vive como morto e Reis que não existiu aqui vive como vivo). Na realidade, a obra adquire verdadeiramente contornos pós-modernistas não só pela eliminação de fronteiras entre erudito e popular, verdade e ficção, passado e presente, retoma do passado como meio de subversão e desconstrução de mitos, mas sobretudo pelos diálogos, apropriação e intertextualidade com carácter paródico. Se reconhecemos Reis com a sua filosofia semi-estóica, semi-indiferente e com o seu paganismo helénico (embora a voz crítica do narrador comente a voz do heterónimo, de forma irónica), por outro lado surge como um homem, fruto de experiências do pensamento, solidão e dúvidas. O seu espírito mantém-se também quando, apesar de amar fisicamente Lídia continua aspirando ao ideal de platonismo amoroso e à mulher espiritualizada que corresponde à incarnação da perfeição divina. Na realidade, o simbolismo da obra que nunca consegue ler “The godo f the labyrinth” é não só a cidade de Lisboa como todo o ser humano e as mulheres um enigma e este mesmo livro é um livro fictício escrito pelo fictício Herbert Quain, invenção do escritor argentino de ascendência portuguesa Jorge Luís Borges. Mas a tessitura desta obra faz-se através de intertextualidade com Pessoa e seus heterónimos, mas também com Camões, Eça de Queirós, Garrett e Pessanha. Com o verso invertido de Camões com que inicia a obra “Aqui o mar acaba e a terra principia” ou “Aqui onde o mar se acabou e a terra espera” com que a termina, o narrador coloca a tónica na perda do extenso império português marítimo e colonial e no desejo de libertação da miséria e no desenvolvimento do país através da terra. O gigante Adamastor, mais do que o sofrimento masculino, encerra todos os perigos que os Portugueses têm que vencer para dobrarem o cabo da ditadura (e esta, o silêncio e as perseguições são simbolizados pela chuva e tempo sempre sombrio). Por outro lado, o passeio do heterónimo por Lisboa, revistando a cidade, aproxima o leitor da obra “Viagens na minha terra” de Almeida Garrett e do “Sentimento dum ocidental” de Cesário Verde. E toda esta multi-referencialidade faz o romance transcender-se a si próprio, posicionando-o numa tradição literária simultaneamente clássica e moderna (ou mais propriamente pósmoderna), portuguesa e internacional. E a escrita de Saramago, embora densa e dura (até as odes de Reis trazidas para a prosa esvaem-se da atemporalidade e a sua presença no romance é rebaixada ao prosaico, manifestando uma impertinência ou uma implausibilidade destes versos no mundo que ele agora tem de enfrentar), não deixa nunca de ser poética e bela (resultante da mistura inteligente e sensível da erudição e oralidade e cultura popular no romance (que, mais do que 4


um mero recurso estilístico, demonstra que entre ambos há uma interligação), através do emprego da exclamação e “apartes”, utilização predominante do presente (marca do fluir constante do narrador entre o passado e o presente), mistura de discursos (directo, indirecto, indirecto livre e monólogo interior – que aponta para uma reminiscência da tradição oral em que contador e ouvintes interagem, presença constante de marcas de coloquialidade, construídas pela relação narrador/narratário, discurso reflexivo construído pelo emprego de aforismos, provérbios e ditados populares que introduzem no discurso narrativo peculiares características da linguagem corrente e familiar. Sónia Pereira

Contos Eróticos do Velho Testamento e Novos Contos Eróticos do Velho Testamento.

Estas duas obras são uma crónica histórica da Antiguidade, ficcionada, cujo fio condutor é a aventura dos sentidos, através do olhar magoado das mulheres e da sua luta pela existência, num mundo em que as descendentes de Eva eram consideradas pelos homens como mercadoria e inferiores aos animais, conceito que perdurará ainda hoje, perpetuado por certas interpretações fundamentalistas dos livros ditos sagrados, em nome de uma verdade religiosa que nenhum Deus, bom e justo, poderia alguma vez sancionar ou sequer tolerar. Vamos, pois, ler “As Núpcias de Asmodeu” texto retirado do livro “Novos Contos Eróticos do Velho Testamento”. “(Sara lembrou-se) de como a sua revolta fora castigada, quando pela primeira vez orara a Deus para que a livrasse do noivo idoso escolhido pelo pai, era ela ainda uma menina... Raquel vira apenas o seu proveito no casamento de Sara com o velho e rico parente, um acréscimo de património para a sua família e não olhara à felicidade da filha, nem atendera aos seus choros e súplicas para não ser dada a um marido cinquenta anos mais velho do que ela. Então, a moça desesperada, prostrara-se no chão do seu quarto com a face por terra e invocara as forças divinas em sua ajuda, mas os céus permaneceram surdos e o casamento não fora cancelado. Como não havia lugar para a rebeldia em casa de Raquel, Sara recalcou dentro de si a dor, o desespero e o ódio, enquanto mostrava ao mundo o sorriso triste da resignação, como se no seu corpo habitassem dois espíritos distintos. As primeiras regras tinham-lhe aparecido poucos meses antes e Sara contemplava com maravilhada surpresa as transformações do seu corpo, os seios a arredondarem-se como os pomos da macieira do quintal, a cintura estreita acentuada pela curva graciosa das ancas, o triângulo escuro e sedoso do sexo por onde se escoava o fluxo impuro mas vivo da sua fecundidade. Sobretudo, espantavam-na as sensações novas que lhe faziam palpitar o coração, o sangue fluir mais rápido e quente nas veias, o ventre intumescer como um fruto sumarento e a pele arrepiar-se de gozo sempre que avistava Chilad, o moço pastor mais disputado pelas mulheres da sua casa devido à sua formosura.

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De noite, no aconchego do leito, quando a Sara obediente e submissa, depois de muito chorar o seu destino de noiva de um velho, consentia ao sono consolador cerrar-lhe as pálpebras cansadas, uma Sara rebelde e enfurecida tomava o seu lugar e deixava a imagem do moço pastor escorregar para debaixo das mantas e tocar-lhe o corpo que se revelava todo outro, diferente e assustador, fonte de prazer e de remorso. As suas mãos guiavam os dedos calejados de Chilad nessa viagem de descoberta e iniciação, tacteando e entreabrindo os lábios macios que se ofereciam num beijo, tocando a língua quente e húmida, percorrendo a linha esbelta do pescoço e da garganta até à brancura arredondada dos seios onde os dedos se atardavam, afundando-se na espessura da carne para volverem à tona do prazer com os mamilos aprisionados numa carícia, a endurecerem num arrepio de pele que a fazia gemer. Mas as mãos ansiosas não se demoravam aí, desciam impacientes até à cintura, buscavam o nó do umbigo, o ventre liso e doce, o interior das coxas que estremeciam ao toque inábil e se contraíam aprisionando os dedos contra as virilhas, como se quisessem impedir a violação do tesouro, o mistério do amor guardado no vértice macio do seu corpo cuja exploração lhe trazia o êxtase onde se deixava submergir abafando um grito. Contudo, se não lograram tocar as divindades do céu, a súplica e rebeldia de Sara encontraram eco nos numes do inferno, pois Asmodeu ouvira-a, acorrera em seu socorro e apoderara-se dela para sempre. Nessa noite mesmo, entrou-lhe nos sonhos de menina, apanhando-a indefesa e desprevenida, com carícias que lhe devoravam o corpo num prazer doloroso e a faziam contorcer-se como uma serpente e morder os panos da cama para abafar os gemidos e os gritos na garganta. Dessa vez não era Chilad, o pastor simplório que costumava acariciá-la com dedos apressados, mas um amante desconhecido que tomava posse da sua vontade, lhe forçava as mãos e os dedos às carícias mais lascivas, sujeitando-a a uma perversidade e luxúria de gestos e posições que lhe punham o corpo em brasa e a inebriavam como o suco fermentado das uvas. Quando exausta e suada rolara no leito, quase desfalecida, uma voz soara-lhe aos ouvidos, rouca e áspera, murmurando-lhe um segredo terrível: – Eu sou Asmodeu, nomeado em segredo entre os que me veneram por “Aquele que faz morrer”. – A voz baixou ainda mais, num arremedo quase humano de ternura, quando acrescentou: – Mas podes chamar-me Asmoday ou Acheneday, se preferires, pois a tua beleza achou graça aos meus olhos e eu elegi-te para minha esposa. Sara estremecera de horror ao ouvir a criatura diabólica que se apossara da sua carne e do seu espírito, nomear-se a si própria por Asmodeu, o senhor dos Shedin, os demónios com garras de galo! Nos contos ouvidos às segadoras de seu pai nas noites de ceifa e debulha, ele aparecia como o pior de todos os demónios, com três cabeças diferentes – uma de touro, outra de homem com hálito de fogo e a terceira de carneiro. “Um fornicador, um porco sujo!”, tinham afirmado as mulheres mais velhas, cuspindo para a fogueira e fazendo uma breve oração de esconjuro. Contavam casos de mulheres possuídas pelo ser maligno, fornicadas até à morte e um frémito de terror e de ansiedade percorria a roda das mulheres mais moças ou formosas, silenciando os risos e fazendo-as deitar olhares furtivos e inquietos aos lugares mais sombrios da eira. Primeiro julgara sonhar um dos muitos pesadelos que nos últimos tempos lhe povoavam os sonhos de medo e violência, à mistura com estranhos desejos que nem à amiga mais querida ousava confiar. Rezara com muita devoção, jejuara mesmo, a fim de afastar os maus pensamentos e o doce formigueiro do seu corpo e não mais voltara a escutar a voz terrível dos seus demónios. Porém, a sua perdição começara verdadeiramente na noite das primeiras núpcias, depois de uma cerimónia onde todos, menos ela, festejavam e se alegravam com a ventura de Raquel, pois a noiva tinha o coração negro de tristeza como se assistisse ao seu próprio funeral, à morte de todas as ilusões e sonhos de amor da sua adolescência.

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Quando, depois de a prepararem e deitarem no leito, as mulheres abandonaram o quarto com risos e chistes maliciosos, Sara ficou só com a sua angústia e a sua raiva à espera do marido que haveria de acercar-se dela nessa noite para a conhecer e assegurar a sua progenitura, se ela não fosse estéril. Como poderiam pedir-lhe que amasse aquele velho parente, austero e sem graça, já com alguns netos da sua idade? O medo do que a esperava, a revolta e a ira que a sufocavam esmagavam-na. Queria sair dali, fugir para muito longe, antes que as mãos enrugadas e gastas lhe tocassem no corpo, a boca desdentada se apoderasse da sua, o sexo... O marido entrou um pouco cambaleante, com os olhos brilhantes e um sorriso de bem-estar, despiu as roupas no canto sombrio do quarto, enfiou a veste de dormir e abeirou-se do leito para se deitar. Foi o momento escolhido para Asmodeu se apoderar do espírito de Sara com a violência de um vendaval, enchendo-o de imagens de violência, ódio e morte. Vozes soaram dentro da sua cabeça, ora persuasivas, ora ofensivas e hostis, incitando-a à revolta e à vingança de todas as humilhações, até haver nos seus olhos de menina um brilho de demência. O velho afastou as mantas, subiu para o leito e inclinou-se sobre o delicado corpo adolescente. Um jorro de obscenidades soltou-se da boca de Sara, ao mesmo tempo que o seu torso se arqueava, as mãos agarravam os cabelos do atónito marido, puxando-lhe a cabeça para baixo, prendendo-a entre as coxas, com o rosto esmagado contra o sexo. As suas pernas cruzaram-se por trás do pescoço do homem com uma força sobre-humana impedindo-o de se soltar, não lhe permitindo senão pequenas convulsões e uma respiração ofegante que se assemelhavam a carícias e a faziam apertar as coxas com maior violência e morder os lábios até sangrarem. Quando o seu corpo se abriu em espasmos de deliciosa agonia, Sara libertou finalmente a cabeça do esposo que rolou sobre o leito, sem vida. Depois, pela lei do levirato, Sara fora dada sucessivamente aos seis restantes parentes com direito de resgate sobre ela. E a cada goel ou libertador da sua viuvez Asmodeu dava a morte, para que nenhum homem se abeirasse dela e conhecesse a sua nudez que o enamorado demónio da luxúria reclamava para si.”

Esmeralda Lopes

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