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Rede Concelhia de Clubes de Leitura ROMANCES HISTÓRICOS - Outubro

Lista de livros lidos pelos membros do Clube de Leitura da - Biblioteca Municipal de Silves Bruges-a-morta de Georges Rodenbach A esmeralda do rei de Paulo Pimentel A balada da praia dos cães de José Cardoso Pires Os jardins de luz de Amin Maalouf Os pilares da terra de Ken Follet O remorso de baltazar serapião de de valter hugo mãe A Cruz de Portugal e Amanhecer na Rotunda de José Sequeira Gonçalves Grácia Nasi de Esther Mucznik (não é um romance histórico, é uma biografia) A mesa real: dinastia de Bragança por Ana Marques Pereira (não é um romance histórico, é uma biografia)

- da Biblioteca da Casa do Povo de Alcantarilha e Armação de Pêra A guerra civil de Álvaro Guerra Eu, a puta de Rembrandt de Sylvie Matton Quando Lisboa tremeu de Domingos Amaral Balada do Remexido de José Manuel Palma Sebastião José de Agustina Bessa-Luís Crónica do rei poeta Al’Mutamid de Ana Cristina Silva O remorso de baltazar serapião de de valter hugo mãe

A esmeralda do rei de Paulo Pimentel A história decorre no século XII, no reinado de D. Sancho I, e a narradora feminina é a conselheira do rei. É ela quem vai contando as guerrilhas entre cristãos, judeus e árabes e se torna a esmeralda do rei… Recomendo este livro pela sua linguagem extremamente poética, mesmo com vocabulário popular da época e porque se fica a conhecer e entender muito melhor o início da formação da nossa nacionalidade. 1


Esmeralda Lopes

o remorso de baltazar serapião de valter hugo mãe Foi extremamente difícil a escolha de um romance histórico para ler nestes dias, porque a lista era extensa e não podia deixar de a ser (tendo em conta que este é, talvez, o género em mais galopante ascensão no nosso país na última década anos, pelo menos), mas também porque permitindo ao leitor optar por um país cuja História o fascinasse ou um período histórico determinado, a indecisão geravase na exacta proporção da curiosidade infinita pelo Homem e a sua forma de lidar e ultrapassar os constrangimentos políticos e sociais, em termos universais e intemporais. A desempatar surgiu-me outra hipótese: ler por causa do fascínio e admiração que tenho pelo autor e pela curiosidade em ler um autor novo (e não novo autor) a nadar nas águas de um género do qual usualmente apenas escritores mais velhos são cultores. Ao fim de poucas páginas a minha intuição confirmou-se… este romance histórico não se perderia em acontecimentos históricos, datas, detalhes e curiosidades da época da Idade Média, e valter hugo mãe mergulhava profundamente no imo do pensamento e vivência dominante do povo nesta época com a já habitual atenção particular ao indivíduo em particular. Aliás, o livro dispensa e não contém, aliás, qualquer referência temporal ou factual. Deus é completamente omnipresente na obra (perdoem-me a redundância), embora o seu protagonista por vezes duvide dele, mas raramente do Diabo, e por via do sofrimento e da vontade de vislumbrar a mãe no Paraíso Aldegundes, o irmão do protagonista, se torne pintor de arte sacra. As explicações para certos fenómenos naturais tornam-se, assim, sobrenaturais e a sarga (vaca da família e que é encarada pela população como sua progenitora) ganha até contornos místicos, adivinhatórios, qual obra de Deus para proteger a família, embora de tom ainda um pouco panteísta. Mas este romance de amor inscrito numa época (quem sabe se mais até que romance histórico?) traz também a marca de medievalismo na concepção da mulher como um ser inferior e gerador de todo o mal, cabendo ao homem educá-la por via de todos os meios, e na maior parte das vezes, de correcção física que acentua a sua miséria, tornando-se uma “…tenebrosa metáfora da violência doméstica e do poder sinistro do amor.” (in badana da obra). Aos abusos sexuais do senhor feudal correspondem ainda outras penas aplicadas às mulheres serviçais da casa, pelo marido cornudo e pai humilhado, resultando assim órgãos partidos e morte. Todavia, Baltazar é o protagonista do romance e daquela comunidade que, apesar de quase totalmente dominado pelas forças do ciúme e de não ter conseguido proteger a sua amada nem do seu irmão nem do seu amigo, evolui na sua forma de amar Ermesinda à medida que a vê e sente perder forças e corpo e se vê longe dela, perpetuando a sua morte o seu amor e a sua dor de remorso infinitos. Mas o maior fascínio desta obra, para mim, talvez seja mesmo a linguagem que é reinventada e recriada de forma extraordinária não só em termos de léxico, mas também em termos de 2


construção sintáctica, pois é por ela que atravessamos o tempo como se fosse o nosso alçapão ou máquina mágica, as personagens ganham densidade e se cheiram os espaços. Se a linguagem verbal traduz o pensamento humano não poderia ser também de outra forma, mas os ecos que essa linguagem deixa dentro do leitor é que o fazem perceber este período que ficou conhecido como o período das trevas. Reiterando o seu estilo de não fazer uso de maiúsculas ou pontuação nos diálogos, esta é uma linguagem que recria poeticamente a língua arcaica e rude do povo, deixando o leitor penetrar em toda a sua escuridão e luminosidade. Se este livro lê o passado à luz dessa mesma mundividência e imaginário e este é um aspecto diferenciador deste romance histórico face aos seus congéneres, ele integra-se plenamente na linha estilística do autor, [sendo o assunto desta obra mais um quarto escuro da condição humana e o amor e a relação de homem-mulher difíceis, Deus é também aqui repensado e o fim do romance é levado à letra com a morte (à semelhança de O apocalipse dos trabalhadores), havendo, contudo, sempre lugar para uns momentos de humor sensível] não caindo, contudo, em qualquer tipo de repetição. Excertos interessantes: - pág. 52 – sobre a visão de Deus e do Diabo sobre as mulheres; - pág. 73 – sobre as mães; - pág. 99 – condição feminina na Idade Média; - pág. 123 – extraordinária explicação para o feitiço; - pág. 162 – justificação psicológica e vivencial para a figura física de Dagoberto ou os malefícios da ausência da mulher e do sexo. Sónia Pereira

A Cruz de Portugal e Amanhecer na Rotunda de José Sequeira Gonçalves Depois de ler a “Cruz de Portugal”, que gostei, senti interesse em conhecer outra obra do mesmo autor, pois as referências ao livro "Amanhecer na Rotunda" prometiam bastante. Acabei de ler este último livro no passado fim-de-semana, o qual se revelou uma ilustração sobre a implantação da Republica em forma de romance, com a ambição naturalmente básica de ser apenas uma pequena publicação agradável e de leitura fácil (objectivo conseguido em minha opinião). Para dar o meu contributo sobre o livro “Cruz de Portugal” refiro que o autor apresenta no seu romance uma personagem que se deixa sempre levar ao sabor do vento num período muito conturbado da nossa história. E neste contexto assume grande ironia a confissão da própria personagem de que: “... não tive nada a ver com a revolução republicana, eu até nem sabia o que era uma República! Mas, ... encarei o meu destino como um verdadeiro patriota, um verdadeiro republicano. Até àquele momento em que me lembrei que, ao longo da vida, somos sempre confrontados com dois destinos e temos forçosamente que optar por um deles. No momento decisivo da minha vida, optei pelo destino errado..." 3


A ironia assume toda a sua força no facto da tomada de opção ter ocorrido apenas uma vez na vida da personagem principal do livro e não foi mais do que ir atrás dos outros, num momento de delírio. A inércia é o estado natural, sendo necessário lembrar que podem ser tomadas decisões. De sublinhar também o medo de assumir, talvez um estigma da subserviência. No livro “Amanhecer na Rotunda”, que serviu para assinalar o centenário da República, destaco apenas duas notas que julgo oportunas: a desilusão que a república nos trouxe (já patente no outro livro do mesmo autor) e o reconhecimento de que os verdadeiros heróis são muitas vezes ignorados. Que reflexão tirar de tudo isto? Julgo que cada um terá muito a dizer. Se calhar não sabe é como começar. No limite, a reflexão terá talvez apenas o perigo de levar à inércia, reconduzir ao estado natural de quem teve o deslize de pensar mais um pouco, como instrumento de autodefesa (conveniência). José António Neves Gomes

Grácia Nasi de Esther Mucznik (não é um romance histórico, é uma biografia) Grácia Nasi nasce no seio de uma família de cristãos-novos em Espanha e Portugal. Mulher guerreira que consegue defender os bens após a morte do marido. A sede da sua fortuna estava em Antuérpia, que era um protectorado dos judeus, pois se assim não fosse a Igreja teria ficado com a sua fortuna… É uma escrita muito factual que enaltece Portugal pelo seu aventureirismo e expansionismo e retrata muito bem a história dos judeus no século XVI. Isabel Varandas

Mesa real: dinastia de Bragança de Ana Marques Pereira A obra trata do tema da gastronomia e tem curiosidades sobre a forma como se comia, os talheres, as receitas, o uso da mesa e todo o protocolo inerente a esta, desde o período da Restauração até à 1ª República. Algumas curiosidades interessantes: - uma coberta (cada vez que os criados reais serviam à mesa num banquete) equivalia a 27 pratos; - D. João V teve uma trombose por excessos alimentares; - aos reis as refeições eram servidas em pratos dourados e aos nobres em pratos de estanho; - só o povo é que comia pão e os reis também não comiam quase peixe, pelo que havia muitos problemas de tiroidismo. Dina Peres 4


Os jardins da luz de Amin Maalouf Comecei a ler este livro porque sempre tive curiosidade sobre o maniqueísmo e este livro retrata a origem lendária do termo. Nesta obra fala-se dos persas, árabes, do aparecimento dos cristãos, da Índia e o protagonista (cujo nome se transformará depois na palavra maniqueísmo) nasce na zona que é hoje Bagdad. Nesta época ele prega a tolerância religiosa e, por isso mesmo, é morto. A escrita é muito fácil, muito imagística e poética.

Paula Torres ROMANCES HISTÓRICOS – Novembro Lista de livros lidos pelos membros do Clube de Leitura da - Biblioteca Municipal de Silves O cavaleiro inexistente de Italo Calvino O ano da morte de Ricardo Reis A cidade do fim de Miguel Real Tentação da serpente de Deana Barroqueiro Memórias de Adriano de Marguerite Yourcenar A casa das sete mulheres de Letícia Wierzchowski - da Biblioteca da Casa do Povo de Alcantarilha e Armação de Pêra Balada do Remexido de José Manuel Palma Da importância geopolítica do Algarve na defesa marítima de Portugal nos séc. XV a XVIII. O Algarve nas costas medievais portuguesas do séc. XV de Alberto Iria O cavaleiro inexistente de Italo Calvino Texto inspirado na personagem Bradamante (ou, Soror Teodora), do livro de Italo Calvino, "O cavaleiro inexistente”. Bradamante, não sei se me extasio, qual divindade suprema ou, se te escarneço e te estoque, com tua própria lança. És hábil como escriba, Soror Teodora. Esta história por ti, a conheço 5


quando na tua clausura, a guerreira em ti não a reconheço ... és a monja. És fria mas apaixonada, Bradamante. Quando teu convento o abandonas e vestes tua armadura em tua mente, em teu corpo ... és a guerreira. Em guerras, não dás quartel. Em paixões, quartel não tens. Feres e matas... e bravatas esses feitos. Mas em amores ferida aberta, não tendo eleitos. Um dia, porém... Agilulfo, esse também, guerreiro, mas um gerreiro que não existe. Esse sim, sem medida, paixão em ti, desmedida. Este, INEXISTENTE, morre. Outro, Rambaldo, lhe veste a armadura; um EXISTENTE, que arranca a tua amargura do teu claustro, permanente. E esta história, por ti contada, jamais saberei se termina, se continua...

José Paulo Vieira

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O ano da morte de Ricardo Reis

O ano da morte de Ricardo Reis: retrato de Portugal dos anos trinta quando a consolidação da ditadura em Portugal se fazia sentir com toda a intensidade, publicado em 1984 quando, dez anos passados sobre a Revolução dos Cravos, esta não tinha alterado tão profundamente o nosso país quanto o desejara o autor. Pessoa está morto, mas está vivo, Reis nunca existiu, mas morrerá em 1936, ano da grande consolidação da ditadura salazarista e das grandes ditaduras na Europa: a de Hitler na Alemanha, Mussolini em Itália e Franco em Espanha. Avisado da morte de Pessoa através de um telegrama de Álvaro de Campos, Reis que se encontrara exilado por motivos políticos (dado que era monárquico), regressa a Portugal em Dezembro de 1935. Pessoa visitá-lo-á várias vezes durante os oito meses seguintes (tempo que demora a ser esquecido e a esquecer-se) e serão de tal forma amigos inseparáveis que Reis acompanhá-lo-á até ao Cemitério dos Prazeres para sempre. Recoloca-se, assim, o heterónimo pessoano numa História real, havendo menos uma ficcionalização da História que uma historicização do fictício, ao mesmo tempo que a obra propõe o questionamento das noções de verdade, realidade e criação. Aparentemente paradoxal é a ficcionalização do mais racionalista dos heterónimos, do mais alheado para servir uma reflexão de fundo histórico, ideológico, mas o que Saramago nos mostra é a impossibilidade de reduzir a vida à contemplação de um espectáculo. Lídia surge no romance agora como anunciadora do paradoxo entre a poesia e o quotidiano. Da degradação de Lídia (de musa a criada) sobreleva um traço positivo: uma humanização que ela jamais teve (como Reis também, aliás). Embora a obra homenageie toda a poesia, fá-la dobrar-se às contingências históricas, fá-la sentir-se deslocada porque naquele tempo de 1936 ela deixou de significar. No seu duelo com a História, ela parece momentaneamente derrotada. Sobre a questão de ser português, a obra questiona o destino imperial(ista) do povo eleito, a nação mitificada – e, por isso, paralisada – que não soube olhar abertamente a sua História, tornando-se por isso facilmente manipulável. Daí que este romance não exiba um realismo documental (embora faça de Reis testemunha fictícia de factos verídicos), mas ao apropriar-se de discursos jornalísticos revele-os através de uma espécie de comentários irónicos do romance relativamente à história que os jornais (re)produzem (e não é por acaso que reiteradamente se alude a Rockfeller que, velho e doente, é poupado de angústias mundanas – e humanas – porque para ele é feito um jornal de mentira, um único exemplar diário que lhe pinta o mundo cor-de-rosa. Paradoxalmente, é também o doutor Sampaio que diz a Ricardo Reis que a verdade ele tem é de procurar na rua, porque os jornais não cobrem bem o acontecido.) Por outro lado, para além da insuficiência da palavra perante o facto, o romance também problematiza o estatuto da verdade por ela criada (é Lídia que diz que o seu irmão lhe dissera 7


“…há muitas verdades e estão umas contra as outras, enquanto não lutarem não se saberá onde está a verdade”. Mas se “O ano da morte de Ricardo Reis” reformula o padrão tradicional do romance histórico (reconstruindo ambientes e acontecimentos históricos de Lisboa em 1936), ele afasta-se do modelo tradicional de ficção histórica pelo estatuto do narrador (sempre opinativo) e pela função das personagens (Pessoa que existiu aqui vive como morto e Reis que não existiu aqui vive como vivo). Na realidade, a obra adquire verdadeiramente contornos pós-modernistas não só pela eliminação de fronteiras entre erudito e popular, verdade e ficção, passado e presente, retoma do passado como meio de subversão e desconstrução de mitos, mas sobretudo pelos diálogos, apropriação e intertextualidade com carácter paródico. Se reconhecemos Reis com a sua filosofia semi-estóica, semi-indiferente e com o seu paganismo helénico (embora a voz crítica do narrador comente a voz do heterónimo, de forma irónica), por outro lado surge como um homem, fruto de experiências do pensamento, solidão e dúvidas. O seu espírito mantém-se também quando, apesar de amar fisicamente Lídia continua aspirando ao ideal de platonismo amoroso e à mulher espiritualizada que corresponde à incarnação da perfeição divina. Na realidade, o simbolismo da obra que nunca consegue ler “The godo f the labyrinth” é não só a cidade de Lisboa como todo o ser humano e as mulheres um enigma e este mesmo livro é um livro fictício escrito pelo fictício Herbert Quain, invenção do escritor argentino de ascendência portuguesa Jorge Luís Borges. Mas a tessitura desta obra faz-se através de intertextualidade com Pessoa e seus heterónimos, mas também com Camões, Eça de Queirós, Garrett e Pessanha. Com o verso invertido de Camões com que inicia a obra “Aqui o mar acaba e a terra principia” ou “Aqui onde o mar se acabou e a terra espera” com que a termina, o narrador coloca a tónica na perda do extenso império português marítimo e colonial e no desejo de libertação da miséria e no desenvolvimento do país através da terra. O gigante Adamastor, mais do que o sofrimento masculino, encerra todos os perigos que os Portugueses têm que vencer para dobrarem o cabo da ditadura (e esta, o silêncio e as perseguições são simbolizados pela chuva e tempo sempre sombrio). Por outro lado, o passeio do heterónimo por Lisboa, revistando a cidade, aproxima o leitor da obra “Viagens na minha terra” de Almeida Garrett e do “Sentimento dum ocidental” de Cesário Verde. E toda esta multi-referencialidade faz o romance transcender-se a si próprio, posicionando-o numa tradição literária simultaneamente clássica e moderna (ou mais propriamente pósmoderna), portuguesa e internacional. E a escrita de Saramago, embora densa e dura (até as odes de Reis trazidas para a prosa esvaem-se da atemporalidade e a sua presença no romance é rebaixada ao prosaico, manifestando uma impertinência ou uma implausibilidade destes versos no mundo que ele agora tem de enfrentar), não deixa nunca de ser poética e bela (resultante da mistura inteligente e sensível da erudição e oralidade e cultura popular no romance (que, mais do que um mero recurso estilístico, demonstra que entre ambos há uma interligação), através do emprego da exclamação e “apartes”, utilização predominante do presente (marca do fluir 8


constante do narrador entre o passado e o presente), mistura de discursos (directo, indirecto, indirecto livre e monólogo interior – que aponta para uma reminiscência da tradição oral em que contador e ouvintes interagem, presença constante de marcas de coloquialidade, construídas pela relação narrador/narratário, discurso reflexivo construído pelo emprego de aforismos, provérbios e ditados populares que introduzem no discurso narrativo peculiares características da linguagem corrente e familiar. Sónia Pereira

Contos Eróticos do Velho Testamento e Novos Contos Eróticos do Velho Testamento.

Estas duas obras são uma crónica histórica da Antiguidade, ficcionada, cujo fio condutor é a aventura dos sentidos, através do olhar magoado das mulheres e da sua luta pela existência, num mundo em que as descendentes de Eva eram consideradas pelos homens como mercadoria e inferiores aos animais, conceito que perdurará ainda hoje, perpetuado por certas interpretações fundamentalistas dos livros ditos sagrados, em nome de uma verdade religiosa que nenhum Deus, bom e justo, poderia alguma vez sancionar ou sequer tolerar. Vamos, pois, ler “As Núpcias de Asmodeu” texto retirado do livro “Novos Contos Eróticos do Velho Testamento”. “(Sara lembrou-se) de como a sua revolta fora castigada, quando pela primeira vez orara a Deus para que a livrasse do noivo idoso escolhido pelo pai, era ela ainda uma menina... Raquel vira apenas o seu proveito no casamento de Sara com o velho e rico parente, um acréscimo de património para a sua família e não olhara à felicidade da filha, nem atendera aos seus choros e súplicas para não ser dada a um marido cinquenta anos mais velho do que ela. Então, a moça desesperada, prostrara-se no chão do seu quarto com a face por terra e invocara as forças divinas em sua ajuda, mas os céus permaneceram surdos e o casamento não fora cancelado. Como não havia lugar para a rebeldia em casa de Raquel, Sara recalcou dentro de si a dor, o desespero e o ódio, enquanto mostrava ao mundo o sorriso triste da resignação, como se no seu corpo habitassem dois espíritos distintos. As primeiras regras tinham-lhe aparecido poucos meses antes e Sara contemplava com maravilhada surpresa as transformações do seu corpo, os seios a arredondarem-se como os pomos da macieira do quintal, a cintura estreita acentuada pela curva graciosa das ancas, o triângulo escuro e sedoso do sexo por onde se escoava o fluxo impuro mas vivo da sua fecundidade. Sobretudo, espantavam-na as sensações novas que lhe faziam palpitar o coração, o sangue fluir mais rápido e quente nas veias, o ventre intumescer como um fruto sumarento e a pele arrepiar-se de gozo sempre que avistava Chilad, o moço pastor mais disputado pelas mulheres da sua casa devido à sua formosura. De noite, no aconchego do leito, quando a Sara obediente e submissa, depois de muito chorar o seu destino de noiva de um velho, consentia ao sono consolador cerrar-lhe as pálpebras cansadas, uma Sara rebelde e enfurecida tomava o seu lugar e deixava a imagem do moço pastor escorregar para debaixo das mantas e tocar-lhe o corpo que se revelava todo outro, 9


diferente e assustador, fonte de prazer e de remorso. As suas mãos guiavam os dedos calejados de Chilad nessa viagem de descoberta e iniciação, tacteando e entreabrindo os lábios macios que se ofereciam num beijo, tocando a língua quente e húmida, percorrendo a linha esbelta do pescoço e da garganta até à brancura arredondada dos seios onde os dedos se atardavam, afundando-se na espessura da carne para volverem à tona do prazer com os mamilos aprisionados numa carícia, a endurecerem num arrepio de pele que a fazia gemer. Mas as mãos ansiosas não se demoravam aí, desciam impacientes até à cintura, buscavam o nó do umbigo, o ventre liso e doce, o interior das coxas que estremeciam ao toque inábil e se contraíam aprisionando os dedos contra as virilhas, como se quisessem impedir a violação do tesouro, o mistério do amor guardado no vértice macio do seu corpo cuja exploração lhe trazia o êxtase onde se deixava submergir abafando um grito. Contudo, se não lograram tocar as divindades do céu, a súplica e rebeldia de Sara encontraram eco nos numes do inferno, pois Asmodeu ouvira-a, acorrera em seu socorro e apoderara-se dela para sempre. Nessa noite mesmo, entrou-lhe nos sonhos de menina, apanhando-a indefesa e desprevenida, com carícias que lhe devoravam o corpo num prazer doloroso e a faziam contorcer-se como uma serpente e morder os panos da cama para abafar os gemidos e os gritos na garganta. Dessa vez não era Chilad, o pastor simplório que costumava acariciá-la com dedos apressados, mas um amante desconhecido que tomava posse da sua vontade, lhe forçava as mãos e os dedos às carícias mais lascivas, sujeitando-a a uma perversidade e luxúria de gestos e posições que lhe punham o corpo em brasa e a inebriavam como o suco fermentado das uvas. Quando exausta e suada rolara no leito, quase desfalecida, uma voz soara-lhe aos ouvidos, rouca e áspera, murmurando-lhe um segredo terrível: – Eu sou Asmodeu, nomeado em segredo entre os que me veneram por “Aquele que faz morrer”. – A voz baixou ainda mais, num arremedo quase humano de ternura, quando acrescentou: – Mas podes chamar-me Asmoday ou Acheneday, se preferires, pois a tua beleza achou graça aos meus olhos e eu elegi-te para minha esposa. Sara estremecera de horror ao ouvir a criatura diabólica que se apossara da sua carne e do seu espírito, nomear-se a si própria por Asmodeu, o senhor dos Shedin, os demónios com garras de galo! Nos contos ouvidos às segadoras de seu pai nas noites de ceifa e debulha, ele aparecia como o pior de todos os demónios, com três cabeças diferentes – uma de touro, outra de homem com hálito de fogo e a terceira de carneiro. “Um fornicador, um porco sujo!”, tinham afirmado as mulheres mais velhas, cuspindo para a fogueira e fazendo uma breve oração de esconjuro. Contavam casos de mulheres possuídas pelo ser maligno, fornicadas até à morte e um frémito de terror e de ansiedade percorria a roda das mulheres mais moças ou formosas, silenciando os risos e fazendo-as deitar olhares furtivos e inquietos aos lugares mais sombrios da eira. Primeiro julgara sonhar um dos muitos pesadelos que nos últimos tempos lhe povoavam os sonhos de medo e violência, à mistura com estranhos desejos que nem à amiga mais querida ousava confiar. Rezara com muita devoção, jejuara mesmo, a fim de afastar os maus pensamentos e o doce formigueiro do seu corpo e não mais voltara a escutar a voz terrível dos seus demónios. Porém, a sua perdição começara verdadeiramente na noite das primeiras núpcias, depois de uma cerimónia onde todos, menos ela, festejavam e se alegravam com a ventura de Raquel, pois a noiva tinha o coração negro de tristeza como se assistisse ao seu próprio funeral, à morte de todas as ilusões e sonhos de amor da sua adolescência. Quando, depois de a prepararem e deitarem no leito, as mulheres abandonaram o quarto com risos e chistes maliciosos, Sara ficou só com a sua angústia e a sua raiva à espera do marido que haveria de acercar-se dela nessa noite para a conhecer e assegurar a sua progenitura, se ela não fosse estéril. Como poderiam pedir-lhe que amasse aquele velho parente, austero e sem graça, já com alguns netos da sua idade? O medo do que a esperava, a revolta e a ira que 10


a sufocavam esmagavam-na. Queria sair dali, fugir para muito longe, antes que as mãos enrugadas e gastas lhe tocassem no corpo, a boca desdentada se apoderasse da sua, o sexo... O marido entrou um pouco cambaleante, com os olhos brilhantes e um sorriso de bem-estar, despiu as roupas no canto sombrio do quarto, enfiou a veste de dormir e abeirou-se do leito para se deitar. Foi o momento escolhido para Asmodeu se apoderar do espírito de Sara com a violência de um vendaval, enchendo-o de imagens de violência, ódio e morte. Vozes soaram dentro da sua cabeça, ora persuasivas, ora ofensivas e hostis, incitando-a à revolta e à vingança de todas as humilhações, até haver nos seus olhos de menina um brilho de demência. O velho afastou as mantas, subiu para o leito e inclinou-se sobre o delicado corpo adolescente. Um jorro de obscenidades soltou-se da boca de Sara, ao mesmo tempo que o seu torso se arqueava, as mãos agarravam os cabelos do atónito marido, puxando-lhe a cabeça para baixo, prendendo-a entre as coxas, com o rosto esmagado contra o sexo. As suas pernas cruzaram-se por trás do pescoço do homem com uma força sobre-humana impedindo-o de se soltar, não lhe permitindo senão pequenas convulsões e uma respiração ofegante que se assemelhavam a carícias e a faziam apertar as coxas com maior violência e morder os lábios até sangrarem. Quando o seu corpo se abriu em espasmos de deliciosa agonia, Sara libertou finalmente a cabeça do esposo que rolou sobre o leito, sem vida. Depois, pela lei do levirato, Sara fora dada sucessivamente aos seis restantes parentes com direito de resgate sobre ela. E a cada goel ou libertador da sua viuvez Asmodeu dava a morte, para que nenhum homem se abeirasse dela e conhecesse a sua nudez que o enamorado demónio da luxúria reclamava para si.”

Esmeralda Lopes

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