Literatura e Política

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Clube de Leitura LITERATURA E POLÍTICA – Janeiro e Fevereiro

Lista de livros lidos pelos membros do Clube de Leitura da - Biblioteca Municipal de Silves A jangada de pedra de José Saramago A noite de josé Saramago Graças e desgraças da corte de el-Rei tadinho de Alice Vieira Esteiros de Soeiro Pereira Gomes Cultivo de flores de plástico de Afonso Cruz Gabo: memórias da memória de Carlos Fuentes Os cachorros; os chefes de Mario Vargas Llosa Os capitães da areia de Jorge Amado Demónios de Doistoiévski A Confiança no Mundo de José Sócrates Escravos e Senhores na Lisboa Quinhentista de Jorge Fonseca. Poemas: - Liberdade de Paul Éluard; - Com que então libertos, hein? de Jorge de Sena; - Com fúria e raiva de Sophia de Mello Breyner Andresen; - Democracicia de Alberto Pimenta; - Os ninguéns de Eduardo Galeano

- da Biblioteca da Casa do Povo de Alcantarilha e Armação de Pêra As Farpas (vol. X: aspectos vários da sociedade, da política e da administração) de Ramalho Ortigão São Bernardo de Graciliano Ramos Esteiros de Soeiro Pereira Gomes Memorial do convento de José Saramago Levantado do chão de José Saramago Um nómada no oásis de miguel Sousa Tavares

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Poemas: - Como eu não me importei com ninguém de Bertolt Brecht; - O Analfabeto Político de Bertolt Brecht

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Texto inspirado na obra Nascido para mandar de JosĂŠ de Pina por JosĂŠ Paulo Vieira

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Já li o livro “A Confiança no Mundo” do José Sócrates. É um pequeno livro, que pretende abordar objetivamente a tortura como forma de interrogatório (quer de factos passados, quer de intenções futuras). É de facto interessante, tanto mais que o seu autor toma posição inequívoca sobre o assunto, aparentemente oposta à que evidenciou quando teve de conviver como Primeiro Ministro do país na travessia de território nacional por aviões fretados pela CIA, com prisioneiros raptados para interrogatórios com suposto recurso à tortura. No livro é de ter em atenção a seguinte passagem: “É difícil aceitar que alguém invoque a clássica distinção entre ética da convicção e ética da responsabilidade, ou entre moral publica e moral privada, para justificar moralmente a atuação de um político que, baseado na sua convicção, viola a Constituição, as convenções internacionais e as leis em nome de um suposto interesse geral de segurança”. Também importante é a citação de uma obra de Philip Pettit para referir: “um governo será democrático, um governo representará um forma de poder que é controlado pelo povo, na medida que o povo, individual e coletivamente, goze a possibilidade permanente de contestar o que o governo decide”.

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Estas citações ajustam-se que nem uma luva ao que se passa atualmente no País, com as medidas contra a classe média e os mais desfavorecidos. A tortura, em especial a “light”, está hoje também vulgarizada como forma científica de orientar comportamentos. Na gestão de simples empresas ou da comunicação social pública ela está sempre presente e tem de ser disciplinada pelos poderes públicos sob pressão da intervenção cívica que cabe a todos nós. Este fim de semana também li “Escravos e Senhores na Lisboa Quinhentista” de Jorge Fonseca. Uma boa recolha de elementos históricos que permite uma melhor aproximação ao processo de procurar conhecer melhor a nossa identidade (pois não se trata apenas de Lisboa, mas de todo o país no quadro do seu antigo império).

Demónios de Fiódor Dostoiévski Baseada na história verídica do assassinato de um estudante por uma organização terrorista, esta é uma das obras maiores de Dostoiévski e de todos os tempos por várias razões, mas na minha opinião principalmente porque o escritor conseguiu sentir a pulsação da sociedade russa do seu tempo (o poder autocrático, o socialismo ateu, o niilismo revolucionário e o problema religioso) e redigir uma obra premonitória das grandes derivas totalitárias do século XX (Estaline, regime nazi de Hitler) e do pensamento de Nietzche acerca do Super-Homem sem, contudo, descurar a atenção à profunda caracterização psicológica das personagens (o que é apanágio, aliás, da literatura russa, mas aqui elevado mais uma vez ao máximo). Sem se levantar como uma arma política contra determinado conflito datado, esta obra publicada em 1872 assume-se como uma crítica a todos os fundamentalismos, seja de que ordem forem, sob o argumento de que também eles acabam por cair num outro radicalismo e, portanto, nos demónios que queriam combater inicialmente. O suspense sempre habilmente mantido, apesar de várias prolepses, as personagens descritas com a sua devida espessura psicológica, diálogos profundamente verosímeis com as pausas e hesitações dos aflitos e estonteados, e um ritmo de escrita rápido, quase vertiginoso que dá bem conta do nervosismo das situações radicais vividas por todos tornam “Demónios” uma obra que nos assombra, cola, perturba e jamais se esquece… A alma humana, sobretudo com todas as tonalidades da sua cor mais negra, coloram estas vidas e esta obra que nos (re)lembra como certos líderes sem quaisquer efectivos projectos políticos assustadoramente conseguem destruir uma comunidade.

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Excertos (mais) interessantes: - pág. 77 – sobre o Comunismo; - pág. 94 – Terrorismo; - pág. 361-362 – como se cria uma célula bem coesa? - pág. 391, 392 – grandes ideias-chave da organização terrorista; - pág. 442 à 473 – Acção da organização no baile dado por Varvara; - pág. 511 – Dissidências e discussões dentro da organização; - pág. 514 – Verdadeiro carácter de Piotr; - pág.- 535-536 – motivações dos vários membros do grupo; - pág. 563 – morte atabalhoada de Chátov pela organização; - pág. 635 – confissão de Nikolai ao padre sobre o seu maior crime (violação de uma criança); - pág. 641-642 e 652-653 – carácter de Nikolai; - pág. 111-112 – Existencialismo (vida, suicídio, dor Deus); - pág. 571-573 – razões do suicídio de Kiríllov; - págs. 181, 225-227, 237-238 – Religião; - pág. 637 – ateísmo e indiferença; - pág. 348-349 –Situação social da Rússia; - pág. 456- Descrição mais pormenorizada da Rússia na segunda metade do século XIX; Sónia Pereira

O cultivo das flores de plástico de Afonso Cruz "No fundo é isso. Ninguém nos vê. Somos invisíveis. A miséria é uma poção de invisibilidade. Quando as roupas ficam rotas, quando estendemos uma mão, puf, desaparecemos. Somos as pombas dos ilusionistas. Isto dava para um negócio, dava para ganhar a vida com os 7


turistas. Levava-os a ver fantasmas numa cidade assombrada. Levava-os a verem-nos. Olhem, damas e cavalheiros, meninos e meninas, esta é a Lili, tem saudades de ser criança, tem no nariz o cheiro do tabaco dos dedos do pai e crostas nos braços, por aqui, por favor, cuidado com os pés, não pisem as camas, parecem cartões, eu sei, ali ao canto está o couraçado Korzhev, que se deixou ficar, com os ícones na lapela, sigam-me, é um deserto meio russo e traz o barulho do mar nos bolsos, atenção, cavalheiro, saia de cima do cobertor, vejam, ali, ali ao fundo, uma genuína senhora de fato, que ainda há poucos meses andava a alcatifar o mundo, minhas senhoras e meus senhores, e ainda tem na voz restos da sua vida anterior, do tempo em que havia casas. Palmas, por favor. E eu? Eu sou o Jorge, também invisível como qualquer fantasma, vivo nas ruas. Obrigado, obrigado, e agora, se me permitem, vou comer a minha sopa que está a arrefecer há tantos anos." Acho que este pequeno texto refere o essencial da pequena peça de teatro que li para a última sessão do clube de leitura. Para reflectir... Paula Torres Os ninguéns de Eduardo Galeano dito por Ana Paula As pulgas sonham em comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico de sorte chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chova ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.

Os ninguéns: os filhos de ninguém, os dono de nada. Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos: Que não são embora sejam. Que não falam idiomas, falam dialetos. Que não praticam religiões, praticam superstições. Que não fazem arte, fazem artesanato. Que não são seres humanos, são recursos humanos. Que não tem cultura, têm folclore. Que não têm cara, têm braços. Que não têm nome, têm número. Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local. Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata. Liberdade de Paul Éluard dito por Paula Torres Nos meus cadernos de escola Sobre a carteira nas árvores Sobre a neve sobre a areia Grifo teu nome Em toda página lida 8


Em toda página em branco Sem papel na pedra ou cinza Grifo teu nome Sobre as gravuras douradas Sobre as armas dos guerreiros Sobre a coroa dos reis Grifo teu nome Na floresta e no deserto Sobre os ninhos sobre as gestas Nos ecos da minha infância Grifo teu nome Nas maravilhas das noites No pão branco das jornadas Nas estações de noivado Grifo teu nome Nos fiapos de azul-celeste No tanque solar bolor No lago lua vibrante Grifo teu nome Nos campos nos horizontes Nas asas dos passarinhos Sobre os moinhos de sombras Grifo teu nome

Em cada sopro de aurora Sobre o mar sobre os navios Na insensatez das montanhas Grifo teu nome Nas nuvens soltas revoltas Na tormenta transpirada Na chuva insistente e boba Grifo teu nome Sobre as formas cintilantes Nas campânulas de cores Por sobre a verdade física Grifo teu nome Sobre as veredas despertas Nos caminhos desdobrados Sobre as praças transbordantes Grifo teu nome Na lâmpada que se acende Na lâmpada que se apaga 9


Nas casas cheias de gente Grifo teu nome No fruto cortado em dois O do espelho e o do meu quarto Na concha sem mim depois Grifo teu nome No meu cão terno e guloso Mas sempre de orelha em pé E patas destrambelhadas Grifo teu nome No trampolim da minha porta Nos objetos familiares Nas línguas do lume bento Grifo teu nome Em toda carne acordada Na fronte dos meus amigos Em cada mão que me afaga Grifo teu nome Na vidraça das surpresas Sobre os lábios expectantes Muito acima do silêncio Grifo teu nome

Nos refúgios descobertos Nos maus faróis desmontados Nas paredes do meu tédio Grifo teu nome Sobre a ausência do desejo Sobre a solidão desnuda Nos descaminhos da morte Grifo teu nome No retorno da saúde No risco que se correu Na esperança sem lembrança Grifo teu nome E pelo poder de um nome Começo a viver de fato Nasci pra te conhecer E te chamar Liberdade 10


Com que então libertos, hein? de Jorge de Sena dito por Sónia Pereira

Com que então libertos, hein? Falemos de política, discutamos de política, escrevamos de política, vivamos quotidianamente o regressar da política à posse de cada um, essa coisa de cada um que era tratada como propriedade do paizinho. Tenhamos sempre presente que, em política, os paizinhos tendem sempre a durar quase cinquenta anos pelo menos. E aprendamos que, em política, a arte maior é a de exigir a lua não para tê-la ou ficar numa fúria por não tê-la, mas como ponto de partida para ganhar-se, do compromisso, um boa lâmpada de sala, que ilumine a todos. Com o país dividido quase meio século entre os donos da verdade e do poder, para um lado, os réprobos para o outro só porque não aceitavam que não houvesse liberdade, e o povo todo no meio abandonado à sua solidão silenciosa, sem poder falar nem poder ouvir mais que discursos de salamaleque, há que aprender, re-aprender a falar política e a ouvir política. Não apenas pelo prazer tão grande de poder falar livremente e poder ouvir em liberdade o que os outros nos dizem, mas para o trabalho mais duro e mais difícil de — parece incrível — refazer Portugal sem que se dissipe ou se perca uma parcela só da energia represa há tanto tempo. Porque é belo e é magnífico o entusiasmo e é sinal esplêndido de estar viva uma nação inteira. Mas a vida não é só correria e gritos de entusiasmo, é também o desafio terrível do ter-se de repente nas mãos os destinos de uma pátria e de um povo, suspensos sobre o abismo em que se afundam os povos e as nações que deixaram fugir a hora miraculosa que uma revolução lhes marcou. Há que caminhar com cuidado, como quem leva ao colo uma criança: uma pátria que renasce é como uma criança dormindo, 11


para quem preparamos tudo, sonhamos tudo, fazemos tudo, até que ela possa em segurança ensaiar os primeiros passos. De todo o coração, gritemos o nosso júbilo, aclamemos gratos os que o fizeram possível. Mas, com toda a inteligência que se deve exigir do amadurecimento doloroso desta liberdade tão longamente esperada e desejada, trabalhemos cautelosamente, politicamente, para conduzir a porto de salvamento esta pátria por entre a floresta de armas e de interesses medonhos que, de todos os cantos do mundo, nos espreitam e a ela.

Com fúria e raiva de Sophia de Mello Breyner Andresen dito por Sónia Pereira

Com fúria e raiva acuso o demagogo E o seu capitalismo das palavras

Pois é preciso saber que a palavra é sagrada Que de longe muito longe um povo a trouxe E nela pôs a sua alma confiada

De longe muito longe desde o início O homem soube de si pela palavra E nomeou a pedra a flor e a água E tudo emergiu porque ele disse

Com fúria e raiva acuso o demagogo Que se promove à sombra da palavra E da palavra faz poder e jogo E transforma as palavras em moeda Como se fez o trigo e com a terra

Democracicia de Alberto Pimenta dito por Sónia Pereira

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Como eu não me importei com ninguém de Bertolt Brecht dito por Luís Ricardo Primeiro levaram os negros Mas não me importei com isso Eu não era negro Em seguida levaram alguns operários Mas não me importei com isso Eu também não era operário Depois prenderam os miseráveis Mas não me importei com isso Porque eu não sou miserável

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Depois agarraram uns desempregados Mas como tenho meu emprego Também não me importei Agora estão me levando Mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém Ninguém se importa comigo.

O Analfabeto Político de Bertolt Brecht dito por Luís Ricardo

O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e lacaio dos exploradores do povo. Nada é impossível de Mudar "Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar." Privatizado "Privatizaram sua vida, seu trabalho, sua hora de amar e seu direito de pensar. É da empresa privada o seu passo em frente, seu pão e seu salário. E agora não contente querem privatizar o conhecimento, a sabedoria, o pensamento, que só à humanidade pertence.

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