Revista de Filosofia Theoria nº 16

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O CONCEITO DE JOGO COMO GUIA DE GADAMER: AS DIFERENTES FORMAS E SENTIDOS DE APRESENTAÇÃO THE CONCEPT OF PLAY AS GUIDE OF GADAMER: THE DIFFERENT FORMS AND MEANINGS OF PRESENTATION

Adriano Picoli1

“– E a vida é um jogo, meu filho.”2

RESUMO: Neste ensaio, tenho o objetivo de fornecer uma chave de leitura do legado gadameriano através da realização da distinção entre os diferentes modos e sentidos de apresentar pressupostos pelo conceito de jogo. Para isso, explicitaram-se as diferenças entre os conceitos componentes do de jogo, a saber, os de autoapresentação, mero apresentar e apresentar para... Com isso esclarecido, podemos perceber o direcionamento ético-político da filosofia de Gadamer já no seu conceito mais fundamental, enquanto todo apresentar para é um apresentar para outro. Palavras-chave: Gadamer. Jogo. Autoapresentação. Mero apresentar. Apresentar para. ABSTRACT: In this article, I analyze the Gadamer’s hermeneutical legacy and I offer a reading key to understanding the different forms and meanings of “presentation”, implicit in the concept of play. In that respect, I explicit the different concepts which compose the concept of play, namely, the concept of self-presentation, mere presentation and representing for... This conceptual exposition indicates the ethical-politics’ direction of Gadamer's philosophy from their fundamental concept, since the concept of presentation for mean presentation to one other. Keywords: Gadamer. Play. Self-presentation. Mere presentation. Presenting for.

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Doutorando em Filosofia pela UFSC. Bacharel, licenciado e mestre em Filosofia pela UFSC. E-mail: adlersdreistlethes@gmail.com. Artigo recebido em 07/04/2014 e aprovado para publicação em 15/07/2014. 2 SALINGER, J. D. O apanhador no campo de centeio, cap. 2.

Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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1. Considerações iniciais Neste artigo3, detenho-me na apresentação daquele que podemos considerar indubitavelmente como o principal conceito guia (“Leitfaden”4) utilizado por Gadamer, a saber, o de jogo (“Spiel”)5 e à sua aplicação à questão do apresentar-se da obra de arte. Concentrei-me na explicitação do conceito de jogo – e de seus conceitos componentes – com o objetivo primeiro de esmiúçá-lo e depois ver sua aplicação ao modo de ser da obra de arte em algumas de suas múltiplas formas de manifestações, como Gadamer o faz na primeira parte de Verdade e Método I. Segundo ele, seu ponto de partida deu-se a partir “da questão da verdade da arte” que o possibilitou encontrar “o caminho para a hermenêutica, onde se reúnem a arte e a história”6, as quais são fontes de sentido, de verdade e de conhecimento. Este percurso nos é importante para visualizarmos como para Gadamer a arte nos deve preparar os fundamentos das veredas para a “verdadeira liberdade ética e política”7. Mediante 3

O texto do presente artigo faz parte do cap. 3 de minha dissertação de mestrado (PICOLI, Adriano. As tensões e distensões dos jogos das artes e da linguagem a partir da filosofia hermenêutica de Gadamer. UFSC, Centro de Filosofia e Ciências Humanas – CFH. Florianópolis, Sc. Outubro de 2011. Disponível em: <http://www.tede.ufsc.br/teses/PFIL0145-D.pdf>. Acesso em: 09 abr 2012, p. 79-144.). * Abreviações utilizadas para as obras de Gadamer: WM1 – Verdade e Método I; WM2 – Verdade e Método II ( [xx] Paginação lateral de WM1 e WM2, correspondente à paginação alemã); PDE – Platos dialektische Ethik: Phänomenologische Interpretation zum Philebos (Einleitung – 1 Kapitel § 1-4); GW1 – Gesammelte Werke 1: Warheit und Method 1; GW2 – Gesammelte Werke 2: Warheit und Method 2; GW3 – Gesammelte Werke 3: Neuere Philosophie I; GW4 – Gesammelte Werke 4: Neuere Philosophie II; GW5 – Gesammelte Werke 5: Griechische Philosophie I; GW8 – Gesammelte Werke 8: Ästhetik und Poetik I; GW9 – Gesammelte Werke 8: Ästhetik und Poetik I; GW10 – Gesammelte Werke 10: Hermeneutik im Rückblick; OCS – O caráter oculto da saúde; HR – Hermenêutica em Retrospectiva; AB – A atualidade do Belo: a arte como jogo, símbolo e festa; PH – Philosophical Hermeneutics. 4 Não obstante “Leitfaden” também possuir o sentido de método, de manual, optamos aqui pelo de guia, pois nos parece muito mais afim à concepção gadameriana da hermenêutica como “um caminho para o pensar” (GADAMER in: ABI-SÂMARA, R. “Uma das últimas entrevistas concedidas por Hans-Georg Gadamer”, p. 14). 5 Aqui cabe uma observação com relação à tradução da palavra alemã “Spiel” – e “Spiele” no plural – como jogo, uma vez que apesar dessa ser nossa melhor possibilidade de tradução, tal opção não fica sem problemas, visto que a carga semântica entre essas palavras não é totalmente correspondente, a tradução acarreta perdas de sentido consideráveis, porquanto a palavra portuguesa não possui como aquela os nuances que abarcam a dimensão do brincar e da arte, como os da representação teatral, os da execução musical etc. A língua inglesa oferece uma opção melhor que a portuguesa com o substantivo “play” que mantém a correspondência semântica com “Spiel” – também como verbo: “to play” –, já que este não pressupõe o jogo apenas do ponto de vista de regras, tal como indica o uso da palavra inglesa “game” – de algo delimitado com início e fim, que tem um resultado, ou seja, um vencedor e um vendido – , mas abarca o sentido de acontecer de “Spiel” como indica Gadamer. Tanto “Spiel” quanto “play” possuem os sentidos amplos de jogo, tais como os de tocar (um instrumento), brincar (simular, fingir), pôr (em movimento, dar o “play” do dvd), desempenhar (um papel numa peça teatral) etc. Tais observações entre a não equivalência de jogo e “Spiel” também são válidas com relação aos verbos jogar e “spielen”. 6 WM1, p. 629; [492]. “und hatten von der Frage nach der Wahrheit der Kunst aus den Weg in die Hermeneutik gefunden, in der sich Kunst und Geschichte für uns zusammenschlossen.” 7 WM1, p. 132; [88]. “der wahren sittlichen und politischen Freiheit, zu der die Kunst vorbereiten sollte”.

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o conceito de jogo, Gadamer viu a possibilidade de mostrar que o apresentar-se constitui o verdadeiro modo de ser da obra de arte8. Entretanto, entre os jogos que o humano joga apenas alguns se apresentam como arte. O que há de especial neles? Por que Gadamer dá tanta ênfase na questão da arte? Outra questão a evidenciar se refere ao que permite Gadamer aplicar o conceito de arte para ocupações que, além de abarcar, ultrapassam em muito as fronteiras daquilo que principalmente a tradição moderna iluminista considerou arte, tais como, por exemplo, “arte do compreender” (“Kunst des Verstehens”), “arte do entendimento” (“Kunst der Verständigung”), “arte do discurso” (“Redekunst”), “arte do orador”9 – (“Kunst der Rhetorik”; “Argumentationskunst”) –, “arte da escrita” (“Kunst des Schreibens”), “a arte de curar”10, “artes da produção do artificial”11, “arte técnica”12, “artes ‘mecânicas’”13, “arte tipográfica”14, “arte do direito”15, “arte da reflexão”16, “arte do estado”17, “arte do envolver”18, “arte do tiro”19, “artes do domínio”20, “arte do conceito”21 – “arte do pensamento conceitual”22 – “arte da descrição fenomenológica”23, “arte do pensar”24, “arte da condução da conversa”25, “arte da jardinagem”26, “a arte da escuta”27, “a arte da guerra”28 etc. Dê que modo Gadamer pôde designar atividades tão diversas como o pensar, o discurso e a técnica pelo conceito de arte? Quais são os limites do que é arte para ele? Diante de que medida tais atividades passam a ser consideradas artes?

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Cf. WM1, p. 628; [491]. WM2, p. 275; [236]. “Kunst des Redners”. Aqui limitei-me a referenciar apenas as ocorrências menos comuns nos textos gadamerianos, as outras são muito frequentes. 10 OCS, p. 28; [GW4, p. 257]. “Heilkunst”. 11 OCS, p. 28; [GW4, p. 257]. “Künste des Herstellens von Künstlichen”. 12 OCS, p. 31; [GW4, p. 260]. “technischen Kunst”. 13 WM1, p. 615; [481]. “‘mechanischen’ Künsten”. 14 WM2, p. 290; [337]. “Buchdrukkerkunst”. 15 OCS, p. 165. 16 WM2, p. 537; [473]. “Reflexionskunst”. 17 WM2, p. 190; [161]. “Staatskunst”. 18 WM2, p. 356; [307]. “Kunst des Mischens”. 19 WM2, p. 366; [316]. “Kunst des Bogenschießens”. 20 WM2, p. 239; [203]. “Herrschaftskünsten”. 21 WM2, p. 119, 422; [98, 364]. “Begriffskunst”. 22 WM2, p. 546; [480]. “Kunst des begrifflichen Denkens”. 23 WM2, p. 547; [481]. E, em várias passagens em HR; [GW10]. “phänomenologische Deskriptionskunst”. 24 WM2, p. 573; [502]. “Kunst des Denkens”. 25 GW9, p. 70. “Kunst der Gesprächsführung”. 26 GW9, p. 131. “Kunst der Gartengestaltung”. 27 HR, p. 290; [GW10, p. 274]. “die Kunst des Zuhörens”. 28 HR, p. 307; [GW10, p. 291]. “die Kriegskunst”. 9

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Parece-me que a resposta para estas e todas as outras perguntas acerca da filosofia hermenêutica necessariamente precisam passar pela elucidação do conceito de jogo em seus conceitos componentes. O que nos requer tornar claro o variado uso deste conceito que, a princípio, apontam para indícios que endossam essa perspectiva universal de jogo. O que é indicado pelos vários exemplos fornecidos por Gadamer, tais como os ditos jogos em sentido metafórico que, para ele, não devemos vê-los apenas deste modo. Por exemplo, “quando falamos do jogo das ondas ou dos mosquitos jogantes ou do livre jogo dos membros”.29 Ou ainda do “jogo da imitação”30, do “jogo do destino”31, do “jogo do desempenho social”32, do “jogo das forças”33, do “jogo da reflexão”34, do “jogo dos sons”35, do “jogo dos disfarces”36, do “espaço de jogo da liberdade”37, do “jogo das paixões”38 etc., estamos falando de jogo em pleno sentido da palavra, e de suas formas mais primárias. O conceito de jogo indica para diferentes formas estruturais de relações que se determinam como uma ou outra por possuírem ou não traços específicos, tais como a presença de um sujeito que se perde no jogo ou não, a ausência de intencionalidade voltada para outro ou não etc. Isto se legitima à medida que se pode ver os jogos a partir do ponto de vista do todo como um apresentar-se ou por meio de uma de suas possíveis partes que jogam, estas jogam de acordo com uma ou outra das formas de participação no jogo. Tais formas de relações participativas no jogo são o “mero apresentar” e o “apresentar para...” Diante dessas diferenças, tentei mostrar tanto os traços gerais que constituem todos os jogos quanto os particulares que elas representam, isto nos permitirá ver a diferença entre os jogos da matéria bruta, o dos animais em geral que num determinado sentido também inclui o comportamento jogante dos humanos. Desta última forma participativa no jogo emergiu uma forma de jogar que caracteriza os jogos humanos, a do “apresentar para...” O comportamento jogante dos humanos pode ser apreendido por meio dos três modos e sentidos do apresentar dos jogos. Na 29

WM2, p. 180; [152]. “So ist es keineswegs nur eine Metapher, wenn wir von dem Spiel der Wellen oder den spielenden Miicken oder dem freien Spiel der Glieder sprechen.” Grifo do autor. Optei em traduzir literalmente “spielenden Miicken” como mosquitos jogantes para preservar o vínculo com jogo (“Spiel”), tal expressão equivale à portuguesa nuvem de mosquitos. 30 WM2, p. 12; [5]. “Spiel der Nachahmung”. 31 WM2, p. 238; [202]. “Schicksalsspiel”. 32 WM2, p. 301; [259]. “soziales Rollenspiel”. 33 WM2, p. 320; [275]. “Das Spiel der Kräfte”. 34 WM2, p. 410; [355]. “Spiel der Reflexion”. 35 WM2, p. 411; [355]. “Spiel der Klänge”. 36 WM2, p. 429; [370]. “Verkleidungsspiel”. 37 WM2, p. 482; [414]. “Freiheitsspielraum”. 38 GW9, p. 60. “das Spiel der Leidenschaften”.

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perpectiva gadameriana, do primeiro sentido do apresentar nenhum jogo escapa, os outros aparecem num número menor de jogos; o segundo modo e sentido do apresentar dos jogos dos humanos, estes o compartilham com os restantes dos animais; o último se caracteriza como o traço singular dos jogos humanos, é o traço que dá conta do acontecer dos jogos das artes. Obviamente, antes de me dedicar à explicitação desta terceira perspectiva de jogo, primeiramente me concentrarei nas outras duas. Ao chegar à terceira, meu objetivo é mostrar o momento de tensão representado pela forma participativa que caracteriza os jogos humanos, a do “apresentar para...” dentro do apresentar-se da obra de arte. Em outras palavras, pretendemos mostrar que o acontecer da obra de arte tanto congrega uma dimensão objetiva (“sachlich”) – a da configuração –, quanto uma subjetiva, a das relatividades situacionais do(s) apresentador(es) e do(s) espectador(es), já que estes fazem de suas participações nos jogos os seus modos de ser. Através da forma participativa nos jogos das artes, esperamos mostrar o porquê Gadamer viu a experiência artística como a paradigmática para a liberação da pergunta pela verdade possibilitando o seu alargamento para as esferas das ciências do espírito e da linguagem. De modo geral, com o todo aqui exposto, veremos como a estrutura de jogo é o modo de ser da obra de arte, e como o modo de ser do jogo, em última instância, organiza-se numa autoapresentação. Consequentemente, a obra de arte sendo jogo é autoapresentação. Tentei evidenciar como Gadamer pode tirar essas consequências; bem como, diante disso, almejei explicitar que espaço resta na experiência da arte para a questão da liberdade no interior dos jogos. Para isso, foquei no segundo modo e sentido de participação no jogo. 2. Os jogos em seus modos e sentidos de apresentar O objetivo norteador aqui consistiu na elucidação dos modos e sentidos mais gerais e particulares dos jogos apresentados por Gadamer em sua conceituação “pura” de jogo, ou seja, sem aplicá-la na análise dum âmbito específico – salvo os exemplos –, tal como Gadamer o faz para analisar os diferentes modos de ser das obras de artes, a despeito de tocarmos na questão – sendo impossível não fazê-lo – esse não será nosso objetivo neste momento, mas posteriormente. Em Gadamer, o momento de tensão dos jogos aparece em dois dos três modos e sentidos diferentes em que se apresentam os jogos. O que nos autoriza a falarmos de sentidos distintivos nos jogos é uma única passagem de Gadamer em Verdade e Método I formulada Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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claramente, anterior e posteriormente apenas encontramos o uso de tais distinções. Para ele, entre os diversos jogos, distintos também são os modos e sentidos do apresentar; para eles, Gadamer nos indica três perspectivas a partir das quais os jogos realizam-se – duas delas os diferenciam do mero jogo – quando esclareceu a diferença entre os jogos apresentativos da cerimônia cúltica e da apresentação teatral daquele modo de apresentar do jogo em que se perde a criança em seu brincar com algo. Os três modos de apresentar do jogo podem ser encontrados em apenas alguns dos jogos jogados pelos humanos: os jogos da arte. Tais modos e sentidos do apresentar caracterizam diferentes traços estruturais dos jogos, distintos graus de complexidade dos jogos, a saber, 1º como “um mero apresentar-se de um movimento ordenado”39; 2º como “o mero apresentar”; e 3º como o “‘apresentar para...’”. Em três etapas, a seguir analisei o que caracteriza cada um desses traços dos jogos, os dois primeiros os analisei como forma de preparar o solo para esclarecer o terceiro, sendo este meu objetivo mor aqui. Até mesmo porque este foi o foco do próprio Gadamer, elaborando pouco os outros sentidos do acontecer dos jogos. Para explicitá-los a seguir, recorri a exemplos e às suas estruturas formais. Acredito que seja por levar em conta essas distinções que darei uma ênfase distinta do restante da bibliografia dedicada a esta temática, pois, diante de minha apresentação, poderemos perceber que o jogo humano das ditas por Gadamer artes vem à tona como a estrutura de jogo mais complexa dentre todos os jogos, com traços estruturais singulares. De forma que viéssemos a desfazer os resultados de uma leitura ingênua que veria a introdução gadameriana do conceito de jogo limitado à esfera da arte, veremos que seu escopo é bem mais amplo quando percebemos que Gadamer o explícita através da mereologia do círculo hermenêutico, ou seja, a partir das relações do todo – como autoapresentação – com as suas possíveis partes, a do “mero apresentar” e a do “apresentar para...”, possíveis porque há jogos como os da matéria bruta que apenas podem ser vistos do ponto de vista do todo, como um apresentar-se, bem como porque há jogos que podem ser vistos por via da primeira e da segunda perspectiva, mas não da terceira perspectiva, tais como os jogos humanos nãoartísticos.

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WM1, p. 163; [114]. “Spiel ist hier nicht mehr das bloße Sichdarstellen einer geordneten Bewegung, noch auch das bloße Darstellen, in dem das spielende Kind aufgeht, sondern es ist ‘darstellend für…’ Diese allem Darstellen eigene Anweisung wird hier gleichsam eingelöst und wird für das Sein der Kunst konstitutiv.”

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Nos próximos três subtópicos, analisei cada um desses modos e sentidos das apresentações dos jogos40, começando pela forma de apresentação mais geral, a da autoapresentação. 2.1 Os jogos como “um mero apresentar-se de um movimento ordenado” Estruturalmente, este modo e sentido do apresentar do jogo caracteriza-se pela relação de pelo menos dois elementos que jogam, i.e., que estão sob os efeitos das tensões da relação. Mas antes de adentrarmos a explicitação deste modo e sentido do apresentar, temos que perceber algumas diferenças de usos terminológicos realizadas por Gadamer por vezes não consideradas pelos tradutores de suas obras. A primeira coisa a perceber aqui é a diferença entre o que está sendo expresso por intermédio das palavras: jogo (“Spiel”) e jogar (“Spielen”). Elas não dizem a mesma coisa, portanto não podem ser traduzidas por opções intercambiáveis. Enquanto com a primeira Gadamer refere-se ao jogo em sua totalidade; com a segunda, ele designa uma parte que participa do movimento do todo do jogo, esta participação no jogo não necessariamente tem que se comportar como um sujeito, ou seja, esta parte não precisa necessariamente desempenhar uma atividade no interior do jogo, pode ser a mera participação num todo de relações que culmina apenas numa autoapresentação do próprio jogo, ou seja, esta participação joga tendo metas ou não, i.é., sendo uma pedra, um animal ou um humano num ato apresentativo, os três elementos jogam por mais que joguem em sentidos diferentes, visto que se os dois últimos elementos do jogo podem jogar ativamente – impulsionar o movimento do jogo – o mesmo não acontece com o primeiro. Gadamer usa de dois termos para fazer menção àqueles que jogam, eles são os “jogantes” (“Spielenden”)41 ou os jogador(es) (“Spieler”)42, não há uma diferença rigorosa entre tais usos, entretanto podemos perceber que com o primeiro Gadamer aponta para o caráter primário de “ser-jogado” – de ser um “pathos” – do comportamento do sujeito, e com o segundo, ele indica para o comportamento ativo do sujeito. A primariedade do simples jogar como forma de participação no jogo não requer um comportamento ativo, como, por exemplo, no caso do gato que joga com o rolo de lã, este por si não provocaria um movimento, é o gato que o coloca em movimento. Na sequência do 40

No trecho que se segue, não refiro cada aspecto que menciono, visto que está concentrado em algumas poucas páginas de Verdade e Método I. Cf. WM1, p. 154-165; [107-116]. 41 Cf. GW1, p. 107-8, 110-5, 493. GW2, p. 128, 151-2, 446. 42 Cf. GW1, p. 108, 110-2, 114-7, 122-3, 138, 493. GW2, p. 152.

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jogo, nosso gatinho pode ficar entediado com o rolo de lã vermelho, abandonando-o, passando a jogar com o rolo amarelo, depois dá sequência a seu jogar com o verde etc. Com este exemplo, quero chamar a atenção de que nenhum dos elementos que jogam são insubstituíveis. Outro bom exemplo aqui são os jogos esportivos que se realizam em equipes, cujas regras permitem a substituição de jogadores, como acontece nos jogos de futebol, de basquete, de voleibol etc., por maior que seja o brilho de uma estrela nada assegura a ela, diante de um desempenho fraco num jogo, que ela não venha a ser substituída por um anônimo. E isso se estende para o âmbito das artes, onde atores são substituídos de seus papéis, músicos são trocados etc. Em geral, a substituibilidade dos jogadores se estende a toda a esfera da vida, social – há ali exemplos mais explicitadores do que a dimensão das relações conjugais e a da esfera do trabalho? –, linguística etc. Para ilustrar esta primariedade do jogar lembremos que é por estar fundado nos elementos que jogam apenas como natureza na ordem do físico-químico-biológico, ou seja, apenas como um apresentar-se, que um nascido de humanos um dia passa a jogar o jogo de seu perpassamento no âmbito humano. Qualquer elemento joga quando está em relação com outro, seja a simples relação da água com o vento, seja a relação pedagógica entre o professor e seus alunos e vice-versa. Todos esses elementos jogam quando estão em relação com outro, independentemente se cada um joga num sentido e modo diferente, se possui metas ou não etc. Deste modo, percebemos que aquilo que joga precisa participar do jogo meramente proporcionando um contralance, tão simples como o arrebentar das ondas no rochedo, esta relação de elementos – água, vento, rocha etc., – que proporcionam o vai e vem de um mero movimento ordenado que no seu constante repetir esculpe formas na rocha apenas é possível porque cada elemento joga, desempenha um papel, eles têm uma função peculiar no todo do jogo, não há o estourar das ondas sem o encontro com o rochedo, o rochedo apenas tem a forma que tem porque as ondas vêm ao seu encontro à proporção que são conduzidas pelo vento – que é consequência de uma série de outros fatores – etc; numa forma mais complexa, também joga o rolo de lã, a bola, o brinquedo ou o objeto qualquer com os quais um gato ou uma criança brincam, evidentemente, num sentido diferente daqueles primeiros. Também o gato e a criança jogam; numa forma ainda mais complexa, também jogam o professor e o ator diante de seus públicos de jogantes (intérpretes), estes obviamente de sua forma também jogam. Deixemos para tratar das especificidades do jogar nos próximos dois tópicos em

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diante; agora limitemo-nos no primeiro sentido e modo de apresentação dos jogos, o do apresentar-se do jogo. Podemos ilustrá-lo com todo e qualquer jogo, enquanto concebemos o jogo a partir de sua totalidade, o que abarca até mesmo os ditos “jogos em sentido figurado”, entre eles, por exemplo, inclui-se o funcionamento de uma engrenagem, o movimento de uma roda d´água de moinho, a articulação das funções fisiológicas de um organismo qualquer (o dos humanos, por exemplo, que se dá independente de nosso querer ou não) ou até mesmo com o jogo das ondas, com o jogo do movimento das nuvens etc. É o jogo visto a partir de sua forma mais ampla, a do todo. É a mera relação de pelo menos dois elementos (x e y), tal como o jogo das ondas como o processo da relação entre água e vento. Ou o jogo da evaporação como a relação entre água e certo nível de calor. Em suma, o jogo do ponto de vista do apresentar-se, é a descrição do jogo à luz do todo, abrange todas as ordenações da natureza, isso subsume as emergentes e tensas ordenações dos jogos humanos à medida que estes também são natureza, e é por também serem natureza e seguirem a primariedade do jogar desta que já desde sempre os humanos também são resultantes do jogo, também jogam, aqui também para nós humanos vale a primariedade de que nós somos muito mais algo que joga no sentido de um sofrer do que alguém que faz de seu comportamento efetivo – ativo – um jogar. Com tudo isso, o que estamos querendo dizer consiste na assunção de que do ponto de vista do todo, todos os jogos, sem nenhuma exceção – do jogo das ondas a uma execução musical, teatral etc., – são um apresentar-se. Entretanto, deles somente os jogos cujos elementos que os compõem apenas jogam de forma não efetiva são os que se restringem a serem jogos apenas no sentido do apresentar-se, visto que nestes os elementos que jogam não visam uma meta, não há uma atividade sendo realizada, são apenas um apresentar-se; aqui entram todos os jogos dos quais os elementos que os compõem são apenas matéria bruta, estes jogos limitam a sua descrição da perspectiva do todo, não possuem elementos que jogam com metas, é mera relação bruta, atrito, como a relação da água com a rocha. Não há nada que se comporta efetivamente ali. Pois tais tensões do comportar-se emergem apenas a partir dos jogos dos animais, enquanto estes se perdem na realização das tarefas aparentes do jogo através de seu jogar, das tarefas de jogo e não da tarefa do jogo, pois esta consiste na “repetição” do acontecer da autoapresentação (ou apresentar-se), que em sua teleologia interna consiste num constante repetir-se diferente que conserva a ordenação do movimento de jogo.

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É a partir do todo do jogo, da real tarefa do jogo, que se torna mais claro o que seja o “caráter de jogo” (“Spielcharakter”)43, este caracteriza-se pelas “tarefas de jogo” (“Spielaufgaben”)44 realizadas pelo jogar do jogador, enquanto este vê a realização delas como se elas fossem a “tarefa do jogo” (“Aufgaben des Spiels”, “Aufgabe des Spieles”)45, é esse engano do jogador, sob o “pathos” do efeito sedutor do jogo, o que o conduz a ser arrastado a abrir-se no jogo por meio de seu jogar e entregar-se a realização das tarefas de jogo como se estas fossem a tarefa do jogo, isto caracteriza o jogador como ser jogante. É por não perceber isso, que o jogador tem a ilusão de poder controlar o jogo ou querer pôr-se na reserva. Com estas intenções, o jogante ignora que o seu jogar é antes muito mais um ser jogado, ou seja, antes de ser atividade – um jogar ativo –, o seu participar é muito mais um sofrer. Pensemos no jogo das paixões, aqui a língua alemã nos esclarece tudo, nela o jogo da paixão, por exemplo, é expresso com a seguinte palavra: “Leidenschaft”, um algo que institui (“schaft”) sofrimento (“Leiden”), algo semelhante nos mostra a palavra “Sachverhalt”, o “comportamento de coisa”; estes exemplos da “reflexão ‘efetiva’, que ocorre no desenvolvimento da língua”46 nos revelam que tais acontecimentos são muito mais um sofrer, quando os vemos na perspectiva do sujeito que joga, do que uma atividade que este desempenharia e, neste caso, mesmo a atividade ‘escolhida’ é conduzida por esse primário sofrer que constitui o pano de fundo que possibilita a escolha. O “caráter de jogo” varia de acordo com as tarefas dos distintos jogos. Nos jogos esportivos, por exemplo, ele se caracteriza pela tarefa de jogo que o jogador assume no competir; para Gadamer, a consideração do espectador os exporiam ao risco de descaracterizá-los como jogos competitivos em proveito de lhes dar o caráter dos jogos artísticos, tornando-os espetáculos. Parece-me que poderíamos evidenciar isso nos jogos esportivos em diferentes graus, talvez num nível mais nítido nas competições de dança, por exemplo, as quais pelo menos são um “apresentar para...” à medida que também são apresentações que estão voltadas para juízes. Enquanto nos jogos artísticos o caráter de jogo se caracteriza por pelo menos um jogador tomar como a sua tarefa de jogo o apresentar algo para outrem, ali o jogante encontra 43

Cf. WM1, p. 159, 162-3, 172-3; [111, 114, 122]. Cf. WM1, p. 161; [113]. 45 Cf. WM1, p. 161-2; [113-4]. 46 WM2, p. 286; [245]. “‘effektive’ Reflexion, die in der Entfaltung der Sprache geschieht”. 44

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a sua satisfação na realização das “tarefas de jogo” mesmo que sob a aparência de que estas seriam a finalidade interna do jogo, entretanto elas são os fins apenas do próprio jogador, as tarefas de jogo são “mediums” para algo mais importante. Com isso, Gadamer nos alerta que todo jogar está a serviço, é “medium”, para algo que o ultrapassa, assim para o jogo o importante consiste no fato de que o jogador simplesmente jogue, independentemente desse obter êxito ou não na realização de suas “tarefas de jogo”. E esta se trata de uma percepção de Gadamer realizada a partir de uma de suas interpretações primícias – em sua “Habilitationsschrift” – acerca de dois trechos da Ética a Nicômaco de Aristóteles que resultou na seguinte percepção: Para o jogo é essencial que o jogador esteja ‘presente’ [‘junto-aí’, ‘ao mesmo tempo’], isto é, deixe-se levar pelas tarefas do jogo, sem ter em vista que ele não é sério. Apesar disso, é o jogar desejado apenas com a finalidade do descanso, isto é, porém entorno de uma atividade tardia (cf. Eth. Nic. K6, 1176 b35). Assim, ser da coisa é caracteristicamente neutro no jogar. Não é a coisa, ainda que ela deva ser tomada a sério, que constitui o propósito do jogar, mas sim o modo de ser da coisa, isto é, que uma coisa se torna objeto de uma preocupação e de um esforço, sem estar para algo que foi ‘na seriedade’ objeto de tal preocupação. O objeto do esforço jogante é algo que não está para si mesmo: o próprio jogar é o pelo-de-que [fim] do jogo (Eth. Nic. K6, 1176 b6).47

Isso se torna mais claro na esfera dos jogos artísticos, pois ali o jogar não se restringe à mera “satisfação de uma necessidade de jogo”48 – uma daquelas referentes às “tarefas de jogo” do jogador –, trata-se antes do “entrar da própria poesia na existência.”49 O importante para o jogo está no ato doativo do jogador, visto que, deste modo, o jogador serve de “medium” para a verdadeira tarefa do jogo, ao passo que permite a concreção unificada do particular e do universal em sua execução, a saber, a da manutenção produtiva da configuração do jogo, ou seja, a transmissão produtiva da verdadeira essência do jogo. Nas palavras do próprio Gadamer, isso quer dizer que a verdadeira “tarefa do jogo” consiste n“a ordenação e configuração do próprio movimento de jogo.”50 Diante da primazia do jogo diante do jogar, este é muito mais um sofrer do que a realização de uma atividade. 47

PDE, p. 32; [GW5, p. 25]. Tradução minha. “Für das Spiel ist es wesentlich, daß die Spieler ‘dabei’ sind, d. h. sich mitnehmen lassen von den Aufgaben des Spiels, ohne im Auge zu behalten, daß es kein Ernst ist. Gleichwohl ist das Spielen nur zum Zwecke der Erholung, d. h. aber, um späterer Tätigkeit willen (cf. Eth. Nic. K 6, 1176 b35). Das Sein zur Sache ist also im Spielen eigentümlich neutral. Nicht die Sache ist es, die, obwohl sie ernst genommen werden muß, den Zweck des Spielens ausmacht, sondern die Weise des Seins zur Sache, d.h. dass eine Sache Gegenstand einer Sorge und Anstrengung wird, ohne etwas zu sein, das ‘im Ernst’ Gegenstand solcher Sorge wäre. Der Gegenstand der spielenden Anstrengung ist etwas, an dem selbst nichts liegt: das Spielen selbst ist das Worumwillen des Spiels (Eth. Nic. K 6, 1176 b6).” Grifo meu. Nesta época, Gadamer ainda não estava a operar fazendo a diferença entre “tarefa do jogo” e “tarefa de jogo”. 48 WM1, p. 173; [122]. “Befriedigung eines Spielbedürfnisses”. 49 WM1, p. 173; [122]. “das Ins-Dasein-Treten der Dichtung selbst.” 50 WM1, p. 161; [113]. “die Ordnung und Gestaltung der Spielbewegung selbst.”

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Veremos a seguir que tal autoapresentação dos jogos podem se realizar tendo como traços internos dois níveis de tensões distintas, as provocadas pelas outras duas perspectivas das quais podemos analisar os jogos, estas internas a eles, a partir das quais os jogos podem ser descritos. Na perspectiva do todo, vimos que o jogo é visto independentemente se algum dos elementos que jogam têm a possibilidade de intencionar alguma meta, do ponto de vista do todo qualquer jogo é autoapresentação. Mas Gadamer percebeu que há jogos cujas estruturas internas não se limitam a serem uma mera autoapresentação do todo, visto que elas possuem tensões internas que são geradas pelas diferentes formas de participação dos elementos que jogam no jogo, ou melhor das partes do jogo que fazem de parte de seu comportamento interno ao jogo um jogar. Portanto, os jogos em que nenhum de seus elementos joga com metas são aqueles que apenas são uma autoapresentação do todo do próprio movimento de vai e vem do jogo. Os jogos que não se restringem a ser uma autoapresentação (mas também o são à luz do todo) possuem pelo menos um elemento que joga com metas, ou seja, faz de seu comportamento um jogar em prol de alguma tarefa de jogo. Este jogar com metas – com intenções –, dá-se em duas formas distintas de complexidade que enredam a participação do jogador no jogo. As autoapresentações desses jogos em que há jogadores que visam metas não se realizam sem tensões internas, por isso tais jogos não são apenas autoapresentações. A seguir, passamos a analisar a menos complexa e mais comum das formas de participação dos jogadores que visam metas no jogo. 2.2 A participação no jogo como “mero apresentar” De agora em diante, o que nos é relevante não é o modo e o sentido mais geral dos jogos basicamente exposto acima, mas antes o modo e sentido que caracterizam os jogos dos animais em geral, a saber, o sentido de jogo como “o mero apresentar”. Essa forma de participação no jogo também é desempenhada pelos humanos. A este segundo modo e sentido de apresentar, podemos ilustrar com o estar imerso do animal em suas condutas instintivas na interação com o ambiente, bem como com a inocente entrega da criança à sua brincadeira com um objeto qualquer. Este último exemplo, é o mais claro entre os casos do jogar dos humanos no sentido do “mero apresentar”, pois ali o

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apresentar-se da criança se dá ante o seu “abandonar-se à liberdade do desenrolar-se do jogo” enquanto transforma “os fins do seu comportamento em simples tarefas do jogo.”51 Assim o jogar da criança está limitado àquilo que apresenta, não aludindo para nada além. O mesmo acontece nos jogos esportivos de caráter estritamente competitivo. Ali, do ponto de vista do sujeito jogante, o fim do jogo é a própria realização das tarefas de jogo. Como já alertei, precisamos perceber que a emergência do segundo modo e sentido de jogo não subsume o primeiro, mas antes este é fundamento daquele, o mesmo acontece com relação ao terceiro modo e sentido de apresentar ante aos anteriores, ou seja, estes modos de participação são abarcados por alguma forma de autoapresentação. Os jogos que já possuem a segunda forma de participação representam um crescente ganho de complexidade ante aos jogos que apenas podem ser descritos como autoapresentação, visto que tais modos e sentidos particulares do jogar são, como já mencionamos, distintas formas de participação (“Teilhabe”) no jogo52, respectivamente estas formas de participações se efetivam por uma ascendente complexidade do modo em que se joga. A tensão da realização de alguma meta no interior do apresentar-se do movimento do jogo apenas emerge a partir do segundo sentido de jogo, ganhando complexidade no terceiro. Se nos jogos que se caracterizam apenas como autoapresentação não há resquícios de uma intencionalidade, tal como aquela que surge no esforço para buscar algo, uma meta; no segundo já a encontramos e, no terceiro esse visa um propósito bem específico, à proporção que inclui a consideração de outrem, à medida que ali o momento de tensão provocado pela meta a ser atingida está sempre relacionada à apresentação de um conteúdo de sentido a outrem. Ilustremos este ganho de complexidade com um exemplo: do ponto de vista físicoquímico, o corpo de um humano é jogo sob o primeiro modo, sendo a tarefa dos físicos e químicos capturarem o movimento ordenado que se autoapresenta nele, enquanto aquele é mera natureza; na perspectiva biológica, o corpo – fundado naquelas duas primeiras dimensões – de um humano é jogo sob o segundo modo, à medida que se encontra na tensão participativa comportamental de suprir as suas necessidades vitais de sobrevivência na relação com o ambiente. Entretanto, nenhuma destas áreas do conhecimento nos fornece o que elas e 51

WM1, p. 161; [113]. “Jedes Spiel stellt dem Menschen, der es spielt, eine Aufgabe. Er kann sich gleichsam nicht anders in die Freiheit des Sichausspielens entlassen, als durch die Verwandlung der Zwecke seines Verhaltens in bloße Aufgaben des Spiels.” 52 Cf. WM1, p. 163-4; [114-5].

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os seus respectivos cientistas são, eles são mais do que os resultados de seus objetos de estudo. Os jogos em que eles e elas se instituem ultrapassam todos os limites do instrumental metodológico, visto que nenhum método autogerencia a sua aplicação realizada pelo cientista. Neste sentido, os jogos jogados pelos humanos apenas aparentemente não se diferenciam dos jogos que os demais animais jogam, visto que a tensão se irá conseguir capturar uma presa para saciar a fome não é a mesma para os animais humanos como para os não humanos, mesmo que em ambos os casos o jogo seja um mero apresentar em que o jogante se perde na busca de uma meta na qual não se visa outro, por exemplo, capturar uma presa para saciar a fome, nesta forma participativa no jogo no sentido do “mero apresentar”, onde o jogante perde-se, este perder-se não se dá da mesma forma para o animal e para os humanos. Visto que a partir do momento em que um nascido de humanos é perpassado pelos jogos das artes humanas, este jamais vai jogar os jogos do segundo sentido como se estivesse destituído das consequências indeléveis resultantes daqueles, porquanto os jogos humanos, tal como, por exemplo, o perpassamento pela arte da técnica, proporcionam aos humanos um ganho na capacidade de previsão e do uso recursivo de instrumentos, proporcionando a adaptação, o aprimoramento e a modificação de seu ambiente de forma muito superior a qualquer outra espécie de animais, um humano que teria que voltar a tal forma de lidar com o ambiente não irá se comportar do mesmo modo que outro animal qualquer, através de suas meras condutas instintivas (se assim for). O perpassamento pelas artes é indelével. O que estou querendo marcar é o que o próprio Gadamer nos chama atenção de que o perder-se do jogante humano jamais se dá na ausência de tensão mesmo quando joga jogos com a intenção de libertar-se dessas tensões, como os jogos recreativos. Mesmo diante da consideração de Gadamer de certa intencionalidade dos animais, ao declarar, por mais estranho que possa soar, que os animais teriam certo nível de intencionalidade no seu agir, quanto ele diz em Verdade e Método I que o gato escolhe, sim escolhe, brincar com um rolo de lã53. Escolha pressupõe selecionar a partir de algo, bem como certo grau de distanciamento de si mesmo, do mero imediato. Entretanto, em outras ocasiões a posição de Gadamer é a oposta, defendendo que todo comportamento dos animais não humanos está geneticamente determinado54, enquanto os jogos humanos poderiam intercalar

53 54

Cf. WM1, p. 159; [111]. “So wählt die spielende Katze das Wollknäuel, weil es mitspielt”. Cf. GW8, p. 357.

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entre a presença ou não do elemento da racionalidade, como expressado na seguinte passagem: Agora o especial do jogo humano é que o jogo tanto pode incluir a razão, essa característica tão própria do homem, de poder dar-se objetivos e tentar alcançá-los conscientemente, como pode também anular a característica distintiva da razão de impor-se objetivos.55

No entanto, para este jogar irracional Gadamer parece-nos apenas nos fornecer o exemplo da criança que se perde em seu brincar (seria por que este estado do crescer humano é aquele em que se está mais próximo da animalidade? Nossa resposta é afirmativa). Mas será que estamos nos equivocando se questionarmos Gadamer com a questão seguinte: Gadamer, o perder-se da criança na realização de sua meta de dar 20 piques consecutivos na bola não é um sinal de presença de racionalidade, de impor-se uma meta? Diante das tensões contraditórias dos textos gadamerianos, o problema que emerge é o seguinte: como pode o perder-se do jogante dar-se tanto para os humanos quanto para os animais? Para que haja essa equiparação ou é necessário estar operando sobre o pressuposto de que ali os humanos se comportariam na ausência de racionalidade estando regidos por meros instintos como o comportamento dos animais – se assim o aceitássemos – ou temos que pressupor a existência de certo nível de intencionalidade dos animais. Como já mostramos, conseguiríamos encontrar passagens para confirmar as duas posições. Haveria um terceiro caso, o qual seria ter conceitos diferentes para as diferentes formas participativas do perder-se animal e humano nos jogos. Como Gadamer não realizou esta última opção, nossa posição segue a indicação de Rohden, que a nosso ver possui legitimação em Gadamer, em Verdade e Método I, como já apontamos no caso do gatinho jogador: segundo Rohden, Sabe-se que tradicionalmente distinguiu-se o jogo dos seres humanos do jogo dos animais pela consciência que aqueles têm da necessidade de obediência às regras para que um jogo ocorra. Filosoficamente, isto foi atribuído à intencionalidade e à capacidade humana de unir seriedade e jogo. Mas no jogo dos animais isso não funciona também? Não constatamos entre eles que não se mordem de verdade quando estão brincando? Como podemos determinar que as ações lúdicas humanas são orientadas pela razão e os jogos dos animais pelos instintos?56

Com certeza para alguns essa leitura poderá ser classificada como antropomorfização da conduta animal. Para estes nos restaria a pergunta: levando Gadamer a sério, haveria 55

AB, p. 38-9; [GW8, p. 114]. “Nun ist es das Besondere des menschlichen Spieles, daß das Spiel auch die Vernunft, diese eigenste Auszeichnung des Menschen, sich Zwecke setzen und sie bewußt anstreben zu können, in sich einzubeziehen und die Auszeichnung der zwecksetzenden Vernunft zu überspielen vermag. 56 ROHDEN, L. Hermenêutica filosófica, p. 136.

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alguma que não a é, já que não temos como jogar nos despindo de nosso espírito da humanidade? Ante o dito de Gadamer que o gato escolhe, seguimos a ele sob a perspectiva que pressupõe certo nível de intencionalidade no comportamento jogante animal, assumindo que a diferença entre eles e os humanos dar-se-ia apenas por uma – talvez gigantesca – questão de grau que possibilitou os humanos elevar-se à posição de jogadores que se comportam ativamente na dimensão das artes. Voltemos ao exemplo da captura de uma presa, a meu ver sempre que os humanos modificaram e aperfeiçoaram os seus modos de capturarem suas presas isto já é consequência da aplicação dos frutos do segundo sentido do participar no jogo que se reflete no comportamento de jogo dos humanos jogantes enquanto jogam com o restante da natureza, ali o comportamento dum humano vai para muito além do visar uma meta na qual ele perderia-se na sua realização, pois ali se reflete o perpassamento indelével pelas artes. Tal perpassamento indelével mais evidentemente ainda se mostra na esfera da ciência. Ali, numa conferência, por exemplo, em que é expresso os resultados de uma pesquisa seja dum físico, ou de um químico, ou dum biólogo etc., como as suas ciências, eles não são apenas (também o são) o resultado dos jogos que eles analisam. O que eles são e o que eles jogam ultrapassa o objeto de suas ciências. O próprio jogo em que está o ato de conferenciar não é objeto de suas ciências, visto que ali estão envolvidas questões como linguagem, comunicação,

autoridade,

reconhecimento,

história,

gostos,

religiosidade,

questões

econômicas, políticas, retóricas, éticas etc. Para Gadamer, esses fatores atuam no âmbito científico mesmo diante do operar metodológico, pois o cientista não se despe de seu ser antes de entrar em seu laboratório – muito menos na apresentação dos resultados de seus estudos –, havendo jogo também ali. No viés gadameriano, isso marca os limites da pretensão de neutralidade, de objetividade (“Objektivität”) dos métodos das ciências da natureza57. O âmbito de tensão aberto por esse terceiro modo e sentido do apresentar dos jogos caracterizase como aquele que pertence ao campo de estudo das ditas humanidades. Este âmbito de jogo pode provocar alterações nos outros dois sentidos de jogo. Por exemplo, o domínio da teoria genética (ou da teoria da física atômica) que se desenvolve no terceiro modo de jogo, tendo em vista que requer a arte da linguagem, da retórica – entre outras coisas –, tem como uma de suas possibilidades a da sua aplicação, essa pode desencadear mudanças dos jogos na ordem

57

Cf. WM1, p. 631; [494].

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físico-químico-biológica

que

está

na

base

sustentadora

dos

humanos,

o

que,

consequentemente, de forma reflexiva pode ocasionar alterações no âmbito onde se realiza os jogos do terceiro sentido, os das artes. Com isso, queremos chamar a atenção para a não desvinculabilidade do elevado sentido dos jogos especialmente humanos dos outros dois sentidos de apresentar dos jogos. Visto que os jogos essencialmente humanos apenas podem realizar-se enquanto os humanos também são corpos vivos – animais humanizados –, que também são frutos de sua interação com o ambiente natural, mesmo que a análise desses jogos não me deem o que faz de um humano ser um ser humano, mas eles estão como fundamento para seu instituir-se. Apesar de Gadamer introduzir o conceito de jogo para dar conta do modo de ser da obra de arte, ele não o limita a esta esfera. Além de sua menção da necessidade de libertar a antropologia do viés subjetivista de jogo58, ele ressalta também o uso deste conceito na área da biologia59, bem como recorda do trabalho na área da “Gestalt” terapia do neurologista Viktor von Weizsäcker, o qual detalhou os resultados experimentais da teleologia inconsciente que se desenvolve no jogo entre dois animais como um mútuo comportamento de “absoluta concomitância”, assim seria um erro descrevê-lo do ponto de vista da ação e reação60, portanto de uma descrição sob o pressuposto do tempo como sucessão. Pensamos que nosso exemplo do parágrafo anterior se legitima no texto gadameriano quando lembramos que o jogo antes de ser um acontecer em que a esfera humana está imersa, ele é um processo natural, o modo de ser da natureza, ela é um apresentar-se e, como os humanos também fazem parte dela, isto também vale para nós61. O segundo modo e sentido do apresentar representa um ganho de complexidade diante dos jogos que apenas podem ser vistos a partir dos traços gerais dos jogos que se caracterizam apenas como autoapresentação. Veremos na sequência que o terceiro modo e sentido de apresentar, por sua vez, consiste num ganho de complexidade com relação aos jogos que se realizam sob os dois primeiros modos e sentidos do apresentar. Ademais, veremos que todos os jogos que se realizam como o terceiro modo e sentido do apresentar, além de também serem do ponto de vista do todo uma autoapresentação, também possuem um elemento que 58

Cf. WM1, p. 154; [107]. Cf. WM1, p. 162; [113]. 60 Cf. WM2, p. 154; [129]. 61 Cf. WM1, p. 158; [110-1]. 59

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joga sob a segunda perspectiva do jogar, isto é característico apenas de um tipo dos jogos que os humanos jogam, a saber, os das artes. A seguir, dedicamo-nos na explicitação dessas peculiaridades dos jogos humanos, do qual já demos algumas indicações acima, tais jogos em que encontramos os três modos e sentido do apresentar se mostram caracterizadores de todas aquelas ocupações humanas que Gadamer nomeia com a palavra arte. Se nos jogos que apenas são no sentido de jogo como “um mero apresentar-se de um movimento ordenado” dão-se sem esforço e tensão, percebemos que o mesmo já não acontece no sentido d“o mero apresentar”, esta forma de participação no jogo já não se realiza sem esforço e sem tensão, pois ali a criança perde-se no apresentar-se de seu próprio jogar, enquanto visa neste fazer, por exemplo, com que a bola pique 20 vezes consecutivas, ficando desanimada quando não atinge tal meta, esta tensão do não ter conseguido realizar o objetivo em mira mostra que tal perder-se não é um perder-se total, o mesmo mostra-se na sua alegria quando alcança a sua meta – o que caracteriza ali o momento de distensão. Da mesma forma realizam-se todo jogar que se perde em seu próprio apresentar-se, sendo este apresentar-se do jogante a realização da própria tarefa de jogo, aqui se inclui todo perder-se na lida com objetos que não visam apresentar algo para alguém através do movimento de jogo entre o jogador e o objeto, ou seja, não objetivam transmitir algo. Os objetivos do jogador ali não ultrapassa seu próprio fazer prático, trata-se de uma racionalidade meramente prática, e não da racionalidade prático-éticopolítica que Gadamer aponta a partir do conceito aristotélico de “Phronesis”, o qual está por pano de fundo do pensamento gadameriano acerca da ação no âmbito das humanidades. Esses foram os primeiros modos de tensão e distensão provocados pelo jogar no interior do jogo. De agora em diante, dedicamo-nos ao modo e sentido do jogar participativo que envolvem os momentos de tensão e distensão mais complexos de todos os jogos, trata-se daqueles momentos que emergem dos jogos artísticos, pois veremos que neles a meta do jogar do jogador não fica restrita a fazer do seu próprio jogar a tarefa de jogo, pois nos jogos artísticos se visa conscientemente apresentar algo para alguém que ali faz o papel de jogante como espectador. 2.3 A singularidade estrutural no “apresentar para...” dos jogos das artes: a tensão entre o acontecer do jogo e a intencionalidade do jogador Nosso interesse aqui é responder àquelas supracitadas perguntas referentes à multiaplicação do conceito de arte realizado por Gadamer mediante a explicitação do modo e

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sentido singular dos jogos artísticos. Esta singularidade dá-se ante os demais jogos que o humano também joga na tensão de seu ter metas, os quais fazem parte do sentido do jogo descrito no item acima. Se, segundo Gadamer, os humanos não conseguem livrar-se da tensão, do esforço de atingir algum propósito com seu comportamento jogante nem mesmo quando eles jogam jogos que visam justamente isso62, ou seja, no jogo um humano jamais consegue esquecer-se, abandonar-se ao fluxo de aconteceres por completo, mesmo a criança que se perde na realização dos 20 piques consecutivos da bola rege seu comportamento em função de alcançar esta meta. No que se segue, indicamos que estas tensões se dão de dois modos distintos nos jogos humanos; na forma mais simples tais tensões seguem o exemplo da criança que se perde na realização de uma tarefa de jogo; a outra é aquela que analisamos neste tópico. Como nos faz recordar Rohden, o papel da tensão que ocorre nos jogos humanos já havia sido percebido por Huizinga, cito Rohden em partes repetindo Huizinga: O elemento da tensão desempenha um papel importante no jogo. ‘Tensão significa incerteza, acaso. Há um esforço para levar o jogo até o desenlace, o jogador quer que alguma coisa ‘vá’ ou ‘saia’, pretende ‘ganhar’ à custa do seu próprio esforço’, mas não conhece a priori nem o que está no início nem o que está no fim. Aqui entra a questão do risco que corremos ao jogar. Precisamos aguardar seu final para saber como foi o jogo.63

Temos que perceber aqui que incerteza, querer, esforço, pretensão e risco apenas emergem como fruto de cálculo, de previsões realizadas por uma intencionalidade, diante de um querer que escolhe metas a serem atingidas. A única indicação de onde seria proveniente esta percepção embrionária da forma de participação no jogo da arte que vamos tratar aqui, Gadamer faz menção no Excurso VI – “Sobre o conceito de expressão”, de 1960 – para Verdade e Método I, enquanto menciona meramente de passagem a polêmica entre Riccoboni e o subjetivista Sulzer – é bem verdade que o ato de apresentar já está subentendido na definição aristotélica da tragédia –. Segundo Gadamer, Riccoboni “viu que a arte do ator está no apresentar e não na sensação”64. Para o modo e sentido dos jogos que possuem o traço do “apresentar para...”, podemos apresentar como exemplo uma execução musical, uma apresentação teatral, um quadro, uma

62

Cf. WM1, p. 161; [113]. ROHDEN, L. Hermenêutica filosófica, p. 123. 64 WM2, p. 447; [385]. “welcher die Kunst des Schauspielers im Darstellen und nicht im Empfinden sieht”. 63

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declamação, uma cantoria etc. O que estes últimos modos de apresentar possuem de singular diz respeito à constatação de que em todos eles existiu (no caso de um quadro, estátua etc) ou existe pelo menos um alguém intencional que dirige seu apresentar a outros. Eles são formas distintas de “apresentar para...” Desta formulação, Gadamer apenas utilizou-se uma única vez, entretanto ela emerge formulada ainda de outros modos ao longo de seus trabalhos, aqui contentamo-nos com a exposição de alguns deles encontrados na primeira parte de Verdade e Método I, tais como: “De acordo com sua própria possibilidade, todo apresentar é um apresentar para alguém.”65; “apresentar algo”66; “apresentação para”67; no jogo cúltico e teatral os jogadores “ultrapassam a si mesmos apresentando uma totalidade de sentido para o espectador”68; “o jogo aparece como apresentação para o espectador”69; etc. Há ainda outras formulações concernentes à esfera das artes, entretanto estas já são suficientes para legitimar nosso enfoque. Essas formulações podem ser postas numa notação formal, onde as variáveis x e y apenas podem ter como conteúdo um humano {x ↔ y}70. Apesar de ser uma relação imbricativa, os papéis do apresentador e do espectador se distinguem no sentido de que o apresentador tem como sua tarefa de jogo a de absorver o espectador no jogo. Assim, podemos perceber que na dimensão das artes o papel do espectador no jogo é o do “mero apresentar”. A despeito de estarmos nos referindo ao jogo artístico como aquele que possui a participação de pelo menos dois elementos, a do apresentador e a do espectador, esse último modo de estruturação de jogo não implica a necessidade da participação no jogo de dois sujeitos humanos, sob a exigência de que as variáveis têm que receber um humano como seu conteúdo, ambas podem ter como seu conteúdo o mesmo ser humano, uma vez que apenas esse pode ser concomitantemente o apresentador e o espectador, tal como, por exemplo, no caso dos meros exercícios de um cantor que canta para si ou de um declamador que declama para si71, visto que esses, como humanos sabedores de si72, podem ser críticos de seus

65

WM1, p. 162; [114]. “Alles Darstellen ist nun seiner Möglichkeit nach ein Darstellen für jemanden.” Grifo meu. 66 WM1, p. 162; [114]. “etwas darzustellen ”. 67 WM1, p. 163; [114]. “Und doch ist der kultische Akt wirkliche Darstellung für die Gemeinde”. Grifo nosso. 68 WM1, p. 163; [114]. Grifo meu. “sie gehen von sich aus dahin über, daß die Spielenden für die Zuschauer ein Sinnganzes darstellen.” 69 WM1, p. 164; [115]. “das Spiel als Darstellung für den Zuschauer erscheint”. Grifo do autor. 70 Utilizo o sinal ↔ para expressar a relação imbricativa entre x e y. 71 Cf. WM1, p. 165; [115-6]. 72 Cf. WM1, p. 367; [281].

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próprios feitos, de seus próprios comportamentos no jogo73. Portanto, o que Gadamer denomina de arte são todas aquelas ocupações que envolvem a tensão do “apresentar para” outro74 no todo do apresentar-se da obra de arte, o que inclui ali a possibilidade de que este “apresentar para...” sempre poder ser reinterpretável, ou seja, pode ser objeto de crítica, de constante aperfeiçoamento e de reapresentações produtivas. A indicação desta forma de participação que caracteriza o jogo da arte na língua alemã já está explícita na composição do substantivo “Schauspiel” – espetáculo – que nada mais é do que um jogo (“spiel”) de exposição, de exibição (“Schau”). Esse modo de participação nos jogos é aquele que realmente nos interessa aqui, visto caracterizar o traço da própria natureza da apresentação da arte que implica sempre um “apresentar para...”, mesmo quando esse apresentar seja apenas para o próprio jogador que executa a obra. O esforço do “apresentar para...” sempre alude a alguém, visto que, “Por sua própria natureza, a apresentação da arte é tal que se endereça a alguém mesmo quando não há ninguém que a ouça ou assista.”75 Essa estrutura formal dos fenômenos artísticos é ontológica à medida que todo “apresentar para...” é, em última instância, o apresentar algo (uma configuração – uma unidade de conteúdo de sentido) para alguém. Formalmente, então, para Gadamer, o jogo da arte possui como seu traço essencial a estrutura “Todo apresentar z de x para y”, onde z é uma configuração – um conteúdo de sentido –, uma coisa (“Sache”) que em

73

É por esse motivo que uso a palavra outro em itálico. O que se tem pressuposto aqui é a tese de que obra de arte é um acontecer composto. Esse caráter estratificado da obra de arte da hermenêutica gadameriana parece-nos ser o desenvolvimento das teses do fenomenólogo polonês Roman Ingarden (1893–1970). Gadamer concorda com Ingarden e o vê como aquele que indicou a direção (GW8, p. 48) – principalmente na valorosa obra: Das literarische Kunstwerk, de 1931 – para a análise do caráter estratificado “da linguagem na obra literária e da mobilidade da realização intuitiva que convém à palavra literária.” (WM1, p. 226; [166]. Cf. WM2, 27; [18]). Entretanto, Gadamer opõe-se à redução de Ingarden do “campo de jogo da valorização estética da obra de arte em sua concreção como ‘objeto estético’” (WM1, p. 175; [124]), ao tratá-las como “objetividades intencionais puras” (“rein intentionale Gegenständlichkeiten”), ele indicou para o estatuto ontológico de “quase-realidade” (“Quasirealität”) da obra de arte literária (Cf. PH, p. 149-50-1; [GW3, p. 121-2]). Segundo Gadamer, apesar de Ingarden analisar a obra de arte em sua constituição linguística, ele a fez apenas à luz “de ‘conceitos ideais existentes na autonomia do ser’ como mera (parcial) atualização de seu sentido” (“von den ‘idealen, seinsautonom existierenden Begriffen’ aus als bloße (teilhafte) Aktualisation ihres Sinnes”. Grifo do autor). Assim, para Gadamer, a análise de Ingarden dedica-se apenas ao caráter secundário da realização da obra de arte literária, pois não percebeu o primado da linguisticidade nesse âmbito, deixando-a a segundo plano (Cf. PH, p. 180; [GW3, p. 142]), por não levar em consideração que todo ser e toda verdade da obra de arte realizam-se na produtividade e contingência de seu próprio aparecer, ou seja, no seu apresentar-se. Para maiores detalhes acerca das propostas ingardeanas cf.: INGARDEN, Roman. A obra de arte Literária. 75 WM1, p. 165; [116]. “Die Darstellung der Kunst ist ihrem Wesen nach so, daß sie für jemanden ist, auch wenn niemand da ist, der nur zuhört oder zuschaut.” 74

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última instância “é sentido”76, ou seja, o apresentar algo é apresentar pelo menos um par ordenado que nos dá uma direção de orientação; x é o apresentador; e y é o espectador. Isso nos é importante porque este traço estrutural dos jogos que possuem o traço do “apresentar para...” não se limita a pertencer ao modo de ser da obra de arte das ditas belas artes, essas distinções também são fundamentais para compreendermos qual é o ponto forte de vinculação entre o jogo da arte (“Spiel der Kunst”) e o jogo da linguagem (“das Spiel der Sprache”), o qual realizaremos em outra ocasião. Em outras palavras, o compreender do fenômeno da arte através desse traço singular77 do “apresentar para...” nos possibilita ver que Gadamer ampliou o “scopus” do conceito de arte para além do restrito conceito defendido pelas teses da autoconsciência estética, abarcando, por exemplo, a desvalorizada arte da retórica que foi ignorada por aquelas. O jogo artístico à luz do modo e sentido estrutural do “apresentar para...” consiste numa ampliação do conceito de arte que abarca a arte contemporânea, prejulgando-a apenas quanto se ela está transmitindo um conteúdo de sentido, por outro lado, sem prejulgá-la quanto ao seu modo “deformante” de transmiti-lo diante dos modelos ditos clássicos. Do fato do compositor da partitura ter tido a intenção de compô-la para ser executada num violino não implica que essa não possa ser reinterpretada produtivamente com outros instrumentos. Na arte contemporânea, isso fica ainda mais claro, pois ali o espectador por muitas vezes é convidado a entrar na própria obra. Não é mero acaso o fato de Gadamer ter dado tanto privilégio a arte teatral, esta foi precursora dessa inserção do espectador na obra. Diante de tal expansão gadameriana do conceito de arte, temos que ressaltar que o conceito de jogo como guia da experiência hermenêutica não consiste apenas num conceito com traços metodológicos, ele é antes visto como um conceito que tenta dar conta de “um processo de movimento”78, o “medium” onde algo acontece. Ante a indicação da primazia do ‘jogar’79, do primado da dimensão relacional80 e da naturalidade do jogar humano81, parecenos ser o jogo o existencial primário, tão primário quanto o acontecer. A meu ver, isso é confirmado quando Gadamer defende que a percepção do sentido do jogo implica na anulação

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WM1, p. 611; [477]. “Sache (die Sinn ist)”. Cf. WM1, p. 163; [114]. 78 WM2, p. 180; [152]. “ein Bewegungsvorgang”. 79 Cf. WM1, p. 158; [110]. 80 Cf. WM1, p. 592; [463]. 81 Cf. WM1, p. 158; [111]. 77

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da distinção entre o jogo do palco e o jogo da vida82 – o mais amplo dos jogos –, visto que a apreensão de sentido tanto de um como do outro são confirmações de conhecimentos que “assim é”. Será que diante da consideração desses exemplos ainda temos que ter alguma dúvida quanto ao primário caráter existencial do jogo à luz de Gadamer? Se a temos basta lembrar que para ele a própria realidade é jogo83. Se aceitássemos apenas os traços gerais dos jogos descritos por Gadamer e ignorarmos a questão da participação intencional nos jogos humanos que implicações teríamos na práxis humana contemporânea, mais especificamente diante dos âmbitos convencionalistas tal como na “arte do direito”? Não levar em consideração a constante tensão (“Spannung”) – pois o esforço e o domínio de si também podem fazer parte do jogo 84 – entre a intencionalidade do sujeito ante seu não controle das relações que ele mantém com os outros elementos que constituem o apresentar-se de qualquer jogo significa abrir mão de qualquer possibilidade de crítica, de julgamento, e da aplicabilidade das convenções conscientemente firmadas, tal como as dos âmbitos jurídico, políticos etc. A experiência da obra de arte é paradigmática porque ali está envolvida a transmissão através do “apresentar para...” de um conteúdo de sentido que subsume tanto o apresentador quanto o espectador, sendo este conteúdo de sentido o que nos permite um posicionamento crítico ante a apresentação. Como vimos, os modos e sentidos do apresentar dos jogos das artes é o jogo em sentido pleno da palavra, possuindo os três modos e sentidos do apresentar dos jogos. Pois do ponto de vista do todo é uma autoapresentação; da visão do espectador – do intérprete – é um “mero apresentar”, enquanto este é absorvido pelo apresentado; e, da perspectiva do jogadorapresentador é um “apresentar para...”. Visto ser a intencionalidade o elemento essencial da tensão presente nos jogos em que há a participação de um humano, pois, embora Gadamer defenda que o mais importante é “a formação do próprio movimento que subordina a si o comportamento dos indivíduos como numa teleologia inconsciente”85, ele não exclui por completo o comportamento dos jogadores, por mais mergulhados no apresentar-se do jogo em que estes se encontrem, eles nunca estão imersos totalmente, sempre resta um espaço de 82

Cf. WM1, p. 167; [117]. Cf. WM1, p. 168; [118]. 84 Cf. WM1, p. 158; [110]. WM2, p. 155, 157; [129, 131]. 85 WM2, p. 154; [129]. “Was das Spiel ausmacht, ist nicht so sehr das subjective Verhalten der beiden, die einander gegenüberstehen, als vielmehr die Formation der Bewegung selbst, die wie in einer unbewußten Teleologie das Verhalten der einzelnen sich unterordnet.” Grifo meu. 83

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tensão entre a intencionalidade do sujeito e o fluxo de aconteceres no qual desenvolve-se a execução do jogo em que o jogador está jogando, pois se por um lado em momento algum o jogador pode alcançar o ideal de pôr-se na reserva – pois não há jogo humano sem essa tensão insuperável –, porquanto não há um estar fora contemplativo, por outro lado tampouco tratase de um estar completamente mergulhado no jogo, cego para as consequências de suas próprias escolhas86, há sim um espaço de liberdade nos jogos humanos artísticos que possibilita a escolha, a assunção dos riscos dessas escolhas, o que implica no cumprir a exigência de um jogar com seriedade. Com a nossa apresentação desta terceira perspectiva de jogo, podemos perceber que qualquer jogo que possui o traço estrutural do “mero apresentar” também é “um mero apresentar-se de um movimento ordenado”. Isso não tem nada de contraditório, visto que o apresentar-se é dito do ponto de vista do todo de um jogo; enquanto “o mero apresentar” é dito da perspectiva de uma parte que compõe o todo dum jogo; o mesmo acontece com relação aos jogos que possuem o traço estrutural do “apresentar para...”, este é dito do ponto de vista de uma parte que compõe o todo dum jogo que como todo é apresentar-se. Além disso, podemos tirar como consequência que um jogo que possua o traço intencional do “apresentar para...” também possui o do “mero apresentar”, este pode ser visto do ponto de vista do papel que o espectador – intérprete – realiza na dimensão artística, enquanto jogante do jogo ele está no papel de quem o jogador – ator, pintor etc., – almeja absorver no jogo. Sob o pressuposto que a intencionalidade com vista à transmissão de algo que não está dado aos sentidos caracterize apenas o agir humano, podemos dizer no viés gadameriano que apenas os jogos humanos das artes podem ser vistos dos três modos que apresentamos. Para além do exemplo dado por Gadamer da criança que se perde em seu brincar, nós é de difícil aceitação de que um humano em seu efetivo perpassamento pelas artes possa jogar um jogo apenas do ponto de vista do “mero apresentar” sem que ali haja a interferência de suas artes. As artes caracterizam a dimensão humana e uma vez perpassado por elas não há volta, seus conteúdos transmitidos são um fardo que não conseguimos deixar de lado. Diante disso, deixamos como questão-problema que mesmo nos jogos esportivos em que a meta do jogador não é a consideração daqueles que o assistem, mas realizar uma

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Cf. WM2, p. 157; [131].

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determinada tarefa tendo público ou não, não nos parece que o perder-se do jogador aqui se dá do mesmo modo daquele em que se perde o animal que visa capturar uma presa, pois enquanto aqui não há interferência das artes, naqueles há. Como já mencionamos, dentre os jogos esportivos há aqueles que andam sobre o fio da navalha entre o caráter de jogo da competição e o caráter de jogo da arte. Gadamer nos apresenta a arte como jogo, a nosso ver, tais jogos esportivos são exemplos do jogo como arte, de que outro modo poderíamos pensar os festivais de dança, uma verdadeira mescla entre o seu caráter primário de competição com o de arte, ali a nosso ver o jogo tornou-se arte87. Nossa próxima etapa consistirá em explicitar o que é esse algo que o jogador de certa forma escolhe jogar, trata-se da análise do conceito de jogo gadameriano com vistas em distinguir e esclarecer os nexos do conceito de configuração, para isso vamos mostrar como se desenvolve o movimento entre a apresentação e a configuração.

3. Da apresentação à configuração88 e da configuração à apresentação: o movimento espiral do jogo da arte O conceito de configuração tem a sua origem no âmbito da estética, ali a partir dele faz-se referência as mais variadas formas de artes, incluindo desde a obra literária à arte pinotecária. A introdução do conceito de configuração como o de jogo auxiliou Gadamer a levantar-se contra as teses estéticas que proclamavam a distinção estética entre obra e a apresentação. Para ele, elas antes formam uma unidade na qual são inerentemente indissociáveis e irrepetíveis89. Essa unidade, esse todo de sentido torna-se claro na linguagem da vida ante a tendência à individualização da palavra que atinge a sua perfeição nos textos eminentes, como nos que possuem configuração poética, visto que em tais textos a linguagem 87

Huizinga recorda-nos que esta mescla entre arte e competição já fazia parte da origem das artes gregas da comédia e da tragédia. Cf. HUIZINGA, J. Homo ludens, p. 185. 88 Diante da opção de tradução da palavra alemã “Gebilde” como “configuração”, sentimos a necessidade de alguns esclarecimentos. Tais como: “gebilde” é o “Perfekt” (pretérito perfeito) do verbo “bilden” (formar) que quando substantivado como “Gebilde” adquire o sentido de formação quando relacionada com “Gefüge” (estrutura); e, de composição, de construção, de criação, de produto como algo de já concluído, quando relacionada a “Werk” (obra); sentido este mantido por “configuração”, como algo já configurado, já formado que já possui assim o caráter de “ergon”, assim uma configuração já pressupõe certa base fixa, contudo isso não quer dizer que ela não se altere, visto que a configuração de um determinado jogo humano por ser composto de regras e disposições, ambas podem vir a sofrer alterações. Também poderíamos seguir os tradutores espanhóis de VM1 (p. 154) e traduzir “Gebilde” como “construção”, o que manteria o seu caráter de “nomen actionis”. Ademais, “Gebilde” ainda possui relação de parentesco com o substantivo “Bild” (imagem, figura) e com os adjetivos figurados que designam alguém “gebildet” (culto) e “ungebildet” (inculto, sem educação, iletrado). 89 Cf. WM1, p. 193; [138-9].

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atingiria a “sua autonomia plena. Está e coloca-se de pé por si própria, enquanto normalmente as palavras são superadas pela direção da intenção do discurso que as ultrapassam.”90 Apesar desse caráter especial da poesia, tanto nela quanto na linguagem viva a individualização da palavra se verifica perante a intradutibilidade que algumas palavras atingem pela sua vaguidade e riqueza polissêmica91, portanto, ao passo que tornam-se inesgotáveis ao plano conceitual. É apenas nas relações de sentido entre as partes que possibilitam emergir a unidade da configuração. Gadamer explicita o conceito de configuração defendendo que O significado indeterminado de ‘configuração’ implica que algo não deve ser compreendido em sua realidade pré-planejada e já pronta, senão que se formou de certo modo a partir de dentro, até alcançar sua própria figura (Gestalt), e talvez seguindo uma formação evolutiva. É evidente que buscar compreender fenômenos dessa natureza representa uma tarefa muito especial. A tarefa manda que isso que representa uma configuração deve ser construído em si mesmo; construir algo que não está ‘construído’, o que implica retomar todos os intentos de construção.92

Esta construção é sempre dum particular que já tem como base uma configuração. Na linguagem viva “É a estrutura temporal da mobilidade, que chamamos permanência, o que realiza essa presença, e é isso mesmo que o discurso mediador da interpretação deve abordar.”93 É a essa luz da não desvinculabilidade entre particular e universal que o traço do jogo humano como o “apresentar para...” outro que compartilha da mesma “exigência de se visar o jogo mesmo, no seu conteúdo de sentido”94, delineia um caráter especial do jogo humano. Nas próprias palavras de Gadamer: A essa mudança em que o jogo humano alcança sua verdadeira consumação, tornando-se arte, chamo de transformação em configuração. É somente através dessa mudança que o jogo alcança sua idealidade, de modo que poderá ser pensado e compreendido enquanto tal. 90

WM2, p. 580; [508]. “ihrer vollendeten Autonomie heraus. Sie steht für sich und bringt sich zum Stehen, während sonst Worte durch die Intentionsrichtung der Rede überholt werden, die sie hinter sich läßt.” 91 Cf. WM2, p. 208-9; [177]. 92 WM2, p. 415; [358-9]. “In der unbestimmten Bedeutung von ‘Gebilde’ liegt, daß etwas nicht auf sein vorgeplantes Fertigsein hin verstanden wird, sondern daß es sich gleichsam von innen heraus zu einer eigenen Gestalt herausgebildet hat und vielleicht in weiterer Bildung begriffen ist. Es leuchtet ein, daß es eine eigene Aufgabe ist, dergleichen zu verstehen. Die Aufgabe ist, das, was ein Gebilde ist, in sich aufzubauen, etwas, was nicht ‘konstruiert’ ist, zu konstruieren – und das schließt ein, daß alle Konstruktionsversuche wieder zurückgenommen werden.” 93 WM2, p. 415; [359]. “Es ist die Zeitstruktur der Bewegtheit, die wir das Verweilen nennen, die solche Präsenz ausfüllt und in die alle Zwischenrede der Interpretation einzugehen hat.” 94 WM1, p. 164; [115]. “Die Forderung, das Spiel selbst in seinem Sinngehalt zu meinen, ist für beide die gleiche.”

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Theoria -Revista Eletrônica de Filosofia Faculdade Católica de Pouso Alegre Somente agora mostra-se como que liberto da atividade apresentativa do jogador e constitui-se no puro fenômeno daquilo que eles jogam. Como tal, o jogo – mesmo o imprevisível da improvisação – é, por princípio, repetível e, por isso mesmo, duradouro. Tem o caráter da obra, do ‘ergon’ e não somente da ‘energeia’. É nesse sentido que o chamo de configuração.95

Com a transformação em configuração Gadamer quer fazer ver como dá-se o processo de transformação do que se apresenta em aconteceres particulares para constituir-se num construto virtual, enquanto certas “regras e disposições que prescrevem o preenchimento do espaço de jogo”96. É nesse processo de transformação em configuração que o jogo humano ganha a dimensão de ser o comum entre os jogadores, englobando-os num todo autônomo incontrolável por eles que, antes, os subsumem. É isso que permite o jogo da arte apresentarse como o caso paradigmático da mediação total. Apesar do sentido do jogo da arte também depender das contingências apresentativas, tais como dos jogadores, dos espectadores e do autor da obra, ele não se limita a estes, antes “o jogo possui uma autonomia absoluta, e é justamente o que deve assinalar o conceito de transformação.”97 Esse é de extrema relevância para a “determinação de ser da arte”98. Pois a transformação difere-se da mudança gradativa da substância. Na mudança que ocorre nessa há apenas alterações acidentais, permanecendo a mesma base substancial. “A transformação, ao contrário, significa que algo se torna outra coisa, de uma só vez e como um todo, de maneira que essa outra coisa em que se transformou passa a constituir seu verdadeiro ser, em face do qual seu ser anterior é nulo.”99 Para exemplificar num caso particular hipotético, imaginemos duas crianças que com algumas bolas de gude resolvem criar um novo jogo, chamando-o de x. Ao estabelecer algumas regras iniciais, iniciam o jogo que no seu decorrer, à proporção que novas situações vão ocorrendo, vai recebendo novas regras e disposições. Com a execução das tarefas conforme as regras e disposições acordadas, chega-se ao término do jogo. Com o 95

WM1, p. 165; [116]. “Ich nenne diese Wendung, in der das menschliche Spiel seine eigentliche Vollendung, Kunst zu sein, ausbildet, Verwandlung ins Gebilde. Erst durch diese Wendung gewinnt das Spiel seine Idealität, so daß es als dasselbe gemeint und verstanden werden kann. Erst jetzt zeigt es sich wie abgelöst von dem darstellenden Tun der Spieler und besteht in der reinen Erscheinung dessen, was sie spielen. Als solche ist das Spiel – auch das Unvorhergesehene der Improvisation – prinzipiell wiederholbar und insofern bleibend. Es hat den Charakter des Werkes, des ‘Ergon’ und nicht nur der ‘Energeia’. In diesem Sinne nenne ich es ein Gebilde.” Grifo do autor. 96 WM1, p. 160; [112]. Grifo meu. “Die Regeln und Ordnungen, die die Ausfüllung des Spielraums vorschreiben”. 97 WM1, p. 165; [116]. “hat das Spiel vielmehr eine schlechthinnige Autonomie, und eben das soll durch den Begriff der Verwandlung angezeigt sein.” 98 WM1, p. 165; [116]. “Bestimmung des Seins der Kunst”. 99 WM1, p. 166; [116]. “Verwandlung dagegen meint, daß etwas auf einmal und als Ganzes ein anderes ist, so daß dies andere, das es als Verwandeltes ist, sein wahres Sein ist, dem gegenüber sein früheres Sein nichtig ist.”

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fim do jogo, aquele ser da execução particular do jogo torna-se nulo, não é mais, perdeu-se no fluir dos acontecimentos, o que passa a constituir o verdadeiro ser de x não é mais aquela execução que já não é mais, mas antes são aquelas regras e disposições acordadas que determinarão as próximas execuções de x, estas se apresentarão como aquelas, ou seja, como uma unidade do universal estanciado numa realização particular, apenas ali mostrar-se-á x. Deste modo, no processo de transformação em configuração, podemos perceber que na transformação há uma passagem das regras e disposições do âmbito prático para a esfera linguística (configuradora), a final das contas, regras e disposições mantêm-se disponíveis para a aplicabilidade em sua conservação linguística. Processo esse inverso ao processo da apresentação, onde a configuração (que vige na linguagem) apresenta-se, mostra-se na execução prática. “Assim, a transformação em configuração significa que aquilo que era antes não é mais. Mas também que o que agora é, que se apresenta no jogo da arte, é o verdadeiro que permanece.”100 Isto nos mostra a mútua dependência e inseparabilidade entre universal e particular, ou seja, entre a configuração e a execução, sem a experiência da execução não há obra. Para Gadamer, o que permanece apresenta-se mesmo naquele jogador que joga com a pretensão de controle e de não querer mostrar-se para os outros realmente quem ele é, pois ali ele apenas suspende-se para estes outros, mantendo a continuidade do jogo consigo mesmo. Visto que O jogo, ele mesmo, é uma transformação tal que a identidade daquele que joga continua existindo para ninguém. A única coisa que se pode perguntar é qual é a ‘intenção’ do que está aí. Os jogadores (ou os poetas) não existem mais, existe apenas o que é jogado por eles. O que não existe mais é, sobretudo, o mundo onde vivemos, que é o nosso próprio mundo. Transformação em configuração não é simplesmente transferência para outro mundo. Certamente que é outro mundo, fechado em si, no qual o jogo joga. Mas na medida em que é configuração, encontrou sua medida em si mesmo e não se mede com nada que esteja fora de si mesmo.101

100

WM1, p. 166; [116]. “So meint Verwandlung ins Gebilde, daß das, was vorher ist, nicht mehr ist. Aber auch daß das, was nun ist, was sich im Spiel der Kunst darstellt, das bleibende Wahre ist.” 101 WM1, p. 167; [117]. “Das Spiel selbst ist vielmehr derart Verwandlung, daß für niemanden die Identität dessen, der da spielt, fortbesteht. Ein jeder fragt nur, was das sein soll, was da ‘gemeint’ ist. Die Spieler (oder Dichter) sind nicht mehr, sondern nur das von ihnen Gespielte. Was nicht mehr ist, ist aber vor allem die Welt, in der wir als unserer eigenen leben. Verwandlung ins Gebilde ist nicht einfach Versetzung in eine andere Welt. Gewiß ist es eine andere, in sich geschlossene Welt, in der das Spiel spielt. Aber sofern es Gebilde ist, hat es gleichsam sein Maß in sich selbst gefunden und bemißt sich an nichts, was außerhalb seiner ist.”

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Como configuração, o jogo é autossuficiente não havendo nada além dele, fora. É o que aparece na ação dos espetáculos da comédia e da tragédia, visto que ali o que se mostra é “uma verdade superior”102 que não pode ser distinguida entre realidade e ficção, pois, segundo Gadamer, “essa distinção se anula quando alguém sabe perceber o sentido do jogo que se desenrola diante dele. A alegria ante o espetáculo que se oferece é em ambos os casos a alegria do conhecimento”103 que se constrói nas imbricativas e constantes relações circulares que vão da prática à virtualidade da linguagem e da virtualidade da linguagem à prática. Em suma, apesar de ter surgido do âmbito prático e de estar sujeito a modificações de suas regras e disposições o jogo da dimensão humana mora, vive na virtualidade da linguagem – em sua configuração formal linguística, ele apenas realiza-se quando se mostra, efetiva-se na prática do jogar do(s) jogador(es). Quer dizer, a configuração emerge da práxis e necessita da práxis para manter a sua vigência.

4. O “apresentar para...” no apresentar-se das artes Através do conceito de jogo, vimos acima que o sentido e a verdade da obra de arte emergem do caráter estratificado da obra, composto talvez pelo sentido do autor – pelo menos o que dele foi transmitido –, pelo do apresentador e pelo do espectador numa determinada execução que é inseparável de suas contingências, sendo este todo formado por tais partes a realização do apresentar-se da obra. Com isso, Gadamer se contrapôs à concepção da consciência estética duma distinção estética entre verdade e aparência, ou seja, entre a suposta dicotomia entre o verdadeiro ser da obra e o que se apresenta. Pela sua perspectiva da não distinção estética, Gadamer apontou que para o fenômeno da obra de arte o seu efetivo apresentar-se constitui a sua própria realidade, ou seja, todo ser compreensível da obra de arte é conforme o seu aparecer – mostrar-se, a obra não é outra coisa que não se apresentaria e não estaria aí, na execução mesma, é na experiência tensiva do encontrar-se que a obra emerge, realiza-se. Enquanto no jogo das crianças, nos jogos esportivos (puramente competitivos) etc., o 102

WM1, p. 167; [117]. “eine überlegene Wahrheit”. WM1, p. 167; [117-8]. “Denn dieser Unterschied hebt sich auf, wenn einer den Sinn des Spieles, das sich vor ihm abspielt, wahrzunehmen weiß. Die Freude an dem Schauspiel, das sich bietet, ist in beiden Fällen die gleiche: es ist die Freude der Erkenntnis.” 103

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que se apresenta consiste apenas na apresentação de um todo. Por sua vez, os jogos humanos artísticos caracterizam-se por uma dupla autoapresentação. Nas concomitantes e imbricativas autoapresentações a do jogo – como um todo – e a do jogador – como parte daquele – ambas estão apresentando algo (no caso dum ator, por exemplo, em seu apresentar um personagem no todo de um jogo de uma peça teatral, ele além de apresentar o personagem, ele está apresentando a si mesmo como profissional – ator, enquanto mostra seus talentos e pontos fracos), nisso emerge um traço peculiar do jogar humano, pois “É só porque jogar já é sempre um apresentar que o jogo humano pode encontrar no próprio apresentar a tarefa do jogo.”104 Neste caso, as artes emergem como o caso paradigmático, visto que nelas não visa-se a produção de algo sensível para além da própria apresentação, ali contenta-se em fazer da execução o “medium” para a expressividade de sentido a outrem (isso fica totalmente claro nas artes ditas reprodutivas, entretanto, não restringem-se a elas), uma vez que, “De acordo com sua própria possibilidade, todo apresentar é um apresentar para alguém. É a referência a essa possibilidade como tal que produz a peculiaridade do caráter de jogo da arte.”105 Para Gadamer, uma mera declamação, mesmo enquanto leitura, já tem o traço sensível do apresentar para...106 Para esclarecer esse caráter de “medium” da obra de arte, torna-se mais claro quando utilizemo-nos como exemplo um caso não muito popular. Como num evento onde um coral propõe-se a apresentar o(s) sentido(s) dos cantos lamentosos (que são configurações de sentido(s)) da condessa Hildegard von Bingen, a um público leigo em termos de arte medieval, este choca-se com algo novo, estranho para ele e nosso tempo. O que queremos mostrar com esse exemplo consiste na percepção de que sem as execuções do dito coral esse novo e estranho que se apresenta para o público não seria possível, este novo e estranho apenas se apresenta enquanto é apresentado – reavivado – na intenção do “apresentar para...” de cada componente do coral e deste como um todo. Ali o “apresentar para...” tornase a parte essencial mediativa de todo apresentar-se da obra de arte como um todo, visto que como “medium” a obra de arte é materialização de sentido – mesmo na volatilidade da declamação, da música etc., – porquanto ela é um acontecer que culmina na realização do todo de um fluxo de formação de sentido que pode estar englobando desde o sentido do autor, como o do espectador originário, o das inovações – perdas e acréscimos de sentido – que a 104

WM1, p. 162; [114]. “Nur weil Spielen immer schon ein Darstellen ist, kann das menschliche Spiel im Darstellen selbst die Aufgabe des Spieles finden.” 105 WM1, p. 162; [114]. “Alles Darstellen ist nun seiner Möglichkeit nach ein Darstellen für jemanden. Daß diese Möglichkeit als solche gemeint wird, macht das Eigentümliche im Spielcharakter der Kunst aus.” 106 Cf. WM2, p. 27; [18].

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obra recebeu durante seu percurso histórico até o sentido do apresentador e do espectador duma de suas presentes execuções. À medida que se instituem como jogos apresentativos, as obras de artes carregam consigo “o sentido da alusão” para algo. Ou seja, enquanto um ator qualquer encena no palco o papel do general Napoleão Bonaparte está aludindo àquele ser humano que realmente assim chamava-se. Algo semelhante acontece com um quadro que retrata uma paisagem – ou um rosto –, por meio dele o pintor apresenta uma paisagem real. Ou seja, a imagem tem seu surgimento fundado em algo, entretanto ela possui vida própria, sendo algo por si mesma, não dependendo mais do que provocou o artista a efetivá-la. Diante do caráter constitutivo-estratificado da obra de arte, Gadamer nos declara que é a “quarta parede do espectador que fecha o mundo do jogo da obra de arte”107, fechando o todo de seu apresentar-se. Ali a distância do espectador consiste apenas naquela que lhe possibilita ver o que se desenvolve a partir do ponto de vista de seu próprio mundo108. A parede que representa o espectador é aquela para onde se dirige o esforço daquela outra parede que se constitui pelo “apresentar para...” que não faz a mera transmissão de um sentido fixo, mas é o “medium” (e parte) de um acontecer de algo que subjaz o que se apresenta ali e, portanto, está para muito além daquilo que surge na execução, pois “Tendo em vista o conhecimento do verdadeiro, todo ser da apresentação é mais do que todo ser da matéria apresentada”109. Além do caráter mediativo da obra de arte que medeia passado – algo distanciado – e presente também está em jogo ali a sua pretensão de sobrevivência, isso se torna claro enquanto percebermos que “aquilo que se apresenta ao espectador como o jogo da arte não se esgota na mera enlevação do momento, mas comporta uma pretensão de duração e a duração de uma pretensão.”110 Todo ser “medium” apresentativo de sentido da obra de arte também vem à tona nas esferas das artes plásticas, tais como nas pinotecárias, nas estatuárias e até mesmo na arquitetura. Isso acontece porque também nelas a obra de arte realiza-se sob a perspectiva ontológica de jogo, tais obras de arte caracterizam como imagens.

107

WM1, p. 162; [114]. “vierte Wand des Zuschauers ist, welche die Spielwelt des Kunstwerks schließt.” Cf. WM1, p. 186; [133]. 109 WM1, p. 170; [120]. “Im Hinblick auf Erkenntnis des Wahren ist das Sein der Darstellung mehr als das Sein des dargestellten Stoffes”. 110 WM1, p. 184; [131]. “was sich dem Zuschauer als Spiel der Kunst darstellt, nicht in der bloßen Hingerissenheit des Augenblicks, sondern schließt einen Anspruch auf Dauer und die Dauer eines Anspruches ein.” 108

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Se por um lado Gadamer recusa a possibilidade do tratamento subjetivista-agnóstico proveniente de Kant, a do vivencial em suas vivências descontínuas da obra e, bem como a do último resquício teológico formulado pela modernidade, i.e., qualquer modo objetivador da obra de arte no sentido da experiência explicativa desenvolvida a partir do ponto de vista do instrumental das ciências da natureza; por outro lado, concebendo-a como jogo, portanto, ela é autoapresentação que se realiza como um todo que inclui o espectador – intérprete no tempo em que eles estão. Dessa forma, Gadamer negou as referidas perspectivas. Para salvar a dimensão da racionalidade humana de um fluxo de aconteceres onde só aparentemente os humanos não interfeririam de certa medida – de uma forma ou de outra –, Gadamer apostou no momento interno do jogo a partir do traço do “apresentar para...”. Vimos que o jogo da esfera artística não se realiza como um acontecer em que não haveria tensão e distensão interna que giram em torno do risco de se expor, da expectativa, do aplauso, da vaia, do fracasso, do sucesso etc. No que apresentamos acima enfatizamos que, no interior do apresentar-se do jogo da obra de arte, o traço caracterizador dos jogos artísticos do “apresentar para...” surge como o espaço de tensão da dimensão da intencionalidade na esfera artística, como o espaço da intencionalidade, sendo por isso que Gadamer avistou o acontecer da obra de arte como preparatório para o caminho da “verdadeira liberdade ética e política”, isso ganha legitimidade à medida que nós enquanto seres humanos não somos apenas jogantes passivos, visto que somos jogantes que por vezes possuem um espaço em que no nosso “comportamento jogante não desaparecem simplesmente todas as referências à finalidade que determinam a existência atuante e cuidadosa”111, se ali enquanto somos meros jogantes elas estão como se estivessem suspensas, elas deixam de estar nesta condição naquelas singulares vezes que assumimos o risco da escolha por esta ou por aquela direção; ao passo que o jogo da arte visto do ponto de vista do apresentador não consiste num perder-se, o que nos tiraria de sobre os ombros o peso da exigência de um jogar com seriedade, de nossas intenções e da responsabilidade ante os riscos de nossas escolhas.

5. Considerações finais Como palavra provisoriamente final deste artigo, precisamos aprender de Gadamer que a experiência de toda e qualquer obra de arte envolve um jogo paulatino de 111

WM1, p. 154; [107]. “Und doch sind im spielenden Verhalten alle Zweckbezüge, die das tätige und sorgende Dasein bestimmen, nicht einfach verschwunden, sondern kommen auf eigentümliche Weise zum Verschweben.”

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reconhecimentos e de conhecimentos, onde em nossos primeiros encontros precisamos aprender a soletrar o que ela nos diz, para só depois a lermos e a traduzirmos repetidamente de formas diferentes o conteúdo de sentido do que ela nos diz para os ditos que em nós vem à fala. Apenas temos a obra no encontro, onde também nos apresentamos. A obra é a fusão do conteúdo apresentado com a receptividade deste conteúdo pelo intérprete. Foi deste modo que Gadamer se levantou contra a primazia da subjetividade na experiência artística, é importante percebemos que contra a primazia da subjetividade enquanto esta é pensada sob pressupostos transcendentais, e não contra a subjetividade finita irrepetível que se institui no âmbito linguístico-histórico como jogante que, apesar de ser mais um ser-jogado do que um jogador ativo, tem que assumir as responsabilidades de seu jogar, de seu apresentar para..., na seriedade que os outrem pressupõem.

REFERÊNCIAS ABI-SÂMARA, Raquel. “Uma das últimas entrevistas concedidas por Hans-Georg Gadamer”. In: Forum Especial FD9 (2005). (Transcrição: Prof. Dr. Rolf G. Renner, da Albert Ludwigs Universität Freiburg, Alemanha. Tradução: Murilo Jardelino; Heidi Soraia Berg. Heidelberg, 28 de setembro de 2001). GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 6. ed. Trad.: Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 2004. ______. Verdade e método II: complementos e índice. 2. ed. Trad.: Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2004. ______. Hermeneutik I: Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Tübingen: Mohr, 1999a. (Gesammelte Werke 1). ______. Hermeneutik II: Wahrheit und Methode: Ergänzungen und Register. Tübingen: Mohr, 1999b. (Gesammelte Werke 2). ______. Philosophical Hermeneutics. 2. ed. Translated and Edited by David E. Linge. London, England: University of California Press, 2008. ______. Neuere Philosophie I. Tübingen: Mohr, 1987. (Gesammelte Werke 3). ______. Ästhetik und Poetik I. Kunst als Aussage. Tübingen: Mohr, 1993. (Gesammelte Werke 8). ______. Platos dialektische Ethik: Phänomenologische Interpretationen zum Philebos (Einleitung; 1. Kapitel § 1-4). In: Griechische Philosophie I. Tübingen: Mohr, 1985. (Gesammelte Werke 5). ______. Plato´s Dialectical Ethics: Phenomenological Interpretations Relating to the Philebus. Trad.: Robert Wallace. New Haven: Yale University Press, 1991. ______. Ästhetik und Poetik II. Hermeneutik im Vollzug. Tübingen: Mohr, 1993. (Gesammelte Werke 9).

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Theoria -Revista Eletrônica de Filosofia Faculdade Católica de Pouso Alegre ______. Hermeneutik im Rückblick. Tübingen: Mohr, 1995. (Gesammelte Werke 10). ______. O caráter oculto da saúde. Trad.: Antônio Luz Costa. Petrópolis: Vozes, 2006. ______. Hermenêutica em Retrospectiva. Trad.: Marco Antônio Casanova. Petrópolis: Vozes, 2009. ______. Neuere Philosophie II. Tübingen: Mohr, 1987. (Gesammelte Werke 4). ______. A atualidade do Belo: a arte como jogo, símbolo e festa. Trad.: Celeste Aida Galeão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro: 1985. HUIZINGA, Johan. Homo ludens. Trad. Eugenio Imaz. Madrid: Alianza, 2007. INGARDEN, Roman. A obra de arte Literária. 2. ed. Trad.: Albin E. Beau; Maria da Conceição Puga; João F. Barrento. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1979. ROHDEN, Luiz. Hermenêutica filosófica. São Leopoldo: Unisinos, 2002. SALINGER, Jerome David. O apanhador no campo de centeio. 11. ed. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1951.

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RELIGIÃO, ESFERA PÚBLICA E PÓS-SECULARISMO: O DEBATE RAWLS-HABERMAS ACERCA DO PAPEL DA RELIGIÃO NA DEMOCRACIA LIBERAL RELIGION, PUBLIC SPHERE AND POST-SECULARISM: THE RAWLS-HABERMAS DEBATE ABOUT THE ROLE OF RELIGION IN LIBERAL DEMOCRACY

Wescley Fernandes Araujo Freire1

RESUMO: Este trabalho apresenta, examina e compara as posições assumidas por John Rawls e Jürgen Habermas a respeito da tradução e inclusão de conteúdos religiosos na esfera pública política (politische Öffentlichkeit) das sociedades pós-seculares (postsäkularen Gesellchaft) marcadas por um persistente pluralismo religioso. Discutese se e como o conceito de razão pública pode responder ao problema da integração política entre cidadãos crentes e não-crentes no contexto do debate público (öffentlichen Streit), sobretudo, acerca de questões políticas controversas de interesse público e relacionadas à ampliação, efetivação e respeito de direitos fundamentais que se chocam com o princípio da liberdade religiosa e a visão de mundo (Weltanschauungen) das religiões. O Proviso revela uma aparente estreiteza da estratégia de Rawls ao exigir a tradução de razões não-públicas para argumentos em linguagem política (razões públicas), acarretando uma distribuição assimétrica do papel da cidadania entre cidadãos crentes e não-crentes. A proposta habermasiana da tradução cooperativa de conteúdos religiosos parece dispor de um teor inclusivista de maior alcance e, por isso, talvez capaz de lidar adequadamente com o alívio das tensões sociais ocasionadas pelo conflito entre os ideais de vida boa inscritos nas visões de mundo das diferentes formas de vida religiosa. Palavras-chave: Religião. Razão pública. Esfera pública política. Pós-Secularismo. Democracia liberal. ABSTRACT: This paper aims to present, examine and compare the positions taken by John Rawls and Jürgen Habermas about the translation and inclusion of religious content in the political public sphere (politische Öffentlichkeit) of postsecular societies (postsäkularen Gesellschaft) marked by a persistent religious pluralism. Discuss if and how the concept of public reason can address the problem of political integration between believers and non-believers citizens in the context of public debate (öffentlicher Streit), especially about controversial political issues of public interest related and respect for fundamental rights which are clashed with the principle of freedom of religion and worldview (Weltanschauungen) religions. The Proviso reveals an apparent Rawls’s narrowness of the strategy to require the translation of non-public reasons for arguments in political language (public reasons), resulting in an asymmetric distribution of the role of citizenship between believers and non-believers citizens. Habermas proposed cooperative translation of religious content seems to have an inclusivistic content greater reach and therefore maybe able to properly deal with alleviating social tensions caused by the conflict between the ideals of good life inscribed on the worldviews of different forms of religious life. Key-words: Religion. Public reason. Political public sphere. Post-Secularism. Liberal democracy.

1

Professor Assistente do Curso de Ciências Humanas da UFMA. Mestre em Filosofia pela UECE. Membro do Grupo de Pesquisa CNPq/DEFIL – UFMA “Estudos em Ética e Filosofia Política” e do Grupo de Pesquisa CNPq/CMAF – UECE “Ética e Direitos Humanos”. E-mail: wescley.fernandes@ig.com.br. Artigo recebido em 17/06/2014 e aprovado para publicação em 01/07/2014.

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INTRODUÇÃO A integração social considerada a partir da perspectiva dos processos de aprendizagem social (soziale Lernprozess) e da modernização cultural e social constitui um importante problema não apenas para as teorias sociológicas que se ocupam com a ação social, mas, sobretudo, para a filosofia política contemporânea2. No debate contemporâneo, a questão da integração social associa-se ao não menos complexo problema da razoabilidade e racionalidade dos custos sociais assumidos individualmente pelos cidadãos religiosos e seculares, e coletivamente pelas comunidades políticas, no que diz respeito ao processo de estabilização da sociedade através das instituições sociais, ainda que o dissenso (desacordo razoável) seja uma característica dos regimes democráticos liberais, marcados pelo pluralismo e pelo multiculturalismo de ideias e convicções. Mas o desacordo razoável não tem se restringido apenas ao nível da formação da opinião pública e da vontade popular, típico da democracia liberal, mas, sobretudo, quanto ao papel da religião na esfera pública política (politische Öffentlichkeit)3 das sociedades pós-seculares (postsäkularen Gesellchaft)4,

2

Este artigo é uma versão modificada e ampliada da comunicação oral apresentada no XIII Encontro Humanístico: Multiculturalismo da Universidade Federal do Maranhão – UFMA, realizado no período de 11 a 14 de novembro de 2013, no Centro de Ciências Humanas – CCH, Cidade Universitária, Campus do Bacanga, São Luís-MA. Sirvo-me ainda de algumas passagens do meu texto A Política nos limites da Espiritualidade e da Secularização: o debate Habermas-Ratzinger-Rorty sobre os fundamentos do Estado de direito democrático liberal, comunicação oral apresentada no VI Simpósio Internacional sobre Justiça da PUCRS (2013), e que compõem a obra BAVARESCO, Agemir; OLIVEIRA, Nythamar; KONZEN, Paulo Roberto (Orgs.). Justiça, Direito e Ética Aplicada: VI Simpósio Internacional sobre a Justiça. Porto Alegre: Editora FI, 2013. 3 Desde a elaboração de Mudança Estrutural da Esfera Publica (1962) Habermas tem operado inflexões semânticas importantes acerca do conceito de esfera pública (Öffentlichkeit), mas não me ocupo com tal questão neste trabalho por razões programáticas. Todavia, recorro a duas caracterizações feitas por Habermas acerca deste conceito e que me parecem oportunas para os objetivos deste estudo: 1ª) “A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos”; 2ª) “Por isso quando abrange questões politicamente relevantes, ela deixa ao cargo do sistema político a elaboração especializada. A esfera pública constitui principalmente uma estrutura comunicacional do agir comunicativo orientado pelo entendimento, a qual tem a ver com o espaço social gerado no agir comunicativo, não com as funções nem com os conteúdos da comunicação cotidiana.” HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Vol. II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 92, grifo do autor (Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratische Rechtsstaats. Band II. Frankfurt: Suhrkamp, 1992.). A esfera pública é inicialmente considerada como o espaço em que ocorrem as interações discursivas entre indivíduos que fazem uso da racionalidade comunicativa e se orientam pelo entendimento mútuo e agir cooperativo. Nesse sentido, a esfera pública – em razão do potencial racional de seus fluxos comunicativos – constitui-se em um espaço onde ocorrem processos de aprendizagem social (soziale Lernprozess) dos quais a tradução de razões não-públicas para a linguagem política (razões públicas) a partir do Proviso (Rawls) e a tradução cooperativa de conteúdos religiosos (Habermas) seriam dois exemplos. Todavia, para que isto ocorra é necessário não apenas que a esfera pública seja pensada a partir do agir comunicativo, mas também segundo a própria institucionalização política da esfera pública, através dos discursos produzidos pelas instituições da sociedade civil capazes de articular problemas, soluções, temas e contribuições “esquecidos” pelo mercado e pela burocracia estatal. A institucionalização da esfera pública

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cuja presença e persistência têm representado um desafio cognitivo para a Ética e Filosofia Política, Filosofia do Direito e Sociologia da Religião. A relação entre religião e esfera pública política tem ganhado um novo e diversificado contorno teórico em nossa época. Em consequência, o interesse pelo diálogo entre fé e razão renovou-se no atual cenário do liberalismo político. Veja-se, por exemplo, a acentuada relevância e contribuição teórica que o tema da religião ganhou na obra tardia de John Rawls5 e Jürgen Habermas6, sem deixar de mencionar a importância dos posicionamentos críticos e complementares formulados por autores como Charles Taylor, Michel Sandel, Robert Audi, Paul Weithman e Nicolas Wolterstorff que em pouco tempo contribuíram para uma rica e diversificada atualização acerca do papel da religião na esfera pública política7. O texto apresenta, examina e compara o recurso à ideia de razão pública, expressa sob a forma do Proviso, formulada por John Rawls e a tradução cooperativa de conteúdos religiosos de Jürgen Habermas enquanto respostas ao problema da inclusão de cidadãos crentes no debate político travado na esfera pública das sociedades pós-seculares. O Proviso revela uma aparente estreiteza da estratégia de Rawls ao exigir a tradução de razões representa uma importante inflexão normativa operada por Habermas desde a reconstrução histórica deste conceito. Para uma investigação histórica do conceito de esfera pública, ver HABERMAS, Jürgen. Mudança Estrutural da Esfera Pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003 (Strukturwandel der Öffentlichkeit: Untersuchungen zu einer Kategorie der bürgerlichen Gesellschaft. Berlin: Luchterhand, 1962.). Para uma crítica do conceito de esfera pública, ver LUBENOW, Jorge Adriano. A categoria de esfera pública em Jürgen Habermas: para uma reconstrução autocrítica. Cadernos de Ética e Filosofia Política, São Paulo, ano 1, n. 10, p. 103-123, 2007; LUBENOW, Jorge Adriano. A subversão da Öffentlichkeit em Mudança Estrutural da Esfera Pública de Jürgen Habermas. Pensando – Revista de Filosofia, v. 3, n. 5, p. 30-55, 2012. 4 As sociedades pós-seculares são caracterizadas pela persistente presença da religião não obstante o processo de modernização social e cultural pela qual passaram e decorrente da ideia de verbalização (Versplachlichung) do sagrado, conservando o aspecto motivacional dos seus conteúdos religiosos e contribuindo para a manutenção da integração social, alcançada não apenas através da dimensão normativa do Estado constitucional democrático de direito liberal. 5 RAWLS, John. O Liberalismo Político. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000; O Direito dos Povos. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 6 HABERMAS, Jürgen. A Era das transições. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003 (Zeit der Übergänge. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2001.); HABERMAS, Jürgen; RATZINGER, Joseph. Dialética da Secularização: sobre razão e religião. 3. ed. São Paulo: Ideias & Letras, 2007; Entre Naturalismo e Religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007 (Zwischen Naturalismus und Religion. Philosophische Aufsätze. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2005.); Fé e Saber.São Paulo: UNESP, 2013 (Glauben und Wissen. Berlin: Suhrkamp, 2001.). 7 A obra Pluralismo e Justiça: estudos sobre Habermas. São Paulo: Loyola, 2010, de autoria do professor Luiz Bernardo Leite Araujo (UERJ) tem nos ajudado a compreender o lugar da religião no conjunto da obra de Habermas, sobretudo, a partir da comparação de suas ideias com os escritos e entrevistas recentes de Habermas, além de apresentar uma excelente bibliografia sobre a atualidade do debate entorno do papel da religião na esfera pública. A nosso ver, o conjunto da obra de Luiz Bernardo Leite Araujo constitui hoje uma importante fonte de pesquisa sobre o tema da religião nos escritos de Habermas, razão pela qual este trabalho mantém intenso diálogo com seus escritos.

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não-públicas para argumentos em linguagem política (razões públicas), acarretando uma distribuição assimétrica do papel da cidadania entre cidadãos crentes e não-crentes. A proposta habermasiana da tradução cooperativa de conteúdos religiosos parece dispor de um teor inclusivista de maior alcance e, por isso, talvez capaz de lidar adequadamente com o alívio das tensões sociais ocasionadas pelo conflito entre os ideais de vida boa inscritos nas visões de mundo das diferentes formas de vida religiosa. 1. A IDEIA DE RAZÃO PÚBLICA EM JOHN RAWLS Para John Rawls, uma sociedade política e seus cidadãos podem ser chamados de razoáveis e racionais8 se são capazes de articular os meios e fins de suas respectivas ações através do planejamento e hierarquia dos seus planos de ação, de modo a determinar prioridades acerca de escolhas e decisões9. Tal procedimentalismo encontra-se fundado na razão, seja a razão dos cidadãos, seja a razão da sociedade política. Todavia, nem todas as razões são públicas “[...], pois temos as razões não-públicas de igrejas, universidades e de muitas outras associações da sociedade civil”10. Todavia, os indivíduos que fazem parte da sociedade civil não estão excluídos do uso da razão pública, pois “[...] a razão pública é característica de um povo democrático, daqueles que compartilham o status da cidadania igual”11. De acordo com Rawls, uma concepção política de justiça atua sobre as estruturas básicas das instituições sociais e visam à realização do bem público, objeto da razão pública. A publicidade da razão pública é expressa em três perspectivas: 1ª) é a razão do público – a razão dos cidadãos; 2ª) o objeto da razão pública é o bem público e as questões de justiça fundamental; 3ª) a natureza e o conceito de razão pública são determinados pelos ideais e princípios do modelo de justiça política da sociedade12. Por se tratar de um ideal de cidadania e justiça política aplicável a uma democracia constitucional, o uso da razão pública considera um dever-ser a realização de uma sociedade bem-ordenada e justa. É por isso que Rawls

8

Acerca da distinção entre o razoável e o racional em Rawls, ver O Liberalismo Político, p. 92 e ss. Cf. RAWLS, O Liberalismo Político, p. 261. 10 RAWLS, O Liberalismo Político, p. 261. 11 RAWLS, O Liberalismo Político, p. 261. 12 Cf. RAWLS, O Liberalismo Político, p. 261. 9

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afirma “que a razão pública deva ser entendida dessa forma e respeitada pelos cidadãos [...]”13, não se tratando, portanto, simplesmente de uma questão jurídica. A ideia de razão pública possui um conteúdo liberal. A razão pública é a razão dos cidadãos que compõem o corpo político de uma democracia liberal, exercendo o poder político e a coerção através da promulgação das leis e emenda da constituição14. A razão pública e aplica tão somente a questões que envolvam “[...] elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básica”15, o que significa dizer, de acordo com Rawls, que apenas valores políticos devem se pronunciar acerca do seguinte rol de questões que concernem: a) ao direito ao voto; b) à tolerância religiosa; c) à igualdade equitativa de oportunidades; d) ao direito de propriedade. Rawls procura aqui limitar os tópicos disponíveis para o debate político através da razão pública e dos valores políticos. Mas o que singulariza o uso da razão pública é que ela não se aplica a deliberações e reflexões particulares acerca de questões políticas. De acordo com Rawls, os cidadãos intervêm na sociedade através da argumentação política pública e, portanto, recorrem à razão pública e a valores políticos para resolução argumentativa de questões acerca dos elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básica. Desse modo, ainda que a diversidade de doutrinas religiosas, filosóficas e morais possam desempenhar algum papel na vida dos indivíduos, sem deixar de mencionar que os cidadãos normalmente encontram-se ligados a igrejas, universidades, sindicatos e outras tantas associações que encontram seu lugar na sociedade civil, o ideal da razão pública requer “[...] que os cidadãos apelem somente para uma concepção pública de justiça, e não para a verdade como um todo, tal como a vêem”16. Rawls procura compatibilizar a existência de doutrinas religiosas, filosóficas e morais, quanto a sua influência nos debates político, com o princípio de legitimidade liberal. Para o liberalismo político, os cidadãos devem, através do instrumento do voto, exercer o poder político da coerção quando questões políticas fundamentais estão no epicentro do debate político, justificando-o através do recurso a “[...] uma constituição cujos elementos essenciais se pode razoavelmente esperar que todos os cidadãos endossem, à luz de

13

RAWLS, O Liberalismo Político, p. 261. Cf. RAWLS, O Liberalismo Político, p. 261. 15 RAWLS, O Liberalismo Político, p. 261. 16 RAWLS, O Liberalismo Político, p. 265. 14

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princípios e ideais aceitáveis para eles, enquanto razoáveis e racionais”17. E acrescenta Rawls: E, como o exercício do poder político deve ser legítimo, o ideal de cidadania impõe o dever moral (e não legal) – o dever de civilidade – de ser capaz de, no tocante a essas questões fundamentais, explicar aos outros de que maneira os princípios e políticas que se defende e nos quais se vota podem ser sustentados pelos valores políticos da razão pública.18

O princípio de legitimidade liberal requer que os cidadãos ouçam uns aos outros, numa atitude equânime, quando da deliberação pública a propósito da resolução de conflitos buscando obter o consenso acerca do que se deveria fazer, num exercício de conciliação de pontos de vista sobre a razão pública. Nas palavras de Rawls: Enquanto razoáveis e racionais, e sabendo-se que endossam uma grande diversidade de doutrinas religiosas e filosóficas razoáveis, os cidadãos devem estar dispostos a explicar a base de suas ações uns para os outros em termos que cada qual razoavelmente espere que outros possam aceitar, por serem coerentes com a liberdade e igualdade dos cidadãos. Procurar satisfazer essa condição é uma das tarefas que esse ideal de política democrática exige de nós. Entender como se portar enquanto cidadão democrático inclui entender um ideal de razão pública.19

O que se alcança com isso é um consenso sobreposto (overlapping consensus) obtido entre doutrinas abrangentes e razoáveis à luz do respeito ao dever de civilidade por cidadãos que exercitam a sua autonomia política, isto é, onde cada cidadão é capaz de reconhecer um argumento político proferido por outro cidadão livre e igual como porta-voz da razão pública, como se ele próprio fosse o seu autor. Ao substituir a verdade pelo razoável durante o processo de justificação normativa, Rawls procura corroborar a conjectura do liberalismo político, segundo a qual direitos e deveres, assim como os valores em questão, têm peso suficiente para que os limites da razão pública sejam justificados pelas avaliações globais das doutrinas abrangentes razoáveis, uma vez que essas doutrinas tenham se adaptado à concepção de justiça.20

Todavia, o problema ocorre quando os cidadãos crentes são chamados a tomar posicionamentos no debate público (öffentlicher Streit) acerca de questões políticas de interesse coletivo, sobretudo, as controversas, uma cisão na identidade destes indivíduos é produzida, pois serão proibidos de introduzir razões não-públicas nos debates políticos de sua comunidade respeitando e conservando a laicidade do Estado constitucional liberal que 17

RAWLS, O Liberalismo Político, p. 266. RAWLS, O Liberalismo Político, p. 266. 19 RAWLS, O Liberalismo Político, p. 267. 20 RAWLS, O Liberalismo Político, 2000, p. 268. 18

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dispõe de meios coercitivos para a manutenção da sua natureza política. O fato é que a exigência da separação entre religião e política, tal como enunciara o pensamento filosófico moderno, a fim de preservar a autonomia da esfera do político, não parece mais tão evidente, sobretudo porque convivemos numa democracia liberal marcada pelo fato do pluralismo razoável21. A contribuição de Rawls para o debate consiste na ideia do Proviso, isto é, na tradução de razões não-públicas para razões públicas no caso dos cidadãos crentes introduzirem argumentos de origem religiosa na esfera pública política. Portanto, é preciso saber se ainda mantém-se como solução a separação entre fé e razão na política, ou se alguma forma de inclusivismo de conteúdos religiosos poderia ser possível, sob qual critério e qual concepção de justiça política poderia formular sua justificação. 1.1 Razão Pública, Religião e Democracia Apenas sob o regime de uma democracia constitucional liberal a concretização da liberdade entre cidadãos livres e iguais razoáveis pode ganhar realidade, pois esse regime encontra-se alicerçado sob a ideia de razão pública, identificada ao fato do pluralismo razoável. Rawls procura através da ideia de razão pública estabelecer uma mediação entre a doutrina abrangente (seja ela qual for) de cidadãos religiosos e a doutrina abrangente de cidadãos não-religiosos quando estes assumem seus lugares no debate público. Com isso, Rawls procura ultrapassar os dois posicionamentos clássicos quanto ao problema do papel da religião na esfera pública: de um lado, o secularismo dogmático, e do outro, o fundamentalismo religioso. Seguramente, a posição assumida por Rawls no debate não pode ser descrita nem como exclusivista nem como inclusivista. Ao mesmo tempo, sérias objeções são levantadas quanto à estreiteza da estratégia22 de argumentação do autor ao justificar, para não excluir, o papel da religião na cultura democrática do liberalismo político através do recurso à tradutibilidade dos conteúdos religiosos, cujo lugar na esfera pública é reivindicado pelos cidadãos crentes.

21

Rawls define o pluralismo razoável como sendo o “[...] o fato de que uma pluralidade de doutrinas abrangentes razoáveis e conflitantes, religiosas, filosóficas e morais, é o resultado normal da sua cultura de instituições livres”, isto é, o pluralismo razoável faz parte da cultura política de sociedades democráticas constitucionais bem ordenadas. RAWLS, O Direito dos Povos, p. 173-174. 22 Cf. ARAUJO, Pluralismo e Justiça, p. 149-150.

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Todavia, na medida em que Rawls pretende preservar o princípio da liberdade de consciência e o princípio da igualdade cívica, ele confronta-se com o não menos espinhoso problema da conservação do princípio da laicidade do Estado constitucional liberal. Considerando o fato do pluralismo razoável, como responder ao delicado problema de que em sociedades pluralistas e multiculturalistas, cujos cidadãos religiosos e seculares, com suas respectivas doutrinas abrangentes razoáveis filosóficas, morais ou religiosas, podem sofrer restrições assimétricas de direitos e deveres em razão da aplicação de determinadas normas, ainda que fundamentadas no princípio da igualdade cívica? Antes do abandono do projeto de Uma Teoria da Justiça23, Rawls acreditava que o consenso sobreposto (overlapping consensus) seria capaz de produzir unidade entre doutrinas abrangentes razoáveis e uma concepção política de justiça, embora sem estabelecer uma distinção clara entre ambas. Porém, reconhecido o fato do pluralismo razoável, qualquer concepção política de justiça, que tenha em vista a compatibilização entre doutrinas abrangentes razoáveis, não respeitará o pluralismo razoável, na medida em que convergirá em uma forma de “[...] concepção filosófica e moral ampla projetada no domínio político [...]”24. Transformada em doutrina abrangente particular, Uma Teoria da Justiça está sujeita a um desacordo razoável como qualquer outra doutrina abrangente particular, filosófica, moral ou religiosa, “[...] carecendo de base moral compartilhada capaz de transcender o pluralismo dos valores e prover uma sólida unidade social sustentada pela concepção política de justiça”25. Mantido o fato do pluralismo razoável e o perigo da restrição normativa de direitos e deveres entre cidadãos religiosos e seculares no interior de um Estado constitucional democrático liberal, Rawls formula a seguinte questão: Como é possível para os que sustentam doutrinas religiosas, alguns baseados na autoridade religiosa, a Igreja ou a Bíblia, por exemplo, assumir ao mesmo tempo uma concepção política razoável que sustente um regime democrático constitucional razoável? Essas doutrinas ainda podem ser compatíveis, pelas razões certas, com uma concepção política liberal?26

23

Nessa obra, Rawls acredita ser possível elaborar uma teoria política da justiça capaz de compatibilizar doutrinas abrangentes razoáveis através de um acordo normativo, constituindo a base da unidade social numa democracia constitucional. Cf. ARAUJO, Pluralismo e Justiça, 2010, p. 149. 24 ARAUJO, Luiz Bernardo Leite. “Razão Pública e Pós-Secularismo: apontamentos para o debate.” Ethic@, Florianópolis, n. 3, v. 8, 2009, p. 155-173, p. 156; ARAUJO, Pluralismo e Justiça, p. 151. 25 ARAUJO, Razão Pública e Pós-Secularismo, p. 156; ARAUJO, Pluralismo e Justiça, p. 151. 26 RAWLS, O Direito dos Povos, p. 196.

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Na cultura política pública de uma democracia constitucional, os cidadãos que consagram doutrinas abrangentes religiosas e não-religiosas não podem aceitar tal regime político como um simples modus vivendi. A ideia de razão pública encerra a premissa de que cidadãos crentes e profanizados são capazes de recorrer a princípios constitucionais durante o procedimento argumentativo de fundamentação de normas, bem como na tomada de posição no debate político público, de modo à sempre levar em consideração na determinação da razão pública o critério da reciprocidade, responsável pela mediação entre as ideias de imparcialidade e vantagem mútua. A cooperação social entre cidadãos livres e iguais ocorre consoante os moldes da razão pública quando agimos como se fôssemos funcionários do governo e as ações que decorrem do nosso uso político do poder coercitivo estatal assentassem em razões que acreditamos, sinceramente, serem passíveis de aceitabilidade racional por outros cidadãos, no caso destes últimos se encontrarem em uma posição semelhante quanto ao uso público do poder político, a fim de justificar uma tomada de decisão27, configurando a articulação entre reciprocidade, razão pública e vantagem mútua, lastro do princípio de legitimidade política. A preocupação de Rawls quanto à presença de doutrinas abrangentes religiosas na esfera pública política (politische Öffentlichkeit) tornou-se o ponto de Arquimedes do liberalismo político, questão filosófica enunciada por ele nos seguintes termos: Como é possível que cidadãos de fé sejam membros dedicados de uma sociedade democrática, que endossam os ideais e valores políticos intrínsecos da sociedade e não simplesmente aquiescem ao equilíbrio das forças políticas e sociais? Expresso mais nitidamente: Como é possível – ou será possível – que os fiéis, assim como os nãoreligiosos (seculares), endossem um regime constitucional, mesmo quando suas próprias doutrinas abrangentes podem não prosperar sob ele e podem, na verdade, declinar?28

Procurando resolver o problema da coexistência e cooperação entre cidadãos religiosos e seculares, Rawls recorre a uma visão ampla da cultura política pública29, segundo a qual [...] doutrinas abrangentes razoáveis, religiosas ou não-religiosas, podem ser introduzidas na discussão política pública, contanto que sejam apresentadas, no devido tempo, razões políticas adequadas – e não razões dadas unicamente por doutrinas abrangentes – para sustentar seja o que for que se diga que as doutrinas abrangentes introduzidas apoiam.

27

Cf. ARAUJO, Pluralismo e Justiça, p. 153. RAWLS, O Direito dos Povos, p. 196. 29 Cf. RAWLS, O Direito dos Povos, p. 200. 28

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Theoria -Revista Eletrônica de Filosofia Faculdade Católica de Pouso Alegre Refiro-me a essa injunção de apresentar razões políticas adequadas como proviso, e ela especifica a cultura política pública em contraste com a cultura política de fundo.30

O Proviso determina a tradutibilidade das razões não-públicas (não-políticas) das doutrinas abrangentes razoáveis religiosas ou não-religiosas em razões públicas (políticas) no caso de cidadãos religiosos ou não-religiosos desejarem participar do debate político público, situação em que “[...] o compromisso com a democracia constitucional é manifestado publicamente”31. Rawls não tem a intenção de excluir cidadãos crentes e não-crentes do debate político público em razão de suas doutrinas abrangentes,sejam elas religiosas, filosóficas ou morais. A interpretação correta da ideia de razão pública sugere que os sujeitos políticos sejam capazes não de responder corretamente a uma questão política pública controversa, pois não se trata da correção de respostas, mas sobre quais tipos de razões poderiam ser compreendidas e avaliadas para além da centralidade de cada pessoa. De acordo com Luiz Bernardo Leite Araujo, a razão pública rawlsiana de modo algum exige que os cidadãos, ao ingressarem no fórum político público para discutir e decidir questões fundamentais de justiça política, deixem para trás os valores seculares ou religiosos que prezam, restringindo-se à avaliação daquilo que deve contar como argumento aceitável, tendo em vista o fato do pluralismo e a suposição do caráter razoável dos indivíduos.32

A equação que expressa essa ideia é a seguinte: uma concepção política comum às doutrinas razoáveis é o resultado do acordo público acerca dos valores políticos capazes de determinar as relações entre uma sociedade democrática constitucional bem ordenada e seus cidadãos e entre os próprios cidadãos33. Ora, tal ideia de razão pública realiza-se no fórum político público (cultura política pública), na sociedade política, em seus três níveis, a saber: [1] o discurso dos juízes nas suas discussões, e especialmente dos juízes de num tribunal supremo; [2] o discurso dos funcionários de governo, especialmente executivos e legisladores principais; [3] e finalmente o discurso dos candidatos a cargo público e de seus chefes de campanha, especialmente no discurso público, nas plataformas de campanha e declarações políticas.34

30

RAWLS, O Direito dos Povos, p. 200-201. RAWLS, O Direito dos Povos, p. 202. 32 ARAUJO, John Rawls e a visão inclusiva da razão pública, p. 95. 33 Cf. ARAUJO, John Rawls e a visão inclusiva da razão pública, p. 95; Cf. RAWLS, O Direito dos Povos, p. 173. 34 RAWLS, O Direito dos Povos, p. 176. 31

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O ideal da razão pública concretiza-se naquele cidadão que é capaz de agir como se fosse um legislador, e que por isso, não recorre a doutrinas abrangentes (razões nãopúblicas), mas à razão pública.Ao lado da cultura política pública, Rawls situa a cultura de fundo(background culture), local onde se expressam as doutrinas abrangentes, fórum das razões não-públicas, cultura da sociedade civil, onde se incluem as Igrejas, associações profissionais e de ensino, em especial, escolas, universidades e sociedades científicas, constituindo uma cultura social e não-política. Rawls ainda refere-se à cultura política nãopública, composta pelos meios de comunicação – jornais, revistas, televisão, rádio, e hoje, as internet e as redes sociais. A mediação entre a cultura política pública e a cultura de fundo é feita pela cultura política não-pública35. O ideal da razão pública é realizado quando legisladores, juízes, executivos e funcionários do Estado, bem como candidatos que aspiram a cargos públicos agem (nos planos do discurso e da ação) em conformidade a ideia de razão pública, apresentando e justificando aos demais cidadãos através de razões públicas, quais são as posições políticas – por exemplo, um catálogo de políticas públicas a serem implantadas por um governo local – adequadas a efetivação de uma concepção política de justiça considerada razoável36, concretizando aquilo que Rawls denomina de dever de civilidade para com os demais cidadãos. Para Rawls, a introdução de razões não-públicas por doutrinas abrangentes religiosas, morais ou filosóficas contribui para o aperfeiçoamento da democracia e das instituições políticas na medida em que o cidadão será sempre lembrado por seus pares da necessidade de respeitar o Proviso, exercitando o debate público, lugar onde se revela a tensão pluralista e multiculturalista que habita nas sociedades pós-seculares.

2. ESTADO, RELIGIÃO E PÓS-SECULARISMO EM JÜRGEN HABERMAS Em meio a um cenário atualmente marcado por imagens de mundo de cunho naturalista e, paradoxalmente, por uma influência crescente do setor das ortodoxias religiosas nas questões políticas, os pressupostos normativos do Estado democrático de direito encontram-se sob nova configuração. Considerando o pluralismo como um fato das 35 36

Cf. RAWLS, O Direito dos Povos, p. 177. Cf. RAWLS, O Direito dos Povos, p. 178.

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sociedades contemporâneas é impossível deixar de notar uma contradição presente no Estado constitucional (Verfassungsstaates): Como pode um Estado ideologicamente neutro estar, ao mesmo tempo, amparado em tradições éticas ideológicas, algumas delas racionalizadas, e outras religiosas? O reavivamento do poder e da força política de comunidades e tradições religiosas recoloca no centro do debate político contemporâneo o problema do fundamento normativo do Estado liberal (liberale Staat). No cenário atual, a ortodoxia religiosa tem interpelado de forma cada vez mais crítica o processo de secularização responsável pelo surgimento do Estado moderno enquanto resultado apenas do processo de racionalização social e cultural. O debate tem procurado compreender adequadamente as consequências para a esfera pública política (politische Öffentlichkeit) do fenômeno da secularização indagando, sobretudo, o status dos fundamentos normativos e das condições de funcionamento do Estado, pois representa um problema ligado à soberania popular como se relacionam cidadãos crentes e não-crentes. A estabilidade do vínculo social (soziale Band) e a manutenção do Estado estarão ameaçadas enquanto o naturalismo que assinala a evolução social e cultural (através da racionalidade científica) e a religião (e sua correspondente doutrina de fé) forem incapazes de reconhecer os limites quanto ao programa de suas respectivas cosmovisões. Para Habermas, uma cultura política que [...] se polariza [...] coloca em xeque o commonsense dos cidadãos, mesmo dos que residem numa das mais antigas democracias. O etos do cidadão liberal exige, de ambos os lados, a certificação reflexiva de que existem limites, tanto para a fé como para o saber.37

Este problema é enfrentado por Habermas a partir de dois aspectos: 1º) Sob o aspecto cognitivo, a dúvida se refere à questão de saber se, depois de o direito se ter tornado totalmente positivo, o domínio político ainda admite uma justificativa secular, ou seja, uma justificativa não religiosa e pós-metafísica; e 2º) Sob o aspecto motivacional, a dúvida a respeito da possibilidade de estabilizar-se a comunidade ideologicamente pluralista de maneira normativa, ultrapassando, portanto, um mero modus vivendi, pela

37

HABERMAS, Jürgen. Entre Naturalismo e Religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 08-09, grifo nosso. E ainda: “Esse discernimento se deve a uma tríplice reflexão dos fiéis sobre a sua posição em uma sociedade pluralista. Primeiramente, a consciência religiosa tem de assimilar o encontro cognitivamente dissonante com outras confissões e religiões. Em segundo lugar, ela tem de adaptar-se à autoridade das ciências, que detêm o monopólio social do saber mundano. Por fim, ela tem de adequar-se às premissas do Estado constitucional, que se fundamentam em uma moral profana. Sem esse impulso reflexivo, os monoteísmos acabam por desenvolver um potencial destrutivo em sociedades impiedosamente modernizadas. A expressão ‘impulso reflexivo’ (Reflexionsschub) dá a falsa impressão de um processo concluído e realizado unilateralmente. Na verdade, porém, esse trabalho reflexivo dá um novo passa a cada conflito que irrompe nos campos de batalha da esfera pública democrática.” HABERMAS, Jürgen. Fé e Saber. São Paulo: UNESP, 2013, p. 06-07, grifo do autor.

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Theoria -Revista Eletrônica de Filosofia Faculdade Católica de Pouso Alegre mera presença de um consenso de fundo que, na melhor das hipóteses, será apenas formal e limitado a procedimentos e princípios.38

A dúvida de Habermas pode ser expressa nos seguintes questionamentos: Ainda é possível apostar todas as fichas no direito como mecanismo de integração social, compatível com um pluralismo religioso pacífico no marco do Estado liberal? Ou a solidariedade cidadã (staatsbürgerliche Solidarietät) deve ser procurada em outras fontes da razão prática? Há um receio quanto ao fato de que tal modelo de secularização tenha saído dos trilhos39 na medida em que os cidadãos religiosos tornaram-se necessários apenas para a criação e estabilização dos fundamentos normativos do Estado constitucional (Verfassungsstaates) e, em seguida, seus valores e tradições passaram a ser considerados arcaicos e incompatíveis com uma forma laica de vida40. Entre as tarefas do Estado liberal encontra-se a proteção do princípio da igualdade cívica de seus cidadãos, sejam eles religiosos (gläubigen) ou não-religiosos (ungläubigen). Assim, é necessário que exista uma convicção por parte dos cidadãos de que o regime democrático esteja comprometido com a promoção de suas respectivas formas de vida. A solidariedade cidadã de que fala Habermas é resultado da prática de indivíduos que “[...] se respeitam reciprocamente como membros livres e iguais de uma comunidade política”41. Entretanto, a fonte desta solidariedade não reside apenas nos limites do direito, razão pela qual ele passa a considerar outro processo: Em vez disso, pretendo propor que a secularização cultural e social seja entendida como um processo de aprendizagem dupla que obriga tanto as tradições do Iluminismo quanto as doutrinas religiosas a refletirem sobre seus respectivos limites.42

38

HABERMAS, Jürgen; RATZINGER, Joseph. Dialética da Secularização: sobre razão e religião. São Paulo: Ideias & Letras, 2007, p. 24-25, grifo nosso (Dialektik der Säkularisierung. Über Vernunft und Religion. Freiburg im Breisgau: Herder, 2005.), grifo nosso. 39 “But, in addition, Habermas speaks of a ‘de-railing modernization’(entgleisernende Modernisierung), implying that this modernity needs to be put back on its tracks, and presumably that a more emphatic dialogue with religion will put this train of modernization back on its rails, towards its essential destination.” HARRINGTON, Austin. “Habermas and the ‘Post-Secular Society’”. European Journal of Social Theory, 10 (2007): p. 543-560, p. 547. 40 A tese de Habermas é a seguinte: “Somente o exercício de um poder secular estruturado num Estado de direito, neutro do ponto de vista das imagens de mundo, está preparado para garantir a convivência tolerante, e com igualdade de direitos, de comunidades de fé diferentes que, na substância de suas doutrinas e visões de mundo continuam irreconciliáveis. A secularização do poder do Estado e as liberdades positivas e negativas do exercício da religião constituem que dois lados de uma mesma medalha.” HABERMAS, Entre Naturalismo e Religião, p. 09. 41 HABERMAS, Entre Naturalismo e Religião, p. 09. 42 HABERMAS, Dialética da Secularização, p. 25-26, grifo nosso.

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O reconhecimento (Anerkennung) entre cidadãos religiosos e seculares que se ouvem mutuamente nos debates públicos, porque reconhecem os limites de suas cosmovisões, somente pode ser alcançado através de certas orientações cognitivas e expectativas normativas que o Estado constitucional deve exigir de seus cidadãos. A justificativa pós-metafísica dos fundamentos normativos do Estado liberal encontra suas bases no liberalismo político. Os pressupostos legitimadores do poder ideologicamente neutro do Estado provêm da tradição do direito natural racional, cujas fontes remontam aos séculos XVII e XVIII. Aparentemente, não há incompatibilidade entre a fundamentação racional e autônoma do direito natural moderno, base teórica para a formulação dos direitos humanos, e as formulações do humanismo cristão. De acordo com Habermas, embora se trate de vias diferentes quanto à fundamentação, seu télos permanece o mesmo: a dignidade humana. Mas o pluralismo e o multiculturalismo que caracterizam o século XXI colocam à prova todo e qualquer ideal de universalidade na esfera das tradições morais, do direito e da política. Uma fundamentação pós-kantiana dos princípios constitucionais liberais depara-se, assim, com as contingências históricas. Fiel à tradição iluminista, mas avançando com o projeto de uma teoria social reconstrutiva fundada no conceito de racionalidade comunicativa (kommunikativer Rationalität), Habermas oferece uma resposta ao contextualismo e ao decisionismo como formas de compreensão do processo de integração social através do enlace entre direito e democracia, posição que assinala sua recusa ao relativismo moral e a proposta de reconstrução crítico-reflexiva do positivismo jurídico. Para Habermas, o poder comunicativo (kommunikative Macht) é a chave explicativa da co-originalidade (equiprimordialidade) entre a soberania popular e o sistema de direitos. Este processo consiste em explicar: 1º) “Por que o processo democrático é aceito como um processo legítimo de criação do direito (?); e 2º) Por que a democracia e os direitos humanos estão integrados com a mesma primordialidade no processo constituinte (?)”43. A intuição de Habermas é a de que o regime democrático apresenta-se como forma política capaz de liberar um alto potencial emancipatório na medida em que se funda na concepção de política deliberativa44 configurando um procedimento político inclusivo de indivíduos quanto à formação da opinião e da vontade política, onde a justificação e

43 44

HABERMAS, Dialética da Secularização, p. 29. HABERMAS, Direito e Democracia II, p. 09 e ss.

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legitimação racional dos resultados alcançados discursivamente45 efetuam-se na esfera pública. Assim, os parceiros de discurso, que também são parceiros de direito, contam com a institucionalização jurídica deste procedimento tornando-se, ao mesmo tempo, autores e destinatários do direito. Habermas explica: A co-originalidade da autonomia privada e pública somente se mostra, quando conseguimos decifrar o modelo da autolegislação através da teoria do discurso que ensina serem os destinatários do direito simultaneamente os autores de seus direitos. A substância dos direitos humanos insere-se, então, nas condições formais para a institucionalização jurídica desse tipo de formação discursiva da opinião e da vontade, na qual a soberania do povo assume figura jurídica.46

Desse modo, a autonomia política e jurídica explica como a Constituição (Verfassung) é dada pelo próprio povo a si mesmo, e porque ele também se torna seu intérprete, sob a forma de uma sociedade aberta dos intérpretes da constituição.47 Neste sentido, ou a produção do direito é democrática ou ele não é legítimo. O Estado de direito fica, então, liberado de qualquer substância pré-jurídica cabendo à soberania popular definir a tábua de direitos civis durante o ato de formação do Estado e de sua Constituição, através do poder comunicativo dos cidadãos, que é o poder que se origina da capacidade humana de associar-se para agir (a partir do consenso) e que tem a sua origem na esfera pública constituída intersubjetivamente e não distorcida comunicativamente48. A dúvida de Wolfgang Böckenförde – “Será que o Estado liberal secularizado se alimenta de pressupostos normativos que ele próprio não é capaz de garantir?” – procura reivindicar outras fontes sustentadoras do vínculo social e da legitimidade do Estado constitucional. Para além do positivismo jurídico e de sua validez coercitiva, coloca-se a questão de que talvez a religião ou “outro poder sustentador” possam contribuir para a validez da Constituição. Habermas explica: Segundo essa leitura, a pretensão de validez do direito positivo dependeria de uma fundamentação baseada nas convicções morais e pré-políticas de comunidades religiosas ou nacionais, porque não se leva em conta que ordens jurídicas podem

45

HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 109 e ss. (Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1983.). 46 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. Vol. I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 139 (Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratische Rechtsstaats. Band I. Frankfurt: Suhrkamp, 1992.). 47 Sobre o tema do povo como intérprete da Constituição, ver HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Porto Alegre: Fabris, 2002. 48 HABERMAS, Direito e Democracia I, p. 187.

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Theoria -Revista Eletrônica de Filosofia Faculdade Católica de Pouso Alegre autolegitimarem-se exclusivamente democraticamente.49

por

processos

jurídicos

produzidos

Corretamente entendido, o processo democrático (demokratische Prozess) constitui um método capaz de produzir a legitimidade através da legalidade sem que haja nenhum déficit de validez que venha a ser preenchido pela moral. E isto porque a concepção procedimentalista da democracia e do direito torna os cidadãos religiosos e profanizados os autores e destinatários do seu próprio sistema de direitos. Do ponto de vista cognitivo, aparentemente, o Estado constitucional alcançou um nível razoável e seguro de fundamentação capaz de assegurar a sua legitimidade. E mesmo que existam ou surjam eventuais lacunas ligadas à legitimidade pode-se preenchê-las a partir da articulação contínua entre poder comunicativo, Princípio do Discurso (D) e Princípio da Democracia (De)50. A dúvida de Habermas quanto manutenção da legitimidade do Estado constitucional, portanto, reside na “força” do ponto de vista motivacional (motivationaler Hinsicht). O processo de cooperação mútua entre cidadãos crentes e profanizados (o que implica em um ultrapassamento de suas respectivas cosmovisões) é indispensável à estabilidade do Estado liberal e depende de processos de aprendizagem históricos. Habermas é reticente quanto à possibilidade da produção mecânica (política e jurídica) de uma mentalidade tolerante por parte dos cidadãos crentes e profanizados em curto prazo, pois este processo é histórico, portanto, lento, acidentado e gradual. Destes cidadãos (crentes e não-crentes) espera-se não apenas que exerçam suas liberdades dentro do marco dos direitos (pretensões subjetivas), mas, principalmente, que compreendam a si mesmos como participantes do procedimento legislativo, expectativa que,

49

HABERMAS, Dialética da Secularização, p. 31-32. “O conceito de autonomia política, apoiado numa teoria do discurso, abre uma perspectiva completamente diferente, ao esclarecer por que a produção de um direito legítimo implica a mobilização das liberdades comunicativas dos cidadãos. Tal esclarecimento coloca a legislação na dependência do poder comunicativo, o qual segundo Hannah Arendt, ninguém pode ‘possuir’ verdadeiramente: ‘O poder surge entre os homens quando agem em conjunto, desaparecendo tão logo eles se espalham’. Segundo esse modelo, o direito e o poder comunicativo surgem co-originariamente da ‘opinião entorno da qual muitos se uniram publicamente’.” HABERMAS, Direito e Democracia I, p. 185-186. É o poder comunicativo (kommunikative Macht) que torna possível o Princípio do Discurso (D), segundo o qual “são válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento na qualidade de participantes de discursos racionais.” HABERMAS, Direito e Democracia I, p. 142, grifo nosso. E por sua vez, o Princípio da Democracia (De) institucionaliza o procedimento discursivo de legitimação do direito, na medida em que “[...] somente podem pretender validade legítima as leis jurídicas capazes de encontrar o assentimento de todos os parceiros do direito, num processo jurídico de normatização discursiva.” HABERMAS, Direito e Democracia I, p. 145. 50

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segundo Habermas, não se apoia tão somente na face coercitiva do direito, pois requer outro tipo de motivação. O justo pode ser possível a partir de uma motivação subsidiada pela civilidade do comportamento dos cidadãos seculares e religiosos (apesar das diferenças profundas entre suas cosmovisões) alcançada através do reconhecimento da anterioridade do respeito mútuo (solidariedade cidadã) em relação aos deveres epistêmicos na teoria política e na teoria do direito. E uma vez que a filosofia opera ao nível do enfoque cognitivo ela tende a priori a descartar qualquer contribuição deformas de vida religiosa quanto à produção da solidariedade retirando-se de um possível debate com a religião e ocupando a posição de observadora neutra acerca de tal questão, já que não se trataria de um jogo secular. Os próprios participantes que se expressam numa determinada linguagem religiosa alteiam a pretensão de serem levados a sério por seus concidadãos seculares. Por conseguinte, estes últimos não podem negar a priori a possibilidade de um conteúdo racional inerente às contribuições formuladas numa linguagem religiosa.51

Habermas sugere que a religião possa oferecer algum conteúdo racional e que este possa ser traduzido sob a forma de valores e princípios que orientem a construção de um núcleo da solidariedade cidadã. Para tanto, é preciso postular [...] que as tradições religiosas não são simplesmente emocionais ou absurdas. Somente sob tal pressuposto, os cidadãos não-religiosos podem tomar como ponto de partida a ideia de que as grandes religiões mundiais poderiam carregar consigo intuições racionais e momentos instrutivos de exigências não quitadas, porém, legítimas.52

Esta é a reserva motivacional presente nas fontes espontâneas ou pré-políticas que envolvem projetos éticos e formas culturais de vida. No passado tanto a língua comum, a consciência nacional e o fundo religioso contribuíram para a solidariedade (abstrata) presente em certas nações. Para Habermas, “entre cidadãos, qualquer solidariedade abstrata e juridicamente intermediada só pode surgir quando os princípios de justiça conseguem imiscuir-se na trama bem mais densa das orientações de valores culturais”53, espaço onde a religião pode operar de forma construtiva oferecendo conteúdos morais assumidos no debate público pelas liberdades comunicativas54 dos cidadãos quanto a temas de interesse geral e

51

HABERMAS, Entre Naturalismo e religião, p. 11-12. HABERMAS, Entre Naturalismo e religião, p. 12. 53 HABERMAS, Dialética da Secularização, p. 39. 54 “Seguindo Klaus Günther, eu entendo a ‘liberdade comunicativa’ como a possibilidade – pressuposta no agir que se aventa pelo entendimento – de tomar posição frente aos proferimentos de um oponente e às pretensões de 52

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reforçando o patriotismo constitucional(Verfassungspatriotismus),o que“[...] significa que os cidadãos assimilam os princípios da constituição não apenas em seu conteúdo abstrato, mas concretamente a partir do contexto histórico de sua respectiva história nacional”55. Numa dinâmica de perspectiva56, Habermas enuncia a seguinte tese: Nessa contenda, defendo a tese hegeliana, segundo a qual, as grandes religiões constituem parte integrante da própria história da razão. Já que o pensamento pós-metafísico não poderia chegar a uma compreensão adequada de si mesmo caso não incluísse na própria genealogia as tradições metafísicas e religiosas. De acordo com tal premissa, seria irracional colocar de lado essas tradições “fortes” por considerá-las um resíduo arcaico. Tal “desleixo” significaria a impossibilidade de qualquer tentativa de explicação do nexo interno que liga essas tradições às formas modernas de pensamento. Até o presente, as tradições religiosas conseguiram articular a consciência daquilo que falta. Elas mantêm viva a sensibilidade para o que falhou. Elas preservam na memória dimensões de nosso convívio pessoal e social, nas quais os progressos da racionalização social e cultural provocaram danos irreparáveis. Que razão as impediria de continuar mantendo potenciais semânticos cifrados capazes de desenvolver força inspiradora – depois de vertidas em verdades profanas e discursos fundamentadores?57

O receio de Habermas quanto ao rompimento do vínculo social advém do malogrado processo de modernização que ocorreu nas sociedades dos séculos XVII-XVIII e que culminou com a planificação da secularização ocidental ameaçando a todo instante a instável estabilidade do Estado liberal. Habermas cita uma série de fatores que podem explicar como a desestabilização social se processa através de um processo de modernização que saiu dos trilhos: a) A transformação dos cidadãos em sujeitos de direitos que lutam apenas pela preservação de suas liberdades negativas (direitos subjetivos); b) Mercados que não se deixam regular democraticamente; c) A esfera privada torna-se colonizada pela economia e pela burocracia e seus mecanismos de ação voltados para fins estratégicos e o

validade aí levantadas, que dependem de um reconhecimento intersubjetivo.” HABERMAS, Direito e Democracia I, p. 155. 55 HABERMAS, Dialética da Secularização, p. 38. 56 “Para Habermas, a secularização não é sinônimo de ateísmo e sim uma evolução interna da própria religião, que resulta na superação gradual da relação coletiva com a transcendência e não da fé enquanto tal”. ARAUJO, Religião e Modernidade em Habermas, p. 198. A Religionstheorie de Habermas constrói-se inicialmente a partir das influências do pensamento de Max Weber acerca do processo de modernização das sociedades a partir de sua dessacralização, dos avanços técnico-científicos dos saberes e da burocratização e normatização da vida. Se Habermas encontra-se mais próximo de Weber no início da formulação de sua Religionstheorie é a partir dos acontecimentos político-religiosos dos anos 2000 (11 de Setembro de 2001) e das obras que surgem a partir desse período, como O Futuro da Natureza Humana: a caminho de uma eugenia liberal? (2001) e Era das Transições (2001), que se percebe a atribuição de um papel cada vez mais proeminente da religião no cenário do debate habermasiano sobre a configuração da esfera pública política e quanto aos empréstimos de princípios e conteúdos valorativos que podem auxiliar na manutenção do vínculo social entre cidadãos seculares e religiosos. A hipótese revisionista parece ganhar força, sobretudo, a partir de obras como Dialética da Secularização: sobre razão e religião (2005) e Entre Naturalismo e Religião (2005). 57 HABERMAS, Entre Naturalismo e Religião, p. 13-14.

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sucesso; d) O privatismo do cidadão decorrente do esvaziamento da esfera pública, o que implica por sua vez, na perda da legitimação pública dada a impossibilidade de formação da opinião pública e da vontade política quanto a temas de interesse geral, sem contar os temas políticos de segmentos sociais com demandas específicas; e) A ausência de mecanismos internacionais promotores de processos democráticos de tomada de decisões relativas à solução de questões militares, políticas e econômicas de interesse mundial; f) O fracasso da constitucionalização do direito internacional como mecanismo de salvaguarda de minorias infligidas por conflitos político-militares58. Em geral, o programa teórico do pensamento pós-moderno tende a considerar estes fatores como característicos de um modelo autodestrutivo de racionalidade. Habermas, por sua vez, fala em “[...] exploração seletiva dos potenciais racionais presentes, de alguma maneira, na modernidade ocidental”59. Ou seja, a modernidade caracteriza-se pelo uso seletivo da racionalidade instrumental e estratégica60 ligadas ao domínio da natureza e objetivação da realidade e da articulação entre meios e fins direcionados à obtenção do sucesso, operando ao nível do poder administrativo e da economia (subsistemas sociais). Muito embora a fé católica, por exemplo, não rejeite toda e qualquer razão, as religiões, em geral, têm apontado em direção ao malogrado processo de modernização das 58

Cf. HABERMAS, Dialética da Secularização, p. 41-42. HABERMAS, Dialética da Secularização, p. 42. 60 A esse modelo de racionalidade, Habermas contrapõe a racionalidade comunicativa desenvolvida em sua obra Teoria da Ação Comunicativa – TAC (Theorie des kommunikative Handelns). Trata-se de um conceito de racionalidade ligado “[...] a disposição dos sujeitos capazes de falar e agir para adquirir e aplicar um saber falível.” HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 437 (Der Philosophische Diskurs der Moderne. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1985). Explorando o potencial da razão, Habermas formula um modelo de racionalidade, ancorada numa pragmática universal, que amplia a compreensão tradicional do conhecimento desenvolvida pela filosofia da consciência, onde o conhecimento é o resultado do ato solitário de um sujeito meditador que articula o conteúdo de suas representações mentais a enunciados que descrevem estados de coisas no mundo. Para Habermas, quando passamos a compreender o conhecimento como um ato mediado pela linguagem, “[...] a racionalidade encontra sua medida na capacidade de os participantes responsáveis da interação orientarem-se [sic] pelas pretensões de validade que estão assentadas no reconhecimento intersubjetivo. A razão comunicativa encontra seus critérios nos procedimentos argumentativos de desempenho diretos ou indiretos das pretensões de verdade proposicional, justeza normativa, veracidade subjetiva e adequação estética.” HABERMAS, O discurso filosófico da modernidade, p. 437. Trata-se de um conceito procedimental de racionalidade que visa dirigir a dimensão cognitivo-instrumental da ação através da situação de fala ideal, que se orienta segundo os pressupostos argumentativos e regras do discurso. A ação social passa a ser o resultado de um consenso intersubjetivamente produzido por uma motivação racional ligada à prática argumentativa. Os participantes (atores sociais, cidadãos profanizados e crentes) são retirados de sua centralidade subjetiva e mergulhados nas estruturas comunicativas do mundo da vida (Lebenswelt) constituindo relações de entendimento e relações de reconhecimento recíproco. Dessa maneira, os subsistemas da economia e do poder administrativo passam a ser dirigidos pela ação comunicativa a partir do uso regulador da pragmática universal que funciona enquanto elemento conciliador entre razão teórica e razão prática. Operando ao nível do Lebenswelt, as ações comunicativas constituem o medium de reprodução das formas concretas de vida. Habermas vê na TAC a possibilidade de reconstrução substancial do conceito hegeliano de eticidade, isto é, a dimensão político-jurídica da vida. 59

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sociedades ocidentais. Habermas considera uma questão aberta à ambivalência da modernidade. Tanto a filosofia quanto a religião devem empreender uma autocrítica em relação aos seus limites, pois a estabilidade das sociedades liberais contemporâneas depende deste procedimento. Uma crítica da razão filosófica não implica em um afastamento da razão em relação a sua tradição metafísico-religiosa e tampouco do diálogo com o discurso teológico. A partir de um exercício de reversão, numa conversão da razão pela razão, [...] sem nenhuma intenção teológica, a razão, que nesse caminho toma conhecimento de seus limites, extrapola-se em direção a um outro algo, que pode assumir a forma da fusão mística com uma consciência cósmica abrangente, ou a forma da esperança desesperada que aguarda o evento histórico de uma mensagem salvadora, ou a forma de uma solidariedade com os humilhados e ofendidos que se adianta para acelerar a salvação messiânica.61

De acordo com Habermas, os “deuses anônimos da metafísica pós-hegeliana”62, entenda-se, “[...] a consciência abrangente, o evento incurável, a sociedade não alienada [...]”63, foram docilmente assimilados pela teologia, uma decodificação da trindade do Deus pessoal do Cristianismo. Uma crítica da razão filosófica deve pôr a filosofia cara a cara com sua falibilidade e fragilidade consideradas a partir do ethos complexo que caracteriza as sociedades pós-seculares plurais e multiculturais de nossa época, já que o discurso secular universalista justificador das tradições pré-modernas parece haver entrado em colapso. No que diz respeito à origem de seus fundamentos morais, o Estado liberal deveria contar com a possibilidade de que, diante de desafios inteiramente novos, a “cultura do comum entendimento humano” (Hegel) possa não alcançar o nível de articulação da história de seu próprio surgimento.64

Uma segunda consequência desta reversão operada pela crítica da razão filosófica é a de que o discurso religioso, embora guarde uma diferença de gênero em face ao discurso filosófico, nem por isso passa a ser tomado como irracional, por depender de verdades reveladas. A crítica habermasiana acerca do papel da filosofia carrega em si uma perspectiva conciliadora:

61

HABERMAS, Dialética da Secularização, p. 45-46. HABERMAS, Dialética da Secularização, p. 46. 63 HABERMAS, Dialética da Secularização, p. 46. 64 HABERMAS, Jürgen. Fé e Saber. São Paulo: UNESP, 2013, p. 16. 62

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Theoria -Revista Eletrônica de Filosofia Faculdade Católica de Pouso Alegre Divergindo de Kant e Hegel, a filosofia, com essa determinação gramatical de limites, não se arvora em instância de julgamento sobre o que seja verdadeiro ou falso nos conteúdos das tradições religiosas, no que eles ultrapassam o conhecimento geral institucionalizado da sociedade. O respeito que acompanha essa abstenção cognitiva de julgar baseia-se na consideração para com pessoas e modos de vida que, visivelmente, haurem sua integridade e autenticidade de suas convicções religiosas (religiöser Überzeugungen). Além desse respeito, a filosofia tem também motivos para se manter disposta a aprender com as tradições religiosas.65

2.1 Fé e Razão nas Sociedades Pós-Seculares No contexto vital das sociedades pós-seculares, o que tem a religião ainda a dizer? À sombra de um pensamento pós-metafísico (nachmetaphisichen Denken) que insiste na ausência de qualquer conteúdo deôntico a priori regulador das formas de vida no contexto das sociedades contemporâneas encontramos nos livros sagrados das grandes religiões universais e em suas tradições todo um conjunto de intuições morais sobre a vida boa conservadas por milênios e reveladas por uma hermenêutica do sagrado. Desde que religião seja capaz de operar similar reversão interpretativa dos seus conteúdos preservando a autonomia de consciência de cidadãos crentes e não-crentes, com relação aos dogmas de fé,pode-se ainda reivindicar um papel motivador (complementar ao aspecto cognitivo ligado ao processo democrático de produção do sistema de direitos) aos conteúdos morais da religião enquanto elementos perdidos pelo processo de secularização. Habermas explica: Estou falando de possibilidades de expressão e sensibilidades suficientemente diferenciadas para uma vida malograda, para patologias sociais, para o fracasso de projetos de vida individuais e as deformações de nexos de vida truncadas. Partindo da assimetria das pretensões epistêmicas, é possível justificar na filosofia uma disposição para a aprendizagem frente à religião, não por razões funcionais, e sim por razões de conteúdo, lembrando os bem-sucedidos processos de aprendizagem ‘hegelianos’.66

Do contato entre as tradições da metafísica grega e do Cristianismo não resultou apenas uma dogmática teológica espiritualizada ou um Cristianismo helenizado. De acordo com Habermas, efetuou-se também uma assimilação de conteúdos morais originais do Cristianismo pela filosofia. Toda uma rede conceitual normativa composta por conceitos como

responsabilidade,

autonomia,

justificação,

emancipação,

individualidade

e

comunidade67 foi ressignificada pela tradição filosófica posterior. Cite-se, como exemplo,

65

HABERMAS, Dialética da Secularização, p. 47. HABERMAS, Dialética da Secularização, p. 49. 67 HABERMAS, Dialética da Secularização, p. 50. 66

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dessas transposições conceituais, a concepção de homem feito à imagem e semelhança de Deus, intuição que concede incondicional e igual dignidade a todos os seres humanos68. Num ethos que sofre constantemente ameaças de desintegração, pois se encontra em desequilíbrio em razão de mercados não democratizados e de um poder administrativo que serve a fins estratégicos, a solidariedade cidadã enfraquece à medida que valores, princípios, normas e o uso comunicativo da linguagem para fins de entendimento mútuo deixam de serem os mecanismos coordenadores da ação social que visa a integração social sendo substituídos pelos subsistemas econômico e do poder administrativo (burocracia)que dirigem a si mesmos de maneira autônoma (autorregulação). Em razão disso, o Estado constitucional liberal não pode abrir mão das tradições culturais que lhe precederam e deram causa, sob pena de solapar as fontes pré-políticas da solidariedade cidadã, elemento auxiliar da consciência normativa no processo de estabilização social. O conceito de sociedade pós-secular (postsäkularen Gesellschaft) reconhece o papel motivacional auxiliar que as tradições religiosas prestam a uma consciência normativa formada a partir do marco do sistema de direitos. A persistência da religião e de suas tradições nas sociedades contemporâneas é vista como um desafio cognitivo, e não sinônimo de irracionalismo, um indicativo de que cidadãos crentes e não-crentes devem submeter-se a um processo de aprendizagem duplo e complementar (zweifacher und komplementärer Lernprozess) enquanto procedimento político capaz de responder aos dilemas da evolução social e da modernização social e cultural. Portanto, a secularização é compreendida como o processo em que cidadãos crentes e não-crentes são capazes de reconhecer os limites e contributos tanto da razão quanto da fé, em face de questões controversas de interesse coletivo, através do expediente cognitivo do recurso às razões corretas produzidas pelo diálogo cooperativo entre religião e filosofia em um fluxo comunicativo capaz alcançar as

68

Em Passado como Futuro (1993) Habermas já indica a possibilidade de uma convergência das religiões mundiais a partir de um núcleo comum de intuições morais, além do próprio diálogo com John Rawls. Diz ele: “Nós interpretamos esse núcleo como sendo o igual respeito por qualquer um, a mesma consideração para com a dignidade de qualquer pessoa necessitada de proteção e para com a intersubjetividade vulnerável de todas as formas de existência. Será que meu colega John Rawls tem razão quando afirma que nas interpretações religiosas e seculares dos sentimentos morais profundos e das experiências elementares do intercâmbio comunicativo existe um ‘consenso que se sobrepõe’, do qual a comunidade das nações pode lançar mão para encontrar as normas de uma convivência pacífica? No entanto, eu estou convencido de que Rawls tem razão, que o conteúdo essencial dos princípios morais incorporados ao direito dos povos concorda com a substância normativa das grandes doutrinas proféticas que tiveram eco na história mundial e das interpretações metafísicas do mundo.” HABERMAS, Jürgen. Passado como Futuro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993, p. 31-32 (Vergangenheit als Zukunft. Zurique: Pendo, 1990).

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mudanças de enfoque cognitivo necessárias à concretização de processos de aprendizagem social (soziale Lernprozess). Uma vez que a consciência religiosa reconheceu os processos de adaptação inerentes ao contexto vital das sociedades modernas – secularização do conhecimento, neutralização do poder do Estado e a liberdade religiosa –, a religião viu-se obrigada a deflacionar sua visão de mundo (Weltanschauungen), sua compreensive doctrine. Doravante, a vida religiosa separou-se da vida pública, embora não se possa dizer que essas duas dimensões da vida não permaneçam intercambiadas: O papel do membro da comunidade se diferencia do papel do cidadão. Como o Estado liberal depende da integração política de seus cidadãos e como essa integração não pode ficar restrita a um mero modus vivendi, essa diferenciação das condições de membro não pode esgotar-se numa simples adaptação cognitiva do etos religioso às leis impostas pela sociedade secular. Antes é necessário que a ordem jurídica universalista e a moral igualitária da sociedade sejam de tal maneira conectadas internamente ao etos da comunidade e que um elemento decorra consistentemente do outro.69

Os cidadãos crentes sabem que, do ponto de vista da expectativa normativa, seus interesses estão assegurados pelo direito civil e, sobretudo, pela Constituição (Verfassung). Por meio da esfera pública informal70, a comunidade religiosa, como parte da sociedade civil, pode influenciar as instituições do poder político como um todo através do processo democrático de formação da opinião pública e da vontade política. No jogo democrático das razões corretas exige-se um relacionamento auto-reflexivo dos cidadãos crentes e nãocrentes acerca dos limites de seus respectivos enfoques cognitivos. Uma vez que o dissenso é inevitável em questões de interesse coletivo exige-se, portanto, uma carga de tolerância sempre maior dado à complexidade da rede de interesses. Dessa forma, a tolerância em relação ao dissenso torna-se um dos pressupostos incontornáveis da democracia liberal. Para que a relação entre cidadãos crentes e não-crentes não culmine na violência e terror, uma vez que “[...] linguagens seculares que apenas eliminam aquilo em que se acreditava causam perturbação [...]”71, exige-se a compreensão mútua durante o trabalho de apropriação(Aneignungsarbeit) dos conteúdos religiosos, pois nem sempre fé e razão

69

HABERMAS, Dialética da Secularização, p. 54, grifo do autor. Habermas estabelece a distinção entre a esfera pública “informal”, composta por associações privadas (sindicatos), instituições culturais (academias de ciências e artes), grupos de interesse com preocupações públicas (associação de moradores), igrejas, instituições de caridade, entre outras, e a esfera pública “formal”, constituída pelo parlamento (poder legislativo), tribunais de direito (poder judiciário), instituições do governo e da administração (poder executivo). Cf. HABERMAS, Entre Naturalismo e Religião, p. 147. 71 HABERMAS, Fé e Saber, p. 18. 70

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convergirão para os mesmos conteúdos morais. Veja-se, por exemplo, o debate sobre o aborto, a eutanásia, a pesquisa com células tronco, a fertilização in vitro, entre outros temas controversos. O conceito de tolerância enquanto reconhecimento dos limites de uma doutrina compreensiva só pode ser alcançável quando a razão, numa atitude cognitivamente responsável reconhece que os conteúdos religiosos não são meramente irracionais. No fim das contas, a esfera pública política (politische Öffentlichkeit) não deve reconhecer a primazia do discurso naturalista sobre o discurso confessional (a hierarquia de dados científicos sobre doutrinas teológicas concorrentes). O vaticínio de Habermas é inequívoco: A neutralidade ideológica do poder do Estado que garante as mesmas liberdades éticas a todos os cidadãos é incompatível com a generalização política de uma visão de mundo secularizada. Em seu papel de cidadãos do Estado, os cidadãos secularizados não podem nem contestar em princípio o potencial de verdade das visões religiosas do mundo, nem negar aos concidadãos religiosos o direito de contribuir para os debates públicos servindose de uma linguagem religiosa. Uma cultural política liberal pode até esperar dos cidadãos secularizados que participam de esforços de traduzir as contribuições relevantes em linguagem religiosa para uma linguagem que seja acessível publicamente.72

Todavia, surge o problema da dúvida quanto à expectativa de que cidadãos crentes sejam capazes de traduzir em termos racionais e acessíveis publicamente os conteúdos confessionais expressos em linguagem religiosa, caso desejem participar dos debates travados na esfera pública política (politische Öffentlichkeit) acerca de temas de interesse coletivo e controverso, e se essa exigência de tradução não implicaria em uma assimetria quanto à distribuição dos deveres cívicos entre os dois grupos de cidadãos (crentes e não-crentes).

3. COM HABERMAS, MAS NÃO CONTRA RAWLS A posição de Rawls73 no atual cenário do debate político sobre o papel da religião na esfera pública ultrapassa as posições clássicas e já superadas do exclusivismo e do

72

HABERMAS, Dialética da Secularização, p. 57. Uma perspectiva conciliadora entre os autores pode ser encontrada em ARAUJO, Luiz Bernardo Leite. “A ideia rawlsiana da razão pública como tréplica à crítica habermasiana.” In: OLIVEIRA, Nythamar de; SOUZA, Draiton Gonzaga de (Orgs.). Justiça Global e Democracia: homenagem a John Rawls. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009, p. 353-367. De acordo com o autor, “[...] graças ao entendimento de que Rawls compartilha da ideia de democracia deliberativa organizada em torno de um ideal de justificação política cujo aspecto central é exatamente o raciocínio público dos cidadãos, demonstra que o liberalismo político está mais próximo da teoria 73

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inclusivismo tout court. A abordagem operada por Rawls quanto à noção de cidadania democrática e à ideia de razão pública tornou-se referencial quanto ao tratamento deste tema. De acordo com Luiz Bernardo Leite Araujo, tal abordagem encontra-se [...] apoiada em noções de legitimidade política e de ética da cidadania claramente vigentes nas democracias constitucionais bem-estabelecidas. Em breves palavras, é a abordagem que – adotando uma justificação normativa não sectária fundada em razões publicamente acessíveis, por um lado, e requerendo dos cidadãos certa moderação no uso de argumentos direta e exclusivamente religiosos ao tratarem do exercício do poder coercitivo e dos termos fundamentais da cooperação política, por outro lado – acarreta uma interpretação restritiva do papel político da religião.74

A crítica mais virulenta que a posição de Rawls suscita é a de que a exigência de tradutibilidade dos conteúdos religiosos (razões não-públicas) presentes na doutrina abrangente de cidadãos crentes implica em uma distribuição assimétrica dos deveres de cidadania entre estes e os cidadãos não-crentes, mais acostumados a um modelo de argumentação que recorre à razões públicas. As cargas de juízo (burdens of judgement) em tese distribuídas simetricamente entre os cidadãos, já que haverão de entender-se sobre o desacordo razoável produzido por uma miscelânea de doutrinas abrangentes, acabarão por impor restrições quanto à liberdade política e de consciência dos cidadãos crentes, ferindo de morte a liberdade e a igualdade defendidas pelo liberalismo político75. A prudência hermenêutica que a delimitação de toda tipologia ideal requer nos aconselha a abordar o reconstrutivismo kantiano presente no Proviso com toda cautela. Quando se trata do problema do papel da religião na esfera pública política (politische Öffentlichkeit), duas são as posições clássicas admitidas: 1ª) a exclusivista (separatista); e 2ª) a inclusivista (integracionista). A posição exclusivista afirmar que as esferas da religião e da política são distintas, separadas e incomunicáveis. Por sua vez, a posição inclusivista postula a legitimidade da intervenção da religião no espaço público da política democrática, sem haver qualquer tipo de restrição quanto à inserção de conteúdos religiosos nos debates públicos (öffentlichen Streit)76.

discursiva do que esses importantes pensadores, por razões diferentes, estariam aptos a admitir.” ARAUJO, A ideia rawlsiana da razão pública como tréplica à crítica habermasiana, p. 367. 74 ARAUJO, John Rawls e a visão inclusiva da razão pública, p. 99, grifo nosso. 75 Cf. ARAUJO, John Rawls e a visão inclusiva da razão pública, p. 97. 76 Cf. ARAUJO, John Rawls e a visão inclusiva da razão pública, p. 99.

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Considerando o fato de que muitos especialistas falam inclusive de gradações no exclusivismo e inclusivismo, a interpretação77 enunciada por Luiz Bernardo Leite Araujo, de que Rawls é um inclusivista fraco ou moderado, me parece plausível, pois o Proviso impõe a exigência de tradutibilidade tanto para doutrinas abrangentes religiosas quanto para doutrinas abrangentes não-religiosas (morais e filosóficas), de modo que cidadãos crentes e cidadãos não-crentes tornam-se obrigados a prestar contas publicamente dos seus motivos, isto é, acercadas razões que sustentam os seus argumentos,sem restringir em absoluto o papel da religião na esfera pública. Dessa maneira, Rawls espera salvaguardar o critério da reciprocidade democrática e o dever de civilidade, uma vez que todo cidadão, independentemente da sua visão abrangente, torna-se obrigado a justificar sua concepção política de justiça que acredita ser a mais razoável78. Por sua vez, a posição exclusivista, lastreada no uso da razão pública do liberalismo político, encontra-se aberta às seguintes críticas: [1] Aos critérios normativos e epistêmicos de sua concepção de justificação política; [2] À viabilidade do exercício moderado e nuançado de distinções, avaliações e adequações entre razões e argumentos que não levem em conta as motivações profundas do raciocínio moral e político, algo especialmente implausível para cidadãos ordinários com fortes convicções religiosas; [3] À distribuição injusta dos deveres de cidadania entre os cidadãos religiosos e não-religiosos, na medida em que os argumentos dos primeiros seriam mais facilmente detectáveis por serem não-públicos, além de menos espontaneamente congruentes com o conteúdo da razão pública e, assim, sujeitos a exames mais desconfiados e frequentes; [4] À incompatibilidade entre a injunção restritiva do uso público da razão e a característica totalizadora das crenças religiosas, existencialmente definidoras da identidade das pessoas crentes e das comunidades de fé, tratando-se aqui da objeção integralista, estreitamente vinculada às duas anteriores; [5] À realização efetiva da cidadania democrática, que seria enfraquecida pela ausência ou pela diminuição do engajamento religioso contra as injustiças e empobrecida sem os benefícios deliberativos de formas diferenciadas e nãoconformistas de opiniões na discussão política pública.79

O liberalismo político e a teoria do discurso constituem duas das mais influentes perspectivas teóricas que procuram responder à questão da compatibilidade entre a existência de uma sociedade livre e justa e, ao mesmo tempo, a presença de um desacordo profundo e permanente instaurado entre doutrinas abrangentes e visões de mundo80 que marcam o ethos das sociedades pós-seculares. Embora guardem diferenças quanto ao exercício da influência da religião na esfera pública política (politische Öffentlichkeit), Rawls e Habermas estão de acordo quanto 77

Cf. ARAUJO, John Rawls e a visão inclusiva da razão pública, p. 100. Cf. ARAUJO, John Rawls e a visão inclusiva da razão pública, p. 100. 79 ARAUJO, John Rawls e a visão inclusiva da razão pública, p. 102. 80 Cf. ARAUJO, A ideia rawlsiana da razão pública como tréplica à crítica habermasiana, p. 355. 78

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ao fato de que a legitimidade do processo de justificação normativa de qualquer concepção política de justiça requer razões públicas, não importando o conteúdo normativo das doutrinas compreensivas ou das visões de mundo, pois embora comumente se diga que “a democracia é o governo da maioria”, isto não significa dizer que a maioria pode fazer tudo o que quiser, inclusive sem dar boas razões. É a prioridade do justo sobre o bem e o ideal de neutralidade que tornam possível o pluralismo das formas de vida81. Nesse sentido, Nythamar de Oliveira afirma que as premissas do liberalismo político são, portanto, acatadas por Habermas desde que possam evitar a privatização do debate religioso e que permitam uma ampliação e transformação pragmático-semântica da esfera pública, onde se discute o que seja, afinal, razoável.82

A transformação pragmático-semântica da esfera pública política (politische Öffentlichkeit) formulada por Habermas visa a uma tradução cooperativa bem-sucedida de conteúdos religiosos capaz de adentrar na agenda das deliberações políticas das instituições estatais, de modo a influenciar no processo político decisório83, o que requer uma compatibilização do uso público da razão e certas pressuposições cognitivas. Quanto à Habermas, sua Religionstheorie procura resgatar o aspecto motivacional (motivationaler Hinsicht) dos conteúdos religiosos como inerentes ao mundo da vida (Lebenswelt) e enquanto elementos presentes em qualquer consideração teórica acerca dos processos de aprendizagem social (soziale Lernprozess). Habermas tem procurado revelar o papel da religião na esfera pública política (politische Öffentlichkeit) das sociedades pósseculares (postsäkularen Gesellchaft) de modo a compreender de que forma sua persistência repercute na reconstrução do programa da racionalidade elaborado pelo filósofo desde a Teoria do Agir Comunicativo. Para Habermas, a filosofia deve assumir a “persistência inoportuna e embaraçosa” da religião no mundo da vida (Lebenswelt) das sociedades pós-seculares como um desafio cognitivo e verificar o potencial emancipatório contido no discurso religioso. É preciso que fique claro que a religião mantém sua autonomia em relação à filosofia, e esta em relação àquela. A emergência das sociedades pós-seculares evidentemente obrigou Habermas a 81

Cf. ARAUJO, A ideia rawlsiana da razão pública como tréplica à crítica habermasiana, p. 355. OLIVEIRA, Nythamar de. “Habemus Habermas: o universalismo ético entre o naturalismo e a religião.” Veritas, Porto Alegre, n. 1, vol. 54, 2009, p. 217-237, p. 236. 83 Cf. HABERMAS, Entre Naturalismo e Religião, p. 150. 82

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empreender um revisionismo crítico quanto à posição assumida em Teoria do Agir Comunicativo acerca da função social da religião. Em um cenário marcado pelo desaparecimento das cosmovisões, o pensamento pós-metafísico deve encontrar o seu lugar entre a imanência e a transcendência, abrindo-se ao discurso e ensinamento da religião, resguardando-se as diferenças entre o discurso filosófico e o discurso teológico, posição por Habermas

assumida

e

designada

de

agnosticismo

metodológico

(methodological

agnosticism). Não se trata de uma domestificação da religião pela comunicação e pela tradutibilidade de seus conteúdos. Os limites da racionalidade filosófica e científica, autoassimilados criticamente, a pulverização de ortodoxias religiosas no ocidente secularizado e o consequente desaparecimento de metanarrativas-metagarantias sociais tem levado Habermas a explorar os potenciais semânticos das tradições religiosas. Todavia, permanece o problema do nivelamento entre a fala discursiva secular e a fala discursiva religiosa uma vez que aquela se baseia numa pragmática universal e esta em verdades reveladas84. Nas sociedades pós-seculares (postsäkularen Gesellchaft), a modernização da consciência pública deu-se através da assimilação reflexiva de conteúdos das mentalidades religiosas e profanizadas85. De acordo com Luiz Bernardo Leite Araujo, a reviravolta pós-secular no pensamento de Habermas deveu-se a motivações de natureza teórica e prática: Do ponto de vista teórico, eu destacaria a defesa promovida por Habermas do ideal democrático da igualdade cívica do liberalismo político de Rawls e também os intensos debates na atualidade acerca da tese weberiana do desencantamento do mundo como resultado de um processo universal de racionalização. Do ponto de vista prático, as tendências a uma possível instrumentalização da natureza humana em decorrência dos recentes avanços da biotecnologia, particularmente no campo da engenharia genética, e a um recrudescimento da influência política de ortodoxias religiosas em choque com padrões ocidentais de modernização social e cultural, sendo o atentado terrorista de 11 de setembro de 2001 por militantes fundamentalistas um evento emblemático.86

O diálogo entre filosofia pós-metafísica e religião, tendo como pano de fundo a sociedade pós-secular, favorece a manutenção democrática do princípio da igualdade cívica na medida em que fornece o modelo de orientação para as práticas comunicativas entre cidadãos crentes e cidadãos não-crentes, pois assim como a filosofia pós-metafísica assume uma atitude reflexiva de abertura em face dos conteúdos religiosos, o que demonstra a sua

84

Cf. HABERMAS, Entre Naturalismo e Religião, p. 124. Cf. ARAUJO, Pluralismo e Justiça, p. 183. 86 ARAUJO, Pluralismo e Justiça, p. 183. 85

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disposição em aprender com a tradição das imagens religiosas do mundo, ao mesmo tempo preserva a alteridade do discurso religioso ao abster-se de cooptar seus conteúdos a partir de uma tradução unilateral destes por uma racionalidade secular sob a forma, por exemplo, de uma Filosofia da Religião. O agnosticismo metodológico de Habermas não implica em uma recusa ao diálogo entre fé e razão, religião e filosofia, mas apenas que uma apologia das verdades de fé não é tarefa da filosofia. A Religionstheorie habermasiana parece cumprir a tarefa de um autodistanciamento87, mas não afastamento da perspectiva secularista da Disckurstheorie,

explicando

como

surge

o

improvável

liame

entre

a

razão

destranscendentalizada e pragmática universal e o agnosticismo metodológico. A compreensão dialética da modernização social e cultural e as respostas aos dilemas dos processos de integração e estabilização social, no que concerne a tensão política entre cidadãos crentes e cidadãos não-crentes, residem na “[...] reflexivização da consciência religiosa, como também [n]a superação auto-reflexiva de enfoques epistêmicos”88 enquanto processos de aprendizagem social (soziale Lernprozess), o que implica, por sua vez, em “[...] uma consciência crítica acerca da posição não exclusiva que ela assume [a fé moderna] no nível de um discurso, que é limitado pelo saber profano e compartilhado com outras religiões”89. A Religionstheorie de Habermas articula uma teoria da evolução social e seus processos de aprendizagem a uma teoria política normativa com perfil inclusivista forte, capaz de fortalecer o processo democrático na medida em que sãos os próprios cidadãos os únicos responsáveis pela resolução das seguintes questões: Será que uma fé “modernizada” continua sendo fé “verdadeira”? E será que, de outro lado, um secularismo fundamentado à maneira cientificista não tem, no final das contas, melhores razões do que o conceito compreensivo de razão, delineado pelo pensamento pósmetafísico?90

CONSIDERAÇÕES FINAIS O fato do pluralismo (Tatsache des Pluralismus), cuja relevância foi observada por Rawls em seu Liberalismo Político, demarca a controvérsia, senão a impossibilidade quanto a questões de política, no contexto das sociedades pós-seculares, serem resolvidas 87

Cf. ARAUJO, Pluralismo e Justiça, p. 185. HABERMAS, Entre Naturalismo e Religião, p. 164. 89 HABERMAS, Era das transições, p. 201. 90 HABERMAS, Entre Naturalismo e Religião, p. 164. 88

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recorrendo-se tão somente ao uso público da razão. Considerando a mentalidade dos cidadãos crentes e não-crentes, o uso público da razão requer certas pressuposições cognitivas nem sempre disponíveis, de modo a comprometer a disposição para a cooperação social entre os dois grupos de cidadãos. Fundamentalistas e secularistas polarizam formas de vida por vezes incompatíveis com a neutralidade do poder do Estado (Neutralität der Staatsgewalt), embora as fontes dos conteúdos morais dessas formas de vida sejam prépolíticas. Assim, segundo Habermas, “[...] a integração política é ameaçada a partir do momento em que um número demasiado elevado de cidadãos não conseguem atingir os standards do uso público da razão”91. Todavia, se os discursos públicos (öffentliche Reden) produzidos por cidadãos crentes e não-crentes aparentemente apontam para déficits de aprendizagem – em razão da tensão natural entre seus discursos – é também através dos discursos públicos que os próprios cidadãos descobrem os limites de suas mentalidades à luz do uso público da razão. De acordo com Habermas, [...] o Estado liberal só pode confrontar seus cidadãos com deveres que eles mesmos podem aceitar apoiados numa “compreensão perspicaz” (aus Einsicht)– e tal compreensão pressupõe que os enfoques epistêmicos necessários podem ser obtidos por meio de compreensão perspicaz, o que implica, por conseguinte, a possibilidade de serem “apreendidos”.92

Quando proposições com forte teor naturalista e proposições existenciais religiosas avançam para além das suas respectivas fronteiras pode-se esperar um conflito entre a esfera secular e a esfera religiosa. Mas na medida em que o debate público procura revelar tanto as premissas da superação auto-reflexiva da consciência secularista quanto o autoesclarecimento da fé religiosa, transformando um aparente déficit de aprendizagem em uma oportunidade para a efetivação de um processo de aprendizagem complementar (komplementärer Lernprozess), a genealogia da autocompreensão moderna revela que uma descrição empírica do fenômeno religioso e o naturalismo93 não são capazes de determinar performativamente a medida da verdade e do erro, e que não se pode excluir da história da razão o conteúdo das religiões mundiais94. O problema do papel da religião na democracia liberal permanece em aberto, mas os cidadãos religiosos e seculares devem procurar “[...] saber interpretar, cada um na sua 91

HABERMAS, Entre Naturalismo e Religião, p. 163. HABERMAS, Entre Naturalismo e Religião, p. 165, grifo do autor. 93 Cf. OLIVEIRA, Habemus Habermas: o universalismo ético entre o naturalismo e a religião, p. 235. 94 Cf. HABERMAS, Entre Naturalismo e Religião, p. 166-167. 92

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respectiva visão, a relação entre fé e saber, porquanto tal interpretação prévia lhes abre a possibilidade de uma atitude auto-reflexiva e esclarecida na esfera pública política”95, de modo a constituir um procedimento político capaz de articular reconhecimento (Anerkennung) e tolerância (Toleranz).

REFERÊNCIAS ARAUJO, Luiz Bernardo Leite. Religião e Modernidade em Habermas. São Paulo: Loyola, 1996. ______. A ideia rawlsiana da razão pública como tréplica à crítica habermasiana. In: OLIVEIRA, Nythamar de; SOUZA, Draiton Gonzaga de (Orgs.). Justiça global e democracia: homenagem a John Rawls. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009, p. 353-367. ______. Pluralismo e Justiça: estudos sobre Habermas. São Paulo: Loyola, 2010. ______. John Rawls e a visão inclusiva da razão pública. Dissertatio, Pelotas, n. 34, 2011, p. 91-105. FREIRE, Wescley Fernandes Araujo. A Política nos limites da Espiritualidade e da Secularização: o debate Habermas-Ratzinger-Rorty sobre os fundamentos do Estado de direito democrático liberal. In: BAVARESCO, Agemir; OLIVEIRA, Nythamar; KONZEN, Paulo Roberto. Justiça, Direito e Ética Aplicada: VI Simpósio Internacional sobre a Justiça. Porto Alegre: Editora FI, 2013, p. 393-415. HABERMAS, Jürgen. Passado como Futuro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993. ______. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. São Paulo: Martins Fontes, 2000. ______. Era das transições. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. ______. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. Vol. I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. ______. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. Vol. II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. ______.; RATZINGER, Joseph. Dialética da Secularização: sobre razão e religião. 3. ed. São Paulo: Ideias & Letras, 2007. ______. Entre Naturalismo e Religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007. ______. O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal? 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. ______. Teoria do Agir Comunicativo: racionalidade da ação e racionalização social. Vol. I. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. ______. Fé e Saber. São Paulo: UNESP, 2013. HARRINGTON, Austin. Habermas and the “Post-Secular Society”. European Journal of Social Theory, 10 (2007): p. 543-560. 95

HABERMAS, Entre Naturalismo e Religião, p. 167.

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Theoria -Revista Eletrônica de Filosofia Faculdade Católica de Pouso Alegre OLIVEIRA, Nythamar de. Habemus Habermas: o universalismo ético entre o Naturalismo e a Religião. Veritas, Porto Alegre, n. 1, vol. 54, 2009, p. 217-237. RAWLS, John. O Liberalismo Político. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000. ______. O Direito dos Povos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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A COMPREENSÃO DO HORIZONTE TRANSCENDENTAL DO PROBLEMA DO FUNDAMENTO EM HEIDEGGER

UNDERSTANDING THE TRANSCENDENTAL HORIZON OF THE PROBLEM OF GROUND IN HEIDEGGER

Victor Hugo de Oliveira Marques1 RESUMO: O presente artigo procura articular tanto a mudança do pensamento de Heidegger depois de Ser e Tempo com a tematização do fundamento, qual seja, a caracterização do conceito de transcendência, enquanto estrutura fundamental do Dasein, no lugar do cuidado; quanto compreender em que sentido Heidegger descreve o fenômeno da transcendência, na medida em que ela é o recinto do problema do fundamento, atribuindo-lhe um horizonte transcendental. Para tanto, é necessário reconstruir o caminho que Heidegger percorreu na tematização do fundamento, a partir de suas duas obras do final da década de vinte - Os fundamentos metafísicos da Lógica nos escritos de Leibniz e Da essência do fundamento –, e seu esforço de delinear uma noção transcendental para o fundamento. Palavras-chave: Heidegger; Transcendental; Fundamento. ABSTRACT: This article tries to articulate both the change of the Heidegger’s thought after Being and Time with the issue of ground i.e. the care to give rise to the characterization of concept of transcendence like Dasein’s fundamental structure; and to understand in that sense Heidegger describes the phenomenon of transcendence to the extent that it’s the enclosure of the problem of ground, assigning it a transcendental horizon. To the end, it is necessary to reconstruct the way that Heidegger has done to deal with ground from your two works of the end of the twenty decade - The metaphysical foundations of logic in the Leibniz’s writings and On the essence of ground – and your effort of to outline a transcendental concept to the ground. Keywords: Heidegger; Transcendental; Ground.

Considerações Iniciais A discussão sobre o fundamento no pensamento de Heidegger, o que não é estranho, encontra-se no interior da dimensão da questão do sentido do ser enquanto tal. Essa exigência do filósofo o obriga a manter sua tese da diferença ontológica, diferença esta pressuposta na constituição da ontologia fundamental exposta em Ser e Tempo, mas não explicitada em sua 1

Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás. Professor da Universidade Católica Dom Bosco (Campo Grande-MS). E-mail: vicgo@bol.com.br. Artigo recebido em 25/05/2014 e aprovado para publicação em 01/07/2014.

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possibilidade. Intentando uma adequada compreensão fenomenológica da diferença ontológica, as duas obras de Heidegger do final dos anos vinte, a saber: Os fundamentos metafísicos da Lógica nos escritos de Leibniz (GA 26) e Da essência do fundamento (GA 09), onde está em jogo a temática do fundamento (Grund), apontam para a discussão da Transcendência do Dasein. Segundo o filósofo, somente a partir desta discussão em específico – da transcendência – entende-se em que base está calcada a referida diferença e de que modo esta diferença possibilita a condição ontológica do fundamento. Diferentemente de Ser e Tempo (1927), a noção de cuidado (Sorge) desenvolvida por Heidegger – fenômeno unificador e o todo aglutinador das possibilidades do Dasein – após esse tratado, passa a ser compreendida no interior da discussão sobre o fundamento (1928/29) tendo por base o tema da Transcendência (die Transzendenz). O cuidado, explica Heidegger no § 41 de Ser e Tempo, é o modo de ser do Dasein que o determina enquanto aquilo que ele ainda pode ser de modo mais próprio, uma espécie de antecipação (vorweg) de si mesmo nas diversas possibilidades existenciais. Esse poder-ser mais-próprio (eigensten SeinKönnen) do Dasein mostra ainda que ele já está sempre além-de-si-mesmo (über sich hinaus) e se constitui como abertura ao mundo, é seu modo jogado ou lançado entregue à sua responsabilidade. Com efeito, na elaboração do projeto denominado Metafísica do Dasein – projeto esse subsequente ao tratado de 1927 – Heidegger passa a investigar sobre o problema da fundamentação e na preleção de 1928, publicada com o título Os fundamentos metafísicos da Lógica nos escritos de Leibniz, bem como no tratado de 1929, intitulado Da essência do fundamento, a noção de cuidado já não mais aparece como essa antecipação do Dasein. No lugar dela, Heidegger amplia a compreensão do projetar do Dasein indicando uma acepção mais fundamental: a da transcendência (Transzendenz). Comenta Jaran (2010, p.210) que: Esta redefinição da essência do Dasein do cuidado para a transcendência não constitui per se uma refutação das teses de Ser e Tempo, mas indica ainda que a constituição do Dasein agora tem que ser considerada a partir de uma perspectiva do ultrapassamento – na qual a expressão meta-física perfeitamente descreve – o que o vocabulário ontológico provavelmente não reconheceu.

Enquanto o cuidado funcionava como um fenômeno “antecipativo” do próprio simesmo do Dasein, a transcendência já é o ultrapassamento (überstieg) em direção ao simesmo. Nada deve antecipar o si-mesmo a não ser o próprio direcionar-se para ele. Esse Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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“ultrapassar a si mesmo” intrínseco ao Dasein, enquanto desvelamento de sua ispeidade, o simesmo, lança-o nas possibilidades de seu próprio poder-ser. Além disso, o ultrapassar lança as bases da própria diferença ontológica instaurada pelo Dasein, pois ultrapassado a si mesmo como ente, o Dasein abre-se para o si-mesmo como modo de ser. Essa tematização da transcendência, efetuada em substituição da noção de cuidado, é para Heidegger o horizonte transcendental de compreensão do fenômeno do fundamento em sua essência2, haja vista que: “esclarecer o problema da transcendência significa então esclarecer o próprio problema do fundamento, pois aquela é o âmbito em que pode ser colhido o problema do fundamento” (PAIVA, 1998, p.109). A partir dessas considerações, o caminho a ser percorrido neste artigo será, primeiramente, o aclaramento fenomenológico do termo transcendência em contraposição aos significados na filosofia, para, em seguida, reconhecer o sentido transcendental da acepção de transcendência na constituição de uma ontologia transcendental.

Caracterização fenomenológica da transcendência

O termo Transcendência, é claro, não é próprio de Heidegger. Entretanto, sua apropriação lhe garante um sentido próprio. Na preleção Os fundamentos metafísicos da lógica, Heidegger apresenta a transcendência sob dois sentidos: um verbal e outro filosófico. O sentido verbal, que remete a sua etimologia latina (transcendere), tem o mesmo sentido platônico de ir além de.3 (HEIDEGGER, 1992, p.160). No segundo, o filosófico, ele distingue duas interpretações: uma epistemológica e outra teológica. O sentido epistemológico de transcendência é aquele que tem por oposto o conceito de imanência, na medida em que por imanência se entende: “o que permanece dentro, a qual se designa aquilo que está no sujeito, dentro da alma, permanecendo na consciência”. (HEIDEGGER, 1992, p. 160). Com efeito, o transcendente seria aquilo que está fora da consciência. 2

Essa afirmação, com caráter de exclusividade, a saber: somente a partir da transcendência se evidencia a diferença ontológica, só é válida para os textos que permeiam Ser e Tempo até meados de 1930, pois, após a Kehre, a diferença ontológica não mais está necessariamente vinculada com a transcendência do Dasein. (DUBOIS, 2004, p. 88). 3 “Confessa também que as coisas inteligíveis não devem apenas ao bem sua inteligibilidade, mas devem-lhe ainda o ser e a essência, conquanto o bem não seja de forma nenhuma a essência, mas esteja muito acima desta em dignidade e em poder” (PLATÃO, Rep., VI, 509 b, grifo nosso).

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Por outro lado, a transcendência também pode assumir um sentido teológico quando ela implica uma oposição à contingência: “O transcendente, ao contrário, é o que está além de tudo, enquanto aquilo que o condiciona, como incondicionado, mas ao mesmo tempo como a realidade inexequível, que nos excede [Überschwängliche]” (HEIDEGGER, 1992, p.161). Esse sentido teológico da transcendência expressa ainda uma gradação tal nos entes que justificaria a diferença entre o ente condicionado e o ente incondicionado, assumida pelo cristianismo com a finalidade de demonstrar a distinção entre criatura e criador, reservando, exclusivamente, ao totalmente transcendente o papel da divindade cristã, o Deus criador. Efetivamente, prossegue o filósofo, o sentido epistemológico de transcendência não se opõe ao teológico, pelo contrário, possui um sentido comum: “o transcendente, neste duplo sentido, é o Eminente, o ser que ultrapassa e excede toda a experiência” (HEIDEGGER, 1992, p.162). No entanto, essa implicação mútua entre o sentido epistemológico e teológico de transcendência marcou decisivamente todo o pensamento metafísico, justamente pelo modo como ela foi introduzida na própria filosofia. Segundo Heidegger na preleção de 1928, a noção platônica das ideias – uma das referências mais antigas da transcendência – além de determinar o modo de ser dos entes como “ideia intuída”, ao mesmo tempo, reforçou um tipo particular de compreensão dos entes, a saber, a “intuição” (Anschauung). Neste caso, toda intuição de ideias pressupõe um espírito que as intui, que, no modo platônico de compreender o ser dos entes, enquanto ideias intuídas por algum tipo de espírito que as intui, resulta apenas num modo de reduplicar os entes, sem determiná-lo em seu ser como já havia criticado Aristóteles4. Assim, Heidegger nota que a relação entre transcendência e doutrina das ideias conduziu a compreensão do ser dos entes a partir do movimento do olhar (contemplar, intuir), i. é, a transcendência foi compreendida como relação entre intuição e intuído, de modo que todo ente intuído está sempre posto para além de qualquer intuição. Essa compreensão de transcendência, de certo modo, preparou o terreno para as relações epistemológicas entre sujeito e objeto da modernidade: “isso é preparado já na antiguidade e depois levado para a relação epistemológica de sujeito e objeto, de modo a orientar o problema da transcendência” 4

Afirma Heidegger (1992, p.182-183): “O olhar para o qual tudo converge tem por seu correlato uma definida totalmente parcial concepção de ser. Na idéa, theoria, intuitus, intuição essencial, o recurso é ter uma consciência que olha, um recurso tão incapaz de resolver o problema da transcendência que nem mesmo é capaz de ver o fenômeno da transcendência. [...] Enquanto o ser for atribuído às ideias em si mesmas, elas serão apenas uma reduplicação dos entes, como disse Aristóteles”.

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(HEIDEGGER, 1992, p.183). Logo, a questão central levantada por Heidegger, que marca a história do sentido da transcendência, é que ela, nesses termos, admite um dentro de nós e um fora de nós. Especificadamente, o problema surge de modo a pôr em questão a possibilidade da ultrapassagem do sujeito que intui em direção ao objeto a ser intuído: Transcendência, então, é tomada para ser a relação que, de uma forma ou de outra, sustenta uma passagem entre o interior e o exterior da caixa: saltando ou pressionando o muro da caixa. Assim, o problema surge a partir do modo como se explica a possibilidade de tal passagem. Tentamos explicá-la [a transcendência] quer por causalidade, quer psicologicamente, quer filosoficamente; ou, de algum modo, convocamos a ajuda da intencionalidade; ou julgamos ser ela uma empreitada desesperançada e nos posicionamos dentro da caixa, tentando explicar de dentro dela como compreender o que entra em nossas ideias a partir do que é suposto ser fora. (HEIDEGGER, 1992, p.160-161).

Para resolver o problema instaurado pela transcendência, enquanto saída para fora do sujeito em direção ao objeto, Heidegger lança mão da noção de intencionalidade, tal como entende Husserl, a fim de ampliar o modo de compreensão da transcendência. Não obstante, a ruptura de Heidegger com Husserl ocorre, principalmente, quando este último apresenta a consciência e sua estrutura intencional como horizonte transcendental, o que significa que, para Heidegger, Husserl não estaria de todo errado quando propõe a intencionalidade. Seu erro, talvez, foi não tê-la tematizada a partir de uma originariedade tal que pudesse mostrá-la em sua essência, à luz da questão do sentido do ser, dissolvendo os pseudo-problemas engendrados pela epistemologia na relação entre sujeito e objeto. Husserl, portanto, haveria se equivocado no modo de compreender o âmbito transcendental.

Sentido heideggeriano da Transcendência: A Ontologia transcendental

Em Ser e Tempo, ao contrário de outros, a transcendência não é um conceito que aparece tematizado numa base originária5. Mesmo assim, suas breves aparições já indicam certo teor de importância para a constituição da ontologia fundamental. Já no início desse tratado, afirma Heidegger sobre a transcendência: 5

“É algo notável que a relevância do conceito de “transcendência” de Heidegger em sua ontologia fundamental só é encontrada mais completamente em suas preleções do que em Ser e Tempo. Transcendência pode ser o termo que Heidegger prefira como elemento estrutural chave da análise do Dasein neste livro, mas não entra nele até sua última exposição, no §69. Enquanto caracterização adequada do Dasein, ele é muito mais aquilo que conduz a longa tematização do que aquilo partir do qual deveria proceder toda exposição. Em resumo, a tradicional concepção de transcendência do mundo é embasada na fundamental transcendência do Dasein” (BRUZINA, 2007, p.133).

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Theoria -Revista Eletrônica de Filosofia Faculdade Católica de Pouso Alegre O ser é o transcendens pura e simplesmente. A transcendência do ser do Dasein é privilegiada porque nela reside a possibilidade e a necessidade da individuação mais radical. Toda e qualquer abertura do ser enquanto transcendens é conhecimento transcendental. A verdade fenomenológica (abertura do ser) é veritas transcendentalis (HEIDEGGER, 1988, p.69)

Nessa passagem, a própria acepção de ser é tomada enquanto transcendens, i. é, o que se deve entender por ser extrapola toda e qualquer noção ôntica que lhe pretenda determinar6. Ulteriormente, Heidegger, em uma nota marginal de seu exemplar de uso comumente chamada de “exemplar da cabana” (CASTILHO, 2012, p.35), explica sobre essa referência do ser ao transcendens: [...] decerto, transcendens – apesar de toda sua ressonância metafísica – não à maneira escolástica e greco-platônica do κοινόν, e sim transcendência como estática-temporalidade (Temporalität)-temporalidade (Zeitlichkeit); mas “horizonte”! O Ser [Seyn] “pôs um teto cobrindo” o ente [Seyendes]. Mas transcendência a partir da verdade do ser: o Ereignis [acontecer apropriante]. (HEIDEGGER, 2012, p.129).

Mesmo depois das mudanças ocorridas em seu pensamento, como se percebe pelo excerto acima, Heidegger mantém a idéia original de que o transcendens, não pertencendo à metafísica em geral, deve ser necessariamente reconduzido à questão da verdade do ser. A determinação ontológica da transcendência (reconduzida à luz da questão do sentido do ser) já antecipa o traço mais importante para a discussão do fundamento que será desenvolvida um ano depois em sua preleção sobre Lógica, a saber: “a possibilidade e a necessidade da individuação mais radical”7. Além do mais, a transcendência está vinculada à noção de abertura do Dasein. Este, enquanto ente que pergunta pelo sentido do ser e ao mesmo tempo é determinado por este mesmo sentido, estabelece uma relação consigo mesmo se colocando numa situação hermenêutica de abertura “para si mesmo em seu poder-ser mais próprio” (HEIDEGGER, 1988, p.290). Nesse sentido, a compreensão de seu ser leva o Dasein a transcender-se como abertura para si mesmo. No §69 de Ser e Tempo, Heidegger, que até então apenas pressupôs a função originária da transcendência em sua ontologia fundamental vinculando-a a este poder-ser originário da existência do Dasein, agora apresenta sua expressão efetiva:

6

Comenta Pasqua (1993, p.30): “O ser diz respeito a cada ente. E, por certo, se o ente não fosse, não estaria aqui para poder interrogar-se sobre o ser! Mas, o próprio ser não é um ente. Transcende-o: ‘O ser é o transcendens puro e simples’. Contudo, esta transcendência não é, para Heidegger, a do Ser soberano e independente dos entes e que é o nome de Deus na metafísica cristã. É a ‘transcendência’ de um ser envolvido nos entes e arrastado com eles no seu curso em direção a um ‘horizonte’ inacessível”. 7 Aqui, faz-se alusão à tematização da liberdade.

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Theoria -Revista Eletrônica de Filosofia Faculdade Católica de Pouso Alegre O mundo já está, por assim dizer, “muito mais fora” do que qualquer objeto pode estar. Por isto, o “problema da transcendência” não pode ser reduzido à questão de como um sujeito sai de dentro de si e chega a um objeto fora de si, em que se identifica o conjunto de objetos com a ideia de mundo. A questão é: Do ponto de vista ontológico, o que torna possível que o ente intramundano venha ao encontro e possa, enquanto aquilo que vem ao encontro, ser objetivado? A resposta se acha no retorno à transcendência do mundo, fundada de modo ekstático e horizontal (HEIDEGGER, 2000, p.168)

A transcendência, esta abertura originária do Dasein, aparece como o modo que se deve responder ao problema do mundo. É neste sentido que se deve compreender o que já havia sido dito na alínea “C” do §7 e não explicitado: “Toda e qualquer abertura do ser enquanto transcendens é conhecimento transcendental” (HEIDEGGER, 1988, p.69), já que um ano depois Heidegger escreveria: o “mundo é um conceito transcendental em sentido estreito” (HEIDEGGER, 1992, p.170). Dizendo de outra forma, Heidegger quer entender uma relação possível entre a noção de transcendência e a de mundo desenvolvida em Ser e Tempo, só que agora a partir da perspectiva transcendental, pois, segundo ele, transcender é remeterse ao mundo. Um ano depois de Ser e Tempo, a transcendência é posta como algo digno de tematização e condição sine qua non para a exposição da discussão do fundamento na preleção sobre Lógica de 1928 (Os fundamentos metafísicos da lógica). Subsequente a esse tratado, em Da essência do fundamento, o filósofo da Floresta Negra reafirma a importância da acepção da transcendência como “recinto em cujo interior se deverá confrontar o problema do fundamento” (HEIDEGGER, 2007, p.35), desde que aquela seja vista em sentido transcendental. Não obstante, Heidegger não deixa tão claro assim de que modo deve ser pensado o transcendental, apenas afirma que ele não corresponde totalmente à tradição da filosofia transcendental kantiana que alcançou Husserl, mas também não a nega por completo: Heidegger apresentou uma ‘fenomenologia da transcendência’ que deveria tornar-se, através de uma redefinição da transcendência, uma dura crítica à fenomenologia transcendental de Husserl bem como uma rejeição à interpretação neokantiana do conceito de conhecimento transcendental de Kant. (JARAN, 2010, 209).

Para compreender em que sentido Heidegger discute a transcendência e até que ponto esse conceito deve funcionar como horizonte de fundamentação, é necessário aclarar o próprio sentido do transcendental. No tratado Da essência do fundamento, uma assertiva de Heidegger talvez pudesse funcionar como uma definição de transcendental: “tudo o que faz essencialmente parte da transcendência e dela toma de empréstimo a sua possibilidade interna” (HEIDEGGER, 2007, p.41). Primariamente, o que se pode dizer da compreensão Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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heideggeriana do transcendental é que ela não possui o sentido gnosiológico nem como pensara o kantismo, nem como propôs Husserl, pois está articulada essencialmente à noção ontológica da transcendência: “Sem dúvida, o que significa ‘transcendental’ não pode ir buscar-se a uma filosofia a que se atribui o ‘transcendental’ como ‘ponto de vista’ e porventura gnosiológico” (HEIDEGGER, 2007, pp.41.43). Mesmo assim, o tratado de 1929 não descarta a importância de Kant para o esclarecimento do sentido originário do transcendental: “Isto não exclui a constatação de que justamente Kant reconheceu o ‘transcendental’ como um problema da possibilidade interna da ontologia em geral [...]” (HEIDEGGER, 2007, p.43), até porque: “A problemática ontológica tem tão pouco a ver com o ‘realismo’ que justamente Kant, na e com sua abordagem transcendental, pôde realizar o primeiro passo decisivo para uma expressa fundamentação da ontologia, desde Platão e Aristóteles” (HEIDEGGER, 2007, p.29). E finaliza: “Em Kant, ‘transcendental’ tem um significado equivalente ao ontológico, mas pertencendo à ontologia da ‘natureza’ no amplo sentido. Para nós, o termo tem um significado equivalente à ‘ontológico-fundamental’.” (HEIDEGGER, 1992, p.170). Que diferenças caracterizam a crítica de Heidegger à filosofia transcendental de modo a considerá-la como ontologia, e mais precisamente, o modo de ser da transcendência do Dasein para o mundo? Na leitura de Heidegger, Kant foi quem deu o primeiro passo para a constituição de uma ontologia a partir da reflexão transcendental8. Isto é possível na medida em que, consoante Heidegger, “a intenção filosófica fundamental da obra de Kant não consiste em mostrar a impossibilidade da metafísica, mas, inversamente, encontrar a base firme da sua possibilidade [...]” (BLANC, 1998, p. 287). Esse argumento mostra a crítica heideggeriana à interpretação epistemológica e anti-metafísica Neo-kantiana de Kant. O dito “primeiro passo”, a partir da revolução copernicana para a fundação da metafísica, foi o de levantar o problema da possibilidade do conhecimento ontológico, i. é, o conhecimento dos entes. Sendo assim, a preocupação kantiana não era estritamente metafísica, sendo esta entendida como pensava a tradição escolástica, senão “remontar as suas condições transcendentais de possibilidade” (BLANC, 1998, p.291). Nessas condições, o domínio a partir do qual se constitui a metafísica

8

“A obra Kant e o Problema da Metafísica é consagrada à elaboração da primeira etapa da retomação, ou seja, à explicitação do resultado autêntico da fundação kantiana da metafísica” (BLANC, 1998, p.289).

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é seu fundamento, i. é toda a reflexão transcendental kantiana diz respeito à instauração do fundamento da metafísica. Entretanto, prossegue Heidegger, este esforço kantiano de fundamentação prescindiu da pergunta pelo sentido do ser e de uma analítica da subjetividade (que Heidegger propõe a partir da analítica existencial), que o impediu de levar a cabo sua pretensão. Isto porque Kant manteve o primado cartesiano do cogito e submeteu a temporalidade à esfera da subjetividade (BLANC, 1998, p.276). Portanto, era preciso dar um segundo passo. Retomando a problemática kantiana da fundação da metafísica, Heidegger a conduz para uma esfera considerada por ele mais original, para o problema da compreensão do ser: “A retomação heideggeriana da fundação kantiana da metafísica constitui ultimamente uma retomação mais original do problema da compreensão do ser” (BLANC, 1998, p.290). Enquanto Kant se pergunta pelas condições de possibilidade do conhecimento dos entes, e, a esta pergunta, ele denomina transcendental, em Heidegger a transcendentalidade se apresenta recolocando a pergunta fundamental em termos mais originários, a saber, a condição de possibilidade do conhecimento do ser. A passagem da pergunta pelas condições de possibilidade de todo e qualquer conhecimento, o transcendental kantiano, para a pergunta pelas condições de possibilidade do conhecimento ontológico, enquanto analítica do Dasein, define o sentido do transcendental para Heidegger. De acordo com este pensador, as condições de possibilidade de todo e qualquer conhecimento ontológico, no qual se põe em questão o sentido do ser, deve ter por horizonte a analítica do Dasein. Deduz-se que Heidegger compreende a transcendentalidade como ontologia transcendental, ou também como ontologia fundamental9 que tem por ponto de partida a análise existencial do Dasein. Por isso, como comenta Blanc (1984, p.69), as relações entre transcendência e transcendental em Heidegger, predominam muito mais um sentido kantiano, que o husserliano: “O transcendental característico da razão kantiana tornase desta maneira a transcendência constitutiva do ser-aí [Dasein]” Por fim, pode-se compreender o horizonte de compreensão da transcendência no pensamento heideggeriano. A antiga tese do mundo transcendente, independente daquele que

9

“Não deixa, porém de ser significativo e determinante, para o destino do pensamento de Heidegger, que a ontologia fundamental tivesse sido originalmente concebida, a partir do modelo de uma filosofia transcendental, como uma analítica das estruturas ontológicas do homem” (BLANC, 1984, p.48).

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o compreende, seria um equívoco em nível epistemológico e demandaria uma determinação em níveis mais originários, o nível ontológico. A intuição husserliana da intencionalidade, para Heidegger, apenas se equivoca em atribuir à consciência este papel intencional, pois a intencionalidade mesma deve ser vista a partir da transcendência: “... até este ponto está determinado que a intencionalidade tem por base a transcendência...” (HEIDEGGER, 1992, p.168). A aparente dificuldade trazida pelo transcendente para a epistemologia, portanto, se diluiria quando a compreensão do ser que está envolvida em tal tese for tematizada, dando a devida primazia à ontologia. Com isso, Heidegger instaura sua filosofia como ontologia transcendental e remete o problema da relação entre subjetividade e constituição do mundo, o problema da transcendência, a uma compreensão do ser capaz de liberar o horizonte de compreensão da própria ontologia que, a seu ver, deve estar “doada previamente” (DUBOIS, 2004, p.76). Essa compreensão do ser a priori capaz de resolver o problema da transcendência é a mesma que constitui essencialmente o Dasein. Ser e Tempo, na tematização essencial do Dasein, atribuiu a este a constituição essencial de ser-no-mundo. Portanto, Heidegger conclui que há uma identificação entre transcendência e ser-no-mundo.

Transcendência e Ser-no-mundo

No tratado Da essência do fundamento, Heidegger declara que a transcendência tem o caráter geral de “ultrapassagem” (Überstieg) e, portanto, é um acontecer (Geschehen). No entender de Paiva (1998, p.111), a ultrapassagem é um “evento” (Ereignis) próprio de um ente. No que diz respeito ao ente, ela é formalmente estruturada como uma “relação que se estende de algo para algo” (HEIDEGGER, 2007, p. 37) e fazem parte dessa relação de ultrapassagem os seguintes momentos: a) o transcendente – aquele que exerce a ação de ultrapassar; b) o ultrapassado; e c) aquilo em direção ao qual se segue à ultrapassagem. Destarte, o sujeito ativo da ultrapassagem é o ente que, ao mesmo tempo, é o ultrapassado. Dito de outro modo, o ente ultrapassa-se a si mesmo. Diante dessa perspectiva, poderia se objetar: a ultrapassagem não seria, em seu movimento, uma compreensão contraditória? Para que não se caia nesta acusação, argumenta Silva (2008, p.27): Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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Theoria -Revista Eletrônica de Filosofia Faculdade Católica de Pouso Alegre Heidegger mostra que o movimento da transcendência não é uma propriedade do ente, no sentido em que ele possui a capacidade de transcender para algo, mas transcendência e ente transcendente existem num só movimento. Eles são co-existentes.

O acontecer próprio do ente, não é um constitutivo ontológico de qualquer ente, mas uma “constituição fundamental deste ente antes de todo o comportamento” (HEIDEGGER, 2007, p.37). Para que haja uma compreensão contraditória é necessário anteriormente já ter ocorrido a ultrapassagem. Portanto, não se pode utilizar aqui a noção de ‘sujeito puro’ que existe, em sentido idealista, antes do objeto, fazendo da transcendência uma relação entre sujeito e objeto, pois um ente de tal natureza só existe e só pode existir ultrapassado. Esse ente constituído pela transcendência é o Dasein. Heidegger, na preleção de 1928, faz notar que o Dasein satisfaz essa exigência na medida em que ele não tem a opção de transcender ou não, como se o ultrapassamento dependesse de uma vontade sua. Pelo contrário, existir já é ultrapassar: “[...] Dasein não é um tipo de existência, e então, ocasionalmente alcança um ultrapassamento para fora de si, mas a existência, originariamente, significa ultrapassar” (HEIDEGGER, 1992, p.165). Desse modo, a transcendência não poderá ser tomada como contemplação puramente teórica de objetos já existentes, sobre os quais o Dasein, tomando-os como alvo da sua intuição neles viesse a projectar a inteligibilidade do ser. Ela assume, na medida em que é constituição ontológica fundamental de todo comportamento do Dasein, não mais um caráter epistemológico de compreensão cognitiva dos entes, mas “possibilita algo como a existência em geral e, por conseguinte, também um mover-se no espaço” (HEIDEGGER, 2007, p.37). Nem mesmo a transcendência deve mais ser pensada como “uma lacuna ou barreira ‘entre’ ele mesmo [Dasein] e os objetos” (HEIDEGGER, 1992, p.166), já que o Dasein não é um sujeito “em si” que se põe diante de um abismo frente ao objeto. O Dasein é já um ultrapassado, que quer dizer “ek-stático”, um “estar-fora-de-si” (PAIVA, 1998, p.112) junto aos entes. A ultrapassagem do ente, portanto, é “um ato de revelação do ser do ente que ele próprio é” (SILVA, 2008, p. 28). É, portanto, na ultrapassagem dos entes pelo Dasein que os entes podem tornar-se objetos, pois o Dasein ultrapassa os entes no sentido de tornar compreensível o ser dos entes. Enquanto transcendente, o Dasein, por mais que seja lançado em meio aos entes, ele está além dos mesmos, pois é o único que consegue existir enquanto ultrapassamento:

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Theoria -Revista Eletrônica de Filosofia Faculdade Católica de Pouso Alegre Dasein está completamente lançado, de modo fático, entre a natureza mediante sua corporeidade e a transcendência reside no fato de que estes entes junto a qual o Dasein está e para o qual o Dasein pertence, são ultrapassados pelo Dasein. Em outras palavras, enquanto transcendente, o Dasein está além da natureza, embora, enquanto fático, ele permanece envolvido pela natureza (HEIDEGGER, 1992, p.166).

Com isso, Heidegger compreende que o problema central da teoria do conhecimento é na verdade um problema ontológico de manifestação dos entes no mundo e não deve ser respondido numa relação sujeito e objeto, mas no interior de uma ontologia que explique a própria possibilidade de se pensar tal problema: Sem dúvida, num primeiro momento, a caracterização da transcendência como estrutura fundamental da ‘subjectividade’ de pouco nos servirá para a exploração da constituição do estar-aí (Dasein). Pelo contrário, uma vez que agora nos está proibido introduzir um conceito de sujeito explícita ou implicitamente, a transcendência também não pode determinar-se como ‘relação sujeito-objeto’. Além disso, porém, o estar-aí transcendente (uma expressão já tautológica) não ultrapassa nem uma ‘barreira’ posta diante do sujeito e forçando-o primeiro a permanecer em si (imanência), nem um ‘precipício’, que o separa do objecto (HEIDEGGER, 2007, p.39).

A transcendência não é uma ultrapassagem onde se sai de um ente e se chega a outro ente, como se pressupõe nas relações epistemológicas (o sujeito sai de si e alcança o objeto). Os entes objetivados não constituem o algo que se alcança com a ultrapassagem. Acontece o inverso, eles são aquilo que, no ultrapassamento, será ultrapassado como entes não compreendidos em seu ser. Assim, o ultrapassamento não é propriamente uma saída, como se o Dasein abandonasse a si mesmo para ir de encontro a algo totalmente outro, senão é um “direcionar-se para”. Este “direcionar-se para” permite que o Dasein emerja de sua condição ôntica, transcenda-se necessariamente, e situe-se no seu si mesmo: Os entes ultrapassados na transcendência não são, contudo, apenas aqueles que o Dasein não é. Na transcendência, o Dasein ultrapassa a si mesmo como um ente; mais exatamente, esta ultrapassagem torna possível que o Dasein possa ser algo como ele mesmo (HEIDEGGER, 1992, p.182).

O Dasein como transcendente (que permanece na ultrapassagem) ultrapassa a si mesmo como ente e direciona-se para si-mesmo (selbst)10. Isso quer dizer que a ultrapassagem é “uma transcendência a partir da qual é possível ao Dasein voltar-se de modo mais próprio às coisas, ao ser-com e a si mesmo” (PAIVA, 1998, p.111). Nessa perspectiva, a transcendência,

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Silva (2008, p.28) comenta sobre a alusão da ipseidade na transcendência: “A referência a si mesmo (Selbst) evocada por Heidegger constitui uma espécie de recusa a um certo psicologismo, bem como ao binômio essência-existência que marcou a tradição metafísica. Tratava-se, para esta, de saber quem existia antes. Uma espécie de essência do sujeito, ou um sujeito em si não é mais possível de se entender na metafísica fundacional inaugurada por Heidegger. Sujeito, doravante, só existe no e com o mundo. Desde sempre, para Heidegger, sujeito e mundo são elementos indissociáveis no plano da existência e do conhecimento”.

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diz Heidegger, “constitui a ipseidade (Selbstheit)”, pois ela revela o que o Dasein é enquanto si-mesmo e, ao mesmo tempo, aquilo que ele não é, já que é a abertura do horizonte de compreensão ontológica na qual o ente é ultrapassado para ser desvelado em seu ser. Na ultrapassagem se dá a diferença ontológica (HEIDEGGER, 2007, p.31), pois, na “ultrapassagem de si mesmo, o Abismo (Abgrund) é aberto, no qual o Dasein, em cada caso, é para si mesmo” (HEIDEGGER, 1992, p.182). É na ultrapassagem, enquanto transcendência do Dasein para si mesmo, que se abre o abismo da diferença entre ser e ente: “Este diferenciar, a ascensão do ente para o ser, designa Heidegger por ‘transcendência’” (PÖGGELER, s.d., p.93). Entre ser e ente, portanto, não há nada e ao mesmo tempo um abismo os separa. Esse, portanto, é o paradoxo da ontologia heideggeriana, o motor de sua filosofia. De modo mais claro, o “ente privilegiado” ao perguntar por si mesmo em seu ser11, se coloca em condição hermenêutica de ultrapassagem, i. é, se abre para compreender o ser, uma vez que um sentido já se manifestou mediante a pré-compreensão que o Dasein possui dele. Essa abertura (movimento de resposta e não de causa) ocorrida no ente que se pergunta pelo seu ser, além de estabelecer o horizonte fenomenal onde os entes são referenciados em seu ser, revela o modo de ser do Dasein e é caracterizada pela terminologia heideggeriana de transcendência ou ultrapassagem. Logo, o Dasein constitui o primeiro pólo de compreensão da transcendência, é o ponto de partida da ultrapassagem. A transcendência, na medida que constitui o ultrapassamento dos entes pelo Dasein, o faz em direção a si mesmo. De acordo com Heidegger, o “direcionar-se para” constituinte do ultrapassamento chama-se mundo12 (HEIDEGGER, 1992, p.166), ou seja, “a ultrapassagem acontece dentro de um espaço onde o ente revela sempre o ser. A esse espaço podemos

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“Elaborar a questão do ser significa, portanto, tornar transparente um ente – o que questiona – em seu ser.” (HEIDEGGER, 1988, p.33). 12 O problema do mundo em Heidegger, em si mesmo, é uma temática própria que demanda maiores delongas. Neste sentido, a problematização da acepção heideggeriana de mundo se faz desnecessária, ainda que para este artigo ela esteja pressuposta. O que se pode dizer do mundo em relação à transcendência é que esta relação deve ser compreendida em nível transcendental, i. é, deve se referir às condições de possibilidade da própria compreensão ontológica. Neste sentido, o mundo deixa de ser pensado como a somatória ou encadeamento empírico dos entes e passa a constituir a possibilidade mesma de totalidade. Essa possibilidade de constituição da totalidade se dá apenas com o Dasein em seu transcender. Do mesmo modo que o Dasein se abre para totalidade do mundo ele o faz situado no mesmo, revelando seu modo próprio de ser “no-mundo”. O mundo, portanto, muito mais que algum ente é a possibilidade de revelação das relações ontológicas dos entes, ou seja, é aquilo a partir do qual o Dasein anuncia não só os existentes com os quais pode entrar em relação, mas ainda como é que essas relações podem ser formadas.

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chamar mundo” (SILVA, 2008, p.28). Ou ainda, “transcender expressa um horizonte em direção ao qual se transcende” (PAIVA, 1998, p.111), esse horizonte “não se realiza e não se exaure no ente particular, mas na totalidade” (PAIVA, 1998, p.111), no mundo. De certo modo, Heidegger oferece com a transcendência a garantia do próprio sentido de unidade dos fenômenos enquanto constituição de mundo; quer dizer, a transcendência confere sentido para aquilo que deve ser compreendido por mundo, a transcendência do Dasein se verifica no sentido do próprio mundo, considerando este como unidade e totalidade. Essa argumentação permite dizer que o ente (Dasein) que ultrapassa a si mesmo em direção ao si-mesmo (ipseidade) constitui esta possibilidade na medida em que confere sentido a um espaço fenomenal denominado mundo, no qual o Dasein, como transcendente, compreende-se e situa-se no que é mais próprio de si mesmo, a saber, como ser-no-mundo. Logo, o mundo é o segundo pólo de compreensão da transcendência, na medida em que é a abertura intencional do Dasein que o remete ao seu si-mesmo, o ser-no-mundo. A compreensão do homem como um ser-no-mundo, desde Ser e Tempo, ainda que possuidor de espacialidade, não se restringe a um estado de fato, mas “o mundo se põe com o Dasein enquanto este é capaz de conferir um modo de ser à totalidade do ente” (PAIVA, 1998, p.114).

Considerações Finais

A importância da transcendência para a constituição fundamental do Dasein enquanto ser-no-mundo se dá justamente na medida em que o “direcionar-se” do ultrapassamento é o próprio mundo, pois na abertura do Dasein para seu ser este se constitui existencialmente como ser-no-mundo. Se a meta do ente no movimento da transcendência é o Dasein enquanto ser-no-mundo, não há possibilidades de transcender fora de uma abertura de mundo, sem estabelecer as relações possíveis consigo e com os entes. Por isso, Heidegger compreende que a tematização do mundo não é simplesmente uma constituição a posteriori oriunda da transcendência, senão que é tão originário quanto o ultrapassamento, pois, “o mundo constitui a estrutura unitária da transcendência” (HEIDEGGER, 2007, p.41). Há, desse modo, uma circularidade entre a transcendência e o mundo, sendo ambos considerados transcendentais, Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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como continua o filósofo, “enquanto pertencente a tal estrutura [da transcendência], o conceito de mundo chama-se transcendental” (HEIDEGGER, 2007, p.41). O mundo é transcendental já que sua compreensão se dá a partir do movimento da transcendência, ou seja, ele pertence à constituição essencial do Dasein que é compreendido mediante a analítica existencial que por sua vez é o mesmo que ontologia transcendental. Contudo, para Heidegger, a explicitação da transcendência enquanto ser-no-mundo em âmbito transcendental não só procura resolver os problemas entre subjetividade e objetividade, mas ainda possui um segundo sentido que, para este estudo, é impreterivelmente essencial. O interesse de Heidegger com a clarificação do sentido da transcendência está justamente no fato de que tal temática remete ao que Blanc (1998, p.295) denomina de “domínio de origem”, i. é, a dimensão que assegura originalmente o acesso ao ser, e por isso mesmo, instaura a compreensão do fundamento. A temática da transcendência em termos transcendentais conduziu a discussão para os fundamentos da metafísica, enquanto condição de possibilidade do conhecimento do ser. Mas não é só a possibilidade da fundamentação da metafísica, a partir da tematização do ser, que alcança o fenômeno do próprio fundamento em geral, pois, como diz Heidegger, “o fundamento pertence ao ser”. Nesse sentido é que se compreende que a transcendência é o recinto para a compreensão do fundamento, é o “domínio de origem” no qual é possível compreender a própria constituição da fundamentação. E “nesta relação se encontra o domínio da liberdade” (PAIVA, 1998, p.106).

Referências Bibliográficas BLANC, M. F. O fundamento em Heidegger. Lisboa: Piaget, 1984. ______. Estudos sobre o ser. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998, v.1. BRUZINA, R. Edmund Husserl and Eugen Fink: beginnings and ends in phenomenology, 1928–1938. New Haven: Yale University Press, 2004. CASTILHO, F. “Nota explicativa”. In: HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Edição em alemão e português. Trad. Fausto Castilho. Campinas: Unicamp; Petrópolis: Vozes, 2012. DUBOIS, C. Heidegger: introdução a uma leitura. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. HEIDEGGER, M. The metaphysical foundations of logic. Trad. Michael Heim. Bloomington. Indiana: University Press, 1992. Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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______. Ser e Tempo. 2 ed., Trad. Márcia de Sá Cavalcanti Schuback, Petrópolis: Vozes, 2. ed, 1988, parte I. ______. Ser e Tempo. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback, Petrópolis: Vozes, 7. Ed. 2000, parte II. ______. Ser e Tempo. Edição em alemão e português. Trad. Fausto Castilho. Campinas: Unicamp; Petrópolis: Vozes, 2012. ______. A essência do Fundamento. Edição bilíngüe. Lisboa: Edições 70, 2007. JARAN, F. “Toward a Metaphysical Freedom: Heidegger’s Project of a Metaphysics of Dasein”. International Journal of Philosophical Studies. Routledge, 18 (2), 2010, pp. 205227. PAIVA, M. A. A liberdade como horizonte da verdade segundo Heidegger. Roma: Gregorian University Press, 1998. PASQUA, H. Introdução à leitura do Ser e Tempo de Martin Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 1993. PLATÃO. A república. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1965. v.2. PÖGGELER, O. A via do pensamento de Martin Heidegger. Trad. Jorge Telles de Meneses. Lisboa: Piaget, s.d. SILVA, B. L. “A questão de mundo como problema em Heidegger”. Cadernos UFS FILOSOFIA, 6 (5), 2008, pp. 21-32.

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SCHOPENHAUER E A REFUTAÇÃO DO LIVRE-ARBÍTRIO A PARTIR DO PRINCÍPIO DE RAZÃO SUFICIENTE SCHOPENHAUER AND THE REFUTATION OF THE FREEWILL FROM PRINCIPLE OF SUFFICIENT REASON

André Henrique Mendes Viana de Oliveira1

RESUMO: O objetivo deste artigo é discutir a tese de Schopenhauer acerca do problema livre arbítrio. Em um primeiro momento apresentamos a refutação elaborada pelo filósofo a partir do princípio de razão suficiente e em seguida analisamos em que medida o livre arbítrio diz respeito não às ações humanas, mas à vontade humana, traçando uma relação entre esta e o que Schopenhauer chama de “caráter inteligível”. Palavras-chave: Caráter inteligível; Motivo; Princípio de razão suficiente.

ABSTRACT: The aim of this paper is to discuss Schopenhauer’s thesis about freewill problem. At first we show the refutation elaborated by the philosopher based on the principle of sufficient reason, and then we analyze how freewill belongs not to human actions but human will, tracing a relationship between will and what Schopenhauer calls “intelligible character.” Key-words: Intelligible character; Motif, Principle of sufficient reason.

Reconhecemos, sem grandes controvérsias, que a fundamentação filosófica da liberdade constitui uma premissa essencial a qualquer teoria de natureza ética. Podemos notar isto claramente ao levarmos em conta que o livre-arbítrio, ou, na terminologia schopenhaueriana, a liberdade moral, tem sido teorizada desde as origens do pensamento ocidental. Apesar de sua ligação imediata com a Ética, quando tomamos como ponto de partida a filosofia de Schopenhauer, a noção de liberdade também nos remete a uma profunda investigação epistemológica, da qual poderemos considerar também implicações metafísicas. A importância do conceito de liberdade no âmbito da discussão epistemológica nasce de sua intrínseca ligação com a noção de “necessidade”. Tal ligação se encontra expressa em vários 1

Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Piauí. Professor de Filosofia do Instituto Federal do Piauí. Email: androdem@yahoo.com.br. Artigo recebido em 07/05/2014 e aprovado para publicação em 24/07/2014.

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textos de Schopenhauer, dentre eles principalmente no ensaio Sobre a liberdade da Vontade (Über die Freiheit des Willens). Na referida obra, Schopenhauer afirma claramente que a liberdade consiste na simples ausência de toda e qualquer necessidade2. A partir dessa definição podemos perceber que o filósofo reconhece no conceito de liberdade um caráter negativo, ou seja, liberdade é ausência de algo, neste caso de “toda e qualquer necessidade”. Disto podemos concluir que o conceito de necessidade é o conceito positivo. Nesse sentido é que afirma Schopenhauer: “O que é preciso então estudar, sem mais demoras, é o conceito de necessidade, enquanto conceito positivo indispensável para determinar o significado do conceito negativo de liberdade”. 3 Ao que parece, a definição de Schopenhauer permite-nos afirmar que o que empresta, ou determina o significado do conceito de liberdade é a noção de necessidade. Assim, para encontrarmos um ato livre deveremos caracterizá-lo como não submetido a qualquer ordem de necessidade. Para tanto, precisamos definir primeiramente em que consiste a necessidade. No ensaio Sobre a liberdade da Vontade4 encontramos uma incisiva definição de Schopenhauer sobre o conceito de necessidade: “Entende-se por necessário tudo o que resulta de uma razão suficiente dada”.5 Não podemos, todavia, ater-nos somente a esta definição, uma vez que ela mesma nos remete ao princípio de razão suficiente, princípio este que foi analisado a fundo por Schopenhauer em sua tese de doutorado intitulada Da raiz quádrupla do princípio de razão suficiente. Nessa obra Schopenhauer defende a ideia de que o princípio de razão suficiente (segundo o qual para tudo o que existe há uma dada razão suficiente) possui quatro raízes, a saber: a raiz do devir; a raiz do conhecer; a raiz do ser; e a raiz do agir. Cada uma dessas raízes explicaria os fenômenos do mundo, ou os objetos de natureza abstrata (conceitos, relações matemáticas, etc.) segundo uma ordem de necessidade, podendo esta necessidade ser formal ou empírica. Para averiguarmos se as necessidades de diferentes tipos possuem peculiaridades que nos permitam traçar alguma diferença significativa entre elas, a fim de medirmos até que ponto a necessidade existente num argumento, por exemplo, pode ser transposta para uma

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SCHOPENHAUER, Contestação ao livre-arbítrio, 12. Ibidem, p. 12. 4 Aqui citado em duas edições: como Contestação ao livre Arbítrio, e como O Livre arbítrio. 5 Ibidem, p. 12. 3

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ação moral, passaremos a um rápido exame da obra Da raiz quádrupla do princípio de razão suficiente. O princípio de razão suficiente e suas quatro raízes Schopenhauer considera o princípio de razão suficiente como a base de todo e qualquer conhecimento, de toda a ciência, entendida esta como um sistema de conhecimentos ligados de forma consistente. O filósofo parte da formulação (segundo a qual Wolff delimita aquele princípio): “Nada é sem uma razão que faça com que esse algo seja ao invés de não ser”.6 Segundo Schopenhauer, haveria certa confusão no que se refere à aplicação deste princípio, confusão que teria atingido toda a tradição filosófica e impedido o uso adequado do princípio de razão suficiente. Ele observa que, desde a antiguidade7, há a ausência de uma distinção adequada entre os dois significados do princípio, isto é, os filósofos que trataram deste tema não teriam notado a diferença do princípio de razão considerado como “causa” e como “princípio de conhecimento”. Um princípio de conhecimento serve para estabelecer um juízo, o que é bastante diferente da causa de um acontecimento real. Ao não considerar esta distinção os filósofos teriam confundido o plano empírico, no qual se manifestam as causas, com o plano do conhecimento abstrato, que se refere a conceitos e princípios formais. Neste sentido, quando Descartes, de certa forma seguindo a linha de raciocínio de Santo Anselmo8, tenta provar a existência de Deus e do mundo, é possível notarmos uma confusão entre o plano lógico-conceitual e o plano da existência empírica. Em resumo, podemos dizer que Descartes afirma a existência objetiva de Deus a partir da noção de um ser infinito em ato, ao qual “nada poderia ser acrescentado à sua perfeição” 9. Schopenhauer esclarece este suposto equívoco ao comentar: 6

SCHOPENHAUER, De la quadruple racine du principe de raison suffisante, p. 25. (Rien n’est sans une raison qui fait que cela soit plutôt que cela ne soit pas). 7 No capítulo II de sua tese sobre o princípio de razão Schopenhauer analisa o emprego direto ou indireto deste princípio na obra de alguns filósofos antigos, tais como Platão, Aristóteles, Plutarco, Sexto Empírico, bem como na de filósofos modernos, tais como Descartes, Wolff e Leibnz. 8 Schopenhauer aqui faz referência à chamada “prova ontológica”, formulada por Santo Anselmo. De acordo com Abbagnano, a característica desta prova é “passar do simples conceito de Deus à existência de Deus” (Abbagnano, p. 309). Ainda de acordo com ele, esta prova foi repetida por Descartes, “para quem a existência de Deus está implícita no conceito de Deus, do mesmo modo que está implícito no conceito de triângulo que seus ângulos internos são iguais a dois ângulos retos” (Abbagnano, p. 309). 9 DESCARTES, Meditações sobre filosofia primeira, p. 89. Na terceira meditação Descartes investiga se coisas cujas ideias estão no sujeito possuem existência fora do mesmo. Segundo ele, as ideias que indicam substâncias

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Sabe-se que podemos extrair de um dado conceito por meio de simples juízos analíticos todos os seus atributos essenciais, isto é, aqueles dos quais se compõe o conceito ... os quais são logicamente verdadeiros ... Nosso homem escolhe em um conceito formado a seu belprazer e tira o atributo de realidade ou de existência; vem sustentar em seguida que um objeto que corresponde ao conceito tem uma existência real e independente deste conceito. 10

Baseado no capítulo VII do livro II dos Segundos analíticos de Aristóteles

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Schopenhauer sustenta que a definição de uma coisa e a prova da existência de algo são coisas radicalmente diferentes, diferença esta que refere-se diretamente à pluralidade de significados do princípio de razão. Para ele, a distinção fundamental entre os dois significados do referido princípio só veio a ser realizada pela primeira vez e do modo claro por Wolff. Este filósofo dividiu o princípio de razão suficiente em três: o principium fiendi (causa); o principium essendi (razão de possibilidade de alguma coisa); e o principium cognoscendi12. Segundo Schopenhauer, entretanto, a distinção estabelecida por Wolff se mostra falha, pois o que ele entende por principium essendi, ou a razão de possibilidade de alguma coisa, consiste numa compreensão assaz deturpada das condições a priori de toda experiência possível, condições estas que, assim como o demonstrou Kant, residem no sujeito. Com a distinção estabelecida por Kant entre princípio lógico (formal) de conhecimento, isto é, que toda proposição deve ter sua razão, e princípio transcendental (material), do qual se segue que toda coisa deve ter sua causa, uma luz foi lançada sobre o princípio de razão e suas significações passaram a ser detalhadas. Estava fixada, a partir de então, a base sobre a qual Schopenhauer iria sustentar a sua tese da quadripartição do princípio de razão. A divisão estabelecida até então consistia na consideração do princípio de razão como princípio de conhecimento por um lado, e, por outro, como causa. Assim como

possuem mais realidade objetiva do que aquelas que indicam acidentes, por participarem por representação de mais graus de ser ou de perfeição (Ibidem, p. 75), e, dentre todas, a que possui mais realidade objetiva é a ideia de Deus. É possível notarmos, assim, uma relação direta entre a ideia de “perfeição” e a de “realidade”, o que constitui o alvo da crítica de Schopenhauer. 10 SCHOPENHAUER, De la quadruple racine du principe de raison suffisante, p.32. (l’on sait que l’on peut extraire d’un concept donné au moyen de simples jugements analytiques tous ses attributs essentiels, c’est-à-dire ceux dont se compose le concept... lesquels sont alors logiquement vrais… notre homme choisit dans un concept formé tout à saguise et tire l’attribut de réalité ou d’existence; il vient soutenir ensuit qu’un objet qui correspondrait au concept a une existence réelle et indépendante de ce concept!) 11 Ibidem, p. 33. 12 Cf. § 10 de De la quadruple racine du principe de raison suffisante.

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afirmou Kiesewetter: “Um é o princípio fundamental do pensamento, o outro, da experiência. A causa concerne às coisas reais, o princípio lógico concerne somente às representações”.13 Implícita nesta discussão e na divisão estabelecida desde Wolff, a qual foi aceita por Schopenhauer, reside a ideia de que a necessidade se encontra tanto no plano lógico ou formal quanto no plano das mudanças que concernem à matéria (realidade empírica), já que a primeira aplicação do princípio de razão suficiente garante que todo juízo deve ter necessariamente uma razão para ser verdadeiro, e a segunda aplicação assevera que as transformações ou mudanças dos objetos reais tem necessariamente uma causa. Schopenhauer irá demonstrar que há mais duas aplicações cabíveis ao princípio de razão e que estendem o seu domínio enquanto princípio fundamental de todo conhecimento. Dessas duas aplicações, uma diz respeito aos objetos matemáticos, revelando implicações para a geometria e para a aritmética; a outra nos levará à discussão sobre o livre-arbítrio, uma vez que confere ao âmbito das ações aquela mesma necessidade que ordena as transformações do mundo natural, com a diferença de que, no plano das ações, tal necessidade não agiria como uma “causa” ou “razão”, mas como “motivo”. Adiante investigaremos se o “motivo” de fato possui o mesmo poder de engendrar uma ordem de necessidade como uma causa, ou como uma razão. A fim de apontar para a insuficiência daquela divisão wolffiana do princípio de razão em principium fiendi, principium essendi e principium cognoscendi, Schopenhauer lança a seguinte questão: Quando eu pergunto por que os três lados deste triângulo são iguais, a resposta é: porque o são. Mas a igualdade dos ângulos é a causa de seus lados? Não, pois não se trata de uma mudança... Se trata somente de um princípio de conhecimento? Não, pois ela não é somente a prova de um juízo.14

Tal questão revela que a concepção wolffiana do princípio de razão não é capaz de explicar alguns elementos importantes. Schopenhauer trata então de ampliar aquela concepção e aprofundar a investigação sobre a ordem de necessidade que se aplica à realidade como um todo. De acordo com o Schopenhauer, a forma do princípio de razão suficiente é determinada de modo apriorístico, e é este princípio que estabelece as ligações entre todos os 13

SCHOPENHAUER, De la quadruple racine du principe de raison suffisante, p.46. (L’un est le principe fondamental de la pensée, l’autre, de l’expérience. La cause concerne les choses réelles, le principe logique ne concerne que les représentations.) 14 Ibidem, p. 50.

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objetos que possam ser apresentados a um sujeito cognoscente15. As raízes que estão no fundamento de tal princípio assumem traços característicos de acordo com a classe de objetos para o qual cada uma se reporta. A partir desta caracterização genérica do princípio de razão, Schopenhauer examinará a forma que cada raiz toma em sua função específica, ou seja, quando se aplica a uma classe determinada de objetos. A primeira classe de objetos da qual trata o filósofo refere-se às representações intuitivas, isto é, àquelas que se apresentam ao sujeito sob dois aspectos indissociáveis: um aspecto formal e um empírico. São chamadas representações intuitivas por diferirem de conceitos puramente abstratos, apresentando assim tanto um aspecto formal, cuja origem remonta às formas puras da sensibilidade (tempo e espaço), quanto um aspecto empírico, que tem suas origens nas excitações do aparelho sensitivo de nosso organismo.16 A forma do princípio de razão que trabalha nessa classe de objetos é a que Schopenhauer chama “princípio de razão do devir”

17

, entendida também como lei de

causalidade. Tal lei explica a sucessão de estados da matéria a partir da ligação necessária entre causa e efeito, sendo que, por “causa” não tomamos apenas um único fator ou ato isolado, mas um conjunto amplo de condições que permitem o aparecimento de um determinado estado caracterizado como “efeito”. De acordo com Schopenhauer, a causalidade existe sob três formas18. Primeiro como “causa” propriamente dita, que opera as mudanças no reino inorgânico, e cuja particularidade consiste em apresentar uma equivalência de intensidade em relação ao efeito que ela produz (por exemplo, quando um corpo exerce sobre outro uma força que o põe em movimento). Segundo como “excitação”, que atua no reino orgânico e na parte inconsciente da vida animal (por exemplo, as condições climáticas que levam as plantas a se desenvolverem, bem como as condições que mantém o funcionamento de um organismo animal). E, por fim, como “motivo”, que atua em toda a atividade animal e refere-se também às ações humanas em geral. Devemos atentar para a ideia de que, de acordo com Schopenhauer, os motivos constituem uma forma de causa, estando eles, portanto, no domínio da lei de causalidade. Assim, para cada ação, considerada nessa perspectiva como um efeito, deve haver um motivo 15

Ibidem, p. 51. Ibidem, p. 53. 17 Ibidem, p. 60. 18 Ibidem, p. 75. 16

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que opere como causa e que, portanto, produz aquela ação na medida em que a torna possível. Disto depreende-se que as ações estão dentro de uma ordem de necessidade, pois dada uma causa necessariamente um efeito se produz. No entanto, o próprio cuidado de Schopenhauer em dividir a noção de “causa” em três formas e reconhecer as distinções entre elas permite-nos supor que um motivo não pode ser considerado indiferenciadamente como uma causa no sentido estrito. O efeito que é a queda de uma pedra, por exemplo, provém de uma causa, e não de um motivo, assim como o ato de escrever um artigo ou uma carta de suicídio provém de um motivo e não de uma causa. É certo que a queda da pedra ocorre com necessidade dada a sua causa, e a ação de escrever ocorre também com necessidade, dada sua proveniência de um ou mais motivos. Não obstante, podemos questionar se essas “necessidades” são diferenciáveis ou não. Para esclarecermos esta questão faz-se necessário primeiramente averiguarmos com mais detalhes o que Schopenhauer entende por “motivo”. O filósofo afirma que entre o motivo e a ação há um elemento intermediário, a saber: o conhecimento, pois a “receptividade para os motivos exige um intelecto.”

19

O animal, que

age segundo motivos, tem a capacidade de refletir sobre as circunstâncias que se apresentam e agir sem que o elemento motivador de sua ação esteja de fato presente, empiricamente. Assim, uma vez dotado de conhecimento e da faculdade de representações abstratas: O animal como tal se põe sempre em direção a um objetivo e a um fim: ele deve por isso os ter reconhecido, ou seja, este objetivo e aquele fim devem se apresentar ao animal como algo de distinto dele, mas de que, no entanto, ele adquire consciência. 20

O motivo é um objeto da percepção exterior, ou seja, do não-eu, daquilo que o sujeito conhece como diferente de si.21 O motivo, portanto, atua como “causa excitadora” da volição, na medida em que excita a volição, e como “matéria” da volição, na medida em que é para ele que a volição se dirige. A partir dessa concepção de motivo é possível reconhecer que não há ação sem motivo: o motivo atua sobre o “eu” e produz a volição que resultará necessariamente em uma ação. Diante deste quadro o próprio filósofo nos lança a questão: “A única coisa que ainda é duvidosa aos nossos olhos, é o nível de necessidade com o qual os objetos do mundo exterior determinam os atos da vontade”. 22 19

Ibidem, p. 76. Ibidem, p. 76. 21 Ibidem, Contestação ao livre-arbítrio, p. 19 22 Ibidem, p. 18. 20

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Os motivos surgem naquele nível de manifestação dos fenômenos da natureza em que os seres possuem necessidades mais complicadas, isto é, mais diferenciadas em relação aos graus mais baixos, nos quais residem os fenômenos cuja constituição é menos “sofisticada”, tal como se observa em todo o reino mineral. Por isso, naquele nível da escala da natureza em que os motivos aparecem, o impulso das meras excitações não são suficientes para pôr aqueles seres em ação. Muito mais que a receptividade das excitações, tais seres são aptos à receptividade dos motivos, pois possuem já uma faculdade de representações, materialmente constituída pelo cérebro e pelo sistema nervoso como um todo. Isto tem como consequência o fato de que o modo de atuar de um motivo (ou a partir de um motivo) difere do modo de como uma excitação provoca determinada ação. Para que uma ação ocorra a partir de um motivo basta que este seja apresentado à nossa faculdade de representação, ou seja, que ele surja abstratamente em nosso intelecto, ao passo que as excitações exigem sempre o contato direto com o objeto físico. A diferença entre excitação e motivo reside assim no fato de que, quando se trata de motivos, o elemento intermediário entre a causa e o efeito é o intelecto.23 Schopenhauer sustenta de modo bastante firme que, a despeito desta diferenciação, a lei de causalidade atua com o mesmo rigor em todos os casos, quer se trate de excitações, quer se trate de motivos24. Sendo assim, o grau de necessidade é o mesmo em ambos os casos. Por conseguinte, o grau supremo de receptividade, isto é, o intelecto, que funciona como intermediário entre os motivos e a ação, não teria nenhum poder decisório ou determinante acima daquele que os motivos exercem sobre nossas volições: “O motivo é uma causa e atua com a necessidade que arrasta todas as causas”.25 O máximo que o intelecto pode fazer é esclarecer e ponderar antecipadamente sobre as circunstâncias que em determinado momento poderão se configurar, ou seja, antecipar abstratamente os motivos que se apresentarão a nós. O filósofo não nega uma diferenciação gradativa no modo como a causalidade, e a necessidade que lhe é intrínseca, atua nos diferentes fenômenos da natureza, em seus respectivos graus. Segundo ele, a relação entre a causa e o efeito vai se diferenciando e se tornando heterogênea na medida em que ascendemos das manifestações do mundo estritamente físico para o reino dos animais. Nessa progressiva ascendência, a causa vai se 23

Ibidem, p. 42. Ibidem, p. 62 25 SCHOPENHAUER, De la quadruple racine du principe de raison suffisante, p. 77. (Le motif est une cause et agit avec la nécessité qu’entraînent toutes les causes.) 24

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tornando cada vez menos material e menos tangível, e o liame entre causa e efeito torna-se cada vez mais difícil de ser identificado com precisão.26 Quando consideramos as manifestações mecânicas ou físico-químicas da natureza, tais como a dilatação, a fusão a combustão, a termeletricidade, entre outras, observamos de modo mais nítido a ligação entre as causas e os efeitos. Por outro lado, quando passamos ao reino vegetal e ao domínio da vida vegetativa dos animais, aquela ligação torna-se menos nítida e mais complexa, uma vez que há excitações tanto internas (a ação dos sucos nas plantas; as ações recíprocas entre os órgãos, etc.), quanto externas (ação da luz, do ar, da nutrição, etc.). Na vida animal, na qual as ações são engendradas por motivos, a linha que liga as causas aos efeitos, ou seja, às ações, perde quase por completo aquele caráter de evidência que observamos nos fenômenos pertencentes aos outros graus. Quando se trata do reino animal, “a causa, que até aqui estava sempre ligada materialmente ao efeito, se mostra completamente independente dele, de uma forma completamente diferente, muito imaterial, e é apenas uma simples representação”. 27 No que se refere especificamente ao homem, a ação por motivos alcança sua maior diferenciação, pois sendo ele capaz de representações não apenas empíricas, isto é, advindas do aparato sensível, mas também abstratas, ou seja, conceituais, deixa de restringir-se aos objetos ou situações que se mostram no presente. Esta capacidade privilegiada do homem permite a ampliação do campo de suas escolhas, pois na medida em que reflete a partir de noções abstratas, os objetos ausentes, isto é, que não se apresentam imediatamente aos seus sentidos, podem com significativa força influenciar suas ações, o que faz com que um número infinitamente maior de objetos possam ser-lhe matéria de escolha. É isto que permite ao homem imprimir um caráter de intencionalidade e de premeditação às suas ações. Em outras palavras, é nisto que consiste a capacidade de deliberação do homem. Notemos, assim, que aqui surge um traço distintivo do homem: a capacidade de deliberação. Schopenhauer reconhece que “há já nisso uma liberdade relativa, porque se torna independente da opressão imediata dos objectos presentes”.

28

No entanto, esta faculdade

deliberativa nos liberta apenas da influência exclusiva do presente, o que aparentemente nos torna superiores em relação aos outros animais, mas, de acordo com Schopenhauer, isto de

26

Ibidem, Contestação ao livre-arbítrio, p. 51. Ibidem, p. 51. 28 Ibidem, p. 47. 27

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modo algum nos afasta da ordem de necessidade que há na lei de causalidade, neste caso sob a forma da lei de motivação. No fim das contas, a faculdade de deliberação traria como consequência real apenas um conflito entre os diversos motivos que se apresentassem ao nosso intelecto, levando-nos a ponderar e a tender ora para um ora para outro. Todavia, assim que uma representação qualquer se torne motivo, uma ação ocorrerá necessariamente, e, portanto, não pode ser considerada livre. O intelecto ou a razão, que nos permitem refletir e deliberar, intermediando assim a relação entre os motivos (causas) e as ações (efeitos), de maneira alguma desfazem a lei de causalidade e sua ordem de necessidade; apenas nos esclarecem, ou seja, nos apresentam abstratamente os diversos motivos, remetendo-nos ao campo da possibilidade. De acordo com Schopenhauer, esse vasto campo da possibilidade só existe no âmbito da reflexão, do conhecimento abstrato da razão, pois no que concerne ao mundo que se nos apresenta através da intuição empírica, isto é, o mundo dos “fatos”, não faz sentido falarmos em algo possível, já que todos os fenômenos que ocorrem, sempre procedendo de causas, ocorrem com necessidade e não poderiam ser de outra forma. O filósofo deixa isto claramente expresso na Crítica à filosofia kantiana: Pois tudo o que acontece, acontece necessariamente, porque acontece a partir de causas, e estas por sua vez tem causas, de maneira que todo o curso dos eventos do mundo, grandes ou pequenos, é uma concatenação estrita do que aparece necessariamente. Em conformidade com isso, todo real é ao mesmo tempo necessário, e em verdade não há diferença entre realidade e necessidade; assim como não há diferença entre realidade e possibilidade, pois o que não aconteceu... também não era possível, por que as causas... também não apareceram”29.

Ao transpormos esse raciocínio para o plano das ações humanas, pelo que vimos até aqui, chegaremos à conclusão de que as ações que ocorrem, ocorrem necessariamente, sendo, portanto, determinadas pelos motivos, e nossa faculdade deliberativa não afeta de modo algum a lei de motivação. Contudo, se retomarmos a pergunta feita anteriormente, a saber; 29

SCHOPENAHUER, MVR (Apêndice), p. 583. No capítulo dos Parerga intitulado “Especulação transcendente sobre a aparente intencionalidade no destino do indivíduo” Schopenhauer chama esta tese de “fatalismo demonstrável” (SCHOPENHAUER, p 226) diferenciando-o do “fatalismo transcendente”, que consiste na tese de que “aquela necessidade de tudo que acontece não é cega, ou seja, a crença em um curso de nossa vida tão planejado como necessário” (“aquella necesidad de todo lo que acontece no es ciega, es decir, la creencia em un curso de nuestra vida tan planificado como necesario”) (SCHOPENHAUER, p 228), fatalismo este que não pode ser demonstrado como o primeiro, mas que o filósofo diz poder ser explicado “pela imutabilidade e a rígida consequência do caráter inato, que sempre faz o homem retornar ao mesmo caminho” (“por la inmutabilidad y la férrea consecuencia del carácter innato, que siempre devuelve al hombre al mismo carril”.) (SCHOPENHAUER, p.229).

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qual o grau de necessidade com que os objetos do mundo exterior, ou seja, os motivos determinam os atos da vontade, a resposta que Schopenhauer parece dar é que o grau de necessidade que afeta as ações é o mesmo que se observaria caso um “grão de semente que foi preservado num meio seco não tenha sofrido, durante milhares de anos, qualquer transformação e que, no momento em que o enterramos em terreno propício, e o submetemos à acção da luz, do ar, do calor da humidade, deva germinar” 30. Em resumo, podemos afirmar que, para Schopenhauer, o grau de necessidade é o mesmo que atua nos fenômenos que ocorrem segundo causas ou excitações. Para o filósofo, portanto, é um engano pensarmos que na possibilidade de deliberar reside o livre-arbítrio. Com efeito, se alguém afirma: “eu posso fazer o que quero”, simplesmente afirma que pode agir conforme a vontade, mas tentar sustentar o livre arbítrio a partir desta constatação é confundir a liberdade dos atos com a liberdade das volições. A questão não é saber se podemos agir quando queremos, mas sim se podemos querer o que queremos, ou seja, se podemos querer qualquer coisa indiferentemente. As ações provêm da vontade, mas segundo a tese de Schopenhauer a vontade é determinada por motivos; são eles que provocam as volições e destas resultam as ações. Portanto, para que pudéssemos afirmar uma liberdade dos atos deveríamos antes assegurar uma liberdade das volições. É preciso deixar clara esta distinção, já que: A dependência em que estão os nossos actos, isto é, os nossos movimentos corporais, relativamente à nossa vontade... é qualquer coisa completamente diversa da independência das nossas vontades em relação às circunstâncias exteriores, situação esta que é a que traduz verdadeiramente o livre-arbítrio. 31

O homem tenta fundamentar o livre-arbítrio a partir das consequências, isto é, das ações que pratica no mundo, quando na verdade deveria se perguntar pelas razões ou causas dessas ações, pois a questão da existência ou não do livre-arbítrio remonta à dependência dos atos em relação àquelas razões (atuação dos motivos sobre a vontade). Assim, para que houvesse o livre-arbítrio seria necessário que as circunstâncias exteriores, aquelas que configuram os motivos, não tivessem qualquer poder de influência sobre nossa vontade. Postular uma independência de nossas volições em relação às circunstâncias exteriores é justamente isso: dizer que nossas volições não dependem de nada. Esta ideia, no entanto, vai

30 31

Ibidem, Contestação ao livre-arbítrio, p. 50. Ibidem, p. 22.

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de encontro com a lei de causalidade; tudo o que ocorre tem necessariamente uma causa e, sendo assim, a volição não pode produzir-se independentemente dos motivos. A respeito da dependência das volições em relação aos motivos, Schopenhauer lança outra questão que parece confundir-se com aquela que trata do nível de necessidade com o qual os objetos do mundo exterior determinam os atos da vontade, mas que em verdade não é a mesma: “De perguntar será apenas se, no momento em que esse objeto estiver presente no nosso entendimento, a vontade deve ou não manifestar-se necessariamente”.

32

Que uma

volição qualquer será sempre provocada por um objeto (empírico ou abstrato) não há dúvida, já que todo efeito tem uma causa. Mas, a questão agora é saber se um objeto específico provocará sempre uma volição específica. Que necessariamente queiramos alguma coisa não o pomos em dúvida, mas que quereremos especificamente uma coisa diante de um dado motivo, eis a questão. Podemos entrever nesta questão alguns desdobramentos, como o próprio Schopenhauer os propõe quando afirma: “além disso, põe-se a questão de saber se, na presença de um mesmo motivo, poder-se-ia manifestar uma vontade diferente, ou mesmo diametralmente oposta”.33 E ainda: “o que se torna digno de reflexão, é indagar e ver se ele (o homem) é realmente capaz de querer indistintamente uma ou outra coisa”.34 Ora, uma coisa é perguntar se as volições podem ser independentes de motivos, outra é questionar se um mesmo motivo pode provocar volições diferentes ou até mesmo opostas. A primeira questão fora respondida, pois vimos que toda e qualquer volição que se apresente imediatamente à consciência é produzida pela influência dos objetos ou circunstâncias exteriores. O conhecimento mais imediato que o homem possui, o conhecimento de si mesmo, é enquanto um ser que quer, e este querer refere-se sempre a um objeto para o qual tende a volição. Sendo assim, é absolutamente inconcebível uma volição sem um motivo; algo que contrariaria a lei de causalidade e o princípio de razão suficiente. Por outro lado, se de fato, uma vez que dado objeto esteja presente no intelecto, determinada volição produza-se necessariamente, então não será possível que na presença do mesmo motivo uma volição diferente se produza. Mas, se estando aquele objeto presente no intelecto, não se produzir necessariamente a mesma volição, então um mesmo motivo poderá provocar volições diferentes e até mesmo opostas. 32

Ibidem, pp. 19-20. Ibidem, p. 20. 34 Ibidem, O Livre arbítrio, p. 176. 33

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Com base nesta última hipótese, seria pertinente perguntarmos, como faz Schopenhauer: Se também o Homem, como todo o resto da criação, é um ser determinado, de uma vez por todas, pela sua essência, possuindo, como todos os outros seres da natureza, qualidades individuais fixas, persistentes, que determinam necessariamente as suas reacções na presença das excitações exteriores... ou, então, se só o Homem é excepção a esta lei universal da natureza.35

Com efeito, se um mesmo motivo provocar volições diferentes, ou até mesmo opostas, ainda assim ele provocou alguma volição, e nesse sentido não se destrói a tese de que todo efeito provém necessariamente de uma causa, mantendo-se assim a dependência que a vontade tem em relação aos motivos. Contudo, se a ação resultante mostrar-se diferente, então teremos uma causalidade, mas não um determinismo, pois aqui a ação humana mostrará uma propriedade diferente daquela que se vê, por exemplo, no aquecimento de uma pedra, ou no nascimento de uma flor. Resta-nos, todavia, saber se de fato ao homem é permitido escapar àquele determinismo. Em suma, resta-nos saber se a relação entre um determinado motivo e uma determinada volição é necessariamente a mesma sob qualquer circunstância. Isto nos levará a uma investigação sobre o componente mais íntimo da volição, a saber, ao caráter inteligível. Caráter inteligível: o núcleo da vontade individual De antemão, podemos afirmar que a tese determinista que Schopenhauer defende sustenta-se na crença de que o caráter inteligível, que corresponderia à nossa essência única (individual) e particular, é inato e invariável, ou seja, não comporta mudança, e, por conseguinte, não pode ser alterado por influência de qualquer ordem. É com base nessa ideia de caráter inteligível que, segundo Schopenhauer, diante de determinado motivo, a volição será necessariamente a mesma e a ação será determinada de modo absolutamente igual, donde viriam os provérbios: “Quem bebeu, beberá”, ou também: “Ladrão de um dia, ladrão de sempre” utilizados por ele a título de ilustração36. Analisemos pormenorizadamente a teoria do caráter inteligível. De acordo com a definição schopenhaueriana, podemos entender o caráter como uma espécie de dado, como um “código de barras”, impresso inelutavelmente em nossa natureza 35

Ibidem, Contestação ao livre-arbítrio, p. 27-28. Ibidem, O Livre arbítrio, p. 227. Na tradução intitulada Contestação ao livre arbítrio o provérbio utilizado é “cesteiro que faz um cesto, faz um cento”, p. 66. 36

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individual e particular. Em resumo, em nosso caráter reside aquilo que nós somos. Uma vez que a “energia primitiva é pressuposta por qualquer ideia de causalidade” 37, o filósofo afirma que o caráter, esse fator interior, é “a possibilidade de produzir o seu efeito”.38O caráter é, portanto, o que diferencia um homem de outro, na medida em que, sob a influência de motivos idênticos permite diferenciar a natureza especial e individualmente determinada de cada homem. Desse modo, torna-se claro o que permite com que cada motivo aja de modo diferente sobre os diversos indivíduos, em suma, como cada motivo provoca em diferentes indivíduos diferentes volições. Disto resulta que o que cada um é corresponde ao que cada um quer. Schopenhauer postula quatro aspectos ou características do caráter inteligível. Em primeiro lugar, o caráter é individual. É certo que há um caráter de espécie, que forma, em linhas gerais, a base comum das qualidades que se encontram em todos os homens. Todavia, não se pode negar que, a despeito destas qualidades gerais, haja infinitas diferenças de indivíduo para indivíduo, o que explica porque a ação dos motivos se mantém distinta sobre cada homem. Para que pudéssemos fazer um prognóstico de nossas ações, ou das de qualquer indivíduo, bastaria que possuíssemos o conhecimento dos motivos e também um conhecimento exato do caráter. Assim, se soubéssemos que, diante de um determinado motivo “x” o caráter levaria a determinada volição e à ação subsequente, e fôssemos também capazes de reconhecer num homem aquelas “variáveis”, poderíamos dizer então como tal homem agirá necessariamente, assim como somos capazes de dizer que em dadas condições de temperatura e pressão a água entrará em ebulição se for aquecida. Imaginemos dois pequenos cofres em forma de elefante sobre uma mesa. Em um dos cofres cabem 75 moedas, e no outro cabem 150 moedas. Para que o primeiro cofre entre em movimento é necessária uma força de “x” newtons. Já para pôr o segundo em movimento será preciso uma força de “2x” newtons. Notemos então as seguintes correspondências: 1) o peso de cada cofre corresponde ao caráter inteligível; é “a possibilidade de produzir o seu efeito”. 2) A força empregada corresponde ao motivo que se apresenta ao caráter; no primeiro caso bastará um motivo “x” para provocar uma ação; contudo, para que o segundo exteriorize a mesma ação será necessário um outro motivo, que seja compatível com o seu caráter.

37 38

Ibidem, Contestação ao livre arbítrio, p. 61. Ibidem, p. 61.

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O caráter do homem, assim como a natureza da água e o peso do cofre, seria supostamente o que impede a possibilidade de ações diferentes diante dos mesmos motivos. No exemplo dos cofres, diante do motivo “x” o primeiro sempre entrará em movimento, mas o mesmo motivo não será suficiente para provocar o mesmo efeito no segundo cofre. Deste modo, os motivos parecem manter certa correspondência com o caráter inteligível. Notemos ainda, que uma força de “2x” newtons pode provocar o movimento do primeiro cofre sem que tal ação seja uma indicação de seu caráter inteligível. O segundo aspecto ressaltado por Schopenhauer em sua teoria sobre o caráter consiste em seu traço empírico; em termos mais precisos, o filósofo afirma que nós só podemos conhecer o caráter em seu aspecto empírico, ou seja, a partir do que a experiência nos permite. Isto implica que somos incapazes de prever com exatidão como nós ou qualquer indivíduo se comportará diante de determinadas circunstâncias antes de elas se apresentarem, pois do caráter só conhecemos o que se descortina na experiência. Aquilo que o caráter é em si mesmo, a natureza íntima e particular daquele “ponto” da Vontade nunca nos é acessível. Esta distinção entre aspecto inteligível e empírico do caráter Schopenhauer a herdou de Kant, e ela se baseia fundamentalmente na distinção entre fenômeno e coisa-em-si. O caráter empírico corresponde ao fenômeno, ou seja, àquilo que a experiência permite conhecer; já o caráter inteligível corresponde à coisa-em-si, ao que não pode ser alcançado pela faculdade cognitiva do sujeito. Curiosamente, mesmo admitindo que o caráter inteligível não seja cognoscível de todo, Schopenhauer afirma que um único ato seria suficiente para indicar a natureza daquele caráter, ou seja, um único ato já seria capaz de apontar o que a pessoa é em sua mais íntima natureza, pois “Operari sequitur esse” (O agir segue o ser). Neste sentido é que Schopenhauer afirma: “Aquele que fez uma vez tal coisa, agirá ainda do mesmo modo em tal circunstância, tanto no bem como no mal”. 39 O que se denomina, portanto, como caráter empírico é o comportamento, ou o aspecto geral que se mostra nas ações de determinado indivíduo. O conhecimento que o próprio indivíduo possui de si a partir da observação do seu caráter empírico é o que Schopenhauer chama “caráter adquirido”; o conhecimento sobre nós mesmos que acumulamos no decorrer de nossa experiência de vida. Adiante voltaremos a analisar o caráter adquirido.

39

Ibidem, p. 64.

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Os dois outros aspectos do caráter são os que se revelam de maior importância para o problema que investigamos: o inatismo e a invariabilidade do caráter. Schopenhauer afirma que o caráter individual é inato, “obra da própria natureza”.

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Um caráter virtuoso não é

virtuoso porque aprendeu a ser tal como é, mas por que surgiu assim. O mesmo ocorre com um caráter vicioso. Este inatismo defendido por Schopenhauer, como é fácil notar, se contrapõe à ideia de que o caráter possa ser “melhorado” por meio da instrução ou de exortações morais. O filósofo comenta ironicamente: “Não foi Sêneca o preceptor de Nero? É no caráter inato, esse núcleo verdadeiro do homem moral completo, que residem os germes de todas as virtudes e de todos os vícios.” 41 Segundo o filósofo, isso explicaria porque duas pessoas submetidas à mesma educação e criadas no mesmo ambiente, revelam-se com qualidades, temperamento e comportamento visivelmente distintos. Para ele, ainda, a hipótese do livre-arbítrio não seria compatível com este fato. Aqui cabe perguntarmos, à guisa de esclarecimento, por que, para Schopenhauer, “a dissemelhança efectiva, original, dos caracteres é inconciliável com a suposição de um livrearbítrio”,

42

ou mais precisamente, por que não pode conciliar-se com a ideia de que, em

presença de idêntico motivo, possa produzir-se uma volição diferente, ou mesmo diametralmente oposta. O filósofo responde que para que essa “liberdade de indiferença” pudesse existir, seria necessário que não houvesse inclinações inatas, que, portanto, o caráter fosse uma espécie de tabula rasa, como é a inteligência para Locke43. Mas, uma vez que já trazemos impressas em nossa natureza tais qualidades originárias, aquela liberdade de indiferença está descartada. Poderíamos ainda suspeitar que a diferença original de comportamento e temperamento que há entre os homens fosse resultante da diferença de opiniões e juízos entre os mesmos. Mas, assim, argumenta Schopenhauer, a moral seria reduzida a uma questão de conhecimento, o que consiste numa ideia falsa. O caráter possui, portanto, um aspecto empírico e uma natureza individual e inata, incognoscível. Mas, se sugeríssemos que o caráter, ainda que inato e individual, sofresse 40

Ibidem, p. 69. Ibidem, p. 70. 42 Ibidem, p. 71. 43 Ibidem, p. 71. Aqui Schopenhauer faz alusão à tese de que o conhecimento humano é produto daquilo a experiência fornece, não havendo na mente qualquer conteúdo previamente dado, tal como sustenta o empirismo de Locke. 41

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mudanças, transformações intrínsecas à sua natureza, ao longo de sua existência? Isto seria, no entanto, se contrapor diretamente ao outro elemento com o qual Schopenhauer identifica a natureza do caráter: a invariabilidade. Com efeito, para Schopenhauer o caráter do homem é invariável; é como é e assim permanece durante toda nossa vida. Interessante salientar que, para sustentar essa crença, Schopenhauer recorre a exemplos experienciáveis, ou seja, àquilo que tange ao aspecto empírico do caráter: A experiência de todos os dias pode fornecer-nos a confirmação desta verdade (que como alguém agiu em um caso tornará a agir quando iguais circunstâncias se repetirem): que nos parecerá mais surpreendente, quando, ao encontramos uma pessoa conhecida, passados vinte ou trinta anos, descobrimos depois que ela não mudou nada nos seus procedimentos de outrora. 44

Relembremo-nos que, no caso do homem, antes dos motivos levarem à ação, estando em consonância com o caráter, eles passam pelo intelecto. A função do intelecto é a de esclarecer os motivos que se apresentam, sem que caiba a ele qualquer papel decisivo sobre a vontade. O intelecto é, assim, o mediador de uma relação cujas consequências estão determinadas e ocorrerão com rigorosa necessidade. A inevitabilidade se explicaria em última instância pelo fato de que o caráter inteligível é invariável, e diante dos mesmos motivos se darão as mesmas volições e ações. Note-se que Schopenhauer assegura a invariabilidade do caráter na constância ou repetição das ações. Ele deduz, portanto, a invariabilidade do caráter inteligível a partir do caráter empírico. Nesse sentido, devemos entender o caráter empírico como o aspecto fenomênico (ou seja, como algo que se mostra no espaço e no tempo) daquilo que em si mesmo, o caráter inteligível, não está submetido às formas do fenômeno, e que, portanto, não comporta mudança. Mas, ao que nos parece, quando observamos a reincidência de uma ação diante de idênticos motivos, se quisermos estabelecer uma relação deste fato com a natureza do caráter, o máximo que nos é permitido afirmar é que tal caráter se mostra invariável; não estamos habilitados a dizer que ele é invariável, dado que o conhecimento que supomos possuir daquele caráter se baseia na experiência, no que se mostra. Esta relação entre o que pode ser conhecido, isto é, entre o que se mostra, e o que não pode ser conhecido podemos notá-la na comparação entre Vontade (como coisa-em-si) e a vontade que em nosso ser individual habita. 44

Ibidem, p. 65.

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Considerações finais Reconhecemos a nós mesmos como seres “querentes”, portadores de vontade. Esta vontade não é por nós conhecida como um fenômeno comum, pois sentimo-la manifestar-se primeiramente em nosso sentido interior (no tempo) e só depois se dão suas objetivações no espaço. Estabelecendo uma analogia, admitimos que todos os fenômenos, existentes no espaço e no tempo, assim como nós, possuem a mesma essência que nos habita, isto é, a vontade. Quando concebemos essa essência em uma dimensão mais ampla; como “fundamento” último de tudo o que há, traduzimo-la como Vontade. De modo geral, isto constitui a tese metafísica de Schopenhauer. Assim, da vontade que está no tempo e não é fenômeno, deduzimos a Vontade que independe de qualquer forma fenomênica. Todavia, em relação ao caráter, Schopenhauer parece atribuir ao inteligível, que é o nosso “pedaço” da coisa-em-si, características que ele percebe no empírico, que é um fenômeno entre outros. Ele parte da invariabilidade de uma ação, ou de algumas ações, e daí sustenta uma invariabilidade no caráter inteligível, o que é bastante problemático, pois se o caráter inteligível é incognoscível, como identificar sua natureza a partir de dados empíricos? Com efeito, ainda que a observação do caráter empírico não garanta suficientemente o conhecimento de nossa natureza particular, a ideia da existência de um caráter inteligível ganha sua plausibilidade na medida em que observamos que em todos os graus da natureza há “qualidades individuais fixas, persistentes, que determinam necessariamente as suas reacções na presença das excitações exteriores.”

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Todos os seres e fenômenos da natureza carregam

qualidades particulares que diferenciam suas ações em comparação com os demais seres. No entanto, do mesmo modo que não conhecemos completamente a Vontade, considerada como a essência do mundo, também não podemos conhecer completamente o caráter inteligível, justamente porque ambos escapam aos limites do princípio de razão. A partir do fenômeno podemos deduzir a coisa-em-si, mas não possuímos meios de alcançar um conhecimento completo e definitivo desta. Assim também ocorre com o caráter inteligível, que pode ser deduzido a partir do empírico, mas sobre o qual não possuímos um conhecimento completo.

45

Ibidem, p. 27.

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O ponto central do problema do livre arbítrio reside, portanto, não nas ações que praticamos, pois são estas sempre motivadas, o que as enquadra dentro de uma ordem de necessidade, mas sim na vontade que nos constitui e que caracteriza nossa essência. Sendo assim, o determinismo das ações assentar-se-ia justamente sobre a liberdade da vontade, vontade esta que não possui fundamento e que por isso mesmo não pode ser explicada causalmente. Em outros termos, no caráter inteligível, justamente aquele sobre o qual não escolhemos, é que reside nossa liberdade, restando ao caráter empírico, o conjunto de nossas ações, o ser a mera exteriorização de efeitos necessários.

Referências Bibliográficas ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. Tradução da 1ª edição brasileira coordenada e revista por Alfredo Bosi; revisão da tradução e tradução dos novos textos Ivone Castilho Benedetti. 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. DESCARTES, R. Meditações sobre filosofia primeira. Tradução e nota prévia Fausto Castilho. Campinas: Edições Cemodecon (Traduções). IFCH – UNICAMP, 1999. KANT, I. Crítica da razão pura. Trad. Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Abril Cultural, 1983. ______. Ethical Philosophy: Grounding for the Metaphysics of Morals/ Metaphysical Principles of Virtue. Translation by James W. Ellington, introduction by Warner A. Wick. Indianapolis: Hackett Publishing Company, 1994. SCHOPENHAUER, A. Aforismos para a sabedoria de vida. Trad. Prefácio e notas Jair Barboza; revisão da tradução Karina Jannini. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. ______. Contestação ao livre Arbítrio. Porto/Portugal: Rés-Editora, 2002. ______. De la quadruple racine du principe de raison suffisante. Présentation, traduction et notes par François-Xavier Chenet. 2 ed. Paris: Vrin, 2008. ______. O Livre Arbítrio. In: Os Grandes Clássicos da Literatura vol. III. São Paulo: Novo Horizonte, 1982. ______. O mundo como vontade e como representação. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Unesp, 2005. ______. Parerga y Paralipómena I. Traducción, introducción y notas de Pilar López de Santa María. Madrid: Editorial Trotta, 2009. ______. Parerga y Paralipómena II. Traducción, introducción y notas de Pilar López de Santa María. Madrid: Editorial Trotta, 2009. ______. Sobre o fundamento da moral. Trad. Maria L. M. Cacciola. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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MÁQUINA DE GUERRA E APARELHO DE ESTADO: A GEO-FILOSOFIA DE DELEUZE E GUATTARI EM MIL PLATÔS WAR MACHINE AND APPARATUS OF STATE: THE GEO-PHILOSOPHY OF DELEUZE E GUATTARI AT A THOUSAND PLATEAUS Jean Pierre Gomes Ferreira1

RESUMO: A geo-filosofia de Deleuze e Guattari parte de uma questão muito simples que eles desdobram de modos diversos e a qual nos detemos aqui sobremaneira, qual seja, “Qual a relação do pensamento com a Terra?” Esta questão é formulada por eles, particularmente, em O que é a filosofia? (1992), última obra escrita por eles conjuntamente e que sintetiza, podemos dizer, suas duas outras obras comuns, O anti-Édipo (1972) e Mil platôs (1980), os dois tomos de Capitalismo e esquizofrenia. Neste artigo, pretendemos esclarecer de que modo há esta relação do pensamento com aTterra do ponto de vista de Deleuze e Guattari, bem como demonstrar que ela não diz respeito apenas a O que é a filosofia? enquanto obra e problema, mas também à obra e problema da máquina de guerra e do aparelho de Estado em Mil platôs, social e politicamente, e d’O anti-Édipo de um ponto de vista inconsciente. Palavras-chave: Máquina de guerra; Aparelho de Estado; Geo-filosofia. ABSTRACT: The geo-philosophy of Deleuze and Guatarri starts from a very simple question which they unfold in several ways and on which it has been focused here considerably, that is to say, "What is the relation of the thought to the Earth?", this question was developed, especially, in What is philosophy? (1991), last work jointly written by them and which summarizes, that is, their two other works in collaboration, Anti-Oedipus (1972) and A thousand Plateaus (1980), the two volumes of Capitalism and schizophrenia. From this question, this paper conside that it is not related only to What is philosophy?, but also to the problem of the war machine and the State system in A thousand Plateaus socially and politically, thus our major aim with this work is to analyze how the relation between the war machine and the State system in A thousand Plateaus is directly connected to the relation of either the thought to the earth or the philosophy to the earth regarding to the geophilosophy of Deleuze and Guatarri. Key-words: War machine; Apparatus of State; Geo-philosophy.

INTRODUÇÃO Se muitas vezes alguns pensadores não adquirem o reconhecimento que merecem em sua época, podemos dizer o mesmo de algumas obras, como parece ser o caso de Mil platôs (1980), de Deleuze e Guattari. Ao analisarem seus dois tomos de Capitalismo e Esquizofrenia, que além daquela obra inclui o Anti-Édipo (1972), eles consideram que este 1

Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará. E-mail: jphylosophia@gmail.com. Artigo recebido em 16/02/2014 e aprovado para publicação em 01/07/2014.

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primeiro obteve maior sucesso em sua época de lançamento do que o segundo, mesmo que eles preferissem aquele, já que o sucesso de Anti-Édipo resultou num fracasso ainda maior de seus sonhos em acabar com o Édipo, diferentemente dos Mil platôs, que, apesar da pouca receptividade, permitiu-lhes abordar “terras desconhecidas, virgens de Édipo”.2 Terras à frente de seu tempo, visualizadas no século XXI, que Foucault disse ser deleuzeano por brincadeira, mas que, hoje, ouvimos com seriedade, principalmente no que diz respeito a Mil platôs, ainda mais que podemos perceber nestes toda a geo-filosofia de Deleuze e Guattari definida na última obra em comum deles, O que é a filosofia? (1992), quando, enfim, resolveram por em questão aquilo que tinham feito durante toda a vida e cuja resposta não variou com o tempo, qual seja, de que “a filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos”.3 Este trabalho tem por objetivo analisar principalmente a relação destas três obras e demonstrar a atualidade de Mil platôs a partir da relação entre a máquina de guerra e do aparelho de Estado a qual se considera aqui diretamente relacionada à relação do pensamento com a terra ou da filosofia com a terra no que diz respeito à geo-filosofia definida por eles em O que é a filosofia?, bem como demonstrar que estas relações têm seus pressupostos em sua primeira obra comum, Anti-Édipo.

1. A GEO-FILOSOFIA DE DELEUZE E GUATTARI No que diz respeito à relação entre estas três obras, como diz Alliez (1995), O que é a filosofia? se inscreve inevitavelmente na “movência de Capitalismo e esquizofrenia”, apesar de não podermos considerar como ele que a história da filosofia é senão uma geo-filosofia,4 pois pensamos que Deleuze e Guattari pretendem justamente por em questão aquela, diferenciar uma e outra, isto é, não identificá-las simplesmente.5 Mas se se considera aqui que a primeira obra está na movência das outras duas, é porque a filosofia enquanto arte de formar, inventar ou fabricar conceitos definida em O que é a filosofia? como um

2

Cf. DELEUZE, G e GUATTARI, F., p. 07, 1997. Cf. DELEUZE, G e GUATTARI, F., p.10, 1993. 4 Cf. ALLIEZ, E., p. 12, 1995. 5 É significativo esta tentativa de diferenciação quando Deleuze e Guattari criticam Hegel e Heidegger e todos que pensam como eles, por “permanecerem historicistas” e não considerarem que “a filosofia é uma geofilosofia”. (Deleuze e Guattari, p. 125: 1992) Neste sentido, Cf. DELEUZE, G e GUATTARI, F. p. 123s, 1992. 3

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construtivismo filosófico proposto por eles já está compreendida no plano de composição ou de imanência de Mil platôs6 e teve como seu principal construtor o personagem conceitual do Anti-Édipo criado por eles. Neste sentido, podemos dizer que, se há uma relação entre estas três obras, é na medida em que cada uma delas expressa, respectivamente, os três componentes da filosofia segundo Deleuze e Guattari, a saber: o conceito, o plano de imanência e os personagens conceituais. E este três componentes, por sua vez, encerram-se ainda, podemos conjecturar, no próprio conceito de geo-filosofia, na medida em que o prefixo geo relaciona-se com um plano de imanência, filo, quer dizer um personagem conceitual, o amigo ou amante, e sofia, o saber a ser adquirido enquanto conceito. 7 Analisando em primeiro lugar O que é a filosofia?, ela é uma obra-questão que pode ser traduzida pela questão O que é o conceito?, questão-título do primeiro capítulo da primeira parte desta obra que trata especificamente da Filosofia. Apesar deles não tratarem nesta parte apenas do que é o conceito, mas também do que é o plano de imanência e o que são os personagens conceituais, trata-se justamente de colocar em questão a criação de um conceito, no caso, um conceito de filosofia, mais especificamente o deles, isto é, o de uma geo-filosofia, que figura como título do quarto capítulo desta primeira parte.8 Ao criarem este conceito de geo-filosofia, Deleuze e Guattari modificam a maneira de pensar a filosofia que não se origina, segundo eles, de um determinismo dialético da história, mas de um devir geográfico, de um meio ou de um ambiente, de modo que, se eles consideram que a filosofia aparece na Grécia, isto não se deve a uma necessidade histórica, e sim, a uma contingência geográfica. No caso, a dos filósofos estrangeiros fugidos dos Estados imperiais terem encontrado na Grécia:

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Deleuze e Guattari definiam já Mil platôs como um projeto “construtivista”, mesma definição que eles dão à filosofia em O que é a filosofia? Cf. DELEUZE, G e GUATTARI, F., p. 08, 1997 e p. 51, 1992. 7 Estas relações não foram pressupostas pelos autores, todavia, ela pode ser percebida quando analisamos cada componente e obra em particular e identificamos suas singularidades. 8 Deleuze e Guattari consideram que foi Nietzsche quem “fundou a geo-filosofia, procurando determinar os caracteres nacionais da filosofia francesa, inglesa e alemã”. Todavia, consideramos este conceito como propriamente formulado por eles na esteira do que Braudel diz da história, pois segundo Deleuze e Guattari (p.125, 1992) “A filosofia é uma geo-filosofia, exatamente como a história é uma geo-história, do ponto de vista de Braudel”. Sobre a geo-filosofia, Cf. DELEUZE, G e GUATTARI, F., pp. 125 e 133, 1992.

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Theoria -Revista Eletrônica de Filosofia Faculdade Católica de Pouso Alegre uma pura sociabilidade como meio de imanência (…) um certo prazer de se associar, que constitui a amizade, mas também de romper a associação (…) um gosto pela opinião, inconcebível num império, um gosto pela troca de opiniões, pela conversação. (Deleuze e Guattari, p. 116, 1992.)

Devir, meio e ambiente, portanto, são as três condições contingentes para o surgimento da filosofia na Grécia, mas que se repetem de modo diferente na Europa moderna e em qualquer lugar. Todavia, eles advertem que pode acontecer uma confusão da filosofia com a religiosidade quando o meio de imanência ou plano de imanência traçado pelo filósofo enquanto personagem conceitual para criar os conceitos é apropriado por uma transcendência, isto é, considerado como imanente a algo, o que é um problema histórico da filosofia, pois, segundo Deleuze e Guattari (1992, p. 62.): “Cada vez que se interpreta a imanência como ‘a’ algo, produz-se uma confusão do plano com o conceito, de modo que o conceito se torna um universal transcendente, e o plano, um atributo no conceito.” E deste modo em vez de instaurarem uma filosofia pura, confunde-se filosofia e religiosidade, criando-se sobre o plano de imanência figuras divinas que o ladrilham e o povoam em vez de conceitos. A relação entre a imanência e a transcendência é um problema à geo-filosofia na medida em que é esta relação que define a criação dela enquanto conceito e saber e é uma preocupação particular de Deleuze em suas obras individuais, nas quais ele busca afirmar de vários modos uma filosofia da imanência em detrimento de uma filosofia da transcendência, seja a partir do conceito de ilhas desertas em relação a uma ilha santa, seja com o conceito de simulacro em relação ao modelo platônico, com o conceito de diferença e repetição em relação ao de identidade e de representação aristotélica, hegeliana ou mesmo leibniziana, e através de uma lógica do sentido em relação ao sentido da lógica. Isto porque em todos estes casos, ele busca uma inversão ou reversão destes por aqueles, uma linha de fuga daqueles em relação a estes no sentido de uma afirmação da imanência em vez de sua negação como existe em cada um destes casos, o que esta inversão e reversão podem-se perceber, principalmente, em relação ao platonismo. No caso deste, para Platão, o simulacro é uma cópia da cópia do modelo e, por isso mesmo, deve ser negado ou excluído, o que Deleuze tenta reverter ao considerar o simulacro uma potência de afirmação da cópia em relação ao modelo, demonstrando como este é, na verdade, criado por aquele. Neste sentido, segundo ele, deve-se fazer uma leitura do mundo que não parta do princípio de que “só o que se parece difere”(Deleuze, 1998, p. 267), isto é, em que a semelhança e similitude são pensadas como origem da diferença, mas sim, que leve em conta que “‘somente as diferenças se parecem’”, e,

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neste sentido, “pensar a similitude e mesmo a identidade [do modelo] como o produto de uma disparidade de fundo [do simulacro]” (Deleuze, 1998, p. 267). Esta disparidade de fundo, no caso, é aquilo que permite a Deleuze e Guattari criarem sua geo-filosofia de modo imanente, na medida em que, por um lado, de um ponto de vista relativo, consideram a terra como desterritorializada, atravessada por tipos psicossociais que a desterritorializam a cada vez que passam de um território a outro, mas que também a reterritorializam a cada vez que criam nela outros territórios. E, por outro lado, de um ponto de vista absoluto paralelo àquele, a consideram um plano de imanência no qual o filósofo enquanto personagem conceitual cria nele seus conceitos. Disparidade que não quer dizer uma dualidade ou dialética do pensamento, mas uma univocidade do pensamento pensado de modo imanente segundo a geo-filosofia de Deleuze e Guattari que diz respeito à existência de um só e mesmo sentido da terra ao pensamento, ainda que de dois modos diferentes, o relativo e o absoluto, de um ponto de vista histórico, físico, psicológico, social, geológico e astronomicamente. Segundo esta univocidade, há um paralelo entre o devir relativo de desterritorialização e reterritorialização dos tipos psicossociais sobre a terra e o devir absoluto também de desterritorialização e reterritorialização dos personagens conceituais no plano de imanência, que pode ser dito em um só e mesmo sentido, pois o devir relativo é um devir absoluto dos tipos psicossociais em personagens conceituais que se desterritorializam e reterritorializam a terra como um plano de imanência, ainda que em todos estes casos haja uma irredutibilidade de um em relação ao outro, isto é, não se confunda o absoluto e o relativo. Absoluto e relativo que dizem respeito também às criações destes devires, no caso dos primeiros sendo criadas máquinas de guerra, e do segundo, paralela e respectivamente, conceitos imanentes. Devires relativos e absolutos imanentes que Deleuze e Guattari tentam fazer fugir aos devires relativos e absolutos transcendentes criados também pelos tipos psicossociais e personagens conceituais assim como tentam fazer fugir o anti-Édipo do Édipo inconscientemente.

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2. AS MÁQUINAS DESEJANTES DO ANTI-ÉDIPO E O APARELHO DE REPRESSÃO EDIPIANO A univocidade desta dupla maneira de pensar a terra de modo imanente ou, propriamente, a univocidade da terra imanente, de um ponto de vista relativo e absoluto, constitui a geo-filosofia de Deleuze e Guattari que eles buscam fazer escapar à ilusão de transcendência a partir da qual a imanência é considerada imanente a uma transcendência ou a algo transcendente, tanto de modo absoluto quanto de modo relativo. É na relação estabelecida por eles entre o social e o político, por um lado, e o inconsciente desejante por outro que vemos estabelecer-se esta primeira trincheira de sua geo-filosofia na medida em que toda a crítica que a esquizo-análise deles faz à psicanálise em Anti-Édipo diz respeito à relação entre a produção desejante e a produção social não ser mediada ou exprimida pelo complexo familiar a partir da representação do Édipo, e sim, que há uma relação imediata entre o investimento de desejo e o investimento de um campo social que atravessa a família e a limita. E se a questão qual é o primeiro, o pai ou o filho ainda se coloca na esquizo-análise, para ela, não se trata de analisar o filho primeiramente, e sim, esquizo-analisar o pai e a psicanálise, “pois é o pai paranoico que edipianiza o filho”. Segundo Deleuze e Guattari, ao analisar o filho e não o pai, a psicanálise parte de um problema situado na criança e busca resolver este problema nela mesma como se fosse produzido por ela e não naquele que o produziu, segundo eles, no caso, o pai, e quando considera que o pai seja o problema, ela retoma o mesmo princípio de que o problema está na criança, no caso, a criança que o pai um dia foi. Deste modo, numa regressão infinita, ela sempre considera uma “absurda teoria do fantasma, segundo a qual o pai, a mãe, as suas ações e paixões reais, devem ser, em primeiro lugar, compreendidas como ‘fantasmas’ da criança”. (Deleuze e Guattari, 1972, p. 287) Em meio a esta teoria do fantasma do pai, um fantasma individual, ela não sai, portanto, do triângulo familiar papá-mamã-eu, de como ele se produz e se reproduz, limitando-se a analisar tanto a produção desejante como a produção social, bem como a paranóia e a esquizofrenia relacionadas a elas, como produtos ou reproduções dos problemas pai-filho ou do complexo familiar do Édipo, papá-mamã-eu. Deste modo, considerando a produção desejante e a produção social como distintas em natureza a partir da família que exprime e recalca em sua reprodução a produção desejante e a sublima na produção social.

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Diferentemente disto, para a esquizo-análise a relação entre pai e filho e o complexo de Édipo é que são produtos e reproduções da relação entre a produção desejante e a reprodução social porque, primeiramente, para Deleuze e Guattari, não há nenhuma distinção de natureza entre a produção social da realidade e a produção desejante inconsciente, tão somente uma distinção de regime na medida em que a “produção social é simplesmente a produção desejante em determinadas condições”, ainda que estas condições sejam a de uma “repressão social” do próprio desejo. E se existe uma distinção de natureza, ela é entre a produção desejante social e a reprodução familiar, entre o anti-Édipo e suas máquinas esquizofrênicas, desejante e social, e o Édipo e seus aparelhos de repressão paranoicos, aqueles explicando e curando possivelmente estes, em vez destes aqueles.9 No que diz respeito a isto, a tarefa da psiquiatria materialista ou esquizo-análise de Deleuze e Guattari é introduzir a concepção de que há um desejo na produção e uma produção no desejo de um ponto de vista social, isto é, considerar que há uma produção desejante da sociedade pois, segundo eles, “O desejo é da ordem da produção e qualquer produção é ao mesmo tempo desejante e social.” (Deleuze e Guattari, p. 308, 1972.) Em segundo lugar, pensar como ela investe a produção social independente do ponto de vista da representação familiar edipiana, papá-mamã-eu, e da crença nesta representação. Com isso, a esquizoanálise busca desedipianizar o inconsciente e demonstrar que ele é a-edipiano, que ele não é exprimido, representado ou mediado por um teatro ou complexo de Édipo e seu triângulo papá-mamã-eu, e sim, que é uma fábrica com suas máquinas desejantes, bem como entre a produção desejante e a produção social dele não há mediação na medida em que há entre elas uma identidade de natureza em suas diferenças de regime. Isto é, busca reverter a subordinação e conversão do inconsciente e da sociedade ao Édipo produzida não simplesmente pela psicanálise, mas pelo capitalismo, assim como se buscou reverter a ilha santa, o modelo platônico e a identidade e a representação segundo o sentido da lógica a partir, respectivamente, da ilha deserta, do simulacro, da diferença e repetição segundo a lógica do sentido. Não por menos, a partir dela, buscando também reverter a captura e a subordinação da máquina de guerra ao aparelho de Estado.

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Deleuze e Guattari estabelecem aqui a mesma univocidade de pensamento imanente da geo-filosofia que explicitamos anteriormente em sua duplicidade de modos, o relativo e o absoluto, a qual eles antecipam ao pensarem de modo unívoco e imanente o insconciente e o social tentando fazer estes escaparem em sua esquizofrenia da transcendência consciente do Édipo e do Estado em sua paranoia.

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3. A MÁQUINA DE GUERRA NÔMADE E O APARELHO DE ESTADO SEDENTÁRIO Quando Deleuze e Guattari retomam a perspectiva social e política de Anti-Édipo em Mil Platôs dando sequência ao primeiro tomo de Capitalismo e Esquizofrenia, eles sabem que o objetivo do primeiro tomo não foi atingido, nem seria do ponto de vista negativo que eles mesmos impuseram no título. Contudo, a relação entre a máquina de guerra e o aparelho de Estado que atravessa todos os Mil Platôs está diretamente relacionada àquilo que inconscientemente eles queriam atingir com o anti-Édipo enquanto personagem conceitual de sua geo-filosofia, no caso, a multiplicidade, de sexos, mas também de pontos de vista sobre os sujeitos enquanto tipos psicossociais, históricos, geográficos, linguísticos, biológicos, ou ainda, a-humanos. Sob este ponto de vista, se foi necessária a existência destes tipos psicossociais em seu devir relativo para povoar a terra imanente e relativa com seus mil platôs, nela construindo seus territórios, desterritorializando-os e os reterritorializando com suas máquinas desejantes inconscientes, não menos necessário foi a existência do anti-Édipo enquanto personagem conceitual para povoar o plano de imanência absoluto da geo-filosofia de Deleuze e Guattari, construindo nele seus conceitos. Em particular, o conceito de máquina de guerra nômade, dentre tantos outros com os quais eles povoaram seus mil platôs, a partir do qual eles buscam fazer escapar a imanência e o inconsciente maquínico da transcendência consciente do aparelho de Estado sedentário. É sob o duplo ponto de vista exterior e interior ao aparelho de Estado, isto é, do que se reduz e não se reduz à soberania política do Estado, que o conceito de máquina de guerra nômade vai retomar a produção desejante das máquinas desejantes do anti-Édipo buscando se colocar de modo exterior àquilo define propriamente o Estado, isto é, sua soberania política que tenta apropriar-se dela, capturá-la com seus aparelhos, já que esta soberania “só reina sobre aquilo que ela é capaz de interiorizar, de apropriar-se localmente”. (Deleuze e Guattari, p. 23, 1997, v.5) Primeiramente, eles consideram que a máquina de guerra é exterior ao Estado porque é irredutível a ele em sua “multiplicidade pura e sem medida”, vindo sempre de fora como uma “malta, uma irrupção do efêmero e potência da metamorfose”, um devir do guerreiro mítico que se interpõe entre as duas cabeças do Estado, duas cabeças mitológicas, “a do rei-mago” e a do “sacerdote-jurista”, sua dupla articulação a fazer dele um estrato procedendo por Um-Dois, binariamente. No caso, um devir guerreiro que não se deixa agarrar

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por nenhuma delas em sua “estupidez, deformidade, loucura, ilegitimidade, usurpação, pecado”, pois ele “está na situação de trair tudo, inclusive a função militar, ou de nada compreender”. (Deleuze e Guattari, 1997, p. 15, v.5) Neste sentido, ela é concebida negativamente, e deve ser reduzida em sua multiplicidade ao que se opõe ao Estado, apropriada ou destruída por ele, confundindo-se ora com sua violência mágica, ora com sua instituição militar, “Donde a desconfiança dos Estados face à sua instituição militar, dado que esta procede de uma máquina de guerra extrínseca”. (Deleuze e Guattari, 1997, p. 16, v.5) Se há uma exterioridade e uma precedência da máquina de guerra em relação ao aparelho de Estado, todavia não há relação evolutiva de uma a outro, segundo eles, pois o Estado não provém de uma máquina de guerra e esta não é deduzida dele. O aparelho de Estado não tem uma máquina de guerra, ele tão somente se apropria de uma na medida em que é principalmente uma potência de apropriação ou um aparelho de captura com seus dois pólos, o “Imperador terrível e mágico” e o “Rei sacerdote e jurista”. A guerra lhe é exterior, como é exterior o guerreiro a estes dois pólos ainda que se confunda com eles por uma violência. O primeiro pólo corresponde ao aparelho de Estado imperial ou despótico, isto é, um Urstaat original que surge de uma vez só, incondicionado, e a captura que ele empreende implica a substituição econômica da “troca aparente” das sociedades primitivas e nômades por um “estoque”. O outro pólo do aparelho de Estado, o pólo do Rei sacerdote e jurista não age através de captura, mas por pacto e contrato, não sobrecodifica o fluxo indiviso da máquina de guerra, mas tem como nova tarefa conjugar fluxos descodificados e desterritorializados de toda a parte, e, ao invés de uma servidão maquínica, produzir uma sujeição social que retoma a máquina de guerra, porém, com outros fins, o de um Estadonação e de uma máquina de guerra mundial capitalista, pois A esfera pública não caracteriza mais a natureza objetiva da propriedade, mas é antes o meio comum de uma apropriação que se tornou privada; entra-se, assim, nos mistos público-privado que constituem o mundo moderno. O laço se torna pessoal; relações pessoais de dependência, ao mesmo tempo entre proprietários (contratos) e entre propriedades e proprietários (convenções), duplicam ou substituem as relações comunitárias e de função; mesmo a escravidão não define mais a disposição pública do trabalhador comunal, mas a propriedade privada que se exerce sobre trabalhadores individuais. (DELEUZE E GUATTARI, 1997, p. 148, v. 5).

Neste Estado-nação, o aparelho de Estado se transforma no modelo de realização da axiomática imanente do capitalismo na medida em que ele conjuga os fluxos descodificados que acorrem a ele para consumir o excedente de estoque e, assim, produz um novo excedente,

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não mais de estoque, e uma nova mais valia, não mais de códigos, mas de fluxos descodificados que ele tem a cada vez de recodificar e reterritorializar em si como nação, terra natal de um povo, pois a terra deixa de ser fonte de renda fundiária para ser a subjetivação de um povo, ela desterritorializa o território e o povo descodifica a população. E é “sobre esses fluxos descodificados e desterritorializados que a nação se constitui, e não se separa do Estado moderno que dá uma consistência à terra e ao povo correspondentes.” (Deleuze e Guattari, 1997, p. 157, v. 5.) A máquina de guerra e o aparelho de Estado constituem, deste modo, dois modos sociais e políticos de se relacionar com a terra, um nômade e o outro, sedentário, que pressupõem não por menos dois modos da filosofia pensar a terra, um imanente e o outro, transcendente, ambos colocados em questão com a geo-filosofia de Deleuze e Guattari em Mil platôs.

CONCLUSÃO Enquanto modos de pensar e se relacionar com a terra, a máquina de guerra e o aparelho de Estado constituem dois modos de se separar e se ligar à terra, ou como dizem eles, de desterritorializá-la e reterritorializá-la na medida em que terra e território se confundem tanto no pensamento como social e politicamente. A esta separação e ligação da terra é o que denominamos propriamente um a-partamento da terra que se faz de modos diversos caso consideremos um ou outro modo de pensar e se relacionar com ela. Por um lado, do ponto de vista de um pensamento filosófico imanente absoluto, este a-partamento ou separação e ligação ao mesmo tempo corresponde a uma desterritorialização absoluta da terra num plano de imanência e sua reterritorialização no conceito a partir de personagens conceituais, em contrapartida, num pensamento transcendente absoluto, corresponde a sua desterritorialização absoluta numa ilusão de transcendência e reterritorialização em figuras a partir de personagens divinos. Por outro lado, do ponto de vista social e político imanente relativo, o a-partamento ou separação e ligação com a terra ao mesmo tempo corresponde a uma desterritorialização da terra num espaço liso e sua reterritorialização numa máquina de guerra a partir dos nômades, e, de modo transcendente social e politicamente, a uma

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desterritorialização dela num espaço estriado e sua reterritorialização num aparelho de Estado a partir dos sedentários. Estes dois modos de pensar e se relacionar com a terra, todavia, não apenas se diferenciam em relação a ela, mas também entre si, de modo que há também uma separação e uma ligação entre eles, o que, consequentemente, o que aqui denominamos por um apartamento não se restringe somente a eles em relação à terra, como também entre si. Neste sentido, há um a-partamento ou separação e ligação ao mesmo tempo entre os dois modos de pensar a terra entre si, o imanente e o transcendente, bem como dois modos de se relacionar com ela entre si, o nômade e o sedentário. E, não por menos, entre um modo de pensar a terra e um modo de se relacionar com ela também existe este a-partamento, no caso, entre o modo de pensar imanente e o modo de se relacionar nômade e entre o modo de pensar transcendente e o modo de se relacionar sedentário. Assim, podemos concluir que, segundo a geo-filosofia de Deleuze e Guattari em Mil platôs, o modo de pensar a terra, seja ele imanente ou transcendente, e o modo de se relacionar com ela, seja nômade ou sedentário, é o de uma separação e ligação ao mesmo com a terra, isto é, de um a-partamento com ela.

REFERÊNCIAS ALLIEZ, Eric. A assinatura do mundo: o que é a filosofia de Deleuze e Guattari? Tradução de Maria Helena Rouanet e Bluma Villar (apêndices). Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. DELEUZE, G. Lógica do sentido. Tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1988. DELEUZE, G e GUATTARI, F. Mil Platôs. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira. São Paulo: Editora34, 1997. v.1. _________. Mil Platôs. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira. São Paulo: Editora34, 1997. v.5. _________. O Anti-Édipo. Tradução de A. Campos. Lisboa: Assírio e Calvim, 1996. _________. O que é a Filosofia?. Tradução de Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 1993.

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O PROBLEMA DO EGOÍSMO HUMANO A PARTIR DA CONCEPÇÃO HOBBESIANA DE ESTADO DE NATUREZA THE PROBLEM OF HUMAN SELFISHNESS FROM THE CONCEPTION OF HOBBESIAN STATE OF NATURE

Gerson Vasconcelos Luz1

RESUMO: O artigo se propõe a refletir acerca do comportamento humano na inexistência do Estado civil. Conforme Hobbes, em tal situação, geralmente denominada estado de natureza, os homens estão constantemente dispostos a agirem em função da obtenção do bem apenas para si. O outro indivíduo é visto como inimigo. Considerando que cada qual naturalmente possui direito a todas as coisas, vive-se em perpétuo conflito de interesses interpessoais. Isso nos faz, muitas vezes, pressupor que o homem é naturalmente um animal malevolente. Contrapondo a essa ideia, nos propomos a analisar a concepção de indivíduo apresentada pelo autor a partir de interesses intrínsecos em torno de questões específicas, tais como, a autoconservação e a busca da realização do bem de si. O homem não é um animal bom ou ruim, mas naturalmente egoísta. Palavras-chave: Egoísmo, Estado de natureza, Autoconservação. ABSTRACT: The article aims to reflect about human behavior in the absence of the civil state. As Hobbes, in such a situation, usually called state of nature, men are constantly willing to act to the achievement of good just for you. The other individual is seen as an enemy. Whereas each course has all the right things, it lives in perpetual conflict interpersonal interests. This makes us often assume that the man is of course a malevolent animal. Opposed to this idea, we propose to analyze the conception of the individual presented by the author from intrinsic interests around specific issues, such as self-preservation and the pursuit of doing good to you. The man is not good or bad, but naturally selfish animal. Keywords: Selfishness, State of nature, Self-preservation.

Por estado de natureza se compreende a situação na qual o homem não identifica limites no seu campo de ação e, entre outras características marcantes, não reconhece poder estatal acima de si. Nesse sentido, nosso objetivo é investigar o comportamento humano sob tal circunstância hipotética. Ou, numa indagação: que tipo de convivência se pode esperar humano na inexistência do Deus Mortal, o Leviatã? Conforme Hobbes (2003, p. 109), “[...] durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de mantê-los todos em temor respeitoso, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra de todos homens contra todos os homens”.

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Mestre em Filosofia pela UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Professor de Filosofia vinculado a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. E-mail: vasconceluz@yahoo.com.br. Artigo recebido em 16/01/2014 e aprovado para publicação em 01/07/2014.

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Diante disso, interroguemos: o homem é naturalmente um ser bélico? Ou a belicosidade é um produto resultante do modo pelo qual os indivíduos visam satisfazer suas paixões egoístas? A expressão guerra por si só já nos leva a pressupor que se trata de um estado oposto à vida confortável e segura. Seria contraditório afirmar que as supostas condições naturais favorecessem a vida. Entre outras espécies animais, como leões, lobos, formigas, abelhas, a natureza – ao que parece – representa o estado mais adequado, mas entre homens, seres de paixões imutáveis e ativas, a cidade é a condição mais apropriada. No estado de natureza, embora compreendido como uma situação de liberdade ilimitada, o efeito resultante do comportamento se contrapõe aos desideratos dos homens, pois a busca pela satisfação das necessidades em torno da conservação da existência biológica e da vida mais confortável encontra o seu lado reverso: a miséria e o medo recíproco da morte violenta. Embora se trate de uma guerra de todos contra todos, o homem não possui (necessariamente) uma natureza bélica, uma disposição natural para produzir danos um ao outro. Ou, para traduzir numa ideia que se contrapõe à concepção comum em torno do pensamento hobbesiano e que é fruto de leituras aparentemente pouco aprofundadas, o homem não é mau por natureza. Como vimos, a natureza humana é uma somatória de faculdade e de poderes naturais. Nesse sentido, a princípio, todo indivíduo age em vista da obtenção do bem para si mesmo. A beligerância que há entre os indivíduos é consequência ou reflexo de como se vive, do modo pelo qual se usam as paixões em torno desse bem para si. Pode-se afirmar que o homem não é bom nem mau, pois suas ações são centradas em si mesmo, naquilo que mais lhe importa considerar no mundo: a própria existência. Certas espécies, como a formiga e a abelha, vivem naturalmente em harmonia umas com as outras. Nesse caso, pressupõe-se que a razão que sustenta um tipo de vivência comum aparentemente sem conflitos significativos está no uso regrado e restrito das paixões. Esses animais têm poucas preocupações e todas elas parecem estar ligadas às necessidades fundamentais da existência biológica, como a alimentação, a procriação, a habitação, o descanso do corpo e coisas semelhantes relacionadas à conservação de si. Diante disso, Hobbes coloca a seguinte indagação: “[...] talvez haja alguém interessado em saber por que a humanidade não pode fazer o mesmo” (HOBBES, 2003, p. 145).

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Para mostrar a pertinência de sua tese, o filósofo enumera seis razões pelas quais humanos e animais se distinguem quanto ao que podemos denominar espírito beligerante. Nota-se, na sequência argumentativa que reproduziremos adiante, que o motivo da guerra entre nós deriva das paixões; mais especificamente, de seu uso desbragado. Primeiro, entre eles [homens] há uma disputa por honra e precedência, enquanto os animais não têm nada disso. Daí que só para os homens haja ódio e inveja, de que brotam sedição e guerra, e não para os animais. Depois, o apetite natural das abelhas e criaturas semelhantes é sempre uniforme, e elas desejam todas um bem comum que não se diferencia do bem particular. Já o homem dificilmente considera boa qualquer coisa cujo gozo não porte alguma proeminência a avantajá-la sobre aquelas coisas que os demais possuem (HOBBES, 1992, p. 107).

Nota-se que o problema não está tanto no cultivo particular da honra e da precedência. O fator de complicação aparece no modo pelo qual se estabelece a competição entre os homens. Quanto a isso, observemos dois conceitos centrais que estão na base da competição, a saber, a emulação e a inveja. Nesse sentido, explica Hobbes (2003, p. 54), “[...] a tristeza causada pelo sucesso de um competidor em riqueza, honra e outros bens, se se lhe juntar o esforço para aumentar as nossas próprias capacidades, a fim de o igualar ou de o superar, chama-se EMULAÇÃO”. Quando, nesse esforço de igualamento ou de superação, o competidor cria obstáculos com o intuito de mais facilmente atingir seus objetivos, denominase inveja. Prossegue: Terceiro, as criaturas privadas do uso da razão não vêem defeito, ou pensam não vê-lo, na administração de suas repúblicas (commonwealths), ao passo que numa multidão de homens sempre há muitos que, supondo-se mais sábios que os outros, empenham-se em inovar, e diversos inovam de distintas maneiras, o que traz a dissensão interna [...]. Quarto, essas criaturas brutas, embora possam ter uso da voz o bastante para transmitir suas afecções umas às outras, carecem porém daquela arte das palavras que é requisito necessário para todos os movimentos da mente, pela qual o bem é representado a esta como sendo melhor, e o mal pior, do que realmente são (HOBBES, 1992, p. 107).

Nota-se, nesses dois argumentos, que, primeiro, embora a razão seja algo comum aos animais, a existência da cadeia articulada de pensamentos no homem é fonte de diferenciação. Como vimos, essa cadeia é orientada sempre por algum desejo ou desígnio. Outras criaturas têm seus pensamentos regulados sempre em vista de necessidades básicas da existência biológica. Consequentemente, por possuir o que Hobbes denomina de cadeia desgovernada de pensamentos, não lhes é possível a linguagem no sentido em que é concebida nos humanos.

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Prossegue: Quinto, elas não sabem distinguir injúria de dano, de modo que, enquanto tudo lhes corre bem, não censuram suas semelhantes. [...]. Finalmente, o consentimento de tais criaturas brutas é natural, o dos homens apenas por pacto, ou seja, artificial. Por isso não é de estranhar que algo mais seja necessário aos homens, para que possam viver em paz (HOBBES, 1992, p. 107).

Cabe destacar que, na visão de Hobbes, as paixões humanas são imutáveis. Assim, defesa da honra e da dignidade, a busca do útil para si e do bem particular e paixões afins, são uma constante no ser humano. O problema é que não se trata de um estado constituído por dominadores e dominados. Ao contrário de pensadores como Aristóteles, Hobbes não reconhece que uns nasceram para dominar ou escravizar e outros para serem dominados ou escravizados. Todos são agentes e todos tendem a querer dominar. O ponto de partida para a satisfação das carências é a igualdade e não a diferença quanto ao direito aos recursos e aos objetos de interesse humano, visto que, na medida em que alguém toma do todo algo para si, subtrai tal coisa do que é do outro. Pois, para o outro agente, tudo é seu. Trata-se, portanto, de uma problemática ligada à igualdade de direito: A natureza deu a cada um um [grifo nosso] direito a tudo; isso quer dizer que, num estado puramente natural, [...] era lícito cada um fazer o que quisesse, e contra quem julgasse cabível, e portanto possuir, usar e desfrutar tudo o que quisesse ou pudesse obter (HOBBES, 1992, p. 36).

Como escreve Santillán (1998, p. 21), a explicação hobbesiana da igualdade natural entre os homens é uma afirmação totalmente laica, realista, sem raízes no sistema de valores e sem pressupostos metafísicos ou religiosos. Trata-se de uma concepção fundamental para compreendermos o comportamento humano na condição não estatal. Nesse sentido, a igualdade deve ser pensada sob três aspectos principais, a saber: primeiro, a igualdade de direitos; segundo, a igualdade quanto às capacidades físico-mentais; terceiro, a igualdade quanto à esperança de atingir certos fins. Quanto ao último aspecto, observemos que a sua consequência imediata está na possibilidade ou no fato de que, argumenta Hobbes (2003, p. 107), “[...] se dois homens desejarem a mesma coisa, no mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos”. Diante disso, nota-se que os homens não são inimigos naturais; a paixão a que chamamos de inimizade é manifestada quando a necessidade de competição se faz Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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presente. Nesse sentido, a inimizade é o ponto-chave para o estabelecimento do clima de guerra que constitui o estado de natureza. Antes, porém, de enobrecer ou envilecer o pensamento hobbesiano em torno da natureza humana, devemos observar a seguinte coisa: a razão pela qual nos tornamos inimigos está ligada principalmente à autoconservação e, às vezes, apenas ao deleite em torno dessa necessidade natural (HOBBES, 2003, p. 107). Ora, na inexistência de um mecanismo que assegure que a outra parte envolvida numa disputa obedeça a certas leis da natureza2, ambos agem de modo, não a querer apenas o útil para si, mas a querer subjugar e destruir o outro. Em relação ao segundo aspecto, deve-se destacar que, conforme Hobbes, alguns indivíduos possuem massas musculares e corpos mais robustos que outros; portanto, são mais fortes. Outros são mais astuciosos. A diferença é, porém, pequena para que, com base nela, possamos derivar uma teoria da desigualdade natural. Nesse sentido, pressupõe-se que, “[...] quanto à força corporal, o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo” (HOBBES, 2003, p. 106). Em Do Cidadão há uma passagem na qual o nosso autor expõe a questão de um modo mais preciso e enfático: [...] Se examinarmos homens já adultos, e considerarmos como é frágil a moldura de nosso corpo humano (que, perecendo, faz também perecer a nossa força, vigor e mesmo sabedoria), e como é fácil até o mais fraco dos homens matar o mais forte, não há razão para que qualquer homem, confiando em sua própria força, deva se conceber feito por natureza superior a outrem. São iguais aqueles que podem fazer coisas iguais um contra o outro; e aqueles que podem fazer coisas maiores (a saber: matar) podem fazer coisas iguais. Portanto, todos os homens são naturalmente iguais entre si [...] (HOBBES, 1992, p. 33).

A igualdade quanto à capacidade de atingir os fins almejados, que faz os homens em dadas circunstâncias enxergarem-se como inimigos, gera um clima de desconfiança recíproca. Com isso, há apenas um meio de garantir para si o objeto de disputa: procurando antecipar-se ao concorrente. A antecipação é obtida com astúcia, força; com as virtudes cardeais. E isso é o que exige a própria necessidade de conservação de cada agente (HOBBES, 2003, p. 108).

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A 12º lei da natureza estabelece como regra: “[...] que as coisas que não podem ser divididas sejam gozadas em comum, se assim puder ser; e se a quantidade da coisa o permitir, sem limite; caso contrário, proporcionalmente ao número que a ela têm direito” (HOBBES, 2003, p. 133). Essa lei deriva da 11ª, que versa sobre a equidade.

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Aparentemente, a antecipação remete à ideia de que há escassez de recursos na natureza, o que poderia levar ao conflito. Nesse sentido, Bobbio (1991, p. 34) defende a seguinte ideia: “[...] a igualdade de fato, unida à escassez de recursos e ao direito sobre tudo, destina-se por si só a gerar um estado de impiedosa consciência, que ameaça converter continuamente em luta violenta”. Ao atentarmos para os textos de Hobbes, podemos, porém, notar que a escassez não é de fato um elemento que contribui significativamente para o problema do conflito. Assim, não devemos situar a escassez no sentido de que a natureza seria parca em recursos. O problema está em que, muitas vezes, muitos quererem algo que não pode pertencer ao mesmo tempo a todos. O motivo da guerra estaria ligado a fatores internos e externos ao indivíduo. Dada a igualdade em termos de capacidades quanto às paixões, principalmente o interesse próprio (self-interest), os homens estariam sempre dispostos a digladiarem por aquilo que almejam. A razão principal pela qual se procura antecipar e obter para si o objeto de interesse é a busca pela ampliação do poder. Nesse sentido, comenta Marques: Ainda que todos estivessem satisfeitos com sua situação e desejassem desfrutar pacificamente dela, a mera possibilidade de que alguém pudesse tentar ampliar seu poder por meio de conquistas leva à necessidade de que mesmo os mais pacíficos venham a tomar medidas preventivas voltadas para a expansão do próprio poder (MARQUES, 2009, p. 85).

O termo poder é uma palavra-chave para compreendermos as razões pelas quais os homens se digladiam em torno da obtenção de seus interesses pessoais. Nesse sentido, Bobbio (1991, p. 35) faz o seguinte comentário: “[...] na realidade, o que impulsiona o homem contra o homem é o desejo inesgotável de poder”. Na perspectiva de Hobbes, poder significa meio para a realização de um dado desejo3. Não se trata de algo moralmente bom ou mau, mas de um elemento que contribui para a busca da realização do interesse próprio. Do ponto de vista lógico, quanto mais recursos um homem conseguir para si, mais provável será a possibilidade quanto à sobrevivência e a uma vida confortável. O conceito de vida confortável pressupõe que os indivíduos acumulem certos bens, mas essa necessidade, no fundo, torna o pretenso possuidor alvo das paixões e da vontade de dominação alheia. Isso se

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Nesse sentido, Hobbes anuncia duas acepções do conceito de poder, a saber, “[...] o poder natural é a eminência das faculdades do corpo ou do espírito: extraordinária força, beleza, prudência, destreza [...]. Os poderes instrumentais são os que se adquirem mediante as anteriores ou pelo acaso, e constituem meios e instrumentos para adquirir mais: como a riqueza, a reputação [...]” (HOBBES, 2003, p. 75-76).

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constitui mecanicamente num fator gerador de miséria. Noutras palavras, o resultado obtido é o inverso ao almejado. Conforme Bernardes (2002, p. 38), “[...] os indivíduos, como sujeitos desejantes e racionais, estão autorizados, pelo direito à vida e pelo direito aos meios, a disporem de todas as coisas para obterem os bens que julgam necessários para a manutenção de suas vidas”. Embora no estado de natureza todo homem possa fazer o que bem entender, ao que parece, não se trata do uso dos meios por mero deleite. As ações praticadas pelo indivíduo estão ligadas à necessidade de conservação ou ao desfrute em torno disso. Diante dessa questão, voltemos nossas atenções para o conceito hobbesiano de felicidade, que significa: “[...] sucesso contínuo na obtenção daquelas coisas que de tempos em tempos os homens desejam, [...]” (HOBBES, 2003, p. 57). Observemos também esta outra passagem: Visto que todo deleite é apetite, e que o apetite pressupõe um fim mais distante, segue-se então que não pode haver nenhum contentamento senão no próprio prosseguir; portanto não devemos nos surpreender quando vemos que, quanto mais os homens obtêm mais riquezas, honras ou outro poder, tanto mais o seu apetite cresce continuamente, e quando atingem o mais alto grau de um tipo de poder, passam a perseguir outro, e assim o fazem sempre que se consideram atrás de alguém em algum tipo de poder (HOBBES, 2010, p. 29-30).

A vontade de prosperar constantemente faz brotar a competição – uma paixão que possibilita situações de conflito entre os homens. Além da competição, outras duas paixões são significativas para a existência do espírito beligerante: a desconfiança e a glória. A primeira, afirma Hobbes, “[...] leva os homens a atacar os outros tendo em vista o lucro; a segunda, a segurança; e a terceira, a reputação” (HOBBES, 2003, p. 108). Para Macpherson (1979, p. 36), as três causas de conflito são tendências que se manifestam em qualquer tipo de sociedade humana; mas elas se tornam paixões destrutivas quando não há poder comum que as mantenham reprimidas. Daí a dedução de que, antes da instauração do Estado, se vive em guerra de todos contra todos. O estado de guerra, escreve Hobbes, [...] não consiste apenas na batalha ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida. Portanto, a noção de tempo deve ser levada em conta na natureza da guerra [...]. Porque tal como a natureza do mau tempo não consiste em dois ou três chuviscos, mas numa

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Theoria -Revista Eletrônica de Filosofia Faculdade Católica de Pouso Alegre tendência para chover [...], também a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal [...] (HOBBES, 2003, p.109).

Na passagem transcrita, Hobbes deixa claro que o estado de natureza não é um campo de batalha no qual os indivíduos se digladiam realmente o tempo todo. De um modo geral, o que há é uma predisposição para o conflito; uma tendência tão forte para tal coisa, que é capaz de provocar nos homens o medo da morte violenta. Foucault, no livro Em Defesa da Sociedade, nos oferece um rico comentário sobre a interpretação do estado de guerra do qual fala Hobbes. Escreve o francês: O que se encontra, o que se enfrenta, o que se entrecruza, no estado de guerra primitiva de Hobbes, não são armas, não são punhos, não são forças selvagens e desenfreadas. Não há batalhas na guerra primitiva de Hobbes, não há sangue, não há cadáveres. Há representações, manifestações, sinais, expressões enfáticas, astuciosas, mentirosas; há engodo, vontades que são disfarçadas em seus contrários, inquietudes que são camufladas em certeza. Está-se no teatro das representações trocadas, está-se numa relação de modo que é uma relação temporalmente indefinida; não se está realmente na guerra (FOUCAULT, 2000, p. 106).

Kayser (2007, p. 25), em acordo com a leitura de Foucault, observa que se trata de uma guerra em potência, uma batalha fictícia suficiente para provocar medo da morte violenta entre os homens. Nessas condições, o modo pelo qual os indivíduos visam realizar suas vontades, esse modo os coloca numa situação notadamente paradoxal: se, por um lado, existe a necessidade de se manterem acesas as chamas da vida, por outro, o estado de guerra representa uma constante ameaça. Se um homem está livre para utilizar os recursos que lhe são indispensáveis para melhorar as condições de vida, o outro, do mesmo modo, também se vale do mesmo direito. Essa disposição ilimitada de liberdade, que aparentemente traria felicidade e boa vida aos indivíduos, acaba sendo fonte de querelas; pois todo homem é guiado pelo interesse próprio. A predisposição humana à competição, à desconfiança e à glória, em si mesma, não constitui um problema significativo. Pelo contrário, trata-se de paixões que visam atender à necessidade de autoconservação. Esses elementos estariam muito mais para permitir o estabelecimento da prosperidade que para fomentar a miséria. O problema é a ausência de uma estrutura organizacional que neutralize o conflito. Se, por um lado, há uma tríade de paixões que permite a beligerância, por outro, há também outras três que nos projetam para a sociabilidade. Estas são, “[...] o medo da morte, o desejo daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável e a esperança de as conseguir por meio do trabalho” (HOBBES, Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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2003, p. 111). Entretanto, enquanto não se obtém o consenso entre todos os homens em prol da supressão do estado de guerra, tem-se na liberdade, ou seja, na ausência de limites externos à vontade do agente, uma fonte geradora de problemas de toda natureza.

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EPISTEMOLOGIA SEM UM SUJEITO CONHECEDOR? EPISTEMOLOGY WITHOUT A KNOWING SUBJECT? José Antônio Zago1 RESUMO: Este trabalho discute sobre a autonomia do mundo 3, conforme exposto no texto Epistemologia sem um sujeito conhecedor de Karl Popper. Popper defende a tese sobre a existência de três mundos, ou seja, o mundo 1 dos objetos físicos; o mundo 2 dos estados subjetivos e o mundo 3 o mundo do conhecimento objetivo. A questão é sobre a autonomia do mundo 3 que para Popper prescinde de um sujeito conhecedor. A hipótese apresentada é de que não existe autonomia do mundo 3 como propõe Popper, pois somente com a presença de um sujeito conhecedor é que se confirma a existência do mundo objetivo ou mundo 3. São utilizadas contradições na própria argumentação de Popper sobre a autonomia do mundo 3 e informações da teoria da relatividade, da física atômica e da mecânica quântica para fundamentar a demonstração da hipótese. Palavras Chave: Epistemologia, Sujeito conhecedor, Conhecimento objetivo, Mundo 3, Karl Popper. ABSTRACT This paper discusses on the autonomy of world 3, as outlined in the text Epistemology without a knowing subject of Karl Popper. Popper defends thesis on the concept of three worlds: the first world of physical objects, the second world of subjective states and the third world of objective knowledge. The question is about the autonomy of the third world to which Popper does without a knowing subject. The hypothesis presented is that there is no autonomy of world 3 as proposed by Popper, because only with the presence of a knowing subject is that it confirms the existence of the objective world or third world. Used are contradictions in the arguments of Popper on the autonomy of third world and information theory of relativity, atomic physics and quantum mechanics to reasoning in the statement of the hypothesis. Key Words: Epistemology, Knowing subject, Objective knowledge, World 3, Karl Popper.

INTRODUÇÃO

O tema deste trabalho surgiu a partir da leitura do texto Epistemologia sem um sujeito conhecedor de Karl Popper. Esse texto é a reprodução de uma palestra proferida por Popper em 25 de agosto de 1967 no Terceiro Congresso Internacional de Lógica, Metodologia e Filosofia das Ciências, ocorrido de 25 de agosto a 2 de setembro de 1967, em Amsterdã (POPPER, 1999, p. 108-150). Popper expõe sobre o conceito dos três mundos, ou seja, o mundo 1 dos objetos físicos, o mundo 2 dos estados subjetivos e o mundo 3 o mundo do 1

Mestre em Educação (Universidade Metodista de Piracicaba). Graduado em Filosofia e Psicologia. Professor do Instituto de Ensino Superior de Itapira (IESI). E-mail: joseantoniozago@ig.com.br. Artigo recebido em 09/03/2014 e aprovado para publicação em 01/07/2014.

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conhecimento objetivo. O problema é sobre o fato de Popper argumentar que o mundo 3, o mundo do conhecimento objetivo, é autônomo e que independe de um sujeito conhecedor. Segundo Peluso (1995) para Popper o que importa para a epistemologia é o mundo 3, pois é nele que surge e desenvolve o conhecimento científico. Duas são as características do conhecimento científico: a objetividade e a autonomia. A objetividade porque as teorias e os argumentos, embora sejam produtos da ação humana, têm uma existência real independente de um sujeito conhecedor. E a autonomia porque o ser humano cria o mundo do conhecimento, o qual, por sua vez, faz surgir novos problemas, soluções ou refutações. Assim, uma vez criado, esse conhecimento é relativamente autônomo, isto é, apesar de ser produto da criação humana, torna-se independente dela (POPPER, 1999). A hipótese que apresentamos é de que não existe autonomia do mundo 3 como propõe Popper, pois consideramos que somente com a presença de um sujeito conhecedor é que se confirma a existência do mundo objetivo ou mundo 3. Na discussão do tema-problema, e na tentativa de demonstrar a hipótese, destacamos contradições dos próprios argumentos de Popper quando defende a autonomia do mundo 3 em relação ao mundo dos estados subjetivos (mundo 2), bem como as contribuições de outros autores para fundamentar nossa argumentação. A escolha do tema está dentro de uma área importante da filosofia e de interesse acadêmico e fundamentado no trabalho Karl Popper, considerado um dos mais conceituado filósofo da ciência no mundo contemporâneo. Popper foi um fértil teórico da ciência e seu trabalho mais significativo nessa área é sobre a filosofia da ciência e epistemologia. Dentre muitas contribuições de Popper, além da interação entre os três mundos mencionados, também a contribuição da demarcação entre ciência e não-ciência, questionando, assim, por meio de seu racionalismo crítico, mitos como Freud, Marx, Adler (PELUSO, 1995).

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Portanto, escolher um tema dentro da filosofia da ciência e de questões que envolvem o conhecimento científico, além de vir ao encontro de nosso interesse acadêmico, possibilita o exercício do pensar radical e ousado que caracteriza o discurso filosófico. O texto está organizado da seguinte forma: na primeira parte apresentamos as contribuições de Popper para epistemologia, em especial sobre a concepção dos três mundos e seus objetivos, e a diferenciação de conhecimento subjetivo de conhecimento objetivo a partir do “problema de Hume” e do “problema de Kant”. Na segunda parte apresentamos argumentos com base em contradições no próprio texto de referência do tema para questionar a autonomia do mundo 3. Na terceira parte utilizamos informações da teoria da relatividade, fazendo uma analogia entre a equivalência de massa e energia com a equivalência de conhecimento vivo e conhecimento inerte, questionando a autonomia do mundo 3 que segundo Popper prescinde de um sujeito conhecedor. Na quarta parte destacamos algumas contribuições da física atômica e da mecânica quântica quanto a impossibilidade de separar o sujeito do conhecimento do objeto do conhecimento.

ESBOÇO DO PROGRAMA EPISTEMOLÓGICO DE POPPER Popper (1977, 1991, 1999) estabelece um racionalismo pluralista ao argumentar sobre a existência de três mundos. O primeiro mundo como o mundo dos objetos físicos e das coisas materiais. Contém assim a matéria, a energia e todos os artefatos produzidos pelo homem como os livros, obras de arte, ferramentas, máquinas, etc. O segundo mundo o mundo dos estados mentais e da consciência (subjetivo), das disposições psicológicas, crenças, estados inconscientes, etc. E o terceiro mundo o mundo que contém os mitos, a linguagem, artes, ideias, pensamento poético, pensamento filosófico, teorias científicas e conteúdos objetivos de pensamento científico, etc., o qual tem muito em comum com a teoria das Formas ou Ideias de Platão e do espírito objetivo de Hegel, contudo é diferente em questões cruciais. Por exemplo, o mundo das Ideias de Platão é imutável e inatingível, existente antes do homem, enquanto que o terceiro mundo de Popper é uma realização humana e que pode e deve ser modificado pela crítica, já que o homem dispõe da linguagem descritiva e da linguagem argumentativa:

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Theoria -Revista Eletrônica de Filosofia Faculdade Católica de Pouso Alegre O Mundo Um, recapitulo resumidamente, é o nosso meio físico usual, incluindo os organismos naturais. O Mundo Dois é o mundo das nossas vivências subjetivas, por exemplo, o mundo das nossas esperanças e receios, o mundo das nossas ideias, o mundo das vivências que experimentamos quando lemos um livro, quando tentamos compreender uma teoria. O Mundo Três é o mundo das teorias em si mesmas: o mundo dos conteúdos dos livros. A maioria dos objetos do Mundo Três pertence também, de um modo não muito sensível, ao Mundo Um. Um livro é um objeto físico e, nessa medida, um objeto do Mundo Um. Enquanto objeto físico, o livro pertence ao Mundo Um, e o conteúdo do livro ao Mundo Três. Quando alguém diz “Eu li a Bíblia” não quer com isso significar que passou as páginas de um livro grande e pesado, mas sim que apreendeu, de algum modo, o conteúdo. O conteúdo do Mundo Três do livro. (POPPER e LORENZ, 1990, p. 83).

Assim, o terceiro mundo contém sistemas teóricos, problemas e situações de problemas e argumentos críticos. Popper denomina também esses mundos de mundo 1, mundo 2 e mundo 3. A intermediação entre esses três mundos é realizada entre o mundo 2 e o mundo 1 e entre o mundo 2 e o mundo 3, mas nunca entre o mundo 1 e o mundo 3 (POPPER, 1977). O mundo 3 pode e deve ser modificado pelo mundo 2 por tentativa ou ensaio e erro, ao mesmo tempo em que o mundo 3 pode influenciar o mundo 2 e o mundo 1 por meio das teorias matemáticas e científicas. ”Por essas ligações a mente estabelece um elo indireto entre o primeiro e o terceiro mundos.” (POPPER, 1999, p. 153). A partir do conceito dos três mundos, Popper e Eccles (1992) apresentam como base a hipótese de que existem dois órgãos que se comunicam: um material, o cérebro; outro imaterial, a mente. Esta emerge num certo momento na história evolutiva, na qual o cérebro cria a linguagem e a linguagem amplia o cérebro. O mundo 3 é o mundo dos produtos de nosso espírito: “O espírito surge através de uma retroação: o cérebro cria a linguagem, a linguagem cria o cérebro, e ambos em conjunto criam a consciência superior do Eu.” (POPPER e LORENZ, 1990, p. 34) A relação cérebro-linguagem e a linguagem-cérebro fazem com que o homem seja ativo no ambiente, isto é, como os animais criam nichos, o homem também constrói e amolda o ambiente. Essa atividade do homem modelar o ambiente é inata, pois é característica de todo ser vivo buscar um mundo melhor ou tentar encontrar um mundo melhor para viver (POPPER e ECCLES, 1992). Em seu texto O balde e o holofote: duas teorias do conhecimento, Popper (1999, p. 313-332) demonstra que a mente não é como um balde mental ou um receptáculo vazio que é preenchido com impressões ou aprendizado direto do ambiente. Para Popper a mente produz hipóteses e teorias como um holofote; ela é ativa, detecta e propõe soluções a problemas. A

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observação tem papel importante, mas como teste para a hipótese. Trata-se, portanto, de uma crítica ao empirismo e de uma defesa ao racionalismo. Para Popper (1998) toda observação está impregnada de teoria, pois o problema precede a observação. Por isso, Popper (1999) rejeita a teoria da aprendizagem do balde mental, a qual é aceita pelos empiristas, e propõe a teoria do holofote, porque ativamente expomos hipóteses e por ensaio e erro as testamos, isto é, viver é aprender e aprender é resolver problemas. Além do homem já dispor de funções da linguagem já presentes nos animais, a função expressiva e a função comunicativa, com a interação cérebro-linguagem e a linguagem-cérebro o homem desenvolveu também as funções descritivas e argumentativas da linguagem, as quais possibilitam a construção e a crítica do mundo 3. Popper elabora o conceito dos três mundos a partir da diferenciação de conhecimento subjetivo de conhecimento objetivo. O conhecimento subjetivo é o conhecimento do estado de espírito, do sujeito psicológico. Segundo Popper, a epistemologia tradicional, como a epistemologia defendida por Descartes, Locke, Berkeley, Hume e Russell, bem como a epistemologia contemporânea, por exemplo, Kant, é, no sentido estrito, irrelevante porque estudou e estuda o conhecimento em sentido subjetivo: “Eu sei...”, “Eu penso...”. (MAGEE, 1974; PELUSO, 1995). Já o conhecimento objetivo representa teorias e argumentos críticos que pertencem a um mundo independente de um sujeito conhecedor. Dessa forma, o conhecimento científico está neste mundo desvinculado do sujeito psicológico ou subjetivo, mas junto com as ideias, as instituições, a linguagem, as artes, a ética, etc. (MAGEE, 1974; PELUSO, 1995). Para diferenciar o conhecimento subjetivo de conhecimento objetivo, Popper levanta dois problemas que ele considera fundamentais na teoria do conhecimento: o “problema de Hume”, ou seja, a questão da indução; e o da demarcação entre conhecimento científico e o conhecimento não-científico, o que ele chama de “problema de Kant”. Para Peluso (1995), essas duas teses constituem o fundamento do racionalismo crítico de Popper. Para Popper (1999) a epistemologia tradicional tem como interesse o mundo 2, ou seja, o conhecimento é como uma espécie de crença justificável com base na percepção. Magee (1974, p. 38) afirma que para Popper ”[...] o problema da indução tem suas raízes no

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fato de não se estabelecer a adequada distinção entre processos psicológicos e processos lógicos.” Ainda, Popper (1977, 1998, 1999) mostra que a indução é mera repetição, já que a indução leva erroneamente a equivalência de que crenças ou o hábito com o conhecimento científico, ao percebermos que há certas regularidades no mundo. Assim, há regularidades na natureza, mas se a indução fosse um método que ampliasse de fato o conhecimento, não haveria futuro, pois este seria previamente conhecido, já que a indução tem como base a repetição de eventos. Segundo Magee (1974), Popper soluciona o “problema de Hume” ao perceber que: [...] nenhuma teoria poderia ser encarada como verdade final. O máximo que se pode asseverar é que a teoria encontra apoio em cada observação feita até o momento e que fornece previsões mais precisas do que qualquer outra teoria alternativa conhecida. Ainda assim, pode ser substituída por uma teoria melhor. (MAGEE, 1974, p. 35).

A indução tem como base uma atitude passiva entre sujeito e objeto, pois se trata somente de observar e registrar. Tal inibe a criatividade e a atividade do sujeito, sem as quais não é possível a atitude crítica. Quanto ao “problema de Kant”, sobre a demarcação, Popper propõe o falsificacionismo como critério para diferenciar o discurso científico do discurso nãocientífico, pois, a seu ver, Kant errou ao defender que tudo que é a priori é verdadeiro. Para Popper “O a priori são hipóteses, e podem ser falsas.” (POPPER e LORENZ, 1990, p. 32). Assim, o conhecimento existe desde que surgiu a vida na terra. Os organismos aprendem por ensaio e erro tentando resolver problemas para a sobrevivência, porque “[...] os organismos que prosperam são os que, se assim podemos dizer, ‘resistem à refutação do meio’, graças ao processo de seleção darwiniano. Nesse sentido, a ciência é uma continuação dos processos vitais.” (BARROS, 1995, p. 11). Dessa maneira, uma hipótese ou teoria somente pode ser considerada científica se ela é passível de ser falsificada, se é passível de ser testada. Uma vez corroborada, a hipótese pode descortinar outros problemas não pensados inicialmente por um sujeito conhecedor. Entretanto, uma vez corroborada, não significa que a hipótese seja verdadeira, mas que apenas sobreviveu ao teste. Para Popper (1991, p. 48) “A verdade é objetiva: consiste na correspondência dos fatos.” A verdade é um ideal a ser sempre buscado em ciência, mas nunca sabemos se a verdade é atingida. Se a verdade fosse atingida, seria o fim da ciência.

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Não há certeza em ciência, já que certeza é o mesmo que crença. Se a busca da verdade é um ideal e todo conhecimento é provisório, é importante destacar sobre o progresso da ciência na concepção popperiana: O progresso é concebível, na medida em que a teoria considerada melhor exibir maior potencial explanatório: a teoria, comparativamente melhor, além de apresentar soluções para novos problemas, que permanecem irresolvidos no âmbito de suas rivais, ainda dá conta daqueles que são solucionados pela concorrência. Pode-se dizer que o progresso para Popper se realiza através de uma revolução na ciência, mas não no sentido que este termo tem na metaciência kuhniana, que pressupõe incomensurabilidade interteórica. As revoluções de Popper são comensuráveis, passíveis de reconstrução racional, na medida em que se postula a existência de um acervo mais ou menos estável de problemas resolvidos por teorias em conflito. (CARVALHO, 1995, p. 67).

Os dois problemas levantados e discutidos por Popper, o de Hume e o de Kant, bem como a tese falsificacionista, implicam que o conhecimento não é cumulativo e o progresso deve ser entendido como meta. “Não sabemos, só podemos conjeturar” (Popper, 1998, p. 306), encerra que o conceito de falsificacionismo é sempre reiterado.

AUTONOMIA DO MUNDO 3? Popper (1999, p. 108-150) apresenta três teses sobre o mundo 3. A primeira é que a teoria do conhecimento ou epistemologia tradicional de Locke, Berkeley, Hume e até Russell desenvolveu o conhecimento num sentido subjetivo, ou seja, o conhecimento como produto do sujeito psicológico e que não passava da esfera dos estados mentais. Assim, Popper, ao diferenciar conhecimento subjetivo (mundo 2) de conhecimento objetivo (mundo 3), considera o mundo 3 independente. A segunda tese é que o estudo do mundo 3 de forma crítica ou por meio de argumentos críticos é importante para a epistemologia; e, a terceira tese, que a teoria do conhecimento que estuda o mundo 3 pode contribuir para conhecer o mundo 2 (dos estados mentais), em especial os processos subjetivos do pensamento dos cientistas; mas conclui Popper: “[...] mas o inverso não é verdadeiro” (POPPER, 1999, p. 114). Além dessas três teses sobre a mundo 3 como objetivo e independente, Popper apresenta mais três teses de apoio.

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A primeira é que o mundo 3 é um produto natural do homem como a teia é um produto natural da aranha. A segunda tese de apoio, e Popper assinala que essa tese é “quase crucial”, é que o mundo 3 é “amplamente autônomo”, ou seja, embora atuemos nele, somos atuados por ele e tem um forte efeito de retrocarga sobre nós e mesmo sobre o mundo 1, portanto o mundo 3 independe de um sujeito conhecedor. E a terceira é que da interação entre o mundo 2 e o mundo 3 que o conhecimento objetivo progride de forma análoga à seleção natural: Neste sentido objetivo, o conhecimento é totalmente independente de qualquer alegação de conhecer que alguém faça; é também independente da crença ou disposição de qualquer pessoa para concordar; ou para afirmar, ou para agir. O conhecimento no sentido objetivo é conhecimento sem conhecedor; é conhecimento sem sujeito que conheça. (POPPER, 1999, p. 110-111).

Segundo Peluso (1995), para Popper o mundo 3 por ser autônomo é dotado de realidade própria e independe do sujeito que o produziu, e sua autonomia é capaz de determinar efeitos que nem mesmo o sujeito produtor da teoria poderia prever. Popper (1977, 1999) refere sobre uma autonomia parcial do mundo 3. Cita, por exemplo, algumas descobertas, como os números primos e os problemas não resolvidos da teoria dos números primos e os quadrados perfeitos, entre outras; são realidades produzidas pelo mundo 3 que não podemos alterar e que não necessitam de auxílio do mundo 2. Afirma ainda que esses problemas sejam autônomos e que não são fabricados por um sujeito conhecedor, mas descobertos, isto é, a existência desses problemas precedem a própria descoberta. Conforme Popper (1999, p. 151-179) em Sobre a teoria da mente objetiva: Em nossas tentativas para resolver esses e outros problemas podemos inventar novas teorias. Essas teorias, ainda, são produzidas por nós: são o produto de nosso pensamento crítico e criativo, no que somos grandemente ajudados pelas outras teorias de terceiro mundo existentes. Mas no momento em que produzimos essas teorias elas criam novos problemas, não pretendidos e inesperados, problemas autônomos, problemas a ser descobertos (POPPER, 1999, p. 157).

Para demonstrar a autonomia do mundo 3, Popper apresenta duas experiências de pensamento: Experiência (1): Todas as nossas máquinas e equipamentos são destruídos, bem como todo o nosso aprendizado subjetivo, incluindo nosso conhecimento subjetivo de máquinas e equipamentos e de como usá-los. Mas sobrevivem bibliotecas e nossa capacidade de aprender com elas. Claramente, depois de muito sofrimento, nosso mundo pode continuar a andar.

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Theoria -Revista Eletrônica de Filosofia Faculdade Católica de Pouso Alegre Experiência (2): Como antes, máquinas e equipamentos são destruídos, bem como nosso aprendizado subjetivo, incluindo nosso conhecimento subjetivo de máquinas e equipamentos e de como usá-los. Mas, desta vez, todas as bibliotecas também foram destruídas, de modo que nossa capacidade para aprender com os livros tornou-se inútil (POPPER, 1999, p. 109-110).

A questão em evidência é que Popper considera o mundo 3, o mundo objetivo, como autônomo, isto é, independente de um sujeito conhecedor. Popper utiliza a Experiência (1) para demonstrar a autonomia do mundo 3, pois “(...) sobrevivem bibliotecas e nossa capacidade de aprender com elas.”, já que na Experiência (2) toda a informação é destruída, bem como nossa capacidade de aprender subjetivamente, como forma de demonstrar que a destruição da informação determina que nossa capacidade de aprendizado torna-se inútil. Ao tentar demonstrar a autonomia do mundo 3, Popper se contradiz porque nas duas Experiências, Popper (1999, p. 109-110) alija nosso conhecimento subjetivo, contudo mantém na Experiência (1) “nossa capacidade de aprender com elas (as bibliotecas)” e na Experiência (2), embora tenham sido destruídas todas as bibliotecas, “nossa capacidade de aprender com os livros tornou-se inútil”. Entretanto, é aqui que Popper (1999) se contradiz: nossa capacidade de aprender é mantida, embora deixasse de ser útil de aprender com os livros porque todos os livros foram destruídos, o que significa que nossa capacidade de aprender possa ser utilizada em novas descobertas e novos aprendizados, apesar, de como reconhece Popper (1999), que isso demandaria um longo tempo. Ou seja, embora toda a informação tenha sido destruída, nossa capacidade de aprender possibilitaria conquistar novas descobertas, portanto, a dependência do conhecimento estaria em função de um sujeito conhecedor. Na Experiência (1) sobrevive a informação e o conhecimento (mundo 3) e também sobrevive nossa capacidade de aprender (mundo 2) com a informação ou conhecimento (mundo 3). O mundo continuaria a andar porque ambos, informação e capacidade de aprender, isto é, mundo 3 e mundo 2, respectivamente, estariam preservados. Na Experiência 2 nossa capacidade para aprender (mundo 2), isto é, nossa capacidade de digerir e avaliar criticamente conteúdos dos livros (mundo 3), por exemplo, é conservada, embora inútil em relação à toda a informação ou conhecimento que foi destruído (mundo 3). Mas, como o próprio Popper (1999, p. 110) acrescenta, mesmo que demore milênios, a civilização reaparecerá. É neste ponto que Popper deixa de atentar: que mesmo que demande muito tempo, embora destruída toda a informação, mas conservada a capacidade de aprender de um

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sujeito conhecedor (mundo 2), o mundo continuará a andar. Portanto, é importante assinalar que tanto na Experiência (1) quanto na Experiência (2) a capacidade de aprendizado de um sujeito conhecedor são mantidas, o que evidencia a importância de um sujeito conhecedor. Desse modo, o recorte do tema-problema é sobre a autonomia do mundo 3. Este conceito nos faz questionar se realmente existe uma epistemologia sem um sujeito conhecedor como refere Popper, pois a autonomia do mundo 3 para Popper independe da existência de um sujeito conhecedor (mundo 2). Com base no exposto levantamos a seguinte questão: a autonomia do mundo 3 existe sem um sujeito conhecedor? Dito de outro modo: suponhamos que se desaparecessem todos os homens da face da terra, ou seja, se extinguisse toda nossa capacidade de aprendizado, a rigor, a extinção do mundo 2, mas permanecessem todas as bibliotecas (informação ou conhecimento), seria mantida a autonomia do mundo 3? Quem a reconheceria ou confirmaria o que existe no mundo 3 se não existisse um sujeito conhecedor (mundo 2)? Qual o sentido do mundo 3 sem um sujeito conhecedor? Como apontamos, nas duas experiências mentais de Popper é mantida a capacidade de aprender, ou seja, um sujeito conhecedor; apenas haveria uma demora para retomar o conhecimento tido até então devido a perda da informação (mundo 3). É preciso, ainda, assinalar que houve um dado momento no tempo em que não existia o mundo 3. A existência do mundo 3 começa a partir do surgimento de um sujeito conhecedor (mundo 2), que é precedido na história natural pelo mundo 1, conforme exposto por Popper (1999, p. 193-233) em De nuvens e relógios: Pois, se aceitamos uma teoria da evolução (como a de Darwin), então, mesmo permanecendo céticos a respeito da teoria de que a vida emergiu de matéria inorgânica, dificilmente podemos negar que deve ter havido um tempo em que entidades abstratas e não-físicas, tais como razões e argumentos e conhecimento científico, e normas abstratas, tais como regras para construir ferrovias ou escavadeiras, ou “sputniks” ou, digamos, regras de gramática ou de contraponto não existiam, ou de qualquer outro modo não tinham efeito algum sobre o universo físico. É difícil entender como o universo físico pode produzir entidades abstratas como essas regras e depois pode ficar sob a influência dessas regras, de modo que elas, por sua vez, puderam exercer efeitos muito palpáveis sobre o universo físico. (POPPER, 1999, p. 207).

Ao compreender que as ideias e as regras, produzidas pelo universo físico, exercem influências ou efeitos palpáveis no universo físico, Popper (1991) defende o indeterminismo

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sendo, assim, contrário ao determinismo físico. Mas, ao propor a autonomia do mundo 3, mesmo que parcial, Popper não estaria defendendo um determinismo abstrato? Ou seja: Popper não estaria propondo que teorias científicas, ideias abstratas, conjeturas, etc. estivessem determinando o comportamento de um sujeito conhecedor? Popper (1991) apresenta, em oposição ao determinismo, o conceito de propensões. Propensões são tendências que, se avaliadas a partir de frequências ou de possibilidades, podem fornecer um estudo estatístico e objetivo da probabilidade da ocorrência de um evento. Para Popper apenas o passado é fixo; o presente é um contínuo processo de atualização e o futuro é desconhecido, está aberto, objetivamente aberto. Situações passadas não determinam uma situação futura, porém encerram possibilidades que podem de maneira objetiva trabalhar com probabilidades, as quais podem influenciar situações futuras. Quando uma propensão se concretiza, torna-se um fenômeno contínuo, real, que pode agir, por exemplo, as forças de atração de Newton. Consideramos ser impossível defender o conceito de propensões sem se opor ao determinismo, conforme Popper (1991). Mas, se o futuro está aberto, se o conhecimento é uma busca inacabada, se as preferências ou as escolhas que fazemos ocupam lugar de destaque, se vivemos num mundo físico ou mental de possibilidades que desenham as probabilidades, fica evidente que o protagonista, o sujeito da ação, é o homem. Ou no pensamento expresso por John Archibald Wheeler: Levo 100% a sério a ideia de que o mundo é uma invenção da imaginação. [...]. Onde estava a mente quando o universo nasceu? [...] no coração de toda realidade existe uma pergunta e não uma resposta. Quando examinamos os recessos mais profundos da matéria ou a fronteira mais remota do universo, vemos, finalmente, o nosso próprio rosto perplexo nos devolvendo o olhar. (apud HORGAN, 1998, p. 110-111).

A autonomia do mundo 3 de Popper, ao prescindir de um sujeito conhecedor, pode ser qualificada como animista ou que o mundo 3 fosse dotado de “vida”? É a partir de um sujeito conhecedor que se pode conhecer o mundo. É uma pergunta quando nos defrontamos com o desconhecido ou com um problema ou quando percebemos que uma solução pode ter outros desdobramentos. Embora Popper admita certa parcialidade da autonomia do mundo 3, sua posição de defender a epistemologia sem um sujeito conhecedor implica em colocar um sujeito

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conhecedor como passivo na construção do conhecimento, passividade por ele mesmo criticada no caso da indução.

CONHECIMENTO VIVO, CONHECIMENTO INERTE Na teoria da relatividade restrita de Einstein (1999) já está implícita a questão da equivalência da energia com a massa. Mas, é no trabalho Depende a inércia de um corpo de seu conteúdo de energia? também publicado em 1905, mesmo ano em que foi publicada a teoria da relatividade restrita, é que Einstein postula a relação entre massa (quantidade de matéria num corpo; sua inércia) e energia. Dado que a velocidade da luz é a mesma para qualquer observador e que nada pode movimentar mais rápido que a luz, a massa aumenta com a energia cinética, mas qualquer tipo de energia contribuirá para a inércia ou massa. Toda massa corresponde a energia, cuja quantidade é a energia dividida pelo quadrado da velocidade da luz (E = mc2) (BERNSTEIN, 1975). Na teoria do conhecimento de Popper, utilizando uma analogia com a teoria da relatividade, é como se Popper, ao estabelecer a autonomia do mundo 3, porque para Popper a autonomia do mundo 3 implica a ausência de um sujeito conhecedor, fizesse uma equivalência do conhecimento vivo, isto é, o conhecimento com a presença de um sujeito conhecedor, por exemplo no momento que um sujeito lê um livro, estuda ou critica um texto, pesquisa, elabora uma tese, faz um poema, analisa uma obra de arte, ou seja, um sujeito conhecedor em ação no mundo 3, com o conhecimento contido nos livros, isto é, a informação. Nesse sentido, a equivalência proposta por Popper é como se a energia fosse igual a massa ou se a energia pudesse ser convertida de maneira natural em massa e viceversa. A autonomia do mundo 3 sem um sujeito conhecedor é o mesmo que equivaler o conhecimento vivo com o conhecimento (informação) do mundo 3. É como se Popper fizesse a equivalência pura e simples de energia e massa sem a constante, que na fórmula de Einstein é a velocidade da luz ao quadrado. Sem a constante, é impossível equivaler energia com a massa. A fórmula sem a constante, velocidade da luz ao quadrado, estaria incompleta, pois não seria possível a equivalência de energia com a massa.

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Da mesma forma, consideramos que o mundo 3 de Popper contém pensamentos ou ideias inertes. Tudo que o homem produz, seja em forma de artes, ideias ou teorias científicas, e tais teorias materializadas em livros, bem como todos os produtos ou artefatos como máquinas e ferramentas, que enquanto objetos físicos pertencem ao mundo 1, é certo que contém pensamentos, mas, e isso é importante, contém pensamentos inertes, como memória e como informação, os quais somente poderão ganhar vida se e somente se estiver presente a constante do conhecimento: um sujeito conhecedor. Popper (1999) considera que o mundo 3, embora seja em sua origem um produto do homem, é autônomo em seu estado ontológico. “Pode-se mesmo admitir que o terceiro mundo é feito pelo homem e, num sentido muito claro, sobre-humano ao mesmo tempo. Transcende seus fabricantes.” (POPPER, 1999, p. 156). Ao propor a autonomia do mundo 3 ou a teoria do conhecimento sem um sujeito conhecedor, Popper equivale um sujeito que produz conhecimento com o conhecimento já produzido, mas nós entendemos que esse conhecimento é inerte porque está apenas como informação em potencial. É o mesmo que confundir o conceito de massa na física clássica com o conceito de massa na teoria da relatividade. Em nota de rodapé, Feyerabend diferencia os significados de massa conforme a teoria que está inserida: Que o conceito relativista e o conceito clássico de massa são muito diferentes torna-se claro se... considerarmos que o primeiro é uma relação, envolvendo velocidades relativas entre um objeto e um sistema coordenado, ao passo que o segundo é uma propriedade do próprio objeto e independente de seu comportamento em sistemas coordenados (apud KNELLER, 1980, p. 40).

Um livro contém informações, letras impressas em tinta. O que está escrito é uma propriedade de um livro. Dessa forma, o que está escrito no livro, por exemplo, uma teoria científica, é somente uma informação em potencial ou pensamento inerte disponível no livro, o qual como objeto físico pertence ao mundo 1. Para que esse pensamento deixe de ser inerte, mas vivo, é necessário a presença de um sujeito conhecedor atuando sobre essa informação. Um sujeito conhecedor processa cognitivamente a informação e, ao mesmo tempo, a informação retroage, mas sempre por iniciativa de um sujeito conhecedor, quer dizer uma relação. O mundo 3 contém como propriedade o conhecimento inerte, o qual pode ser transformado em conhecimento vivo se houver a relação entre um sujeito conhecedor e o mundo 3. O mundo 3 é emergente quando da ação de um sujeito conhecedor. É um sujeito Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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conhecedor quem dá vida ao mundo 3. Sem um sujeito conhecedor, o mundo 3 são apenas os objetos do mundo 1. Assim, enquanto conhecimento inerte contido em material como livros, computadores, equipamentos, ferramentas, etc., o mundo 3 é, a rigor, mundo 1. É notório que não é desse modo que Popper vê a questão, pois para Popper o mundo 3 é conteúdo, hipóteses, conjecturas. Mas, retomemos um excerto de Popper citado anteriormente: Um livro é um objeto físico e, nessa medida, um objeto do Mundo Um. Enquanto objeto físico, o livro pertence ao Mundo Um, e o conteúdo do livro ao Mundo Três. Quando alguém diz “Eu li a Bíblia” não quer com isso significar que passou as páginas de um livro grande e pesado, mas sim que apreendeu, de algum modo, o conteúdo. O conteúdo do Mundo Três do livro. (POPPER e LORENZ, 1990, p. 83).

Fica evidente que, no caso, um livro é apenas um objeto físico (mundo 1), mas para que o conteúdo seja como tal é imprescindível a ação de um sujeito conhecedor. A partir da ação de um sujeito conhecedor é que o livro passa a ser conteúdo do mundo 3. Dessa maneira, até a ação de um sujeito conhecedor, o livro (e o que está nele escrito, ou seja, impressões de tinta) pertence ao mundo 1. Imaginemos o seguinte. Uma biblioteca que fosse fechada e que por 100 anos fosse impedido o acesso de um sujeito conhecedor. Para que serviria toda a informação disponível nos livros da biblioteca? Na biblioteca haveria objetos físicos, ou seja, os livros, computadores, etc., pertencentes ao mundo 1 com o conteúdo ou conhecimento inerte. Além disso, os livros, computadores, etc. “não sabem”, é evidente, que são possuidores de conhecimento inerte, pois pertencem ao mundo 1. Mas, sem o acesso de um sujeito conhecedor, qual a autonomia desse conhecimento inerte? Dito, ainda, de outro modo. Suponhamos que desaparecessem todos os homens da face da terra, ou seja, se extinguisse toda nossa capacidade de aprendizado, a rigor, a extinção do mundo 2, mas permanecessem todas as bibliotecas (informação ou conhecimento inerte), seria mantida a autonomia do mundo 3? Quem, no caso, reconheceria ou a confirmaria o conhecimento inerte do mundo 3 se não existisse um sujeito conhecedor (mundo 2)? Metaforicamente um sujeito conhecedor seria a constante ausente na proposta de mundo 3 autônomo de Popper. Sem um sujeito conhecedor, o conhecimento do mundo 3 é

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apenas um conhecimento inerte, sem vida, mera informação ou memória disponível, tal como a massa que contém a energia, porém inerte. Em outra palavras, o mundo 3 sem um sujeito conhecedor é o “conhecimento guardado” em diferentes meios (livros, computadores, filmes, artefatos, ferramentas, máquinas, etc.), portanto, uma extensão da memória humana. Modo que o homem encontrou ou descobriu para estender sua capacidade de acumular e guardar informações fora de seu cérebro e evocá-las e utilizá-las quando necessário. Assim como o microscópio ou o telescópio, por exemplo, aumenta a função ocular permitindo uma observação mais acurada, bem como a invenção da escrita e de seus sucedâneos, por exemplo, gravação magnética, filmes, computadores, etc., têm possibilitado ampliar a capacidade de o homem reter informações de forma segura, como que deixando o cérebro mais livre para as questões mais urgentes que tem de resolver para a sobrevivência cotidiana.

SUJEITO DO CONHECIMENTO E OBJETO DO CONHECIMENTO: MUNDOS COMPLEMENTARES Se Kant (1999) enfatiza no processo de conhecimento um sujeito conhecedor como sujeito transcendental, buscando argumentos para a demonstração da razão pura; Popper por sua vez volta o olhar para o conhecimento objetivo, puro, independente de um sujeito conhecedor, porém um conhecimento inacabado, provisório, sempre por fazer, ou seja, a tese do falsificacionismo, pois “Não sabemos; só podemos conjecturar.” (POPPER, 1998, p. 306). Para Peluso (1995, p. 141) Popper “[...] acredita que a epistemologia objetivista só é possível se for considerada a separação entre sujeito cognoscente e conhecimento.” Daí a proposta da existência de um mundo próprio, o mundo 3, que abrange de maneira independente e autônoma o conhecimento em forma de teorias e proposições. Entretanto, os trabalhos desenvolvidos no âmbito da física atômica e da mecânica quântica apontam que não existe separação entre sujeito do conhecimento e o objeto do conhecimento ou os conteúdos do mundo 3. Por exemplo, a relação de indeterminação ou de incerteza de Heisenberg e o conceito de complementaridade de Bohr.

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Para Heisenberg (1998, p. 39) “[...] o próprio ato de observar altera o objeto que esteja sendo observado, quando seus números quânticos são pequenos”, onde, no arranjo experimental, torna-se praticamente impossível fazer com que o objeto do conhecimento seja um sistema isolado tanto do observador quanto do universo. Bohr (1995, p. 51) afirma da “[...] impossibilidade de qualquer separação nítida entre o comportamento dos objetos atômicos e a interação com os instrumentos de medida que servem para definir as condições em que os fenômenos aparecem.” (Itálico no original). Mais adiante, Bohr (1995) demonstra também que os dados obtidos nas condições experimentais somente podem ser compreendidos em sua totalidade se considerados complementares. Nesse sentido, de uma conversa com Bohr, Heisenberg lembra: Era central em seu pensamento (de Bohr) o conceito de complementaridade, que ele acabara de introduzir para descrever uma situação em que é possível apreender um mesmo acontecimento por dois modos de interpretação distintos. Esses dois modos são mutuamente excludentes, mas também complementam um ao outro, e é somente através de sua justaposição que o conteúdo perceptivo do fenômeno revela-se em sua plenitude (HEISENBERG, 1996, p. 97).

Ainda, no campo da física atômica, Wheeler (apud HORGAN, 1995) apresentou uma experiência imaginária que seria confirmada na década de 90, revelando a estranheza do mundo quântico. A experiência de escolha retardada é uma variação da clássica experiência das duas fendas: Quando os elétrons são apontados para um anteparo que contém duas fendas, eles agem como onda; passam pelas duas fendas de uma só vez e formam o que é chamado de padrão de interferência, criado pela superposição das ondas, quando elas atingem um detector situado do outro lado do anteparo. Se, porém, o físico fecha uma das fendas, os elétrons passam pela fenda aberta como partículas simples, e o padrão de interferência desaparece. Na experiência de escolha retardada, o experimentador decide se vai deixar abertas as duas fendas ou se vai fechar uma delas depois que os elétrons já tiverem passado pelo anteparo – obtendo os mesmos resultados. Os elétrons parecem saber de antemão como o físico preferirá observá-los. (HORGAN, 1995, p. 107-108).

Essas constatações da física atômica e da mecânica quântica podem indicar novas possibilidades para a epistemologia, ou seja, de que não é possível a separação entre o sujeito do conhecimento e o objeto do conhecimento, nem por extensão daquilo que já é conhecido, ou seja, os conteúdos do mundo 3. Isso porque a utilização de uma teoria para trabalhar sobre um novo objeto do conhecimento depende tal teoria da escolha de um sujeito conhecedor. É certo que uma teoria, uma vez escolhida, exercerá influência no sujeito do conhecimento, mas

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a iniciativa é sempre de um sujeito conhecedor, conforme demonstramos na secção precedente. É importante de novo sublinhar que Popper (1977, p. 195) admite um autonomia parcial do mundo 3, mas também admite que: Com efeito, a “incorporação” de uma teoria a um livro – e, portanto, a um objeto físico – é exemplo disso. Para ser lido, o livro requer a intervenção de uma mente humana, do mundo 2. Mas requer também a própria teoria. Eu posso, por exemplo, incidir em erro: minha mente pode deixar de entender corretamente a teoria. Contudo, a teoria em si mesma sempre permanece e alguma outra pessoa poderá entendê-la e corrigir-me. Pode facilmente não ser um caso de diferença de opiniões, mas de erro indisfarçável e real – uma falha no compreender a teoria. E isso poderá acontecer até mesmo com o elaborador da teoria. (POPPER, 1977 p. 195).

Com “a ‘incorporação’ de uma teoria a um livro”, Popper está afirmando a autonomia do mundo 2 sobre o mundo 3, e não deste sobre aquele de forma autônoma. Não que isto signifique a passividade do mundo 3. Uma vez incorporada a teoria do livro, a teoria exercerá influências em um sujeito conhecedor. Heisenberg (1996, p. 95) lembra de uma conversa com Einstein, o qual havia afirmado “É a teoria que decide o que devemos observar”, com o intuito de colaborar com as buscas de Heisenberg na explicação da relação de indeterminação. A afirmação de Einstein revela a escolha do raciocínio dedutivo como método para alcançar o conhecimento, ou seja, o método defendido por Popper (1977, 1999) em oposição à indução. É a teoria ou o problema ou a solução que a teoria propõe é quem determina o que deverá ser observado e testado. No dizer de Popper (1998, p. 61-62) “As teorias são redes, lançadas para capturar aquilo que denominamos ‘o mundo’: para racionalizá-lo, explicá-lo, dominá-lo. Nossos esforços são no sentido de tornar as malhas da rede cada vez mais estreitas.”. Entretanto, como o próprio Popper (1977, p. 195) refere, a “incorporação” de uma teoria ou de um livro, por exemplo, para ser lido o livro “requer a intervenção de uma mente humana”, o que encerra, no próprio afirmar de Popper, a autonomia de um sujeito conhecedor tanto na construção quanto na escolha de conteúdos do mundo 3. Dessa escolha, dessa construção, a teoria, ou o livro no qual a teoria está escrita, poderá exercer influência no sujeito, mas porque esse sujeito assim decide e assim escolhe.

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Desse modo, tomando o conceito de Bohr (1995), o mundo 2 e o mundo 3 são complementares, mundos que se influenciam quando justapostos, mas sempre por iniciativa do mundo 2. O mundo 3 é o mundo de conhecimento inerte, isto é, das teorias científicas e das ideias como propriedades dos livros, das obras de arte, dos computadores, das ferramentas, das máquinas ou de qualquer artefato humano. Portanto, enquanto conhecimento inerte está contido em objetos do mundo 1 (livros, textos, obras de arte, filmes, ferramentas, computadores, máquinas, artefatos, etc.) e somente torna-se pertencente ao mundo 3 se e somente se houver a ação do homem ou de um sujeito conhecedor. Dessa ação é que se estabelece a relação entre o mundo 2 e o mundo 3. Um sujeito conhecedor atua sobre o mundo 3 e permite que este retroaja. Essa relação é quem possibilita que o conhecimento inerte seja liberado de seu confinamento dos objetos do mundo 1, fazendo com que os sinais de tinta de um livro ganhem significado. A escolha que um sujeito conhecedor faz por determinada teoria científica, por exemplo, vai possibilitar a emergência de fato do mundo 3, convertendo conhecimento inerte em conhecimento vivo. Dessa forma, a realidade do mundo 3 é potencial ou virtual e que se torna real somente a partir da ação de um sujeito conhecedor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Popper tem uma vasta contribuição para com a epistemologia como pudemos constatar na construção deste estudo. Também é evidente a preocupação de Popper em radicalizar seu conceito de mundo objetivo, o mundo das teorias científicas, separado do sujeito conhecedor, com a proposta de deixar bem nítida a divisão entre conhecimento subjetivo e conhecimento objetivo, ou seja, a demarcação de ciência de não-ciencia pelo falsificacionismo. Podemos afirmar que para Popper, em seu realismo objetivo, a fim de alcançar a objetividade da ciência, é melhor errar por excesso. Para Barros (1993, p. 40) a epistemologia sem um sujeito conhecedor de Popper “[...] é o produto de uma idade madura da ciência”, que não dispensa a gnosiologia kantiana, nem a contradiz, mas a complementa, desde que dispense a proposta de que todos os a priori sejam verdadeiros, já que para Popper os a priori podem ser falsos.

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Se a epistemologia sem um sujeito conhecedor é resultado de um amadurecimento da ciência, Popper tem o mérito de ter dedicado ao combate de uma ciência contaminada pelo sujeito, ao tecer suas críticas à epistemologia tradicional ou subjetiva de Hume, Kant, Russell e outros. Não que houvesse desonestidade desses pensadores pela contaminação, mas, havendo abertura para a contaminação, pela própria natureza de uma teoria do conhecimento subjetiva, que seria do conhecimento objetivo? Ao propor de forma radical o mundo 3, o mundo das teorias científicas, o mundo objetivo, autônomo e independente de um sujeito conhecedor, Popper valoriza o trabalho sério e dedicado em ciência. Conforme apontado por Raphael (2000), a ideia de ciência de Popper traz implícita a imagem do cientista como homem honesto: A honestidade do pesquisador pode ser admirável, mas não pode de forma alguma embasar uma validação. Por definição, deve ser aberto tão-somente à análise honesta de seus pares. Tal exposição à crítica seria parte integrante do progresso. Podem existir conjecturas na ciência; o que não pode ocorrer são privilégios. O método científico é central para o progresso humano e um paradigma de comunidade responsável. Nenhum cientista pode afirmar que alcançou um filão de ouro teórico sem que torne seus achados disponíveis aos experimentadores públicos. E quando se descobre que o alquimista não transformou chumbo em ouro, ele não pode salvar sua teoria pela redefinição de seu chumbo como uma forma especial de ouro. (RAPHAEL, 2000, p. 14).

Ao mesmo tempo em que Popper valoriza o trabalho dedicado e honesto do cientista, também sua preocupação com o corporativismo de grupos que pratica a ciência, já que para Popper os grandes homens da ciência foram exploradores críticos, solitários e, sobretudo, independentes: Enquanto a ciência de hoje se pratica em organizações de magnitudes fordistas e segundo uma fragmentação do trabalho que poderíamos caracterizar como taylorista; a metodologia popperiana parece estar dirigida a uma ciência feita por indivíduos e não por corporações, onde a especialização exagerada e a coordenação burocrática das tarefas, somente é possível porque os limites do criticável e do discutível estão tácita, porém ferreamente, préfixados pelo paradigma vigente. (CAPONI, 1995, p. 33).

Mas, a neutralidade científica não é um ideal nascido com a própria ciência? A preocupação de Popper é reforçar ou lembrar a questão da neutralidade em ciência? Entendemos que a proposta do mundo 3, autônomo e independente de um sujeito conhecedor, com ênfase até didática de Popper em deixar bem visível o sentido diferenciado, sério e público da ciência como empreendimento humano, conforme já apontado por Cassirer (1977, p. 325) que “A ciência é o último passo no desenvolvimento do homem e pode ser considerada como a mais alta e mais característica conquista da cultura humana.”

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Não sabemos se houve intenção didática de Popper ao propor sua epistemologia, especialmente sobre a autonomia do mundo 3. Tem sentido que toda a comunicação de uma descoberta, de um trabalho de campo ou de uma reflexão filosófica visa a transmissão de informação, e tal possui sempre um conteúdo de ensino-aprendizagem. Mas, o mundo 3 autônomo e independente de um sujeito conhecedor trata-se de uma teoria cujo teste, dentro do próprio conceito popperiano de falsificacionismo, é impraticável. Em outras palavras, a separação do sujeito do conhecimento do objeto do conhecimento pode ocorrer apenas num nível ideal, portanto, didático. Os conteúdos do mundo 3 são, a rigor, enquanto ausente um sujeito conhecedor, estritamente conteúdos do mundo 1. É impossível trabalhar com os conteúdos do mundo 3 sem a presença ou participação de um sujeito conhecedor. Isso quer dizer que a proposta em discutir que não há epistemologia sem um sujeito conhecedor é ousada. Mas é a ousadia na reflexão que pode nos fazer chegar a um novo pensar ou que se pode encontrar o erro, o que não deixa de ser, num sentido popperiano, uma sobrevivência provisória de novas ideias.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROS, Roque Spencer Maciel de. Razão e Racionalidade. São Paulo: T.A. Queiroz, 1993. 316 p. ______. “Karl Popper: a busca inacabada”. In: PEREIRA, Julio César (Org.). As Aventuras da Racionalidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995, p. 9-20. BERNSTEIN, Jeremy. As ideias de Einstein. São Paulo: Cultrix, Editora da Universidade de São Paulo, 1975. BOHR, Niels. Física Atômica e Conhecimento Humano: Ensaios 1932 – 1957. Rio de Janeiro: Contraponto, 1995. CAPONI, Gustavo A. “Karl Popper e a filosofia clássica alemã”. In: PEREIRA, Julio César (Org.). As Aventuras da Racionalidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995, p. 21-48. CARVALHO, Maria Cecília M. de. “Não sabemos, só podemos conjecturar.” In: PEREIRA, Julio César (Org.). As Aventuras da Racionalidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995, p. 49-68. CASSIRER, Ernst. Antropologia Filosófica: Ensaio sobre o Homem. 2. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1977.

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Theoria -Revista Eletrônica de Filosofia Faculdade Católica de Pouso Alegre EINSTEIN, Albert. Teoria da Relatividade Especial e Geral. Rio de Janeiro: Contraponto, 1995. HEISENBERG, Werner. A Parte e o Todo: Encontros e Conversas sobre Física, Filosofia, Religião e Política. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. ______. Física e Filosofia. 4.ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998. HORGAN, John. O Fim da Ciência: Uma Discussão sobre os Limites do Conhecimento Científico. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Os Pensadores). KNELLER, George F. A Ciência como Atividade Humana. Rio de Janeiro: Zahar; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1980. MAGEE, Bryan. As Ideias de Popper. São Paulo: Cultrix, Editora da Universidade de São Paulo, 1974. PELUSO, Luis Alberto. A Filosofia de Karl Popper: Epistemologia e Racionalismo Crítico. Campinas: Papirus, Pontifícia Universidade Católica de Campinas, 1995. POPPER, Karl. Autobiografia Intelectual. São Paulo: Cultrix, Editora da Universidade de São Paulo, 1977. ______. Um Mundo de Propensões. Lisboa: Fragmentos, 1991. ______. A Lógica da Pesquisa Científica. 7.ed. São Paulo: Cultrix, 1998. ______. Conhecimento Objetivo: Uma Abordagem Evolucionária. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999. ______.; LORENZ, Konrad. O Futuro está Aberto. Lisboa: Fragmentos, 1990. ______.; ECCLES, John C. O Cérebro e o Pensamento. Campinas, SP: Papirus, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1992. RAPHAEL, Frederic. Popper: O Historicismo e sua Miséria. São Paulo: Editora UNESP, 2000.

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EDUCAÇÃO E RACIONALIDADE COMUNICATIVA NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO EDUCATION AND COMMUNICATIVE RATIONALITY IN THE INFORMATION SOCIETY Odair Neitzel1 RESUMO: Os alcances pedagógicos da filosofia de Habermas passam pela revisão do conceito de razão abordado pela Teoria do Agir Comunicativo. A interação entre os sujeitos que participam de um contexto educacional mediados pela linguagem viabiliza uma outra configuração do agir pedagógico. A formação do homem, que provém das experiências dos sujeitos em seus mundos, passa por processos de aprendizagem construídos objetivando o entendimento mútuo. Assim, o presente estudo discorreu sobre a ação pedagógica segundo a Teoria da Ação Comunicativa de Habermas diante do contexto social da sociedade da informação e aprendizagem. A possibilidade dessa realização existe desde que os agentes em educação se disponham a seguir os pressupostos dos atos de fala na intenção de se entenderem sobre algo no mundo, que significa o compartilhar e o expor os significados de suas vivências e experiências na vida. Desse modo a educação poderá ter bom êxito no cumprimento de suas finalidades, na intenção de recuperar os valores de dignidade e justiça da vida humana. Palavras-chave: Educação. Sociedade da informação. Habermas. Teoria do agir comunicativo. ABSTRACT: The scope of educational philosophy Habermas pass through the revision of the concept of reason addressed by the Theory of Communicative Action. The interaction between the subjects participating in an educational context mediated by language enables another embodiment of pedagogical action. The formation of man, which comes from the experiences of the subjects in their worlds, involves learning processes built aiming at mutual understanding. Thus, this study discussed the pedagogical action according to the Theory of Communicative Action Habermas on the social context of information and learning society. The possibility exists that achievement since the agents in education are willing to follow the assumptions of speech acts with the intention to understand something about the world, which means sharing and exposing the meanings of their experiences and life experiences. Thus education can have success in the fulfillment of its purposes, intending to retrieve the values of justice and dignity of human life. Keywords: Education. Information society. Habermas. Theory of Communicative Action.

INTRODUÇÃO Se nos detemos a observar, por alguns instantes, os espaços educacionais da sociedade contemporânea, como a sala de aula, o pátio das escolas, as ruas dos bairros e cidades em que se encontram inseridos os alunos, e simultaneamente o modo como estes alunos se relacionam com o mundo, é desafiador qualquer tentativa de delinear com precisão o perfil dos mesmos. Se tomamos então como parâmetro os alunos de outros momentos históricos ou somente de 1

Mestre em Educação nas Ciências pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul UNIJUÍ e docente na Universidade Federal da Fronteira Sul - UFFS. Email: odair.neitzel@uffs.edu.br. Artigo recebido em 14/02/2014 e aprovado para publicação em 01/07/2014.

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uma ou duas décadas atrás, ficaremos no mínimo espantados e estarrecidos. São muitas as mudanças que se fizeram no contexto social e cultural. Esse contexto adentra a sala de aula junto com os estudantes, como bagagem e marca dessa nova geração. Eles são muito diferentes. Comunicam-se pelas redes sociais, usam aparelhos portáteis com música, vídeo, jogos e, que além de proporcionar a comunicação e o entretenimento, tornou-se sinônimo de status e identidade pessoal. Esses alunos vivem o dia-a-dia de um mundo agitado, e trazem esse estilo de vida para os espaços escolares de tal forma que, se no passado eram necessárias metodologias e filosofias de ensino que os estimulasse a participar e expressar seus entendimentos, hoje a preocupação é muito mais coom metodologias que estimulem a reflexão, a concentração e a atenção. E as razões estão no fato de que as crianças e adolescentes da sociedade contemporânea vêm à escola “pilhados” de informação, agitados, “elétricos”, sem paciência ou persistência para atividades que exigem deter-se por mais tempo e exigem um maior esforço mental. É um fato a oferta massiva de informações e em quantidades incomensuráveis. Mas as leituras com profundidade também são menores. Ou seja, o que se faz, é na maioria das vezes, superficial, sem um aprofundamento ou uma reflexão. Na maioria das vezes as pessoas se satisfazem com a leitura dos enunciados ou “rótulos” e não se detendo e ocupando com o conteúdo. Os educadores, da mesma forma, sentem essas transformações e são obrigados a mudar e a se adaptar a essa nova situação. Mesmo assim, muitos resistem às mudanças ou evitam usar tecnologias e acabam se fechando para essas mudanças. Em muitas situações, buscam proteger-se atrás de muralhas de metodologias tradicionais, apelando inclusive para autoritarismos na tentativa de concentrar as turmas. Nesta complexa teia de mudanças, é evidente que o professor, como qualquer outro profissional na sociedade contemporânea, fique em dúvida sobre o seu real papel social e se vê, em certos momentos, sem compreender o sentido para o ser professor. O seu público já não se constitui de alunos vazios, que precisam ser preenchidos com transmissão de saberes e conteúdos. O professor é constantemente questionado acerca de qual é o seu papel e o que a sociedade espera ou não dele. Ele persegue a busca de um entendimento sobre a sua função e o que lhe cabe fazer, de como agir diante de situações em que escolas tornam-se uma espécie Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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de depósito de crianças e adolescentes “ativos”, com os quais em certas circunstâncias nem as famílias não conseguem lidar. As mudanças tecnológicas na comunicação das últimas décadas, tem contribuído significativamente e com tamanha velocidade e impacto que provocaram profundas mudanças no jeito das pessoas se comportarem e agirem. Isso está relacionado com a massiva quantidade de informação, que mesmo desencontradas, nunca estiveram tão acessíveis, ou melhor, disponíveis. Essas mudanças têm como motivação e fundamento as transformações produzidas pelo mercado do consumo e pelo sistema político econômico neoliberal. Imanente a essas transformações estão os subsistemas do poder e do dinheiro, com um modelo de racionalidade estratégica. O mundo, numa dimensão mais ampla, da vida, da cultura, da convivência e das subjetividades, é reduzido a uma ingênua objetividade, projetada a corresponder às relações de produção da sociedade globalizada. Tudo isso tem gerado questionamentos sobre o lugar da educação, seu papel e sua importância, a sua verdadeira missão. Qual poderia ser a forma mais acertada de atuar didática e metodologicamente. Qual filosofia seria a que mais adequada à nova situação para uma prática pedagógica que desenvolva o homem e assim, possa emancipá-lo e torná-lo autônomo. Como seria essa educação capaz de promover uma sociedade livre e digna.

SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E APRENDIZAGEM Ao analisarmos a sociedade e seus problemas, automaticamente estamos construindo um referencial que nos serve de apoio para compreender os fatores que geraram certas limitações na educação contemporânea. Essas limitações tornam problemático o ofício de ensinar aos sujeitos as noções básicas, permitindo que estes possam situar-se social, humana e profissionalmente. Em muitas situações, a educação não tem tido sucesso em contribuir para o projeto de emancipar o ser humano, de promover a sua inserção no contexto do mundo, e assim auxiliar na sua realização e felicidade. A sociedade contemporânea se sustenta em um sistema de relações que Toffler (1995) Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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chamou de terceira onda que, segundo ele, teria começado a se desenhar com a Revolução do Conhecimento. Nesse modelo social, completa Schaff, a individualidade é estimulada, fazendo surgir uma nova civilização, centrada na informação, simbolizada pelo computador e pela informática. O que se constata com essas transformações centradas nas tecnologias da informação são profundas mudanças na organização da sociedade e na forma de interação social. A vida corre em ritmo acelerado, com ânsia e imediatismo. Importante observar que isso ocorrer com as pessoas de modo geral, independentemente de ser ou não consumidor, de ter ou não acesso às tecnologias, numa espécie de “arrastão social”2. Todas essas transformações têm, inevitavelmente, produzido impactos na educação. Os estudantes e a sociedade em geral convivem com uma pluralidade de informações sobre os mais diversos temas e que implicam diretamente na prática pedagógica. Torna-se necessário repensar a educação para que a mesma possa se situar nesse contexto de diversidades e mudanças advindas do meio social. É preciso reestruturar os currículos, repensar a maneira como se lida com a informação. Nesse contexto, a educação deixa seu lugar de guardiã universal do conhecimento e assume o papel de auxiliar as pessoas a desenvolverem capacidades que permitam interpretar, refletir e posicionar-se de forma crítica em relação à massiva quantidade de informação. Isso só para tornar evidente o que já se fazia visível há mais tempo, de que o ambiente educacional não é mais um espaço de exclusividade na transmissão de informações. Podemos afirmar que a sociedade contemporânea se caracteriza pelo aprender a aprender. Isso não significa que as pessoas sejam impelidas a se tornar autônomas, a desenvolver-se de forma plena enquanto sujeitos sociais, já que este aprender a aprender está ainda relacionado a técnica, ou seja, basicamente encontrar ou localizar o dado mais úteis e precisos para as atividades econômicas. A necessidade de uma formação contínua “nos obriga a um ritmo acelerado, quase neurótico, no qual não se tem prática suficiente, com o que apenas consolidamos o aprendido e o esquecemos com facilidade” (POZO, 1996, p. 40).

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Ou seja, independentemente das pessoas terem ou não acesso a tecnologias informacionais, ele são levadas a mudar de comportamento, pois essas transformações não mudam os sujeitos como indivíduos singulares, mas é algo que transforma o coletivo.

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Esta “intoxicação” informativa em certas situações dificulta o pensamento e a tomada de decisão, e consequentemente, aumenta a sensação de incerteza e insegurança.

Essa

dificuldade se apresenta inclusive quando se trata da própria identidade dos sujeitos, dificultando a inserção dos mesmos nos processos comunicativos e decisivos da sociedade. São muitas informações, que se limitam a instrumentalização dos sujeitos, dificultando o desenvolvimento de relações dialógicas e solidárias.

A TEORIA DA AÇÃO COMUNICATIVA Diante destas constatações mencionadas acima, é possível problematizar e fazer alguns apontamentos para se pensar a educação. É preciso entender que a sociedade da informação e suas peculiaridades são resultantes de processos históricos e de diferentes paradigmas3. Estas orientaram a produção e a cultura humana e estão na base dessa configuração social. A modernidade é o pano de fundo de muitas destas transformações. Com a predominância de um modelo de razão cognitivo-instrumental, trouxe como consequência o império dos princípios da disjunção, redução, abstração. Esses princípios reunidos em um paradigma que carrega o fardo das patologias de uma razão instrumentalizada, geraram uma inteligência cega, que destrói os conjuntos e as totalidades, isola e separa os objetos de seus ambientes. Constituiu-se, assim, a visão de caráter analítico, de divisão do trabalho científico entre as ciências naturais e as ciências humanas, divisão que é posta em dúvida quando as mudanças, como a climática global, deixam de ser um tema exclusivo de físicos, químicos, geógrafos e meteorologistas e se tornam objeto de debate político e social. Na sociedade contemporânea porem, configura-se um novo paradigma do entendimento humano a partir da virada pragmática da linguagem, que pretende fazer frente

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Boufleuer (1998, p. 31) define os paradigmas do pensamento filosófico como aqueles “formados por uma série de pressupostos geralmente não muito conscientes, que se confundem como o modo de pensamento hegemônico de toda uma época, e até com o próprio entendimento do exercício do filosofar”. Habermas destaca dois paradigmas, a saber, o da filosofia da consciência ou do sujeito e da filosofia da linguagem. Ele argumenta que no modelo da razão cognitivo-instrumental o paradigmático é “a relação que o sujeito isolado mantém com alguma coisa apresentável e manipulável no mundo”. No modelo de uma racionalidade comunicativa o paradigmático é “a relação intersubjetiva assumida por sujeitos aptos a falar e agir, quando se entendem uns com os outros sobre alguma coisa” (HABERMAS, 2012, v.1 p. 674).

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ao paradigma da razão cognitiva-instrumental. A guinada pragmática da linguagem4 é o ponto de partida para um estilo de pensar que vai além de uma razão técnica e instrumental. Configura-se a partir dela a perspectiva crítica de pensar, denunciando as patologias presentes no modelo moderno da razão subjetiva (BOLZAN, 2005, p. 78–84; OLIVEIRA, 1996, p. 117–118). A perspectiva inaugurada com a virada linguística esteve na base da concepção da racionalidade comunicativa, forjada por Habermas na Teoria da Ação Comunicativa5. Esta serve de base para se pensar em uma ação pedagógica que potencialize a existência humana, a inserção social através da produção comunicativa de entendimentos. O paradigma poderia ser expresso por “tudo é uma construção social e toda apreensão é uma questão linguística” (STRECK, 2005, p. 157). Ou seja, as práticas sociais, de significação da realidade, são sempre práticas comunicativas em função das necessidades da sociedade. Na perspectiva habermasiana do agir comunicativo, a linguagem é entendida como instrumento de comunicação e coordenação social, fruto da pragmática do discurso e das ações coletivas, intersubjetivas, onde o enunciado linguístico é entendido como uma ação que modifica e altera o espaço em que é proferido, ou seja, é uma ação comunicativa. Assim a linguagem é tida como ação social e horizonte a partir de onde os indivíduos exprimem a realidade. Na Teoria da Ação Comunicativa, Habermas constrói o conceito de mundo da vida, horizonte por meio do qual e sobre o qual pode acontecer a produção simbólico-social de ações linguisticamente mediadas. Esta é viabilizada através da concepção de comunidade ideal de comunicação, livre de interesses particulares de aspecto estratégico, que inviabiliza a ação comunicativa.

Habermas pressupõe como condição essencial de comunicação a

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A guinada pragmática da linguagem se opera a partir da obra Investigações Filosóficas de Wittgenstein (WITTGENSTEIN, 1999). 5 Jürgen Habermas nasceu em Düsseldorf, 18 de Junho 1929. Filósofo e sociólogo alemão, herdeiro da tradição da teoria crítica e do pragmatismo. É conhecido por suas teorias sobre a racionalidade comunicativa e a esfera pública. Na Teoria da Ação Comunicativa elabora o conceito de ação comunicativa, que trata de uma análise teórica e epistêmica da racionalidade como sistema operante da sociedade. Habermas contrapõe-se à ideia de que a razão instrumental constitua a própria racionalização da sociedade ou o único padrão de racionalização possível, e introduz o conceito de razão comunicativa. Para ver mais é possível ler o artigo de Alves (2009), que redige sobre a formulação do conceito de razão comunicativa na Teoria da Ação Comunicativa.

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eticidade dessas relações, sendo que ao proferir um enunciado, os sujeitos cumpram as pretensão de sinceridade, veracidade, autenticidade e inteligibilidade de seus interlocutores (HABERMAS, 2012, v. 1, p. 31–97). No agir comunicativo não há imparcialidade. O conhecimento não pode ser considerado neutro. Ele é resultado de entrelaçamento das diferentes dimensões do mundo da vida, com diferentes tipos de conhecimento, de caráter técnico, empírico, prático ou outros. O mundo da vida é o espaço em que as pessoas agem comunicativamente, socializando-se com a cultura, integrando sujeitos. Ou seja, é o espaço em que ocorre uma coordenação social das ações. Diferente dos espaços dos subsistemas, em que a coordenação das ações é estratégica, sustentada em uma racionalidade instrumental6. Na concepção de Habermas o espaço público é indispensável aos sujeitos para a discussão sobre os mais diversos temas a respeito do seu bem estar. Neste sentido ele se preocupa com algumas questões já apontadas pela teoria crítica da Escola de Frankfurt. Esta aponta entre outras coisas, a indústria cultural e seus produtos como uma das razões da alienação e despolitização. Habermas mostra como a concepção de ciência desacoplada da realidade, que não se concebe como resultante da práxis social e humana, seria um de seus principais problemas7. Segundo Habermas, isso está ligado à “interdependência crescente da pesquisa, da tecnologia e da administração governamental que vem transformando as ciências numa força primária da produção”(Habermas apud BANNELL, 2006, p. 30). Assim, a colonização do mundo da vida pelos subsistemas do poder e do dinheiro e dos espaço das discussões democráticas, acaba se tornando espaço de ações estratégicas em torno da manutenção do poder. Habermas, como herdeiro da teoria crítica, defende a tese de que a coordenação das ações sociais deve ser orientada pelos interesses dos sujeitos inseridos no meio social, com ações que estimulem e potencializem projetos com a finalidade de emancipar o homem.

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O conceito de subsistemas de Habermas é apresentado como: “Interpretamos o capitalismo e o instituto estatal moderno como sistemas que se diferenciam do sistema de instituições, ou melhor, dos componentes sociais do mundo da vida pelos meios: ‘dinheiro’ e ‘poder’”(HABERMAS, 2012b, v. 2, p. 576). 7 Esse diagnóstico que denunciava a cisão entre saber teórico e sua matriz materialista histórica foi apresentado pela primeira vez no ensaio Teoria Tradicional e Teoria Crítica de Horkheimer em 1937, sendo que está servirá de inspiração para o Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt (HORKHEIMER, 1975).

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EDUCAÇÃO E RACIONALIDADE COMUNICATIVA Habermas não se ocupou diretamente com a educação, fato que sempre acarreta algumas dificuldades e responsabilidades para a tarefa de aplicar a ela seu pensamento. No entanto, o que se pretende é pensar a educação e principalmente a ação docente, pautada em uma racionalidade comunicativa, como contribuição na construção de uma educação, que possa fazer frente aos problemas causados pelo uso de uma razão de caráter reducionista e instrumental na sociedade da informação. Pretendemos defender que o processo de aprendizagem e os sistemas educacionais são pilares sociais, através dos quais se constroem relações sociais. É sempre desafiador pensar as práticas pedagógicas, de uma educação que contribua na emancipação dos sujeitos frente aos processos instrumentais de racionalização da vida que, através da técnica e do conhecimento instrumental, esgotaram o ideal de emancipação humana e de formação de sujeitos capazes de tomar parte nos processos de decisão social e democrática. A partir destas considerações contextuais, torna-se necessário pensar em uma prática pedagógica que considere a globalização tecnológica e suas consequências. Não se trata de tornar a ação pedagógica em uma prática de emprego de recursos tecnológicos, mas de considerar as transformações que a mesma opera em nossa sociedade e que acarretam implicações para a educação. Implica reconhecer que as tecnologias e a consequente midiatização da sociedade, descentrou a escola como espaço de transmissão da informação por exemplo. Assim, diante de uma sociedade com grande fluxo de informações, refletir sobre uma informação, mais que reproduzir, é um processo necessário. Educar assim implica em desenvolver aptidões e competências nos sujeitos para que possam assumir essa postura crítica. Se a perspectiva da educação é fomentar processos que promovam a emancipação do ser humano, os sujeitos precisam estar aptos a se entenderem com os outros sobre como empregar essas informações. Isso implica em uma prática pedagógica para além da resolução de fórmulas matemáticas, ou saber datas e nomes de personagens importantes da história. Para tanto há a necessidade dos sujeitos estarem preparados para a interação e o Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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diálogo com os outros. Torna-se necessário que construam um entendimento dos sistemas normativos e de convívio social. É necessário que tenham capacidade de se entender com os outros e consigo mesmo, de encontrar o seu lugar na complexa dinâmica do mundo da vida. Segundo Savater (2005, p. 135), “[...] em quem está apreendendo deve-se potencializar a capacidade de perguntar e de se perguntar, inquietude sem a qual nunca se sabe realmente nada, mesmo que se repita tudo”. Nesse sentido, uma ação pedagógica que se sustente numa racionalidade comunicativa pode trazer contribuições significativas. A educação não pode estar dissociada da produção cultural e saberes do contexto social em que se encontram os estudantes. O entendimento linguístico pressupõe que os sujeitos contribuam, cumprindo as pretensões de autenticidade, veracidade, inteligibilidade e sinceridade, apresentando suas significações, sentidos, saberes sobre o mundo (HABERMAS, 2012a, p. 31–57). A partir destas significações, os interlocutores estabelecem um horizonte comum, uma base que sirva de chão para a ação comunicativa, sob o qual constroem consensos e um entendimento acerca da vida. São confluências de sentidos, diferentes percepções sobre uma mesma realidade. Segundo Boufleuer (2011, p. 175), “podemos argumentar que em perspectiva de diálogo os sujeitos se encontram para falarem de suas percepções, manifestando sentidos já elaborados em sua experiência cotidiana”. Trata-se de uma perspectiva ampliada do papel da escola como importante espaço de expansão do universo vivencial de seus alunos, proporcionando, pela inserção comunicativa dos alunos, a ciência de si como sujeitos históricos. O conhecimento técnico e as linguagens tecnológicas são recursos que podem auxiliar na formação quando fundados em uma racionalidade comunicativa e processos interativos, de sujeitos que buscam se entender sobre o mundo que os cerca. Na ação pedagógica de racionalidade comunicativa, os espaços pedagógicos tornam-se espaços do agir comunicativo, onde o educador assume o papel de garantir a participação dos sujeitos nas discussões, exigindo a participação dos sujeitos de forma que se possa constituir uma comunidade ideal de comunicação8. O educador necessariamente é aquele que possui uma caminhada de vivências e significações sociais lhe permitem assumir o papel de educador e, assim, apresentar o 8

Numa comunidade ideal de comunicação prevalece o melhor argumento em um processo discursivo.

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conhecimento, a produção cultural humana construída no decurso da história humana. Afirma Boufleuer de que cabe “às gerações adultas, a iniciativa de contarem as suas histórias, não como histórias a serem repetidas ou imitadas, mas como referências ou possíveis inspirações para os que necessitam trilhar o seu percurso existencial, fazerem a sua própria história”(2010, p. 143). O consenso, porém, exige dos homens seguir os pressupostos do agir comunicativo, sendo impossível, para tal, a postura do educador que se põe como “ventríloquo”, dono da verdade, que fala sem refletir sobre o que está a dizer, ou seja, não instiga o professor que fala como ventríloquo, que repete o discurso de outro, que fala como se sua vida não estivesse em questão nessa sua manifestação. Uma aula, portanto, só pode configurar-se como o testemunho da própria aprendizagem do professor, do que aprendeu e, ansiosamente, deseja reaprender, para o que conta com a atenção do aluno, com a sua manifestação por sim ou não, com a sua objeção ou assentimento (BOUFLEUER; FENSTERSEIFER, 2010, p. 264).

A docência, portanto, vincula-se à educação escolar numa perspectiva de otimizar aprendizagens, compreendidas como elaboração de sempre novas e mais ricas percepções, testadas na interação comunicativa, tendo como fundo o mundo da vida. [...] quando os pais querem educar os seus filhos, quando as gerações que vivem hoje querem se apropriar do saber transmitido pelas gerações passadas, quando os indivíduos e os grupos querem cooperar entre si, isto é, viver pacificamente com o mínimo de emprego de força, são obrigados a agir comunicativamente. Em nossos mundos de vida, compartilhados intersubjetivamente e que se sobrepõem uns aos outros, está instalado um amplo pano de fundo consensual, sem o qual a prática cotidiana não poderia funcionar de forma nenhuma (HABERMAS, 1993, p. 105).

O espaço comunicativo é, pois, o espaço das relações, apoiadas no entendimento e na solidariedade, e cabe ao educador manter este espaço comunicativo de inserção dos interlocutores, garantindo-lhes a oportunidade de participação na comunidade de comunicação. As razões ali produzidas estarão necessariamente fundadas na linguagem, na contextualização dialógica que os agentes linguisticamente competentes manifestam e apresentam em suas percepções de mundo, com ímpeto de serem verdadeiros quando interagem numa discussão. Desta forma, a perspectiva habermasiana valoriza o indivíduo, seu potencial criativo ligado ao repositório de significações de sua personalidade, que interage com os outros, buscando entender-se com estes sobre o que podem ser os objetos ou agir sobre eles sem Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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nunca ser confundido com eles. Cada ato de comunicação ou manifestação dos interlocutores sobre suas percepções, sobre o seu saber ou percepção do objeto do qual partilha a comunidade de comunicação, constitui um ato de originalidade, de criação, pois altera o saber, altera os participantes da ação comunicativa e sua percepção do mundo num constante movimento de recriação do mundo. No dizer de Assmann, alinhando-se a aspectos do agir comunicativo, Educar é fazer emergir vivências do processo de conhecimento. O ‘produto’ da educação deve levar o nome de experiências de aprendizagem [...], e não simplesmente aquisição de conhecimentos supostamente já prontos e disponíveis para o ensino concebido como simples transmissão. [...] A educação só consegue bons ‘resultados’ quando se preocupa com gerar experiências de aprendizagem e criatividade [...] (ASSMANN, 1998, p. 32).

É necessário, portanto, dar voz ao outro. O educador deve, de certa forma, garantir que os interlocutores, envolvidos no agir comunicativo, tenham a possibilidade de se expressar, de manifestar sua percepção embasada na razão comunicativa, tendo por pano de fundo o mundo vida. A promoção da emancipação racional daqueles que são “sujeitos, falantes, agentes e sabedores competentes” (HABERMAS, 1990, p. 278) só poderá ocorrer pelo desafio que lhes é colocado no encontro comunicativo. Este prevê o desenvolvimento da racionalidade crítica que se apresenta pelo emergir de uma consciência que se compromete com o mundo social. Nessa condição, esta consciência estará preocupada em encarar os saberes colocados ao debate com um olhar contextualizado e comprometido criticamente em relação aos modos de pensar, de viver e de agir. A capacidade crítica só poderá resultar da ação comunicativa, que leva em consideração a presença e importância dos outros, porque o sucesso “[...] que se estende para além da mera compreensão daquilo que é dito depende da concordância racionalmente motivada do ouvinte” (HABERMAS, 1996, p. 107). Através de uma postura crítica será possível olhar os saberes como provisórios, não podendo se adotar os saberes por verdades acabadas, isentas de crítica ou revisão, pois “o que é aceito como racional aqui e agora pode se evidenciar como falso, sob condições epistêmicas melhores, diante de um outro público e contra objeções futuras” (HABERMAS, 2002b, p. 106). Diante de um operar pedagógico comunicativo, é necessário que os educadores Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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reflitam o fato de que, educar não é uma ação de acumulo de conteúdos ou de memorização conceitos. Na sociedade contemporânea deve-se levar em consideração a quantidade de informação com a qual os alunos entram em contato diariamente, tornando a simples memorização de informações e conteúdos algo sem sentido. Segundo a proposição habermasiana, não se poderá aderir acriticamente aos objetivos determinados por outros. A pretensão de validade precisa ser resgatada e, nesse sentido, a sala de aula não pode prestar-se às lições de reprodução, da exposição não dialogada, da exigência de acumulação de conhecimento. Essa perspectiva é também destacada por Dias Sobrinho: Se a universidade adere acriticamente aos “objetivos” da sociedade, hoje mais identificados com a orientação tecnocrática e gestionária, ela abdica de sua função de formação, de educação e de autonomização dos sujeitos, em favor da organização da produção e de um pretendido controle das relações entre indivíduos (DIAS SOBRINHO, 2004, p. 3).

Da mesma forma é preciso repensar o espaço virtual, presença marcante da sociedade contemporânea, como instrumento de produção e interatividade, em esforço para transformar o espaço virtual em ferramenta de agir comunicativo. É preciso superar os medos e resistências a esse instrumento, educando e criando meios para tornar proveitoso as práticas pedagógicas.

CONCLUSÃO Ao finalizarmos essas reflexões, cabe aqui ainda uma palavra de esclarecimento. Por mais entusiastas que sejamos em relação às possibilidades que se abrem no campo educacional a partir da razão comunicativa, temos ciência de que a realidade se mostra com “cara feia”. Isto porque a razão moderna, na forma como ela se apresenta – o problema não está na razão moderna – insiste na descaracterização do humano em todas as suas formas e na coisificação da vida. Mudar essa realidade exige outra racionalidade. E esse processo não se mostra tão simples e tão imediato, até porque, segundo Habermas “[...] muitos agem estrategicamente por oportunismo ou [...] as tomadas de posição de sim ou não são frequentemente determinadas por outros motivos que pelos melhores juízos” (HABERMAS, 2002, p. 68). Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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Podemos assim afirmar, diante do exposto, que a racionalidade comunicativa se apresenta com potencial para embasar a pretensão de resgate do humano numa perspectiva integral, não apenas na educação, mas também nas demais instâncias da vida em sociedade. Na conjuntura atual, com as políticas educativas definidas pelo estado e geralmente voltadas para a formação para o mercado, é perceptível a normatização das instancias do mundo da vida com perdas para a emancipação do sujeito no processo educativo, bem como nas demais esferas da vida humana. Acentuam-se os processos de controle e de centralização, ficando a educação atrelada ao sistema – estado e mercado. Considerando isto, concordamos com Santos (2000, p. 30) ao observar que “estamos tão habituados a conceber o conhecimento como um princípio de ordem sobre as coisas e sobre os outros que é difícil imaginar uma forma de conhecimento que funcione como princípio de solidariedade”. Diante dessa constatação, o autor conclui que “[...] esse é um desafio a ser enfrentado” (ibid). Com a chegada da modernização, as sociedades industriais passaram a atuar segundo a racionalidade instrumental, que se define pela relação meios-fins, ou seja, pela organização de meios adequados para atingir fins propostos, ou até mesmo pela escolha de alternativas estratégicas para chegar aos objetivos traçados. Essa racionalidade define seus próprios valores, derrubando normas de convivência antes estabelecidas, ajustando seus princípios aos fins próprios. Colocando-se como neutra em relação a valores, rejeita todas as questões sociais que não se enquadram na perspectiva da relação meios-fins, sob o argumento de que não dizem respeito à economia e à eficácia dos meios, sendo, portanto, irracionais. É preciso continuar a lida por uma educação, “para o inconformismo, para um tipo de subjetividade que submete a uma hermenêutica de suspeita a repetição do presente, que recusa a trivialização do sofrimento e da opressão e veja neles o resultado de indesculpáveis opções”(SANTOS, 1996, p. 17–18). Esse clamor é percebido por Habermas ao promover a retomada da razão nos moldes de uma racionalidade comunicativa, tendo na linguagem o seu elemento mediador. Ele situa a reflexão nas condições materiais e históricas da vida, no sentido que a linguagem – Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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especificamente os pressupostos pragmáticos da comunicação, que são as condições da possibilidade de falar e agir – faz parte destas condições materiais e históricas. Dessa forma, Habermas trabalha pela inclusão de todo indivíduo, pois o mundo da vida compartilhado intersubjetivamente é que vai determinar a validação das proposições pela utilização do melhor argumento, no uso livre da linguagem. Neste sentido, a educação não deveria ser uma forma de as pessoas se perderem como sujeitos, mas de se encontrarem como tais. Esse encontro, segundo Habermas, só é possível pela aceitação do outro enquanto ser que tem direito de falar e agir, de manifestar e argumentar a partir de seu mundo da vida: “as relações entre linguagem e mundo, entre proposição e estados de coisas, substituem as relações sujeito-objeto” (HABERMAS, 1990, p. 15). Requer-se, portanto, que se opere uma mudança em relação ao enfoque da educação no que diz respeito ao sentido da formação e da própria ação docente. Os determinantes externos se colocam com força, acarretando implicações em relação ao professor e seu modo de gerir o conhecimento no âmbito da sala de aula. Do mesmo modo as instituições carecem vencer as determinações do pensamento econômico, buscando nas relações sociais condições válidas para a sua atuação livre e sustentável. Educação não pode ser reificada, pois lida com seres humanos, indivíduos que não são coisas para serem manipulados. É contra a “coisificação” do indivíduo que Habermas trabalha. Segundo ele, é preciso trabalhar pela sua melhor condição política, tendo competência para atuar no seu meio de modo a considerar os demais com os mesmos direitos. Como observa Santos (2000, p. 30), o conhecimento que se deseja tem a característica de não ser indiferente à diferença. Isso significa que a competência situa-se, justamente em agir na consideração das diferentes vozes da razão e diferenciadamente para cada situação, a partir da leitura da cultura e das condições de produção do conhecimento que se estabelecem entre o professor e seus estudantes e da revisão dos posicionamentos ou das verdades ditas. Desse modo, a educação terá sucesso no cumprimento de seus fins, promovendo o desenvolvimento do ser humano de modo integral com dignidade. Habermas, através da perspectiva de uma racionalidade comunicativa, aponta para um caminho que possibilita Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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ressignificar a vida humana e a educação, retirando desta o sentido de mercadoria que lhe foi atribuído por uma sociedade tecnicista e pautada no êxito.

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O HOMEM E A SUA RESPONSABILIDADE HISTÓRICA EM KARL OTTO APEL THE MAN AND HIS HISTORICAL RESPONSABILITY IN KARL OTTO APEL

Paulo Roberto de Oliveira1 RESUMO: Deseja-se reconstruir, a partir da filosofia moral de Karl Otto Apel, a evolução cultural humana como problema ético. Para tanto, analisaremos a passagem do estado instintivo do homem para o estado social-institucional e por fim veremos o surgimento da racionalidade moral como solução para o problema da responsabilidade do homem atual. Palavras-chave: Ética, Responsabilidade, História, Ética do Discurso, Racionalidade. ABSTRACT: In this paper, we wish rebuild, from the Karl Otto Apel’s moral philosophy, the human cultural evolution as an ethical problem. To this end, we will study the human instinctive state to the social-institutional state and finally we will see the emergence of moral rationality as a solution to the problem of man’s responsibility now. Keywords: Ethics, Responsibility, History, Discourse Ethics, Rationality.

INTRODUÇÃO

A ética de Apel pretende ser uma resposta aos desafios da situação histórica contemporânea, essa situação que é fruto da construção cultural humana. Neste sentido, a presente pesquisa tem uma natureza também antropológica, pois é natural do ser humano ser um produtor de cultura, portanto, um ser responsável, consequentemente ético. Esse trabalho irá expor na primeira parte a situação cultural humana, desde a era primitiva até a atualidade. Tentaremos marcar aqueles traços essenciais da situação humana, que determinam a história do ser. Veremos que tal situação é diferente dos demais seres vivos, principalmente a partir dos conceitos de homo faber e homo sapiens.

Mestre em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE. Coordenador do Departamento de Publicações da Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG – Unidade Diamantina. E-mail: paulus.sofia@hotmail.com. Artigo recebido em 08/02/2014 e aprovado para publicação em 01/07/2014. 1

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Na segunda parte, iremos tratar da necessidade de uma reconstrução histórica da evolução cultural humana à luz da ética, expondo o aparecimento da ética ou da razão prática na vida do homem. Também a necessidade atual de uma macroética como resposta à situação atual. Para responder às questões colocadas pelos filósofos, cientistas e psicólogos tentam construir a história da evolução cultural humana a partir de pressupostos biológicos, sociológicos, psicológicos, a respeito do que veremos na terceira parte as soluções propostas por Apel a partir da virada linguística. O presente trabalho não tem a intenção de aprofundar a fundamentação da ética em Apel, mas pretende colocar a questão de que nós homens devemos ser morais. Trata-se de considerar na reconstrução cultural também seus pressupostos racionais como resultado da história. Não trataremos de expor o problema da finalidade da vida humana ou qualquer questão de ordem metafísica. Sendo assim o grande pressuposto racional colocado por Apel será o da ética do discurso, pressuposto este que, se negado, faz correr o risco de cairmos em contradição performativa.

1. A SITUAÇÃO DO HOMEM COMO PROBLEMA ÉTICO A ideia que iremos expor sugere reconstruir a história da evolução cultural do homem em uma perspectiva ética. Isso se dá pelo fato de que o homem possui uma responsabilidade por tudo aquilo que faz e diz. Ou seja, o homo sapiens é responsável pelas suas ações, de certa forma dá sentido aos feitos do homo faber, fase biologicamente anterior do homo sapiens. O homem não é regido por leis naturais, suas ações não são determinadas por nada externo, mas a liberdade é sua condição de possibilidade. O filósofo Jean Paul Sartre traduz essa condição humana livre contra toda forma de determinismo numa frase curta e radical: “Estamos sós e sem desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado a ser livre”2. Logicamente que Sartre coloca a responsabilidade total sobre o homem.

2

SARTRE, Jean Paul. O Existencialismo é um Humanismo. São Paulo: Nova Cultural, 1980, pp. 253-254

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Porém, citamos o existencialismo sartreano só para compreendermos o problema moderno da responsabilidade, pois, o homem moderno se encontra só, sem desculpas, sem um Deus que se responsabilize por suas atitudes.

O que importa é articular com Apel a

problemática da moralidade do homem. Até porque a moralidade existencialista por ser subjetivista não pode assumir a responsabilidade do homem atual, pois, como veremos, Apel coloca a necessidade de uma macro-ética, a necessidade de uma norma moral universal. Pois, o existencialismo tem que supor os parâmetros dessa responsabilidade moral, o existencialismo só pode por as informações necessárias para o exercício dessa responsabilidade. Isso se dá pelas ideologias e pelas consequências dessas ideologias filosóficas modernas como podemos ver no texto a seguir: A complementaridade entre objetivismo da ciência não valorativa, de um lado, e do subjetivismo existencial dos atos de fé religiosa e das decisões éticas, de outro lado, se comprova como sendo a expressão filosófica ideológica moderna da separação liberal entre a esfera pública e da vida privada, que se formou no contexto da separação entre o Estado e a Igreja. Pois, em nome dessa separação, e isso quer dizer, com a ajuda de um poder estatal secularizado, o liberalismo ocidental limitou, primeiro a obrigatoriedade da fé religiosa, e, em conexão com esta, das normas morais, mais e mais à esfera das decisões de consciência particulares. Na contemporaneidade, este processo prossegue- p. ex; pelo afastamento de argumentos e princípios morais dos fundamentos do direito. Em geral se pode constatar que, em todos os setores da vida pública, na sociedade industrial ocidental, as fundamentações morais da práxis são substituídas por argumentos pragmáticos, que podem ser fornecidos por experts, com base em regras científico-tecnológicas objetiváveis3.

Portanto, percebe-se que todo o sistema de complementaridade, ou seja, o direito, a política ou filosofia, não conseguem suprir a responsabilidade atual, pois, não possuem normas morais universais. Para tanto, é necessário que o homem crie uma consciência moral, mas, para isso, é preciso reconstruir a história da evolução cultural humana a partir do surgimento da ética e da responsabilidade histórica, ou seja, colocar a situação atual e primitiva do homem como problema ético, sendo o homem responsável por suas ações.

1.1

Situação Primitiva A questão da situação primitiva já parte do sistema de reconstrução da evolução

cultural humana, sobre essa reconstrução falaremos mais tarde.

3

APEL, Karl Otto. O a priori da comunidade de comunicação e os fundamentos da ética: o problema de uma fundamentação racional na era da ciência. In: Idem, Estudos de Moral Moderna. Petropólis: Vozes, 1994; p. 85.

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A questão que queremos ver é que a situação do homem foi sempre um problema ético, desde o aparecimento da razão. Essa idéia de que a situação do homem é um problema ético é encontrada simbolicamente na Bíblia: A Bíblia sugere que essa situação é, de fato, constituída pela queda pecaminosa do primeiro homem: desde então os homens são saberes da diferença entre bem e mal. Este evento, concebido de forma mítica, já tinha sido interpretado por Kant de forma teórico-evolutiva em seu tratado sobre o presumido início da história humana: com passagem da rudeza de uma criatura meramente animal para a humanidade, da andadeira do instinto à condução da razão, com uma palavra, da tutela da natureza para o estado de liberdade4.

Essa passagem do instinto para uma humanização torna o homem consciente de si e do mundo, capaz de construir livremente a sua vida, a partir do homo faber as barreiras instintivas são superadas. Essa superação se dá porque o equilíbrio entre o mundo perceptível e o mundo causal foi quebrado. Essa ideia é exposta por Apel no artigo denominado “Die Situation des Menschen als ethisches Problem”5, sendo atribuída a Von Uexkull. Segundo ele, os animais reagem segundo a percepção do mundo que captam momentaneamente, seguem o apelo de proteção instintivamente. Com o homo faber esse equilíbrio foi quebrado, na Bíblia, o pecado original se dá pela mordida da maçã. Mas, coloquemos no lugar da maçã a fabricação de armas e instrumentos pelo homo faber6. Dessa forma Apel coloca a sua tese que é central para a nossa problemática: ... por esta descoberta constitutiva do homem como homo faber foi tendencialmente suprimido o equilíbrio. O círculo de realimentação entre o mundo perceptível e o mundo causal; e agora se tem que compreender a descoberta do machado de punho como o começo de uma carreira do homo faber, que com a bomba atômica e o computador alcançou por enquanto seu fim7.

Portanto, a descoberta do homo faber constitui um problema ético para o homem, denominar e limitar o bem e o mal, o justo e o injusto.

4

APEL, Karl Otto. A Situação do Ser Humano como problema Ético. In: Idem, Estudos de Moral Moderna. Petropólis: Vozes, 1994; p. 85. 5 Tradução: A situação do homem como problema ético. 6 É interessante que diversos autores interpretaram a passagem bíblica sobre Adão e Eva e o pecado original. Um deles foi Rousseau, no qual, coloca o jardim do Éden como hipótese do estado de natureza, onde o pecado é a sociedade. Porém, como podemos perceber, em Apel o homo faber aparece ainda no estado de natureza, depois, com a razão é possível saber o que o bem ou o mal. 7 APEL, Karl Otto. Die Situation des Menschen als ethisches problem. Texto traduzido pelo professor Francisco Javier Herrero, p. 1.

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1.2

Situação atual A situação atual corresponde ao “segundo passo da reconstrução da evolução cultural

humana: a característica do homo faber e o agravamento do desafio de uma ética planetária da responsabilidade”. Reconstruir a carreira do homo faber é reconstruir a história do desenvolvimento da técnica, da técnica desenvolvida cientificamente, até o presente. Percebe-se que o abismo existente hoje entre o mundo perceptivo e o mundo causal é cada vez maior, tanto é que os judeus mortos por gazes, não tiveram contato com os seus executores. Iremos visualizar a situação atual para que na segunda parte possamos fazer a reconstrução dos fatos a partir de uma ética da responsabilidade, veremos os desafios da atualidade: Temos dois grandes desafios: -natureza e técnica (desafio tecnológico, ecológico) - social (surgido pela globalização, um desafio político) A história se tornou universal; só atualmente é que a história se tornou universal, porque os modos de produção e tecnologia são universalizados: ou seja, o que faz hoje com que a história seja uma são os modos de produção e tecnologia. Vivemos em uma sociedade de trabalho que vê surgir a terceira revolução industrial com a informatização da sociedade. A ciência e a técnica se tornaram universais; a tecnologia está dando pela primeira vez à humanidade um alcance planetário, universal; a atividade humana alcançou um raio de ação planetária, basta ver a ecologia. A técnica permite a comunicação simultânea de todos os acontecimentos do planeta. Porém, com a razão instrumental (onde os fins justificam os meios), vemos crescer o poder da técnica sobre a realidade, cada vez mais neutra de valores. Um desequilíbrio entre os poderes do homo sapiens e o homo faber, uma coisa é produzir, outra é a capacidade de pensar e controlar esse progresso. Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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Disso, surge um abismo cada vez maior entre os valores e os interesses, vivemos em um individualismo desinteressado, que constrói tudo egoisticamente. São diversos e fortes os efeitos da ciência e da técnica. O segundo desafio é o social e político: -Tudo está globalizado: direito, política, economia, nos quadros institucionais e jurídicos. -Mudou a natureza do capital: existe atualmente uma universalização das propriedades, antes só capitalistas tinham propriedade. Pelo fundo de pensão e investimento detém posição estratégica no controle do capital, hoje acima das multinacionais estão os mercados. -Existe uma mobilidade dos fluxos financeiros internacionais, o capital é mobilizado. -Preocupações individuais que tem um alcance comum. Quando alguém perde, é porque tem alguém que ganha. -Mudou a natureza do trabalho; hoje a produção tornou-se mais intensamente no conhecimento, neste caso, o saber se tornou crucial. -Mudou o papel do Estado, este como mínimo tem que conciliar o nacional e o internacional. Criar condições de competitividade em escala global. -Pela primeira vez na história surge a tarefa de dar sentido humano do desenvolvimento em escala mundial. A idolatria do mercado criou um vazio ético, com o vazio devemos dar um sentido humano a esse desenvolvimento global. Acabaram as utopias revolucionárias. Nunca foi tão urgente criar uma ética da solidariedade. Segundo o professor Herrero a situação atual está fundada por quatro vergonhas político-morais; que afetam a nossa existência: 1° Fome e miséria que conduz a morte a um número cada vez maior de seres humanos.

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2° Tortura e a violação da dignidade humana, sobretudo nos estados que não são de direito. 3° O crescente desemprego e disparidade na distribuição de renda e da riqueza social. 4° Ameaça de destruição da humanidade pelo perigo só em parte superado de uma guerra nucelar e de um equilíbrio ecológico. Portanto, os problemas atuais alcançaram uma dimensão planetária, se antes o homem era responsável por suas ações individuais ou pelas ações do grupo, hoje a sua responsabilidade histórica tem um alcance mundial: Pela primeira vez é exigida uma macro ética planetária, fundada racionalmente, da justiça valida universalmente, isto é, intercultural e da corresponsabilidade de todos os homens como resposta á situação humana8.

O que Apel quer mostrar é que a situação do homem como problema ético significa que o homem possui uma responsabilidade histórica e por isso temos um problema ético. Pois, como já dissemos, a liberdade pressupõe responsabilidade, já um animal que vive instintivamente age de acordo com a lei, não sendo por isso, responsável pelos seus atos. Para tanto, fizemos uma analise da situação antiga e atual do homem, agora, reconstruiremos com Apel essa situação humana à luz da ética e veremos que a situação do homem é um problema ético, tentaremos também colocar a resolução proposta por Apel para a situação dos homens atual e o problema de uma responsabilidade universal.

2. FORMULAÇÃO DO PROBLEMA ÉTICO DA SITUAÇÃO HUMANA É interessante observarmos que para Apel, a situação do homem como homo faber e depois como homo sapiens o obriga a ser responsável por suas ações e consequentemente não podemos escapar das normas morais que possam regular o agir. “A saber, minha caracterização da situação do homem como problema ético pressupõe já desde o inicio que

8

Ibidem, p. 1.

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nós homens devemos ser morais, isto é, devemos seguir certas normas fundamentais da moral”9. Porém, nem todo o tipo de filosofia ou ciência aceita essa idéia de normas morais universais, pois, a reconstrução da evolução cultural humana foi feita de formas diferentes da de Apel. A formulação do problema ético da situação humana si dá mediante essa reconstrução feita por Apel.

2.1 O problema da reconstrução histórico-cultural “No sentido de um biologismo ou um darwinismo social, do fato de que a situação do homem colocou desde o início e até hoje, igual que a dos animais, só o problema da sobrevivência na luta pela vida”10. Por isso: “Todas as conquitas da evolução cultural-p.ex; o desenvolvimento das instituições do Direito até a economia de mercado se deixam então simplesmente compreender como resultados da seleção na luta concorrencial pela vida”11. Então, para a reconstrução encontramos a barreira do biologismo, que, considera as ações humanas determinadas por um instinto de sobrevivência; com a razão esse instinto foise desenvolvendo em teorias do Estado e do Direito, contudo, seu núcleo genético continua sendo instintivo. 2.1.1 Perspectivas morais: biológicas e filosóficas No item anterior já introduzimos o problema, na qual, vimos que a construção biológica antropológica da situação humana, nos impede de avançarmos na discussão sobre a responsabilidade ética do homem. Por isso mesmo, Apel vê a necessidade de uma reconstrução da evolução cultural humana.

9

Ibidem, p. 1. Ibidem, p. 1. 11 Ibidem, p. 1. 10

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Para o antropólogo A. Gehlen, as conquistas culturais humanas foram necessárias para a mera sobrevivência dos homens como seres carentes de instintos. Porém, Gehlen não coloca se o homem deveria cumprir outros fins, ou seja, não levou em conta a natureza racional humana, que desde o surgimento da filosofia busca um fim. Outro exemplo importante colocado por Apel é a sociobiologia de R. Dawkins. Segundo Dawkins, temos quatro bons motivos darwinianos para que os indivíduos sejam altruístas, generosos ou morais: 1°: Caso especial de parentesco genético. 2°: Há a replicação: o pagamento dos favores recebidos, e a execução de favores antecipando seu pagamento. 3°: O benefício darwiano de adquirir uma reputação de generosidade e bondade. 4°: O benefício adicional específico da generosidade. Conspícua, como forma de comprar uma propaganda autêntica e impossível de falsificar12. Essa ideia segundo Dawkins, tem haver com a seleção natural darwiana, pelo qual, o gene egoísta, preserva os genes de uma determinada espécie. Há duas maneiras de preservar a espécie ou os genes; garantindo a sobrevivência: 1°: Programando organismos isolados para que eles sejam egoístas. 2°: Existem circunstâncias, que não são especialmente raras, em que os genes garantem sua sobrevivência egoísta influenciando os organismos a agir de forma altruísta13. A seleção não favorece a evolução de uma consciência cognitiva sobre o que é bom para seus genes. Para Dawkins a moralidade abstrata é um erro ou subproduto. Impulsos altruístas, impulsos sexuais, impulsos de fome e medo. Subproduto: sentimos desejo sexual mesmo que a mulher seja estéril.

12 13

DAWKINS, R. Deus: Um Delírio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.286. Ibidem, p.286.

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Portanto, Dawkins e os evolucionistas biológicos explicaram as conquistas da evolução cultural humana, chamada por eles de meme, isto é, inovações eficazes de imitação e daí bem sucedidas em analogia com as imitações sucedidas de modo seletivo no biológico da evolução. Na reconstrução feita por Apel a partir da ética filosófica, há de se considerar três coisas: 1°: Uma reconstrução da evolução cultural tem de estar na situação de supor seus próprios pressupostos racionais como ciência, ao mesmo tempo como télos moral do desenvolvimento ancorado na evolução cultural, e de recuperá-los pela reconstrução mesma, de certo modo como fato. Ou seja, os fatos históricos da humanidade devem ser reconstruídos como uma ciência moral. 2°: Este princípio metodológico não implica uma metafísica teleológica, que pretende saber o que é a meta da história do ser. Trata-se aqui só de considerar a reconstrução como resultada da história, para não cair pela reconstrução em uma contradição com esse fato. Isso significa que esse trabalho consiste em afirmar a responsabilidade histórica do homem. 3°: A Ética do Discurso já como uma resposta à evolução cultural humana. Neste texto Apel não expõe ainda os pressupostos racionais da ciência. Mas, resolve a situação do homem como problema ético, com a Ética do Discurso.

2.2 Surgimento da Razão Prática Falamos da passagem do instinto para a razão. No caso de Adão e Eva, Kant interpreta esse fato como o surgimento da Razão Prática. Nos autores do biologismo cultural, vemos certo determinismo, porém, em Kant, o princípio é a autonomia: Princípios práticos são proposições que encerram uma determinação geral da vontade, trazendo em si várias regras práticas: São subjetivos, ou máximas, quando a condição é considerada pelo sujeito como verdadeira unicamente para a sua vontade; são por outro lado, objetivas ou leis práticas quando a condição é conhecida como objetiva, isto é, válida para a vontade de todo ser racional14.

14

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Tradução: Rodolfo Schaefer. São Paulo: Martin Claret, 2005, p. 27.

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Ainda exposta por Kant parte da questão que ele coloca na Fundamentação da Metafísica dos costumes: Como podemos ter uma boa vontade? Como vimos, o homem é um ser de vontade, mas isso significa que ele é um ser capaz de representar as leis, nesse caso, o homem se dá as leis pela razão e submete a vontade ao dever, ou às leis da razão. Isso significa sem mais, que com o surgimento da razão prática o homem é capaz a partir de uma crítica da razão submeter a sua vontade e distinguir o certo do errado, o bem do mal. O despertar da consciência moral em Adão e Eva constitui a saída do estado de natureza para o estado social, o paraíso é o instinto que não precisa dar razões para a sua conduta. Outra interpretação da humanização se dá por J.G Herder. Para ele a razão prática foi uma compensação necessária da carência instintiva constitutiva do homem. Apel formula sintetizando essas duas ideias: Segundo esta interpretação de hominização o motivo mais profundo de que a situação do homem represente em geral um problema ético estaria em que o comportamento humano não é mais determinado pelos instintos, portanto pelas leis da natureza, mas é referido à auto interpretação das leis do comportamento ou princípio da vontade livre ou razão prática15.

É interessante observarmos que a racionalidade em substituição do instinto não aconteceu de uma forma imediata. Essa idéia, Apel tira de Gehlen, para ele, enquanto o homem não utiliza em plenitude a razão, as instituições possuem um papel importante no processo de regular as ações humanas. Isso significa que o homem é mais do que sobrecarregado pelas decisões livres da razão. Para Gehlen, o homem é um ser de disciplina (zuchtwesen). As instituições têm o objetivo de disciplinar o homem16, para que ocorra a substituição do instinto. Gehlen analisa o surgimento das instituições e da moralidade em três etapas, dialeticamente: a) Fase primitiva da cultura humana: uma moral primitiva no sentido de um ethos de reciprocidade próximo da linguagem.

15

APEL, Karl Otto. Die Situation des Menschen als ethisches problem, p. 3. Para Bergson, uma das fontes da moral é a moral fechada, neste caso podemos considerar que a disciplina é a base da moral fechada, na qual, somos disciplinados pela sociedade a fazer o bem. 16

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b) Fase das instituições teogonais. c) Época da conscientização reflexiva e colocação crítica do espírito nas instituições pela filosofia. A ideia que se quer formular é a de uma moralidade institucional, na qual, todas as instituições devem depois (na terceira fase) passar pelo crivo da razão filosófica. Essa ideia é difundida nos movimentos de Aufklãrung. Em Kant a religião deve ser submetida à razão, ou seja, a boa vontade não está ligada com a ideia de vida eterna, ser bom pelo dever, não por uma recompensa de Deus. Segundo Apel, a crítica da Razão não pressupõe o fim das instituições, mas, as instituições perdem o seu poder, pois, o que deve prevalecer é o discurso racional nas instituições, em outro texto Apel coloca o valor que tem as instituições para a aproximação do ethos moral: Neste sentido é característica a pretensão de capacidade universal de ligação, que distingue tendencialmente o direito de todos os Estados de direito europeus desde a recepção do direito romano e de tradição concomitante da idéia estóica de direito natural17.

Portanto, com o surgimento da refletividade e discursividade, que estão ligados à

filosofia; o filósofo tem a pretensão e o dever de orientar argumentativamente o agir humano, temos, pois, uma ética filosófica que suprime a religião ou outras instituições arcaicas. Com a demonstração do surgimento da Razão Prática, Apel mostrou os pressupostos racionais para a reconstrução da evolução cultural desde a humanização. Contudo, a situação atual do homem, constitui uma potenciação ética do problema histórico da ética, ou seja, a necessidade de uma macro-ética.

2.3 Desafio externo de uma ética da responsabilidade O grande ponto chave dessa questão situa-se no que já falamos: do abismo entre o mundo perceptível e o mundo causal. Pois, atualmente as ações humanas vão além de qualquer ligação entre a idéia de causa-efeito. Também o irracionalismo moderno diz respeito à ameaça de uma destruição da humanidade, um perigo de uma guerra nucelar e a falta de 17

Ibidem, p. 5.

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consciência ecológica, com isso, pode-se ver um alargamento do mundo causal desde o surgimento do tal machado de punho. Portanto: Neste lugar fica claro que realizações da fantasia ética da consciência são exigidas na época da ciência e da técnica para transpor o abismo existente hoje entre o mundo perceptível e o mundo causal do homem e possibilitar um controle eticamente responsável em presença do alcance e do risco de nossas atividades18.

Ainda sobre essa questão Apel adverte que atualmente somos responsáveis por nossas ações coletivamente, não há uma responsabilidade apenas individual. Ninguém sozinho é responsável pela fome do mundo; mas toda a humanidade. Há um trecho do artigo de Apel, na qual ele fala sobre a consciência da necessidade de uma macro-ética e responde o porquê dessa macro-ética e a sua diferença com outras potencialidades morais: Quando eu me tomei consciente décadas atrás do alcance deste novo, desafio externo da responsabilidade moral, comecei a falar da necessidade de uma macro-ética da responsabilidade planetária- à diferença da micro-ética tradicional da lealdade dos pequenos grupos, e à diferença também da igualmente tradicional meso-ética dos deveres de solidariedade referidos ao Estado nacional. E eu cheguei ao resultado de que o conceito tradicional de responsabilidade imputável individualmente não é mais suficiente para a macro-ética19.

Percebe-se uma globalização da técnica e da comunicação. Logicamente que isso exigirá uma globalização de segunda ordem, uma resolução dos problemas atuais a nível global.

3.

ELEMENTOS DE SOLUÇÃO PARA O PROBLEMA ÉTICO

3.1 Evolução dos recursos internos da racionalidade moral Neste ponto, Apel argumenta contra as teorias de Gehlen, Dawkins e outros. Contra Dawkins, ele argumenta que o homem não é mais determinado teleologicamente, e que a liberdade humana consiste nisso. Para outros, a conservação dos genes se dá por uma racionalidade estratégica, na qual, a ação humana baseia-se no ditame dos fins justificando os meios para a preservação da espécie.

18 19

Ibidem, p. 7. Ibidem, p. 8.

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Até mesmo Gehlen pensava que a linguagem era uma estratégia moral, porém, segundo Apel: A função primordial da comunicação lingüística, que á diferença do comportamento animal não pressupõe já metas fixas instintivas, nos permite determinar livremente novas metas de ação , não pode estar no influxo estratégico; antes, ela pressupõe uma outra forma de racionalidade da comunicação e da interação totalmente diferente, que não pode ser reduzida á racionalidade meios-fins20.

Com isso, a linguagem que era um recurso interno da moral, mas reduzida à moralidade meios-fins, agora a racionalidade meios-fins é superada através da Ética do Discurso, buscada na teoria do agir comunicativo. Pois, com o discurso argumentativo, argumentamos e colocamos um fim aceito por todos os afetados. Sendo assim, agimos por um princípio moral encontrado nos pressupostos transcendentais do discurso: “o dever de resolver dialógica e argumentativamente as pretensões de validade da vida humana”. Do qual resulta: que todo conteúdo que se apresentar como digno de ser reconhecido como válido terá que ser capaz de consenso. Além de superar a teoria biológica e antropológica, ao afirmar uma linguagem que supera qualquer determinismo social, genético, psicológico, memético, fisiológico; a Ética do Discurso como sendo ética da responsabilidade, supera a ética kantiana, pois, parte de duas criticais principais á ética kantiana: 1°- Para Kant cada um verifica se a sua máxima pode ser levada à lei universal, pode-se fazer monologicamente. Porque o sujeito é o último. Na ética do discurso, o imperativo categórico passa a ser dialógico, pois a mediação da linguagem é que todo significado é intersubjetivo. Para verificar o imperativo categórico, o imperativo deve ser dialógico. 2°- A ética do discurso parte da virada lingüística, ao ser monológica. Kant não parte da virada lingüística, deixando elementos importantes para trás. A filosofia moral de Hegel já fazia menção a essa nova exigência ética, sobretudo no estado: “Segundo Hegel, este deve ser entendido obviamente como universal concreto, a partir da sua unidade com a realidade histórica e, nessa medida, afinal no sentido do estado

20

Ibidem, p. 11.

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concreto fatalmente vinculativo para cada indivíduo”21. Podemos ver em Hegel a unidade entre moralidade e eticidade, no nosso caso, segundo Apel, o fundamento de uma ética da responsabilidade histórica. Pois, dentro do princípio ético, encontramos pressupostos reais do discurso argumentativo, esses pressupostos vão ajudar a fazer da ética do discurso uma ética da responsabilidade. Daí decorre a responsabilidade histórica, na qual, temos que ser responsáveis pelo uso do principio moral e pelas conseqüências de seu uso. Ou seja, pensar as possíveis conseqüências da aplicação do principio moral na situação.

3.2 A racionalidade estratégica Logicamente que antes de uma moral pós-convencional, sobre os pressupostos reais, onde devemos pressupor a diferença radical entre as condições ideais e as condições reais da situação e ao aceitar a obrigação de resolver consensualmente todos os conflitos do mundo da vida, ao aceitar o principio moral, já reconheceu também a obrigação moral de superar e suprimir paulatinamente essa diferença. Isto significa que reconhecemos a exigência de transformar as condições reais existentes e de criar as condições socais suficientes para possibilitar a realização do princípio moral na sociedade. Disso resulta ainda a necessidade das instituições, na qual elas têm a função de elevar o real às condições ideais, ou seja, ao superar a diferença, está pressupondo um télos, quem argumenta já aceitou implicitamente o telos moral da práxis histórica. O telos é a passagem da moral convencional para a moral racional, pós-convencional, que tem de criar as condições sociais de realização de seu principio moral.

21

APEL, Karl Otto. Kant, Hegel e o problema actual dos fundamentos normativos de moral e direito. In: Idem, Ética e Responsabilidade: o problema da passagem para a moral pós-convencional. Lisboa: Pensamento e filosofia. 2010, p.51.

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Portanto, na ciência moderna, a racionalidade estratégica, era a de relação meio-fim, na ética do discurso a racionalidade estratégica tem a função de elevar a moral convencional á uma moralidade pós-convenciona.

3.3 Moralidade Pós-Convencional A terceira e última parte da reconstrução da evolução cultual humana consiste em analisar a moral pós-convencional, na qual teremos a claridade de uma responsabilidade histórica. Apel seguindo o pensamento psicanalítico da consciência moral em J.Piaget e L. Kohlberg; menciona a dialética triádica de Gehlen, pois, psicanalistas fazem também uma tríade dialética: moralidade pré-convencional, moralidade convencional e moralidade pósconvencional. É mister observarmos que as instituições como a religião, estão no nível da moralidade convencional, o direito parte da moralidade convencional mas, tem por fim a moralidade pós-convencional. Apel vê a grande dificuldade na passagem da moral convencional para a moral pósconvencional: A partir da possibilidade e tarefa indicadas de uma estruturação da história do espírito relevante eticamente depois do tempo eixo fica também claro que a crise moral de adolescência da humanidade de modo algum está acabada no presente, e isto é, que a passagem para a moral pós-convencional de modo algum foi bem sucedida. Dito de outro modo: o desafio da Ética no presente não resulta só dos desafios externos-como crise ecológica, globalização e semelhantes –mas ao mesmo tempo também das contradições internas e déficits dos recursos morais, aos quais nós podemos remontar-nos: dos déficits da moral tradicional convencional, assim como dos déficits da ética filosófica22.

Para Apel a grande dificuldade para fundamentar a ética já vem desde os seus fundadores: dificuldade com a exigência de uma ética válida universalmente, isto é, obrigatória para todos os homens em principio de igual maneira. Pois, é interessante, que não levando em conta a responsabilidade, os filósofos gregos não concebiam a todos os seres humanos os mesmos direitos23.

22

APEL, Karl Otto. Die Situation des Menschen als ethisches problem, p. 13. Os filósofos gregos, Platão e Aristóteles justificavam a escravidão e a não participação de mulheres e estrangeiros na política. 23

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Outro problema para a fundamentação da moral acontece já na filosofia do século XIX, na qual, com a escola historicista, descoberta de novo a ampla dependência de nosso pensar e conhecer da pré compreensão do mundo, condicionada historicamente, das tradições culturais particulares. Neste sentido a consequência disso gera um problema, pois, esta convicção parece reduzir a exigência de uma ética válida universalmente da justiça e co-responsabilidade de todos os homens para a solução dos problemas que afligem hoje a humanidade a uma ilusão. O grande problema que vemos na ética filosófica, é a unidade entre a liberdade e razão. Essa questão é sempre colocada nas aulas de ética e teorizada como um grande problema para o filósofo e professor Herrero. Isso significa que todas as culturas deverão elevar as suas máximas ao critério da Racionalidade, ou como quer Apel: a discussão. A filosofia atual se encontra atada por causa de conceitos filosóficos que permanecem na contingência histórica fatual. Porém, a conseqüência disso é o exemplo do fundamentalismo oriental, no qual, surge a questão: Devemos ser tolerantes com quem é intolerante? Assim Rorty, independente de cada tradição cultural própria não há qualquer critério racional para a distinção entre razoável e louco. Essa resposta à Rorty é dada por Apel. A responsabilidade histórica deverá ser consciente e livre, a loucura, portanto é uma espécie de irracionalidade.

CONCLUSÃO A pergunta basilar que se coloca diante da reconstrução cultural humana é: Até que ponto a partir da situação do ser humano podemos realmente deduzir algo como a necessidade de uma responsabilidade ética? A tese de Apel para responder essa questão é: cada um que filosofa pelo menos implicitamente também já deve ter reconhecido uma norma ética fundamental. Também o progresso moral adquirido pela argumentação, como vimos, não aceita nenhuma relativização ou biologismo ético. Por outro lado, a ética do discurso não parte do

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homem isolado de suas condições social e histórico. A ideia de ser no mundo é trazida por Apel para a fundamentação da ética e dá ao homem a responsabilidade por suas ações. Outra questão que vimos foi se o homem, com sua razão ética, é capaz de compensar a carência de instinto, para ele constitutiva, e de responder ao desafio da situação que ele mesmo causou como homo faber. Ao colocar essa questão Apel argumenta que querem semelhar os animais com os homens, porém, o homem pode e deve fixar pessoalmente os fins e as regras do jogo – e isso de modo mais e mais consciente; e ele até pode fazer isso de forma muito variada, com vistas à garantia de sobrevida, não mais fixados pela seleção natural. Como vimos o homem é capaz de resolver os desafios atuais através da ética do discurso, de maneira dialógica. Não podemos nos esquecer de que a responsabilidade histórica se dá através de uma ética pós-convencional, pois, através dela o homem se abre para o todo da humanidade, deixando dada vez mais o irracional de lado, não sentido a falta do instinto para a sua vida racional.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS APEL, Karl Otto. Die Situation des Menschen als ethisches problem. Texto traduzido pelo professor Francisco Javier Herrero (FAJE). Mimeo. ______. O a priori da comunidade de comunicação e os fundamentos da ética: o problema de uma fundamentação racional na era da ciência. In: ______. Estudos de Moral Moderna. Petropólis: Vozes, 1994. ______. A situação do ser humano como problema ético. In: ______. Estudos de Moral Moderna. Petropólis: Vozes, 1994. ______. Kant, Hegel e o problema actual dos fundamentos normativos de moral e direito; In: Ética e Responsabilidade: o problema da passagem para a moral pós-convencional. Lisboa: Pensamento e filosofia, 2010. DAWKINS, R. Deus: Um Delírio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. HERRERO, F. J. Ética do Discurso. In: OLIVEIRA, M. A. (Org.), Correntes fundamentais da Ética Contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2000. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. São Paulo: Martin Claret, 2005.

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Theoria - Revista Eletrônica de Filosofia Faculdade Católica de Pouso Alegre SARTRE, Jean Paul. O Existencialismo é um Humanismo. São Paulo: Nova Cultural: Coleção Os Pensadores, 1980.

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A CRÍTICA DE DAVID HUME À RAZÃO DAVID HUME´S CRITIQUE OF REASON

Rubens Sotero dos Santos1

RESUMO: Pretendemos aqui apontar duas críticas de David Hume à razão. A primeira se refere a sua epistemologia, mostraremos como Hume retira do escopo da razão os raciocínios causais. A segunda diz respeito a falsa oposição entre razão e paixão. Por fim, contextualizaremos o conceito de razão que Hume critica, buscando mostrar que suas críticas não só se faz coerente com seu tempo, mas que e, sobretudo, ainda hoje são corroboradas pela filosofia e ciências contemporâneas. Palavras-chave: Razão. Crítica. Hume. ABSTRACT: We intend here point out two criticisms of David Hume to reason. The first refers to his epistemology, we will show how Hume withdraws the causal reasoning of the scope of reason. The second concerns the false opposition between reason and passion. Finally, we will contextualize the concept of reason that Hume criticizes, seeking to show that his criticisms are beyond of consistent with his time, are today corroborated by philosophy and sciences contemporary. Key-words: Reason. Critical. Hume.

I David Hume, na contramão do seu tempo, se insurge contra a razão, uma faculdade quase que sobre-humana que gozava de uma plena soberania em relação às demais faculdades, pois garantia aos homens à verdade, à liberdade e à autonomia intelectual e, dessa forma, diferenciava-os dos demais animais. Ele buscou mostrar que a razão além de ser uma faculdade demasiada frágil é bastante limitada, isto é, que ela não tem toda a força e abrangência que a tradição lhe imputara. No que concerne aos raciocínios, ela se limita as operações aritméticas, algébricas e geométricas; e no que diz respeito às paixões, ela é escrava e impotente. Pretendemos aqui esclarecer o conceito de razão usado na modernidade e, principalmente, dento do escopo da filosofia humeana, para assim, explicar como Hume 1

Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. E-mail: rubenssotero@hotmail.com. Artigo recebido em 01/04/2014 e aprovado para publicação em 01/07/2014.

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chega a conclusões tão heterodotas daquelas erigidas pela tradição e, ao mesmo tempo, tão nefastas a essa tradição. O que é essa razão incapaz de fundamentar as questões de fato? Por que ela é e deve ser escrava das paixões? E, por conseguinte, por que ela é impotente? Visto a abrangência do tema, não tentaremos dar conta de toda a problemática que ele suscita, limitarnos-emos a esclarecer o conceito de razão no Tratado e na Investigação e, dessa forma, como ele pode mostrar-se coerente a tais conclusões e, na medida do possível, buscaremos apontar como estas teses humeanas se mostram não só contemporâneas, mas também, válidas. II Razão e crenças Para David Hume, há apenas duas formas de o entendimento humano operar em seus raciocínios, segundo relações de ideias e questões de fato. Nas relações de ideias temos o que podemos chamar propriamente de conhecimento: juízos a priori, isto é, sentenças com força de necessidade. Já nas questões de fato temos crenças, ou ainda, juízos a posteriori. Para ele, não há meio termo entre uma operação e outra, e mais, a força das relações de ideias não pode garantir necessidade às questões de fato. As questões de fato dizem respeito a toda relação de causa e efeito, e toda relação causal, segundo Hume, se fundamenta na experiência. As questões de fato são todos raciocínios do tipo: A causa, motiva, provoca, produz ou gera B, enfim, toda relação que envolva conjunção constante, anterioridade da causa e contiguidade entre os fatos. Esse tipo de raciocínio se encontra presente nas ciências naturais, na filosofia, na teologia, nos raciocínios diários dos homens e também dos demais animais. Sempre que inferimos de um dado presente à memória ou aos sentidos outro ausente (ou a crença nele) estamos raciocinando causalmente. Por exemplo, da fumaça inferimos o fogo; da maré cheia, a lua; do queijo ingerido, a nutrição; do remédio, a cura; do fumar, o câncer etc. é claro que algumas inferências são mais inteligíveis que outras, mas todas essas são causais. Apesar dessa abrangência e inevitabilidade do raciocínio causal, ele não pode ter o estatuto de conhecimento, apenas de crença. Primeiro porque conhecimento para Hume é demonstrativo, isto é, tem força de necessidade enquanto um fato, não. O contrário de um fato é sempre possível e não implica contradição, além do mais, é impossível provar sua falsidade, pois a mente concebe os dois lados da questão “com a mesma facilidade e distinção como se

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ele estivesse em pleno acordo com a realidade” (HUME 1999 p.48). É perfeitamente possível o sol não nascer no próximo dia, este fato não é contraditório nem pode ser demonstrado falso, apenas improvável. Segundo, Hume afirma como proposição geral que “o conhecimento desta relação [causal] não se obtém, em nenhum caso, por raciocínios a priori, porém nasce inteiramente da experiência” (HUME 1999 p.49-50), isto é, não está fundado nem no entendimento nem na razão e para Hume, só a razão é propriamente a faculdade do conhecimento, pois diz ele “a razão, ou ciência, nada mais é do que a comparação de ideias, e a descoberta das relações entre elas” (T 3.1.1.24) e as relações de ideias produzem conhecimento, mas isso não ocorre nas questões de fato, já que “a razão jamais pode nos mostrar a conexão entre dois objetos, mesmo com a ajuda da experiência e da observação de sua conjunção constante em todos os casos passados” (T.1.3.6.12). Mas o que é essa razão que nem dá origem nem fundamenta um raciocínio causal? Buscaremos agora esclarecer o que Hume entende por razão e assim mostrar porque ela fica quase que de fora desse tão importante e abrangente raciocínio. Primeira característica da razão. Ela é indiferente à repetição. A razão não necessita da observação para poder operar. “As conclusões tiradas por ela, ao considerar um círculo, são as mesmas que formaria examinando todos os círculos do universo” (HUME 1999 p.61). Isto porque mediante a simples operação do pensamento ela pode chegar a essas certezas: pela própria ideia de um círculo podemos demonstrar que todos seus pontos são equidistantes do seu centro. Podemos dizer, usando a terminologia kantiana, que os juízos analíticos, isto é, juízos nos quais o predicado está contido por identidade no sujeito – p. ex. todo corpo é extenso – (Cf. KANT 1996 p.58), são todos indiferente à repetição. Neste caso, não precisamos de vários corpos para afirmar que são todos extensos. Assim, Hume atribui à razão esse tipo de raciocínio indiferente à experiência e à observação, isto é, à repetição. A razão é capaz de raciocinar com apenas um conceito (ideia), pois ela o analisa e, dessa forma, deriva o que é possível dele. Mas isso não é o mesmo que acontece com as questões de fato? Não! Nos raciocínios causais a repetição se faz imprescindível. Por exemplo, “ninguém, tendo visto somente um

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corpo se mover depois de ter sido impulsionado por outro, poderia inferir que todos os demais corpos se moveriam depois de receberem impulso igual2” (HUME 1999 p.61). Para Hume, é o hábito ou o costume e não a razão que governa nossos raciocínios causais (crenças), diz ele sobre isso, “sem a influência do costume, ignoraríamos completamente toda questão de fato que está fora do alcance dos dados imediatos da memória e dos sentidos” (HUME 1999 p.63). Em suma, enquanto a razão é indiferente à repetição em seus raciocínios, o hábito exige-a. Essa é uma primeira delimitação do conceito de razão. Mas apenas ela não é suficiente para concluir que a razão fica de fora das questões de fato, pois há outra característica marcante que a razão oferece, mas as questões de fato não possuem: força de necessidade. Segunda característica. Os raciocínios derivados da razão têm força de necessidade. Na analise dos conceitos, ou, nas relações de ideias, a razão tira suas conclusões com força de necessidade, isto é, ela mostra que aquela questão não pode ser de outra forma senão como é: que o quadrado seja uma figura geométrica que têm seus quatro lados iguais, é necessário; que a reta seja a distância mais curta percorrida entre dois pontos dados, também; que o todo seja maior que as partes, igualmente. Só as questões fundadas na razão podem ser demonstradas no sentido forte do termo. Isto, porém, não ocorre nas questões de fato. Um fato nunca pode ser demonstrado falso, seu contrário é sempre possível, mesmo que improvável. Dessa forma, podemos dizer nos termos de Leibniz3 que, nada pode ser mais distinto às verdades de Razão do que as verdades de Fato, ou na terminologia de Hume, questões de fato e relações de ideias são operações distintas. 2

Há uma passagem no Tratado que parece contradizer esta afirmação, a saber, “não só na filosofia, mas mesmo na vida corrente podemos obter o conhecimento de uma causa particular com base em apenas um experimento, contanto que este seja feito criteriosamente e após uma cuidadosa exclusão de todas as circunstâncias estranhas e supérfluas” (HUME, 2009, p.135). Porém, tal contradição é aparente, pois Hume, na mesma página do seu Tratado, diz: “tal dificuldade desaparecerá se considerarmos que, embora estejamos aqui supondo ter tido apenas uma experiência de um efeito particular, tivemos milhões para nos convencer do princípio de que objetos semelhantes, em circunstâncias semelhantes, produzirão sempre efeitos semelhantes (Ibid. p.135). Cf. também (MONTEIRO, 2003. Hume e a experiência singular). 3 Leibniz, antes de Hume, já se utilizava desta distinção. Diz ele sobre isso “as verdades de Razão são necessárias, e o seu oposto, impossível; as de Fato, contingentes, e o seu oposto, possível” (LEIBNIZ. 1979 p. 108).

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Em síntese, a razão se caracteriza pela sua indiferença à repetição e por garantir necessidade aos seus raciocínios. Em outras palavras, a razão possibilita não só demonstração e necessidade a suas questões, mas, além disso, ela prescinde da observação, isto é, da repetição. Já nas questões de fato isso é exatamente o contrário. Após essa breve exposição da primeira crítica de Hume à razão, vamos dar continuidade e mostrar seu escopo no que se refere às paixões. III Razão e paixões Nada no decorrer da história da filosofia foi mais comum do que a oposição entre razão e paixão. A razão não só era tida como contrária às paixões, como era superior e soberana, enquanto as paixões eram tidas como cegas e enganosas. Tendo em vista essa falsa dicotomia, acreditava-se que até as ações virtuosas eram aquelas motivadas e reguladas pela razão, isto é, aquelas que não tinham influência das paixões. Hume, porém, buscou mostrar que essa crença é equivocada em dois pontos, primeiro, “a razão, sozinha, não pode nunca ser motivo para uma ação da vontade; e, segundo, que nunca poderia se opor à paixão na direção contrária da vontade” (HUME 2009 p.449). Isto é, ela nem pode gerar nem impedir uma ação. Primeira tese. A razão não pode motivar uma ação. Por que não? Como vimos, o escopo da razão é o das relações de ideias (da demonstração), sendo assim, como apenas os raciocínios abstratos da razão poderiam causar uma ação? A ação diz respeito ao mundo real, já a razão nos coloca, por assim dizer, no mundo das ideias, dessa forma, parece que a demonstração e a volição se encontram em campos bem distintos. Mas não se segue daí que os raciocínios da razão sejam de todo indiferentes aos homens, afinal, em quase todas as profissões os homens se utilizam da matemática e afins. Assim, Hume afirma que o raciocínio demonstrativo só influencia nossas ações enquanto dirige nosso juízo sobre causa e efeito. (Cf. HUME 2009 p.450). Mas, por quê? Como vimos, os raciocínios causais se fundamentam na experiência, portanto, no mundo e este pode causar dor como também prazer aos homens. São essas duas paixões originárias (dor e prazer) que fazem os homens interessados e motivados a identificar os objetos e eventos que causam essas paixões. Ora, uma vez que os objetos e eventos do mundo

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podem causar dor ou prazer, os homens, em consequência disso, sentem-se inclinados a desejar ou a evitar esses objetos. “É aqui, portanto, que o raciocínio tem lugar, ou seja, para descobrir essa relação; e conforme nossos raciocínios variam, nossas ações sofrem uma variação subsequente” (HUME 2009 p.450). Em outros termos, na medida em que, por meio dos raciocínios causais, descobrimos o que causa dor ou prazer, nossas ações sofrem essa influência. Hume ressalva que, “neste caso, o impulso não decorre da razão, sendo apenas dirigido por ela” (HUME 2009 p.450). Isto é, é a expectativa de sentir dor ou prazer que faz com que os homens se dirijam ou não ao objeto, a razão apenas pode indicar como melhor atingi-lo ou evitá-lo. Dessa forma, os raciocínios causais influenciam à vontade na medida em que, por eles, descobrimos o que causa prazer e dor. É a partir deles que podemos maximizar um prazer e minimizar uma dor, por isso, eles influenciam a ação. Mas apenas esses raciocínios não podem determinar uma ação, afinal, se algo nem causar dor ou prazer, esse algo passará despercebido e, portanto, ser-nos-á indiferente. Em suma, a razão sozinha não pode motivar uma ação da vontade porque, primeiro, ela pertence a outro escopo, das relações de ideias, e como tal, não diz diretamente respeito ao mundo real, assim, a razão e a ação estão, a princípio, em campos distintos. Segundo, os raciocínios causais, que não se derivam da razão, mas podem ser melhorados por ela4, influenciam a ação apenas indiretamente na medida em que eles buscam descobrir a relação causal, para assim, poder evitar ou não os objetos. A segunda tese humeana é de que a razão não pode se opor à paixão na direção contrária da vontade. Como visto acima, a razão sozinha não pode gerar nenhuma volição, isto é, ela não tem poder para influenciar diretamente a ação e a vontade, sendo assim, parece legítimo afirmar que ela “é igualmente incapaz de impedir uma volição ou de disputar nossa preferência com qualquer paixão ou emoção” (HUME 2009 p.450). Vejamos mais detalhadamente. Para Hume, a vontade e, por conseguinte, a ação são influenciadas originariamente pelas paixões e, mais especificamente, pela expectativa de sentir dor ou prazer. O único papel 4

Vale notar aqui que o fato de a razão poder aprimorar um raciocínio causal não significa que ela os derive e seja responsável por eles. Ela pode maximizá-los, mas jamais fundamentá-los.

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da razão no que diz respeito à ação é de dirigir os atos volitivos oriundos da vontade e, portanto, das paixões, e só, ela não pode, além de ser responsável pela demonstração ser também responsável pela ação. Ela “nunca pode impedir ou produzir imediatamente uma ação, contradizendo-a ou aprovando-a, tampouco pode ser a fonte da distinção entre o bem e o mal morais,” (T 3.1.1.10). Dessa forma, Hume pretende mostrar quão limitado é o escopo da razão e ele mostra que a mesma faculdade responsável pela demonstração não pode ser responsável pela volição e muito menos pelas distinções morais. Sobre essa restrição Hume nos diz que: “a única possibilidade de a razão ter esse efeito de impedir a volição seria conferindo um impulso em direção contrária à de nossa paixão” (HUME 2009 p.450). Mas como ela não pode gerar uma volição, conclui-se que tampouco pode impedi-la. O que está por trás dessa tese é: contra uma ação causada por uma paixão só uma ação contrária, ou mais especificamente, o contrário de uma paixão é uma paixão contrária e nunca uma razão ou um raciocínio oposto. Ademias, ele nos diz que “quando nos referimos ao combate entre paixão e razão, não estamos falando de uma maneira filosófica e rigorosa” (HUME 2009 p.451). Ou seja, não há essa oposição entre esses dois princípios em sua filosofia, afinal, a razão diz respeito à verdade e à falsidade (ao demonstrável) e as paixões ao que é bom ou mal, assim nada pode ser mais contrário do que razão e paixão e, portanto, não há espaço para opô-las5. Podem, no entanto, objetar que muitas vezes supomos a existências de objetos perigosos equivocadamente e, sem sabê-lo, sentimos medo, por exemplo. Ou ainda quando a fim de atingir um determinado objetivo nos equivocamos em nossos raciocínios e, com efeito, escolhemos meios insuficientes para atingi-lo. Concretamente, podemos suspeitar que dentro do sapato tem um escorpião e assim evitá-lo por medo. Ou, podemos escolher um pedaço de madeira insuficiente para alcançar a fruta que desejamos na árvore. Em suma, pode-se objetar que às vezes as paixões são contrárias à razão (verdade e falsidade), a saber, quando elas induzem a erros (falsidade). Mas a isso Hume responde: “uma paixão tem de ser acompanhada de algum juízo falso para ser contrária à razão; e mesmo então, não é propriamente a paixão que é contrária à 5

Assim, as paixões e emoções não são nem racionais nem muito menos irracionais, pois nem se derivam da razão nem são contrárias a ela. Elas são a-racional, isto é, fazem parte de outro escopo que não o da razão. Para ser irracional elas deveriam ser passíveis da verdade e da falsidade. O irracional está para o absurdo e não para o bom e mal, moral e imoral. Da mesma forma, a razão nem é moral, nem imoral, apenas a-moral.

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razão, mas o juízo” (HUME 2009 p.452). Sendo assim, não é porque sentimos tristeza ou esperança ao equivocar-nos em algum raciocínio que tais paixões passam a ser contrária à razão, por serem “contrárias” à verdade. Não são as paixões, mas sim o raciocínio (juízo) que é propriamente falso. “Uma paixão não pode nunca, em nenhum sentido, ser dita contrária à razão, a não ser que esteja fundada em uma falsa suposição ou que escolha meios insuficientes para o fim pretendido” e Hume continua e conclui que “é impossível que razão e paixão possam se opor mutuamente ou disputar o controle da vontade e das ações” (HUME 2009 p.452). Essa objeção, no entanto, serve para confirmar a tese anterior de que a razão só pode influenciar a vontade indiretamente. As paixões apenas nos impulsionam, a razão, por sua vez, pode dirigir-nos, escolhendo meios adequados ou não para atingir os fins imputados pelas paixões. Se desejamos um fruto, nosso raciocínio pode mostrar-nos que não temos meios adequados para tirá-lo e, por conseguinte, desistimos dele. Nesse caso, a razão indiretamente influencia a ação. Vale ressaltar ainda que muito comumente se confunde os efeitos da razão com os das paixões, sobretudo, quando as paixões são calmas, pois assim como a razão quase nunca produz nenhuma emoção sensível, as paixões calmas muitas vezes passam despercebidas, podendo facilmente ser confundidas. “É por isso que toda ação da mente que opera com a mesma calma e tranquilidade é confundida com a razão por todos aqueles que julgam as coisas por seu primeiro aspecto e aparência” (HUME 2009 p.453) e dessa forma “supomos que procede da mesma faculdade que julga sobre a verdade e a falsidade” (HUME 2009 p.453). Com isso em mente, cabe-nos agora mais uma vez apontar mais duas características da razão. Ela além de 1) ser indiferente à repetição e 2) garantir força de necessidade a seus raciocínios também 3) tem seu escopo restito à verdade e à falsidade e, com efeito, não ao bom e ao mal. E, por fim, 4) ela é e deve ser escrava das paixões e isto significa ser impotente referente a ação. A terceira característica da razão segue-se naturalmente da segunda. O escopo da razão é o das relações de ideias e estas trabalham com análise de conceitos ou ainda, nos termos humeanos, com comparação entre ideias, isto é, entre o acordo e desacordo entre as

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ideias ou ainda, entre a verdade e a falsidade dessa relação. Que o todo seja maior que as partes é a verdade que faz parte da relação entre essas ideias; da mesma forma que é falso que cinco vezes três seja dez. Como é a razão que faz essas operações, é ela também que julga a verdade e a falsidade. Dificilmente alguém, com rigor filosófico, pretenderia afirmar que a verdade e a falsidade pertencem ao escopo das paixões. Ora, se isso é assim, o contrário não pode ser menos verdade. Se a razão diz respeito à verdade e à falsidade como ela também poderia dizer respeito ao bom e ao mal? Um juízo matemático ou geométrico não é nem bom nem mal, ele pode ser certo ou errado, preciso ou impreciso, da mesma forma, uma ação pode ser boa ou má, mas jamais verdadeira ou falsa. Pode ser verdade que alguém agiu dessa ou daquela forma, mas a ação em si não é nem verdadeira nem falsa. É tendo isso em vista que Hume afirma: “não é contrário à razão que eu prefira a destruição do mundo inteiro a um arranhão em meu dedo” (HUME 2009 p.452) por quê? Porque essa ação não pode ser verdadeira ou falsa, apenas boa ou má, moral ou imoral. O escopo da razão e das paixões parece bem claro na filosofia humeana, por isso que Hume afirma que é falsa a oposição entre razão e paixão. Cada uma tem seu papel, podendo ou não uma influenciar a outra, mas jamais uma assumir o papel da outra. Em suma, a razão julga sobre a verdade e a falsidade e não sobre o bom e o mal. A quarta característica da razão é que ela não só é escrava das paixões como também é impotente. Ser escrava aqui significa que ela, por si só, não pode levar um sujeito à ação, ou melhor, ela não pode despertar a vontade, passando assim, a ser subserviente das paixões. Não significa que a razão não goze de autonomia em seus raciocínios, nem significa que ela não exerça influência na vida prática dos homens. Significa apenas que ela jamais, por si só, pode imputar um desejo à vontade. “A razão, por si só, é inteiramente impotente quanto a esse aspecto” (T.3.1.1.6): despertar paixões e produzir ou impedir ações. Se a volição depende primeiramente das paixões e não da razão, então, significa que a razão é também impotente. Impotente no que diz respeito à capacidade de causar ou de impedir uma ação ou vontade.

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IV Contextualização do conceito de razão Após essa breve apresentação do conceito de razão, uma questão se impõe: estaria Hume cunhando um novo conceito de razão ou criticando o mesmo conceito utilizado pela tradição? Tentaremos mostrar que a faculdade da razão que Hume critica é a mesma entendida pela maioria dos filósofos mais importantes da história moderna. Além disso, buscaremos também mostrar que tal crítica permanece firme mesmo e, sobretudo, com as pesquisas científicas contemporâneas. Para tentar provar que Hume se utiliza do mesmo conceito de razão em suas investigações os exemplos a seguir parecem suficientes. Descartes em seu Discurso do Método buscou oferecer meios para bem conduzir a própria razão e procurar a verdade nas ciências e, dessa forma, chega a provar, racionalmente, não só a existência do cogito, mas também a de Deus. Algo semelhante acontece na Ética de Spinoza, nesta obra o autor utilizase do método dos geômetras (racional) para erigir suas verdades metafísicas de forma que reste pouco espaço para duvidas ou questionamentos. Poderíamos também citar Leibniz, porém, essa visão teve seu paroxismo na figura de Kant, o maior racionalista da modernidade. Kant propôs uma crítica da razão pura, isto é, uma razão capaz de ser juíza de si própria. Esses casos servem de arquétipos para a maioria dos filósofos modernos. Para eles, a razão dava conta não só de questões matemáticas, mas também de questões outras: Deus, alma, imortalidade, moral, mundo enfim, ela era, por assim dizer, onipotente. É essa mesma razão onipotente, pois, que Hume busca destronar. Monteiro em seu Novos Estudos Humeanos, ajuda a confirmar nossa suspeita de que Hume crítica o mesmo conceito utilizado pela tradição, diz ele sobre isso: “talvez seja relativamente consensual postular que a razão clássica se constitui sobretudo com um poder de razão dedutiva, ou seja, aquela espécie de razão a qual Hume atribuía o conhecimento das ‘relações de ideias’” (MONTEIRO 2003 p.42). Para Monteiro, Hume não chegou a cunhar “um novo conceito de razão” (MONTEIRO 2003 p.43). Assim, Hume continua com a ideia de que a razão oferece necessidade a seus raciocínios, isto é, que ela é demonstrativa. O que ele, porém, não aceita é que essa faculdade extrapole o limite do demonstrável e tente provar coisas que estão além de seu alcance, como as questões de fato, por exemplo.

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Sendo assim, o que Hume fez foi: “destronar a razão clássica, privando-a de sua posição soberana em filosofia (MONTEIRO 2003 p.43)”. Para ele, a razão não pode fazer outra coisa senão dedução. Nas questões de fato, ela pouco pode fazer. Dessa forma, ela perde aquela soberania que a tradição filosófica lhe imputara, pois todo raciocínio causal presente nas ciências, filosofia e teologia não se deixa reduzir ao escopo da razão que se limita as relações de ideias. A razão entendida pela grande parte dos racionalistas modernos parecia capaz de provar qualquer coisa, Hume, porém, mostrou que isso era falso. Ela não só não tinha o poder que se acreditava, como se limitava a um escopo de investigação demasiado restrito. Esse, no entanto, não foi o único erro, segundo Hume, cometido pela tradição, pois, se por um lado a razão era tida como onipotente, na medida em que buscava ir além do que sua ossada permitia, por outro, ela afastava a influência das paixões, apontando-as como contrárias e fonte de erros. Toda verdade era alcançada mediante o frio e desapaixonado interesse da razão. A despeito disso, Pequeno nos informa que: Contrariamente a este ponto de vista, pesquisas recentes em neurociências demonstram que as emoções estão estritamente ligadas a numerosos processos comportamentais e cognitivos, tais como: a atenção, a memória, a aprendizagem, o comportamento motivado e mesmo a tomada de decisão, fenômenos estes geralmente concebidos como racionais (PEQUENO 2002 p.272).

Ou seja, as emoções e paixões não só fazem parte das atividades cognitivas como são imprescindíveis a elas, contrariando assim aquela crença ilegítima de que a atividade filosófica racional deve ser despida de paixão para ser verdadeira e válida6. Esse equívoco nasce da falsa crença de que razão e paixão são faculdades diametralmente opostas. Não, elas não são opostas, são apenas diferentes. E mais, elas não apenas não são opostas como se influenciam mutuamente. Todavia, a razão, segundo Hume, perde a primazia que gozava diante das paixões e, dessa forma, podemos até arriscar a afirmar, com alguma segurança, que as paixões assumem essa posição. Mas vale ressaltar aqui que, isso não significa que as elas devem ser cultivadas em detrimento da razão, também não significa que apenas as paixões cultivadas irão nos levar ao melhor dos mundos possíveis, 6

Corroborando essa ideia, Antonio Damásio diz que “a emoção e o sentimento desempenham um papel no raciocínio, e esse papel é geralmente benéfico” (DAMÁSIO 2003 p. 155). Dessa forma, atividades cognitivas não só estão estritamente ligadas às emoções como estas trazem benefícios aos raciocínios, pois o sinal emocional (emoções e paixões) “aumenta a eficiência do raciocínio e também a sua rapidez” (DAMÁSIO 2003 p. 159).

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muito menos significa que elas nos trazem mais benefícios que malefícios. Mas apenas de que, não há grosseiramente falando, razão sem paixão. As paixões motivam o sujeito que por meio da razão busca a verdade. A tese de que não há razão (atividades racionais) sem paixão ou, mais precisamente, de que a razão é uma atividade tardia pode ser corroborada se tomarmos a perspectiva da teoria da evolução por seleção natural. Como os homens são fruto de um processo evolutivoadaptativo e, portanto, possuem um ancestral em comum com os demais animais, mais especificamente e recentemente, com os primatas, temos a partir daí bons indícios para afirmar que a razão é um fenômeno recente na história (primata). Sendo assim, antes dela a vida era regida por outras “faculdades”, e entre elas a candidata mais forte é as paixões. Ademais, essa teoria mostra que o cérebro humano foi formado por etapas, isto é, que há áreas cerebrais mais antigas que outras, o córtex pré-frontal, por exemplo, é a parte mais recente do cérebro na história evolutiva e, mais que isso, ele é o responsável pelo raciocínio lógico. Em outras palavras, antes do neocórtex os primeiros hominídeos já existiam e não só agiam sobre o mundo, como também raciocinava causalmente, sem o auxílio da estimada faculdade da razão. Conclusão A razão, como esse fenômeno recente em nossa história evolutiva, buscava alçar voos que não podia. Primeiro, na esfera do conhecimento, ela pretendia dominar os raciocínios causais, os mais abrangentes raciocínios da vida animal quando, na verdade, se limitava às relações de ideias. Segundo, no campo das paixões, ela se pretendia a responsável pelo controle das emoções e das ações virtuosas, mas o que Hume mostrou foi que ela não apenas não pode impedir uma paixão como é e deve ser escrava das delas. Assim, Hume apontou dois erros cometidos pela tradição, primeiro, acreditar que a razão podia mais do que pode e, segundo, supôs que, se as paixões influenciassem-na, seria para levá-la a malogros. David Hume, dessa forma, ao criticar a tradição racionalista, pelos abusos e excessos cometidos, não só faz isso de forma pioneira e acertada, mas também recebe ainda hoje respaldo filosófico e, sobretudo, científico.

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Referências DAMÁSIO, Antonio. Em busca de Espinosa. São Paula. Cia das letras, 2003. DAVID, Hume. Investigação acerca do entendimento humano. São Paulo. Nova Cultura, 1999. ___________. Resumo de um tratado da natureza humana. Porto Alegre. Editora Paraula, 1995. ___________. Tratado da natureza humana. 2 ed. São Paulo. UNESP, 2009. DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo. Nova Cultura 1996. LEIBNIZ. A Monodologia. São Paulo. Abril cultura, 1979. KANT. Crítica da razão pura. São Paulo. Nova Cultura 1996. MONTEIRO, João Paulo. Novos estudos humeanos. São Paulo. Discurso Editorial, 2003. PEQUENO, Marconi. O papel das emoções nas determinações da ação. 2002. SCHMIDEK, Werner Robert; CANTOS, Geny Aparecida. Ação hemisférica e plasticidade cerebral: Um caminho ainda a ser percorrido. Revista Pensamento Biocêntrico Pelotas - Nº 10 jul/dez 2008.

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TRADUÇÃO

JOHN STUART MILL (1806-1873)1 Colin Heydt Tradução de Fernanda Belo Gontijo2 Revisão de Gustavo Hessmann Dalaqua3, Lucas Miotto4 e Matheus Silva5

John Stuart Mill influenciou profundamente a forma do pensamento e do discurso político britânicos do século dezenove. Seu corpo substancial de obras inclui textos de lógica, epistemologia, economia, filosofia social e política, ética, metafísica, religião e questões de importância pública para a época. Entre as suas mais bem conhecidas e significativas estão: A System of Logic, Princípios de Economia Política, Sobre a Liberdade, Utilitarismo, A Sujeição das Mulheres, Three Essays on Religion e sua Autobiografia6. A educação de Mill nas mãos de seu rígido pai, James Mill, alimentou tanto o seu desenvolvimento intelectual (o autor aprendeu grego aos três anos de idade, latim aos oito) quanto uma propensão para a reforma. James Mill e Jeremy Bentham lideraram os “radicais filosóficos7”, que defendiam a racionalização da lei e das instituições jurídicas, o sufrágio universal masculino, o uso da teoria econômica na tomada de decisão política e uma política orientada pela felicidade humana em vez dos direitos naturais ou pelo conservadorismo. Por volta de seus vinte anos, o Referência do verbete original, conforme sugestão da Internet Encyclopedia of Philosophy: “John Stuart Mill (1806-1873)”, by Colin Heydt, The Internet Encyclopedia of Philosophy, ISSN 21610002, http://www.iep.utm.edu/, 2014. A tradutora e os revisores agradecem ao autor, professor Colin Heydt (University of South Florida, USA), bem como à Internet Encyclopedia of Philosophy a autorização da publicação da tradução desse verbete. Tradução recebida em 16/02/2014 e aprovada para publicação em 01/07/2014. 2 Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: fernanda.belo.gontijo@gmail.com. 3 Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: gustavodalaqua@yahoo.com.br. 4 Mestrando em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio. E-mail: lucasmiottol@gmail.com. 5 Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: mateusmasi@gmail.com. 6 Apenas as obras com tradução completa para o português tiveram seus nomes traduzidos. N. T. (Nota da tradutora). 7 “Radicais filosóficos” é o nome que se dá ao grupo de reformadores ingleses que no século dezenove criticou duramente suas instituições políticas e jurídicas, defendendo uma reorganização social com base no princípio da utilidade – o qual prescreve a maximização da felicidade geral. N. T. 1

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jovem Mill sentiu a influência do historicismo, do pensamento social francês e do romantismo na forma de pensadores como Coleridge, os são-simonianos8, Thomas Carlyle, Goethe e Wordsworth. Isso o levou a começar a busca por um novo radicalismo filosófico, que fosse mais sensível aos limites da reforma impostos pela cultura e pela história e enfatizasse o cultivo de nossa humanidade, incluindo o cultivo das aptidões ao sentimento e à imaginação (algo que pensava faltar em sua própria educação).

Nenhum dos principais escritos de Mill permanece independente de seu programa moral, político e social. Até as obras mais abstratas, como System of Logic e Examination of Sir William Hamilton’s Philosophy, servem a propósitos polêmicos na luta contra a escola alemã, ou escola a priori, também chamada “intuicionismo”. Na opinião de Mill, o intuicionismo precisava ser derrotado nas esferas da lógica, da matemática e da filosofia da mente, a fim de que seus efeitos perniciosos no discurso social e político fossem mitigados.

Em seus escritos, Mill argumenta a favor de uma série de princípios controversos. Ele defende o empirismo radical em lógica e em matemática, sugerindo que os princípios básicos de ambos são generalizações da experiência em vez de conhecidos a priori. O princípio da utilidade – para o qual “[as] ações são corretas na medida em que elas tendem a promover felicidade; erradas na medida em que elas tendem a produzir o reverso da felicidade” – foi a peça central de sua filosofia ética. Sobre a Liberdade propõe o “princípio do dano”, segundo o qual “o único propósito para o qual o poder pode ser legitimamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a sua vontade, é para impedir o dano aos outros”. Em A Sujeição das Mulheres, ele compara o estatuto legal das mulheres ao estatuto de escravos e argumenta em favor da igualdade no casamento e perante a lei.

Este artigo fornece uma visão geral da vida de Mill e das suas principais obras, concentrandose em seus principais argumentos e seus respectivos contextos históricos.

8

Os são-simonianos eram aqueles que, inspirados pelas idéias de Claude Henri de Rouvroy (conde de SaintSimon) (1760-1825), defendiam os direitos das mulheres, sustentavam que a sociedade deveria abandonar a crença em um poder espiritual superior em favor das explicações científicas e se organizar em torno do trabalho. Após a morte de Rouvroy o movimento adquiriu facetas muito diferentes, voltando-se, inclusive, para uma espécie de messianismo. Para mais detalhes sobre o movimento, conferir Pilbeam (2013). N. T.

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1. Biografia Escrevendo sobre John Stuart Mill poucos dias depois da morte de Mill, Henry Sidgwick afirmou: “Devo dizer que de 1860 a 1865 (ou em torno disso), ele governou a Inglaterra no reino do pensamento como muitos poucos homens jamais o fizeram: não espero ver qualquer coisa como isso novamente.” (COLLINI, 1991, p. 178). Mill estabeleceu esse reinado sobre o pensamento inglês por meio de seus escritos de lógica, epistemologia, economia, filosofia social e política, ética, metafísica, religião e assuntos de importância pública para a época. Pode-se dizer com relativa segurança, olhando para a amplitude e complexidade de sua obra, que Mill foi o maior filósofo britânico do século dezenove.

Esse reinado não se sucedeu acidentalmente. Ele foi planejado por seu pai, James Mill, a partir do nascimento do jovem Mill em 20 de maio de 1806. O velho Mill foi uma figura imponente para seu filho mais velho e a história de Mill deve ser contada através da história de seu pai. James Mill nasceu na Escócia em 1773, em uma família de recursos modestos. Graças ao patronato de Sir John e Lady Jane Stuart ele foi capaz de frequentar a Universidade de Edimburgo, que na época era uma das mais excelentes universidades da Europa. Ele se preparou para o sacerdócio presbiteriano sob os auspícios de mestres admirados como Dugald Stewart, que foi um divulgador ativo da filosofia de Thomas Reid.

Depois de um breve e de modo geral fracassado período como pastor, James Mill se mudou para Londres, onde começou sua carreira nas letras. Esse foi um caminho difícil para um homem de recursos muito modestos tomar. Ele e sua esposa Harriet (casados em 1805) viveram sem despreocupação financeira por bem mais de uma década. Foi somente com a publicação de sua The History of British India em 1818 – uma obra que levou doze anos para escrever – que James Mill foi capaz de conseguir um trabalho estável e bem pago na Companhia das Índias Orientais, o que lhe permitiu sustentar sua grande família (por fim composta por sua esposa e nove filhos).

Durante os anos de relativa pobreza, James Mill recebeu assistência de amigos, incluindo o grande teórico do direito e reformador utilitarista Jeremy Bentham, que conheceu em 1808. Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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Os dois homens ajudaram a liderar o movimento dos “radicais filosóficos” que deu peso intelectual ao partido British Radical [Radicals] da primeira metade do século dezenove. Entre os seus colegas estavam David Ricardo, George Grote, Sir William Molesworth, John Austin e Francis Place.

Esse radicalismo filosoficamente inspirado do início do século dezenove se posicionou contra os Whigs e os Tories9. Os Radicals defendiam a reforma legal e política, o sufrágio universal masculino, o uso da teoria econômica (especialmente a de Ricardo) na tomada de decisão política e uma política orientada pela felicidade humana, não pelo conservadorismo ou pelos direitos naturais (que Bentham famosamente ridicularizou como “contra-senso sobre pernasde-pau”). Além disso, um aspecto de seu temperamento político que os distinguiram dos Whigs e Tories foi o seu racionalismo – sua disposição para recomendar a reestruturação de instituições sociais e políticas sob a orientação explícita de princípios da razão (por exemplo, o princípio da utilidade).

Com o apoio financeiro de Bentham, os Radicals fundaram o Westmister Review (1824) para se opor ao Edinburgh Review (1802) e ao Quarterly Review (1809), periódicos a favor dos Whigs e dos Tories, respectivamente. Enquanto os intelectuais Whigs e os Radicals tendiam a concordar entre si sobre assuntos econômicos, ambos tendo preferência para políticas próurbanas, pró-industriais e de laissez-faire, os intelectuais Tories concentravam-se na defesa das estruturas sociais e de modos de vida tradicionais britânicos associados ao agrarismo aristocrático. Essas alianças podem ser vistas nas disputas sobre as Leis dos Cereais (legislação destinada a proteger a agricultura doméstica pela taxação de grãos importados), apoiadas pelos Tories.

Embora Whigs e Radicals fossem frequentemente aliados (formando por fim o Partido Liberal na década de 1840), algumas das rixas políticas e intelectuais mais amargas do período ocorreram em razão de suas diferenças (por exemplo, as famosas disputas públicas de Macaulay com James Mill sobre a teorização política). James Mill via os Whigs muito 9

O partido político dos Whigs combatia o absolutismo e defendia o monarquismo constitucional, o mercado livre, a absolvição da escravatura, dentre outras reivindicações de cunho liberal. Já o partido político dos Tories, se opunha aos Whigs e tendia ao conservadorismo. Sua agenda política contava, sobretudo, com a defesa do monarquismo e do agrarismo. N. T.

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imbuídos nos interesses aristocráticos para ser um verdadeiro instrumento de reforma democrática. Somente os Radicals poderiam defender adequadamente as classes média e trabalhadora. Ademais, diferentemente dos Radicals, que possuíam uma política sistemática guiada pelo princípio da utilidade (o princípio que estabelece a promoção da felicidade agregada como padrão para a legislação e para a ação), os Whigs careciam de uma política sistemática. Ao invés disso, eles dependiam de um empirismo mitigado, que o velho Mill considerou um convite à complacência. Os Whigs, alternativamente, objetaram à tendência geral racionalista dos políticos Radicals, vendo nela uma perigosa ingenuidade psicológica e histórica. Eles também reagiram ao extremismo dos temperamentos reformistas dos Radicals, que revelaram hostilidade à Igreja Anglicana e à religião de modo geral.

O jovem Mill foi visto como o príncipe herdeiro do movimento dos radicais filosóficos e a sua notável educação refletia as esperanças de seu pai e de Bentham. Sob o olhar fixo e dominador de seu pai, ele aprendeu grego aos três anos de idade e latim aos oito. Ele lia histórias, muitas das quais clássicos gregos e romanos, e Newton aos onze. Estudou lógica e matemática, passando pela economia política e filosofia do direito no início de sua adolescência, e então prosseguiu com a metafísica. Seu treinamento facilitou o domínio rápido do material por meio da exigência de ensinar aos seus irmãos mais novos e das caminhadas vespertinas com o seu pai, hora em que o precoce pupilo teria que narrar ao seu pai o que aprendera naquele dia. O seu ano na França em 1820 o levou à fluência em francês e despertou seu interesse duradouro pela política e pensamento franceses. Enquanto amadurecia, seu pai e Bentham empregaram-no como um editor. Além disso, ele fundou uma série de sociedades intelectuais e grupos de estudo e começou a contribuir para periódicos, incluindo o Westminster Review.

O estresse de sua educação e de sua atividade juvenil, combinados com outros fatores, levaram-no ao que mais tarde ele denominou, em sua Autobiografia, como sua “crise mental” de 1826. Tem havido uma ampla variedade de tentativas de explicar o que o levou a essa crise – a maioria das quais gira em torno de sua relação com seu pai exigente – mas o que mais importa sobre a crise é que ela representa o começo da luta de Mill para reexaminar o pensamento de seu pai e de Bentham, os quais começou a considerar limitados em diversos aspectos. Mill afirma que começou a sair de sua depressão com a ajuda da poesia Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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(especificamente a de Wordsworth). Isso contribuiu para a sua compreensão de que, embora sua educação tivesse nutrido suas habilidades analíticas, ela havia deixado sua capacidade de sensibilizar-se subdesenvolvida. Essa constatação o fez repensar a filiação aos elementos radicais, racionalistas, do pensamento iluminista que a sua educação estava destinada a promover.

Em resposta a essa crise, Mill começou a explorar o romantismo e uma variedade de outros movimentos intelectuais europeus que rejeitavam concepções seculares, naturalistas e mundanas da natureza humana. Ele também se tornou interessado nas críticas à urbanização e à industrialização. Essas investigações foram complementadas pelos escritos de (e por freqüente correspondência com) pensadores de uma vasta amostragem de tradições intelectuais, incluindo Thomas Carlyle, Auguste Comte, Alexis de Tocqueville, John Ruskin, M. Gustave d’Eichtal (e outros são-simonianos), Herbert Spencer, Frederick Maurice e John Sterling.

A tentativa de corrigir as deficiências perceptíveis dos radicais filosóficos por meio do envolvimento com outros estilos de pensamento começou com a edição de Mill de um novo periódico, o London Review, fundado pelos dois Mills e Charles Molesworth. Molesworth rapidamente comprou o velho Westminster Review em 1834, para tornar o novo London and Westminster Review a voz sem oposição dos radicais. Com a morte de James Mill em 1836 e o falecimento de Bentham em 1832, Mill teve mais liberdade intelectual. Ele usou essa liberdade para forjar um novo “radicalismo filosófico”, que incorporou os insights de pensadores como Coleridge e Thomas Carlyle (Collected Works [CW], I. 20910). Um de seus principais objetivos foi “mostrar que havia uma filosofia Radical, melhor e mais completa do que a de Bentham, embora reconhecendo e incorporando tudo o que de Bentham fosse permanentemente valioso.” (CW, I. 221).

Esse projeto é talvez mais bem demonstrado pelos célebres ensaios de Mill de 1838 e 1840 sobre Bentham e Coleridge, que foram publicados no London and Westminster Review. Mill sugeriu que Bentham e Coleridge foram “as duas mentes mais férteis da Inglaterra em suas 10

As referências das Collected Works seguem o padrão abreviatura-volume-número da página. Por exemplo, em CW, I. 221, leia-se: Collected Works, volume I, página 221. N. T.

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épocas” e usou cada ensaio para mostrar seus pontos fortes e fraquezas, sugerindo que uma posição filosófica mais completa permanecia aberta à articulação. Mill gastaria sua carreira tentando levar isso a cabo.

Harriet Taylor, amiga, conselheira e, por fim, esposa, o ajudou com esse projeto. Ele conheceu Taylor em 1830 e, junto com James Mill, ela foi uma das duas pessoas mais importantes na vida de Mill. Para a infelicidade de Mill, Taylor era casada. Depois de duas décadas de uma relação platônica intensa e um tanto escandalosa, eles se casaram em 1851 depois da morte do marido de Taylor. Sua morte em 1858 deixou-o inconsolável.

Tem havido um debate considerável sobre a natureza e a extensão da influência de Harriet Taylor sobre Mill. É incontroverso que Mill encontrou nela uma companheira, amiga, crítica e alguém que o encorajou. Mill foi provavelmente mais influenciado por ela nas esferas do pensamento político, ético e social, mas menos nas áreas da lógica e economia política (com a possível exceção de suas idéias sobre o socialismo).

O dia-a-dia de Mill era dominado por seu trabalho na Companhia das Índias Orientais; se bem que seu trabalho exigia pouco tempo, pagava-o bem e deixava-lhe ampla oportunidade para escrever. Ele iniciou a sua carreira nesta instituição em 1826, trabalhando sob a supervisão de seu pai e, à época de sua aposentadoria, em 1857, Mill ocupou a mesma posição que seu pai, inspetor chefe, que o colocou a cargo dos memorandos que guiavam as políticas da companhia na Índia.

Durante a sua aposentadoria e após a morte de sua esposa, Mill foi recrutado para ocupar uma cadeira parlamentar. Embora ele não tivesse sido particularmente eficaz durante o seu único período como membro do parlamento, Mill participou de três eventos dramáticos (CAPALDI, 2004, p. 326-7). Primeiro, Mill tentou aperfeiçoar o Ato de Reforma de 1867 para substituir “homem” por “pessoa”, de modo que o direito fosse estendido às mulheres. Apesar de ter falhado, seu esforço impulsionou o sufrágio feminino. Em segundo lugar, Mill encabeçou o Comitê da Jamaica, que lutou (sem sucesso) pelo julgamento do Governador Eyre da Jamaica, político que impôs a brutal lei marcial depois de uma revolta dos negros. Em terceiro lugar, Mill usou a sua influência com os líderes das classes trabalhadoras para desarmar um Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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confronto potencialmente perigoso entre as tropas do governo e os trabalhadores que estavam protestando contra a derrota do Ato de Reforma de 1866.

Depois de seu período no Parlamento ter acabado e de não ter sido reeleito, Mill começou a passar mais tempo na França, escrevendo, caminhando e vivendo com a filha de sua esposa, Helen Taylor. Foi para ela que proferiu suas últimas palavras em 1873: “Você sabe que eu fiz o meu trabalho”. Ele foi enterrado ao lado de sua esposa, Harriet.

Embora a influência de Mill tenha aumentado e diminuído desde sua morte, seus escritos de ética e filosofia social e política continuam a ser lidos frequentemente. Muitos de seus textos – particularmente Sobre a Liberdade, Utilitarismo, A Sujeição das Mulheres e sua Autobiografia – continuam a ser reimpressos e ensinados nas universidades mundo afora.

2. Obras Mill escreveu sobre uma surpreendente quantidade de temas. Entretanto, todos os seus principais textos desempenham um papel na defesa de seu novo radicalismo filosófico e nos programas intelectual, moral, político e social associados a ele.

a. Um Sistema de Lógica

Embora a biografia de Mill revele a sua abertura à investigação intelectual, seu comprometimento filosófico mais básico – com o naturalismo – nunca oscilou seriamente. Ele está comprometido com a idéia de que os nossos melhores métodos de explicação do mundo são aqueles empregados pelas ciências naturais. Qualquer coisa que podemos saber sobre as mentes e vontades humanas resulta de tratá-las como parte da ordem causal investigada pelas ciências, não como entidades especiais que se encontram fora dela.

Ao considerar os métodos das ciências naturais como a única rota para o conhecimento sobre o mundo, Mill vê a si próprio como alguém que rejeita a “visão alemã, ou a priori, do conhecimento humano” (CW, I. 233); ou, como também a chama, “intuicionismo”, que foi Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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defendido de diferentes modos por Kant, Reid e seus seguidores na Grã-Bretanha (por exemplo, Whewell e Hamilton). Embora haja muitas diferenças entre os pensadores intuicionistas, uma “grande doutrina” que Mill sugere que todos eles afirmam é a idéia de que “a constituição da mente é a chave para a constituição da natureza externa – que as leis do intelecto humano têm uma correspondência necessária com as leis objetivas do universo, de tal modo que estas possam ser inferidas daquelas” (CW, XI. 343). A doutrina intuicionista concebe a natureza como sendo ampla ou completamente constituída pela mente ao invés de ser mais ou menos imperfeitamente observada por ela. Um dos grandes perigos apresentados por essa doutrina, de acordo com a perspectiva da escola a posteriori de Mill, é que ela sustenta a crença de que alguém pode conhecer verdades universais acerca do mundo por meio de indícios (incluindo intuições ou categorias kantianas do entendimento) fornecidos apenas pela mente, não pela natureza. Se a mente constitui o mundo que experimentamos, então podemos compreender o mundo ao compreender a mente. Foi essa isenção de apelo à natureza e a ausência de verificações independentes (isto é, empíricas) das alegações sobre o que é conhecido, que Mill achou tão desconcertante.

Para Mill, os problemas com o intuicionismo se estendem muito além dos metafísicos e epistemológicos e vão até os morais e políticos. Como diz Mill em sua Autobiografia, enquanto discute seu importante tratado de 1843, A System of Logic: Estou persuadido que a noção de que verdades externas à mente podem ser conhecidas pela intuição ou consciência, independentemente da observação e experiência, é, atualmente, o grande apoio intelectual de falsas doutrinas e más instituições. Com a ajuda dessa teoria permite-se que cada crença inveterada e cada sentimento intenso, dos quais não se recorda a origem, seja dispensado da obrigação de justificar-se pela razão, e seja erigido em sua própria garantia e justificação auto-suficientes. Nunca houve instrumento semelhante concebido para consagrar todos os preconceitos profundamente arraigados. E a força principal dessa falsa filosofia na moral, política e religião, repousa no apelo que está acostumada a fazer aos indícios da matemática e dos ramos semelhantes da ciência física. Livrá-lo dessas, é tirá-lo de sua fortaleza (CW, I. 233).

Essa acusação contra o intuicionismo, de que ele livra alguém da obrigação de justificar suas crenças, tem fortes raízes no radicalismo filosófico. Encontramos Bentham, em sua obra de 1789, An Introduction to the Principles of Morals and Legislation, atacando sistemas morais não-utilitaristas pela mesma razão: “Todos eles consistem em tantas artimanhas para evitar a obrigação de apelar a qualquer padrão externo e para convencer o leitor a aceitar os Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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sentimentos ou opiniões do autor como uma razão suficiente por si mesma.” (IPML, II.1411). Assim, Mill via o seu próprio comprometimento com o naturalismo e com o empirismo da “escola a posteriori” de pensamento como parte de um programa social e político mais amplo, que defendia a reforma e também o rebaixamento das fundações tradicionais do conservadorismo.

Entretanto, frequentemente se considera que o intuicionismo se encontra sobre um fundamento muito mais firme do que o empirismo quando se trata de explicar nosso conhecimento da matemática e da lógica. Isso é especialmente verdade se se rejeita a idéia, encontrada em autores como Hobbes e Hume, de que proposições matemáticas como 2 + 3 = 5 são verdadeiras simplesmente por causa do significado dos constituintes da proposição, ou, como diz Hume, por causa das “relações de idéias” das proposições. Mill concorda com aqueles (dentre os quais Kant) que sustentam que as verdades lógicas e matemáticas não são simplesmente linguísticas – que elas contêm informações substanciais, não-linguísticas. Mas isso deixa Mill com o problema de explicar a aparente necessidade dessas verdades – uma necessidade que parece excluir a sua origem na experiência. Para atacar com sucesso o intuicionismo em “sua fortaleza”, System of Logic precisa fornecer fundamentos alternativos para os princípios básicos da lógica e da matemática (por exemplo, o princípio da nãocontradição). Em particular, Mill precisa mostrar como “esse caráter peculiar do que são chamadas verdades necessárias” pode ser explicado apenas a partir da experiência e da associação. O objetivo da lógica “é indagar como nós chegamos a essa parte de nosso conhecimento (que constitui sua maior parte) que não é intuitiva: e por qual critério podemos, em questões que não são auto-evidentes, distinguir entre coisas demonstradas e coisas não demonstradas, entre o que é digno e o que é indigno de crença” (A System of Logic [System], I. i. 112). Deveria ser notado que para Mill a lógica vai além da lógica formal e das condições de verdade em geral.

11

As referências de An Introduction to the Principles of Morals and Legislation seguem o padrão abreviaturacapítulo-parágrafo. Por exemplo, em IPML, II. 14, leia-se: An Introduction to the Principles of Morals and Legislation, capítulo II, parágrafo 14. N. T. 12 As referências de A System of Logic seguem o padrão abreviatura-volume-livro-parágrafo. Por exemplo, em System, I. i. 2, leia-se: A System of Logic, volume I, livro i, parágrafo 2. N. T.

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O texto tem a seguinte estrutura básica. O livro I trata de nomes e proposições. Os livros II e III examinam a dedução e a indução, respectivamente. O livro IV discute uma variedade de operações da mente, incluindo a observação, a abstração e o nomear, que são pressupostos em toda indução ou são fundamentais para formas mais complicadas de indução. O livro V expõe falácias de raciocínio. Finalmente, no livro VI, Mill trata das “ciências morais” e argumenta em favor da similaridade fundamental entre os métodos das ciências naturais e humanas. De fato, as ciências humanas podem ser compreendidas, elas próprias, como ciências naturais com objetos de estudo humanos.

i. Nomes, Proposições e os Princípios da Lógica e da Matemática

O argumento de Mill de que os princípios da lógica e da matemática se justificam pelo apelo à experiência depende de sua distinção entre proposições verbais e reais, isto é, entre proposições que não transmitem novas informações para a pessoa que compreende o significado dos termos da proposição e aquelas proposições que transmitem novas informações. O objetivo da distinção entre proposições verbais e reais é, primeiro, enfatizar que todas as proposições reais são a posteriori. Em segundo lugar, a distinção enfatiza que proposições verbais são vazias de conteúdo; elas nos informam sobre a linguagem (isto é, o que as palavras significam) em vez de nos informarem sobre o mundo. Em termos kantianos, Mill quer negar a possibilidade de proposições sintéticas a priori e, ainda assim, argumentar que conseguimos extrair conhecimento de objetos de estudo como a lógica e a matemática.

Essa distinção entre proposições verbais e reais depende, por sua vez, da análise de Mill do significado de proposições, isto é, como os significados dos constituintes das proposições determinam o significado do todo. Uma proposição que afirme ou negue algo é formada pela colocação conjunta de dois “nomes” ou termos (sujeito e predicado) e uma cópula. O sujeito é o nome “que denota a pessoa ou coisa acerca do qual algo é afirmado ou negado” (System, I. i. 2). O predicado é “o nome que denota aquilo que é afirmado ou negado”. A cópula é “o sinal que denota que há uma afirmação ou negação”, que desse modo permite “ao ouvinte ou leitor distinguir uma proposição de qualquer outro tipo de pronunciamento.” Na proposição “o ouro é amarelo”, por exemplo, a cópula “é” mostra que se afirma a qualidade amarela da substância ouro. Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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Mill divide os nomes em gerais e singulares. Todos os nomes, exceto nomes próprios (por exemplo, Ringo, Buckley, etc.) e nomes que exprimem somente um atributo (por exemplo, brancura, extensão), têm uma conotação e uma denotação. Isto é, ambos conotam ou implicam alguns atributos e denotam ou referem indivíduos que se enquadram nessa descrição. O nome geral “homem”, por exemplo, denota Sócrates, Picasso, Plutarco e um número indefinido de outros indivíduos, e o faz porque todos compartilham algum(ns) atributo(s) (por exemplo, animal racional, bípede implume, etc.), conotados por homem. O nome “branco” denota todas as coisas brancas e implica ou conota o atributo brancura. A palavra “brancura”, em contrapartida, denota ou representa um atributo, mas não conota um atributo. Ao invés, opera como um nome próprio em que seu significado deriva inteiramente do que ele denota.

O significado de uma proposição comum é que a coisa (ou coisas) denotada(s) pelo sujeito tem o(s) atributo(s) conotado(s) pelo predicado. Em frases como “Eleanor está cansada” e “Todos os homens são mortais”, embora os sujeitos refiram aos seus objetos de modos diferentes (por meio de um nome próprio e de um atributo, respectivamente), a história fundamental de Mill sobre o significado das proposições mantém-se válida. As coisas tornam-se muito mais difíceis com afirmações de identidade como “Véspero é Fósforo”. Nesse caso, temos dois nomes próprios que referem o mesmo objeto (o planeta Vênus). Na opinião de Mill, esses nomes próprios devem possuir o mesmo significado porque denotam o mesmo objeto. Mas isso parece insustentável porque a afirmação parece informativa. Não parece plausível que a proposição simplesmente afirme que um objeto é idêntico a si mesmo, o que seria o significado da proposição se as idéias de Mill sobre o significado de nomes próprios estivessem corretas (veja o ataque de Frege e Russell à explicação que Mill oferece para o significado de nomes próprios; veja também a sofisticada defesa de Mill acerca disso feita por Kripke em O Nomear e a Necessidade).

Essa discussão acerca da natureza dos nomes ou termos permite-nos compreender a abordagem de Mill em relação às proposições verbais e reais. Proposições verbais afirmam algo sobre o significado de nomes e não sobre questões de fato. Isso significa que, “(c)omo os Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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nomes e seu significado são inteiramente arbitrários, essas proposições não são, estritamente falando, suscetíveis de verdade ou falsidade, mas somente de conformidade ou desconformidade ao uso ou convenção.” (System, I. vi. 1). Esse tipo de proposição simplesmente “afirma acerca de uma coisa, sob um nome particular, somente o que se afirma acerca dela no fato de chamá-la por esse nome; e que, portanto, ou não dá qualquer informação, ou a dá com relação ao nome, não à coisa.” (I. vi. 4). Assim sendo, proposições verbais são vazias de conteúdo e são as únicas coisas que conhecemos a priori, independentemente da verificação da correspondência da proposição com o mundo. Em contrapartida, as proposições reais “predicam acerca de uma coisa algum fato não envolvido no significado do nome, por meio do qual a proposição o exprime; algum atributo não conotado pelo nome”. (I. vi. 4). Essas proposições transmitem informações que já não estão incluídas nos nomes ou nos termos empregados, e a sua verdade ou falsidade depende de corresponderem ou não às características relevantes do mundo. Assim, “George está no time de futebol” predica algo acerca do sujeito George que não está incluído no seu significado (nesse caso, a denotação da pessoa particular) e a verdade ou não disso depende de George estar efetivamente no time.

A discussão mais importante de Mill em System of Logic é que a lógica e a matemática contêm proposições reais em vez de proposições simplesmente verbais. Ele afirma, por exemplo, que a lei da contradição (isto é, a mesma proposição não pode ao mesmo tempo ser falsa e verdadeira) e a lei do terceiro excluído (isto é, ou a proposição é verdadeira ou é falsa) são ambas proposições reais. Elas são, como os axiomas de geometria, verdades experimentais, não verdades conhecidas a priori. Elas representam generalizações ou induções resultantes da observação – induções muito bem justificadas, certamente, mas ainda assim induções. Isso leva Mill a dizer que a necessidade tipicamente imputada às verdades da matemática e da lógica pelos seus oponentes intuicionistas é uma ilusão, minando, desse modo, as fortificações argumentativas intuicionistas no seu ponto mais forte.

A System of Logic representa, assim, a mais completa tentativa de argumentar em prol do empirismo em epistemologia, lógica e matemática antes do século vinte (para a melhor discussão desse ponto, veja Skorupski, 1989). Embora avanços revolucionários em lógica e Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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filosofia da linguagem no final do século dezenove e começo do século vinte tenham tornado obsoletos muitos dos pormenores técnicos de Mill sobre semântica e lógica, a perspectiva filosófica

fundamental

que

Mill

defende

é

uma

opção

bastante

difundida

contemporaneamente (veja, por exemplo, a obra de Quine).

ii. Outros Temas Interessantes

Há outros temas interessantes abordados em System of Logic. O primeiro é o tratamento de Mill da dedução (na forma do silogismo). Sua discussão é dirigida por uma preocupação fundamental: Por que uma dedução não poderia simplesmente nos informar o que já conhecemos? Como ela pode ser informativa? Mill discorda de duas idéias comuns sobre o silogismo, nomeadamente, que ele é inútil (porque ele nos informa o que já sabemos) e que ele é a análise correta do que a mente realmente faz quando descobre verdades. Para compreender por que Mill discorda desses modos de pensar sobre a dedução, precisamos compreender suas idéias sobre a inferência.

O ponto chave aqui é que toda inferência é de um particular para um particular. Quando inferimos que o Duque de Wellington é mortal de “Todo os homens são mortais”, o que realmente fazemos é inferir a mortalidade do Duque da mortalidade das pessoas individuais cuja mortalidade nos é familiar. O que a mente faz ao realizar uma inferência dedutiva não é passar de uma verdade universal para uma verdade particular. Antes, ela parte de verdades acerca de um número de particulares para um número menor (ou para um único particular). A afirmação geral de que “Todos os homens são mortais” só nos permite registrar mais facilmente o que conhecemos – ela nem reflete a real inferência que está a ser feita, tampouco a justificação ou indício que temos para fazê-la. Embora proposições gerais não sejam necessárias para o raciocínio, elas são heuristicamente úteis (tal como os silogismos que as empregam). Elas nos auxiliam na memória e na compreensão.

O famoso tratamento que Mill dá à indução revela os fundamentos a posteriori da crença. Ele se concentra em quatro métodos de investigação experimental distintos que tentam selecionar, entre as circunstâncias que precedem ou se seguem a um fenômeno, aquelas relacionadas ao fenômeno por uma lei invariável. (System, III. viii. 1). Isto é, testamos para saber se uma Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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suposta conexão causal existe ao observar os fenômenos relevantes em uma variedade de situações. Se queremos, por exemplo, saber se um vírus causa uma doença, como o provamos? O que conta como bons indícios para essa crença? Os quatros métodos de indução ou investigação experimental – os métodos do acordo, da diferença, dos resíduos e da variação concomitante – fornecem respostas a essas questões ao apresentar o que precisamos demonstrar com o objetivo de afirmar que uma lei causal ocorre. Podemos mostrar, usando o método da diferença, que quando o vírus não está presente a doença também está ausente? Se sim, então temos alguns fundamentos para acreditar que o vírus causa a doença.

Outra questão de constante interesse abordada em A System of Logic é o tratamento dado por Mill ao livre-arbítrio. O comprometimento de Mill com o naturalismo inclui considerar a vontade humana como um potencial objeto de estudo científico: “Nossa vontade causa nossas ações corporais, no mesmo sentido, e em nenhum outro, em que o frio causa o gelo, ou uma faísca causa uma explosão de pólvora. A volição, um estado de nossa mente, é a antecedente; o movimento de nossos membros em conformidade com a volição é a consequente.” (System, III. v. 11). As questões que prontamente se levantam são como, sob esse ponto de vista, podese considerar a vontade como livre e como podemos preservar a responsabilidade e os sentimentos de escolha?

Em sua Autobiografia Mill relata a sua própria aceitação, jovial e melancólica, da doutrina da “Necessidade Filosófica” (defendida, entre outros, por Robert Owen e seus seguidores): “Eu sentia como se fosse cientificamente provado o fato de eu ser o escravo impotente de circunstâncias antecedentes; como se o meu caráter e o de todos os outros tivessem sido formados para nós por ações fora de nosso controle e estivessem completamente fora de nosso próprio poder”. (CW, I. 175-7). Mas é precisamente a idéia de que o nosso caráter é formado para nós, e não por nós, que Mill pensa ser um “grande erro” (Sistema, VI.ii.3). Temos o poder de alterar o nosso próprio caráter. Embora o nosso próprio caráter seja formado pelas circunstâncias, entre essas circunstâncias, constam os nossos próprios desejos. Não podemos decidir, diretamente, que os nossos caráteres serão de um modo ao invés de outro, mas podemos escolher as ações que os formam.

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Mill apresenta uma objeção óbvia: o que nos leva a querer mudar o nosso caráter? Não está isso determinado? Mill concorda que sim. Nosso desejo de mudar nosso caráter é largamente determinado pela nossa experiência das consequências dolorosas e prazerosas associadas ao nosso caráter. Para Mill, entretanto, o ponto importante é que, ainda que não controlemos o desejo de mudar o nosso caráter, possuímos, não obstante, o sentimento de liberdade moral, que é o sentimento de ser capaz de modificar nosso próprio caráter “se desejarmos” (System, VI. ii. 3). O que Mill quer preservar da doutrina do livre-arbítrio é, simplesmente, o sentimento de que temos o “poder real sobre a formação de nosso próprio caráter.” (CW, I. 177). Se temos o desejo de mudar o nosso caráter, descobrimos que o podemos. Se carecemos desse desejo, é “desimportante o que pensamos formar o nosso caráter”, porque não nos importamos em alterá-lo. Para Mill, essa é uma noção de liberdade densa o bastante para evitar o fatalismo.

Um dos problemas fundamentais deste tipo de descrição naturalista dos seres e vontades humanas é que ela colide com a imagem em primeira pessoa que fazemos de nós mesmos como agentes e seres racionais. Como compreendia Kant, e como a última tradição hermenêutica enfatiza, nós nos concebemos como seguidores autônomos de regras objetivamente dadas (SKORUPSKI, 1989, p. 279). Parece extremamente difícil fornecer uma explicação naturalista convincente de, por exemplo, fazer uma escolha (sem ter que dar satisfação do caráter ilusório da nossa experiência em primeira pessoa de fazer escolhas).

O desejo de tratar a vontade como um objeto aberto ao estudo científico natural, tal como o gelo ou a pólvora se enquadra na afirmação mais ampla de Mill de que as ciências morais, que incluem, entre outras, a economia, a história e a psicologia, são fundamentalmente similares às ciências naturais. Embora possamos ter dificuldade em conduzir experimentos na esfera humana, essa esfera e seus objetos são, em princípio, tão abertos à explicações causais quanto as que encontramos na física ou biologia.

Talvez o elemento mais interessante de sua análise das ciências morais seja o seu compromisso com o que tem sido denominado “individualismo metodológico”, ou a idéia de que os fenômenos sociais e políticos são explicáveis pelo comportamento dos indivíduos. Em outras palavras, os fatos sociais são redutíveis aos fatos sobre os indivíduos: “As leis dos Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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fenômenos da sociedade são, e podem ser, nada senão as leis das ações e das paixões dos seres humanos unidos conjuntamente no estado social. Os homens, entretanto, em um estado de sociedade, são ainda homens; suas ações e paixões obedecem às leis da natureza humana individual. Os homens, quando colocados juntos, não se convertem em um outro tipo de substância com diferentes propriedades.” (System, VI.vii.1).

Essa posição coloca Mill em oposição a Auguste Comte, um dos fundadores da teoria social (ele cunhou o termo “sociologia”) que exerceu uma importante influência sobre Mill, além de ter sido seu correspondente. Comte considera a sociologia, ao invés da psicologia, como a mais fundamental das ciências humanas e considera que os indivíduos e as suas condutas são mais bem compreendidos por meio das lentes da análise social. Grosso modo, para Comte, o indivíduo é uma abstração do todo – suas crenças e sua conduta são determinadas pela história e pela sociedade. Compreendemos melhor o indivíduo, desse ponto de vista, quando o vemos como uma expressão de suas instituições e arranjos sociais. Isso, naturalmente, leva a um tipo de historicismo. Embora Mil reconhecesse as influências importantes das instituições sociais e da história sobre os indivíduos, para ele a sociedade é, apesar disso, apenas capaz de moldar indivíduos pela interferência em suas experiências – experiências estruturadas pelos princípios universais da psicologia humana que operam em todas as épocas e lugares (veja MANDELBAUM, 1971, p. 167ss).

b. Um Exame da Filosofia de Sir William Hamilton

O ataque de Mill ao intuicionismo continuou ao longo de sua vida. Um notável exemplo é sua obra de 1865, An Examination of Sir William Hamilton’s Philosophy, que retoma a maior parte dos fundamentos de A System of Logic na forma de uma crítica extensiva a Hamilton, pensador influenciado por Reid e Kant, que Mill considerava representar “a maior fortaleza da filosofia intuicionista neste país.” (CW, I. 270). Essa robusta obra explora “algumas das questões discutidas no domínio da psicologia e da metafísica” (CW, I. 271). Entre as doutrinas que recebem mais atenção está a da “relatividade do conhecimento”, algo em relação ao qual Mill considera Hamilton como insuficientemente comprometido. Trata-se da idéia de que não temos qualquer acesso às “coisas-em-si-mesmas” (daí a oposição entre a Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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relatividade e a absolutidade do conhecimento) e de que estamos limitados à análise dos fenômenos da consciência. Mill, que aceita esse princípio básico, descreve-se como um fenomenalista berkeliano e define a matéria, em uma passagem célebre de Examination, como “uma Possibilidade Permanente da Sensação” (CW, IX. 183). Ademais, Mill pensa que Hamilton aceita essa doutrina de uma maneira confusa: “Ele afirma sem reserva que certos atributos (extensão, formas, etc.) são conhecidos por nós como se realmente existissem fora de nós; e também que todo o nosso conhecimento sobre eles é relativo a nós. E essas duas afirmações somente são reconciliáveis se o que é relativo a nós for compreendido em um sentido totalmente trivial, que nós os conhecemos somente tanto quanto nossas faculdades permitem.” (CW, IX. 22). Hamilton, portanto, parece querer, ao mesmo tempo, ter seu bolo e também comê-lo quando se trata do conhecimento do mundo exterior. Por outro lado, ele quer assegurar que nós temos acesso às coisas como elas são, alinhando-se desse modo com o projeto de Reid de evitar a queda no ceticismo (humiano) – queda influenciada pela “forma das idéias” lockiana. Por outro lado, ele quer seguir Kant e limitar o nosso conhecimento das coisas-em-si-mesmas, até então dominante nas pretensões de especulação metafísica. Mill evita esse dilema ao rejeitar a posição de Hamilton de que nós conhecemos as coisas exteriores como elas realmente são.

Um ponto de interesse histórico sobre Examination é o impacto que essa obra teve no modo como a história da filosofia é ensinada. O modo como Mill demoliu a reputação de Hamilton levou à remoção de Reid e da escola da filosofia escocesa do “senso comum” do currículo acadêmico da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos. Como diz Kuklick, o sucesso de Examination de Mill “é o evento crucial na compreensão do desenvolvimento da idéia contemporânea de Filosofia Moderna nos Estados Unidos.” Ao destruir “a credibilidade de toda réplica escocesa a Hume”, Examination de Mill levou os filósofos anglo-americanos a se voltarem para Kant na última parte do século dezenove para encontrarem uma resposta mais satisfatória ao ceticismo humiano (KUKLICK, 1984, p. 128). Assim, o curso padrão em Filosofia Moderna, que inclui tudo ou algo de Descartes, Espinosa, Leibniz, Locke, Berkeley, Hume e Kant é em parte uma consequência não intencional da publicação do ataque de Mill a Hamilton e, mais amplamente, ao intuicionismo.

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c. Escritos sobre Psicologia

Como observado na discussão de A System of Logic, o compromisso de Mill com o “individualismo metodológico” torna a psicologia a ciência moral fundamental. Embora nunca tenha escrito uma obra de sua própria autoria sobre psicologia, Mill editou (e contribui com notas) uma reedição de 1869 de uma obra de psicologia de seu pai (de 1829), denominada Analysis of the Phenomena of the Human Mind, e revisou a obra de seu amigo e correspondente Alexander Bain. Os três foram proponentes da escola associacionista de psicologia, cujas raízes remontam a Hobbes e, especialmente, a Locke, e cujos membros incluíam Gay, Hartley e Priestley – no século dezoito – e os Mills, Bain e Herbert Spencer – no século dezenove. Mill distingue as escolas a posteriori e a priori de psicologia. A primeira “decompõe todos os conteúdos da mente na experiência”. (CW, XI. 341). A segunda enfatiza que “em cada ato de pensamento, até o mais elementar, há um ingrediente que não é dado para a mente, mas auxiliado pela mente em virtude de seus poderes inerentes.” (CW, XI. 344). Na escola a priori ou intuicionista, a experiência, “ao invés de ser a fonte e o protótipo de nossas idéias, é um produto das próprias forças da mente ao trabalhar sobre as impressões que recebemos de fora, e tem sempre um elemento mental, bem como um elemento externo.” (CW, XI. 344). A versão associacionista de psicologia a posteriori tem duas doutrinas fundamentais: “a primeira, que os fenômenos mais recônditos da mente se formam a partir de outros mais simples e elementares; e a segunda, que a lei mental por meio da qual esta formação ocorre é a Lei da Associação.” (CW, XI. 345). Os psicólogos associacionistas, então, tentariam explicar os fenômenos mentais apresentando-os como o produto último dos componentes mais simples da experiência (por exemplo, cor, som, cheiro, prazer, dor) ligados uns aos outros por meio de associações. Essas associações assumem duas formas básicas: similaridade e contiguidade no espaço e/ou tempo. Assim, esses psicólogos tentaram explicar nossa idéia de uma laranja ou nossos sentimentos de ganância como o produto de idéias mais simples ligadas por associação.

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Parte da motivação para essa concepção de psicologia é seu aparente caráter científico e sua beleza. O associacionismo tenta explicar uma grande variedade de fenômenos mentais com base na experiência e mais umas poucas leis mentais de associação. Por isso, ele atrai àqueles particularmente inclinados à simplicidade nas suas teorias científicas.

Outro atrativo da psicologia associacionista, no entanto, são as suas implicações para idéias sobre a educação moral e a reforma social. Se os conteúdos de nossas mentes, incluindo crenças e sentimentos morais, são produtos de experiências a que somos submetidos de acordo com leis muito simples, então isso cria a possibilidade de que os seres humanos são capazes de ser radicalmente remodelados – que as nossas naturezas, em vez de fixadas, estão abertas a mudanças radicais. Em outras palavras, se nossas mentes são organizadas rapidamente por leis de associação que trabalham com os materiais da experiência, então isso sugere que, se as nossas experiências fossem alteradas, também seriam as nossas mentes. Essa doutrina tende a colocar uma ênfase muito maior nas instituições sociais e políticas, como a família, o local de trabalho e o Estado, do que a doutrina de que a natureza da mente oferece forte resistência a ser modelada pela experiência (isto é, que a mente molda a experiência mais do que é moldada por ela). O associacionismo, desse modo, se enquadra bem em uma agenda reformista, porque sugere que muitos dos problemas dos indivíduos são explicados por suas situações (e as associações que essas situações promovem) ao invés de por algum traço intrínseco da mente. Como diz Mill, na Autobiografia, ao discutir o conflito entre o intuicionista e as escolas a posteriori: O reformador prático tem de constantemente exigir que sejam feitas mudanças nas coisas que são apoiadas por sentimentos poderosos e amplamente difundidos, ou questionar a aparente necessidade e irrevogabilidade de fatos estabelecidos; e muitas vezes é uma parte indispensável de seu argumento mostrar como esses poderosos sentimentos tiveram a sua origem e como esses fatos se tornaram aparentemente necessários e irrevogáveis. Há, portanto, uma hostilidade natural entre ele e a filosofia que desencoraja a explicação de sentimentos e fatos morais por meio das circunstâncias e da associação, e prefere tratá-los como elementos últimos da natureza humana. [...] Há muito tenho sentido que a tendência dominante de considerar todas as grandes distinções do caráter humano como inatas, e de um modo geral indeléveis, e de ignorar as provas irrefutáveis de que, de longe, a maior parte dessas diferenças, quer entre indivíduos, raças ou sexos, são tais que não só poderiam como também seriam naturalmente produzidas pelas diferenças nas circunstâncias, é um dos principais obstáculos ao tratamento racional das grandes questões sociais, e um dos maiores obstáculos ao aperfeiçoamento humano. (CW, I. 269-70).

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d. Utilitarismo

Outra manobra em sua batalha contra o intuicionismo veio quando Mill publicou Utilitarismo (1861) em fascículos na Frazer’s Magazine (obra posteriormente apresentada na forma de livro em 1863). Essa obra oferece um candidato para um princípio primeiro de moralidade, um princípio que nos fornece um critério de distinção do certo e do errado. O candidato utilitarista é o princípio da utilidade, que sustenta que “as ações são certas na medida em que elas tendem a promover a felicidade; erradas quando tendem a produzir o reverso da felicidade. Por felicidade, entende-se prazer e ausência de dor; por infelicidade, dor e privação de prazer.” (CW, X. 210).

i. História do Princípio da Utilidade

Na época de Mill, o princípio da utilidade possuía uma longa história que remonta à década de 1730 (com raízes que remontam a Hobbes, Locke e até mesmo a Epicuro). No século dezoito e começo do século dezenove, ele foi invocado por três grupos intelectuais britânicos. Embora todos tenham concordado que as consequências de uma ação para a felicidade geral viesse a ditar sua correção ou incorreção morais, as razões por trás da aceitação desse princípio e os usos que lhe foram dados variaram muito.

Os primeiros defensores do princípio da utilidade foram os utilitaristas religiosos, representados, entre outros, por John Gay, John Brown, Soame Jenyns e, o mais famoso, William Paley, cujo The Principles of Moral and Political Philosophy, de 1785, foi um dos livros de pensamento moral mais frequentemente reimpresso e bem lido do final do século dezoito e começo do século dezenove (para desalento de Mill, o utilitarismo de Bentham foi frequentemente confundido com o de Paley). O utilitarismo religioso foi muito popular entre as classes educadas e predominou nas universidades até a década de 1830. Esses pensadores foram todos profundamente influenciados pelo empirismo e hedonismo psicológico de Locke e frequentemente se opuseram às doutrinas morais concorrentes de Shaftesbury, Hutcheson, Clarke e Wollaston. Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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Os utilitaristas religiosos olhavam para o Deus cristão a fim de resolver um problema básico, qual seja, o de como harmonizar os interesses dos indivíduos, que são motivados por sua própria felicidade, com os interesses da sociedade como um todo. Uma vez que compreendamos que o quê devemos fazer é o que Deus quer (por causa do poder da sanção eterna de Deus) e que Deus quer a felicidade de suas criaturas, a moralidade e o nosso próprio interesse pessoal serão vistos como convergentes. Deus garante que o interesse pessoal de um indivíduo permaneça na virtude, na promoção da felicidade dos outros. Sem Deus e suas sanções de punição e recompensa eternas, seria difícil encontrar motivos “tão fortes quanto estes para livrar os homens da satisfação da luxúria, vingança, inveja, ambição, avareza” (PALEY, 2002 [1785], p. 39). Como veremos alhures, outra motivação possível para se interessar pela felicidade geral – que não é religiosa – é examinada por Mill no capítulo três de Utilitarismo.

Em contraste com o utilitarismo religioso, que tinha poucas aspirações para ser uma teoria moral que revisasse atitudes morais comuns, as duas versões seculares de utilitarismo do final do século dezoito originaram-se de vários movimentos de reforma. O princípio da utilidade – e seus compromissos correlatos da felicidade como o único fim intrinsecamente desejável e da equivalência moral da felicidade de diferentes indivíduos – foi ele próprio concebido para ser um instrumento de reforma.

Uma versão de utilitarismo secular foi apresentada por William Godwin (esposo de Mary Wollstonecraft e pai de Mary Shelley), que conquistou grande notoriedade com a publicação de Political Justice, de 1793. Embora sua fama (ou infâmia) fosse de duração relativamente curta, o uso de Godwin do princípio da utilidade para a causa da crítica radical política e social deu início à identificação do utilitarismo com a antireligiosidade e com os perigosos valores democráticos.

A segunda versão de utilitarismo secular, a que inspirou Mill, veio da obra de Jeremy Bentham. Bentham, que foi muito mais bem-sucedido que Godwin na construção de um movimento ao redor de suas idéias, empregou o princípio da utilidade como um instrumento de crítica política, social e jurídica. É importante notar, entretanto, que o interesse de Bentham Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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no princípio da utilidade não surgiu da preocupação acerca da teoria ética tanto quanto da preocupação acerca da reforma legislativa e jurídica.

Essa história nos permite compreender a referência de Mill ao princípio da utilidade em seu contexto polêmico – a defesa de Mill do princípio não deve ser considerada como um mero exercício intelectual. No campo da política, o princípio da utilidade serviu para atacar oponentes da reforma. Reforma significava, sobretudo, extensão do voto. Mas também significava reforma jurídica, incluindo a reformulação do sistema jurídico comum e das instituições legais, e variadas reformas sociais, especialmente de instituições que tendiam a favorecer interesses aristocráticos e monetários. Embora Bentham e Godwin pretendessem exercer esta função no fim do século dezoito, o utilitarismo tornou-se influente somente quando atrelado à maquinaria política do parido Radical, que tinha especial proeminência na cena inglesa na década de 1830.

No campo do debate ético, Mill chamou seus oponentes liderados por Sedgwick e Whewell, ambos homens de Cambridge, de “intuicionistas”. Eles eram os representantes contemporâneos de uma tradição ética que compreendia sua história como atrelada a Butler, Reid, Coleridge e à virada do século do pensamento alemão (especialmente o de Kant). Embora intuicionistas e membros da escola a posteriori ou escola “indutiva” de Mill reconheçam “em grande medida, as mesmas leis morais”, eles diferem quanto aos seus indícios e à fonte da qual derivam sua autoridade. De acordo com a primeira opinião, os princípios da moral são evidentes a priori, nada requerendo para o assentimento da ordem, exceto que o significado dos termos seja compreendido. De acordo com a outra doutrina, o certo e o errado, bem como a verdade e a falsidade, são questões de observação e de experiência. (CW, X. 206).

O principal perigo representado pelos proponentes do intuicionismo não era o conteúdo ético per se de suas teorias, que defendia honestidade, justiça, benevolência, etc., mas dos tipos de justificativas oferecidas por seus preceitos e do apoio que essas idéias concediam ao status quo social e político. Como vimos na discussão do System of Logic e nas afirmações em sua Autobiografia, Mill considera o intuicionismo perigoso porque ele supostamente permite que as pessoas aprovem seus próprios preconceitos como princípios morais – no intuicionismo não há “padrão externo” a partir do qual julgar reivindicações morais diferentes (por exemplo, Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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Mill compreendeu o imperativo categórico de Kant como obtendo qualquer força moral que ele possui a partir de considerações de utilidade ou de mero preconceito escondido). O princípio da utilidade, por sua vez, avalia reivindicações morais recorrendo a um padrão externo de dor e prazer. Esse princípio apresentou cada indivíduo para a consideração moral como alguém capaz de dor e prazer.

ii. A Estrutura do Argumento

A defesa de Mill do princípio da utilidade em Utilitarismo inclui cinco capítulos. No primeiro, Mill define o problema, distingue entre as escolas intuicionista e “indutiva” de moralidade, e também sugere limites para o que podemos esperar de provas dos primeiros princípios da moralidade. Ele argumenta que “questões de fins últimos não estão sujeitas a prova direta.” (CW, X. 207). Tudo o que pode ser feito é apresentar considerações “capazes de determinar que o intelecto ou conceda ou negue seu assentimento à doutrina; e isso equivale a uma prova.” (CW, X. 208). Por fim, ele desejará oferecer uma prova no capítulo quatro para a base do princípio da utilidade – de que a felicidade é a única coisa intrinsecamente desejável – demonstrando que nós espontaneamente aceitamo-la por meio da reflexão (SKORUPSKI 1989, p. 8). É muito fácil mostrar que a felicidade é algo que desejamos intrinsecamente, não por causa de outras coisas. Difícil é mostrar que ela é a única coisa que desejamos ou valorizamos intrinsecamente. Mill concorda que nem sempre valorizamos coisas como a virtude como meios ou instrumentos para a felicidade. Com efeito, por vezes nós parecemos valorizar essas coisas por sua própria causa. Mill argumenta, entretanto, que pela reflexão veremos que, quando parecemos valorizá-las por sua própria causa, nós estamos realmente valorizando-as como partes da felicidade (não como intrinsecamente desejáveis por sua própria causa ou como meios para a felicidade). Isto é, valorizamos a virtude, a liberdade, etc., como coisas que nos fazem felizes por sua simples posse. Essa é toda a prova que podemos oferecer de que a felicidade é nosso único fim último; deve-se confiar na introspecção e no exame cuidadoso e honesto de nossos sentimentos e motivos.

No capítulo dois, Mill corrige equívocos acerca do princípio da utilidade. Um equívoco é o de que o utilitarismo, por endossar a idéia epicurista de “que a vida não tem [...] qualquer finalidade mais alta que o prazer” é uma “doutrina digna somente de porcos” (CW, X. 210). Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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Mill rebate que “a acusação supõe que os seres humanos não são capazes de qualquer prazer, exceto aqueles dos quais os porcos são capazes.” (CW, X. 210). Ele oferece uma distinção (não encontrada em Bentham) entre prazeres superiores e inferiores, na qual os prazeres superiores incluem prazeres mentais, estéticos e morais. Quando estamos avaliando se uma ação é ou não boa pela consideração da felicidade que podemos esperar ser produzida por ela, ele argumenta que os prazeres superiores deveriam ser preferíveis em espécie (e não por grau) aos prazeres inferiores. Isso tem conduzido os pesquisadores a se perguntarem se o utilitarismo de Mill difere significativamente do de Bentham e se a distinção de Mill entre prazeres superiores e inferiores cria problemas para nossa capacidade de saber o que maximizará a felicidade agregada. Uma segunda objeção ao princípio da utilidade é que “é exigente demais requerer que as pessoas devam sempre agir partindo do estímulo de promover o interesse geral da sociedade.” (CW, X. 219). Mill replica que isso é “confundir a regra da ação com o motivo dela”. (CW, X. 219). A ética pretende nos dizer quais são nossos deveres, “mas nenhum sistema de ética requer que o único motivo de tudo o que façamos seja um sentimento de dever; ao contrário, noventa e nove centésimos de todas nossas ações são feitas por outros motivos, e corretamente, se a regra do dever não as condena.” (CW, X. 219). Para fazer a coisa certa, em outras palavras, não precisamos estar constantemente motivados pela preocupação com a felicidade geral. A grande maioria das ações dirige-se para o bem dos indivíduos (incluindo nós mesmos), mais que para o bem do mundo. Contudo, o bem do mundo é feito do bem dos indivíduos que o constituem e a menos que estejamos na posição de, digamos, um legislador, nós agimos apropriadamente olhando para o bem privado mais que para o bem público. Nossa atenção para o bem-estar público geralmente precisa se estender somente até onde é preciso para saber que não estamos violando os direitos de outrem.

O capítulo três aborda o tema da motivação, novamente com foco na seguinte questão: Qual é a fonte de nossa obrigação para com o princípio da utilidade? O que, em outras palavras, nos motiva a agir de acordo com o que é aprovado pelo princípio da utilidade? Com qualquer teoria moral, é preciso lembrar que ‘deve implica pode,’ isto é, se as exigências morais podem ser legitimadas, nós devemos ser o tipo de seres que podem satisfazer essas exigências. Mill defende ser possível uma forte consciência utilitarista (isto é, um forte sentimento de Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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obrigação para com a felicidade geral) ao mostrar como esse sentimento pode desenvolver-se a partir do desejo natural que temos de estar em união com criaturas semelhantes – um desejo que nos permite cuidar do que acontece a elas e perceber nossos próprios interesses como ligados aos seus. Embora o capítulo dois tenha mostrado que não precisamos prestar atenção constantemente à felicidade geral, não obstante, é um sinal de progresso moral quando a felicidade dos outros, incluindo a felicidade daqueles que desconhecemos, torna-se importante para nós.

Por fim, o capítulo cinco mostra como o utilitarismo explica a justiça. Em particular, Mill mostra como o utilitarismo pode explicar o estatuto especial que parecemos outorgar à justiça e suas violações. A justiça é algo que nós estamos especialmente ávidos em defender. Mill começa distinguindo a moralidade (esfera dos deveres) da expediência e do mérito e argumenta que deveres são aquelas coisas que pensamos que as pessoas devem ser punidas por não cumprir. Ele então sugere que a justiça se demarca de outras áreas da moralidade porque inclui aqueles deveres para os quais os outros têm direitos correlativos: “A justiça implica algo que não é apenas certo fazer, e errado não fazer, mas o que alguma pessoa individual pode reivindicar de nós como seu direito moral.” (CW, X. 247). Embora ninguém tenha um direito à minha caridade, mesmo que eu tenha o dever de ser caridoso, os outros têm o direito de que eu não os machuque ou de que eu cumpra o que os prometi.

Os críticos do utilitarismo têm dado ênfase especial na sua incapacidade de fornecer uma explicação satisfatória dos diretos. Para Mill, ter um direito é “ter algo que a sociedade deve me defender na posse dele. Se o opositor continua a perguntar por que deveria, não posso dar outra razão que não a utilidade geral.” (CW, X. 250). Mas o que acontece se a utilidade geral exigir que nós violemos os seus direitos? A intuição de que algo está errado se os seus direitos podem ser violados por causa do bem geral provocou o grande desafio para as concepções utilitaristas de justiça, apresentado com especial força por pensadores do século vinte como John Rawls.

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e. Sobre a Liberdade

O tema da justiça recebeu tratamento adicional nas mãos de Mill em seu famoso livro Sobre a Liberdade (1859). Esta obra é a única, juntamente com A System of Logic, que Mill pensou que teria a maior longevidade. Ela trata da liberdade civil ou social ou, para observá-la do ponto de vista contrário, da natureza e dos limites do poder que podem legitimamente serem exercidos pela sociedade sobre o indivíduo.

Mill começa recontando a história do conflito entre governantes e governados, e sugere que a tirania social, não a tirania política, é o maior perigo para as nações modernas comerciais como a Grã-Bretanha. Essa “tirania da maioria” social (uma frase que Mill toma emprestada de Tocqueville) surge a partir da aplicação de regras de conduta que são não só arbitrárias como também fortemente aceitas. O princípio prático que guia a maioria “em suas opiniões acerca da regulação da conduta humana, é o sentimento, na mente de cada pessoa, de que todo mundo deveria estar obrigado a agir como ele, e aqueles com quem simpatiza, gostaria que agissem” (Sobre a Liberdade [SL], p. 48). Esse sentimento é particularmente perigoso porque é tido como autojustificante e auto-evidente. É preciso, pois, um princípio racionalmente fundamentado, que governe as transações de uma sociedade com os indivíduos. Este “princípio único muito simples” – frequentemente chamado “princípio do dano” – acarreta que:

O único fim para o qual a humanidade está autorizada, individual ou coletivamente, a interferir na liberdade de ação de qualquer um de seus membros, é a autoproteção. O único propósito para o qual o poder pode ser legitimamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra sua vontade, é evitar dano a outrem. Seu próprio bem, quer físico ou moral, não é uma razão suficiente. Ele não pode legitimamente ser compelido a agir ou abster-se da ação porque será melhor para ele, ou porque o fará mais feliz, ou porque, na opinião dos outros, fazê-lo seria sábio, ou até mesmo certo. Essas são boas razões para protestar-lhe, ou argumentar com ele, ou persuadi-lhe, ou suplicar-lhe, mas não compelir-lhe, ou punir-lhe com qualquer mal no caso de ele fazer o contrário (SL, 51-2).

Este princípio antipaternalista identifica três regiões básicas da liberdade humana: “o domínio interno da consciência”, a liberdade de gostos e atividades (isto é, de moldar nosso próprio plano de vida) e a liberdade de se unir aos outros.

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Mill, diferente de outros teóricos liberais, não faz apelo ao “direito abstrato” para justificar o princípio do dano. A razão para aceitar a liberdade dos indivíduos de agir como eles escolherem, contanto que eles causem dano mínimo ou nenhum aos outros, é que ela promoveria “a utilidade no mais amplo sentido, fundamentada nos interesses permanentes do homem como um ser em progresso.” (SL, p. 53). Em outras palavras, o respeito ao princípio do dano é desejável porque promove o que Mill chama de “o livre desenvolvimento da individualidade” ou o desenvolvimento de nossa humanidade. Por trás disso repousa a idéia de que a humanidade é capaz de progresso – que capacidades latentes ou subdesenvolvidas e virtudes podem ser realizadas sob as condições certas. A natureza humana não é estática. Não é simplesmente reexpressa em gerações e indivíduos. “Não é uma máquina para ser construída segundo um modelo, e regulada para fazer exatamente o trabalho prescrito para ela, mas uma árvore que precisa crescer e se desenvolver para todos os lados, conforme a tendência das forças internas que a tornam uma coisa viva.” (SL, p. 105). Posto que a natureza humana possa ser tida como algo vivo, ela é também, assim como um jardim inglês, capaz de progredir mediante esforço. “Entre as obras do homem que a vida humana visa, corretamente, aperfeiçoar e embelezar, a primeira em importância é, seguramente, o próprio homem.” (SL, p. 105). As duas condições que promovem o desenvolvimento de nossa humanidade são a liberdade e a variedade de situações, ambas encorajadas pelo princípio do dano. Um problema filosófico básico, apresentado pela obra, é o que se qualifica de “dano aos outros”. Onde deveríamos marcar o limite entre a conduta que, principalmente, concerne ao próprio da conduta que envolve outrem? O uso de drogas causa dano suficiente aos outros para ser impedido? E a prostituição? A pornografia? A poligamia deveria ser permitida? E quanto à nudez pública? Embora essas sejam questões difíceis, Mill oferece ao leitor um modo de deliberar sobre elas que se guia por princípios.

f. A Sujeição das Mulheres e Outros Escritos Sociais e Políticos

Muitos volumes dos escritos de Mill tratam de temas de preocupação social e política. Esses incluem escritos sobre problemas políticos específicos na Índia, Estados Unidos, Irlanda, Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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França e Inglaterra, sobre a natureza da democracia (Considerations on Representative Government) e a civilização, sobre a escravidão, sobre o direito e a jurisprudência, sobre o local de trabalho, a família e o estatuto da mulher. O último tema foi o tópico do célebre livro de Mill, A Sujeição das Mulheres, uma obra importante na história do feminismo.

A natureza radical do apelo de Mill à igualdade das mulheres perdeu-se um pouco depois de mais de um século de protestos e mudança de atitudes sociais. Todavia, a subordinação das mulheres aos homens à época de Mill ainda nos parece revoltante. Entre outros indicadores de sua subordinação estão os seguintes: (1) As mulheres britânicas tinham menos justificativas legais para o divórcio que os homens até 1923; (2) Os maridos controlavam a propriedade pessoal de suas esposas (com exceção ocasional da terra) até os Atos de Propriedade das Mulheres Casadas de 1870 e 1882; (3) Os filhos pertenciam aos maridos; (4) O estupro era impossível dentro de um casamento; e (5) As esposas careciam de traços cruciais de personalidade jurídica, já que o marido era tido como o representante da família (o que eliminava, portanto, a necessidade do sufrágio feminino). Isto dá alguma indicação do quão perturbadora e/ou ridícula a idéia de um casamento entre iguais poderia parecer aos vitorianos. O objetivo do ensaio foi mostrar “que o princípio que regula as relações sociais existentes entre os dois sexos – a subordinação legal de um sexo ao outro – é errado em si mesmo, e atualmente um dos principais obstáculos ao aperfeiçoamento humano; e que deve ser substituído por um princípio de igualdade perfeita, admitindo nem um poder ou privilégio por um lado, nem impotência por outro.” (CW, XXI. 261). Isso mostra como Mill recorre não só à injustiça patente dos arranjos familiares de sua época como também ao impacto moral negativo desses arranjos sobre as pessoas que neles se situam. Em particular, ele discute os meios nos quais a subordinação das mulheres afeta negativamente não só as mulheres, mas também os homens e as crianças na família. Essa subordinação estanca o desenvolvimento moral e intelectual das mulheres e restringe seu campo de atividades, empurrando-as para o auto-sacrifício ou para o egoísmo e a mesquinharia. Os homens, por sua vez, ou tornavam-se brutais em suas relações com as mulheres, ou afastavam-se de projetos de aperfeiçoamento pessoal para buscar a “estima” social que as mulheres desejavam. Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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É importante notar que a preocupação de Mill com o estatuto das mulheres está de acordo com o restante de seu pensamento – não se trata de uma questão desconectada. Por exemplo, sua defesa da igualdade das mulheres apoiava-se no associacionismo, que afirma que os pensamentos são criados por leis associativas que operam sobre a experiência. Isso implica que, se mudarmos as experiências e a educação das mulheres, então seus pensamentos mudarão. Isto permitiu a Mill argumentar contra aqueles que tentaram sugerir que a subordinação das mulheres refletia uma ordem natural, que as mulheres eram por natureza incapazes de permanecer em pé de igualdade com os homens. Se muitas mulheres eram incapazes de amizade verdadeira com homens nobres, diz Mill, isso não é resultado de suas naturezas, mas de seus ambientes imperfeitos.

g. Princípios de Economia Política

Outra obra de Mill que aborda assuntos de preocupação social e política é Princípios de Economia Política, publicado em 1848. O livro passou por inúmeras edições e serviu como o manual britânico dominante em economia até ser substituído pela obra de Alfred Marshall, Princípios de Economia, de 1890. Mill pretendia que a obra fosse uma apresentação geral do pensamento econômico de sua época (destacando as teorias de David Ricardo, mas também incluindo algumas contribuições de seu próprio pensamento sobre temas como comércio internacional) e como uma investigação das aplicações de idéias econômicas às preocupações sociais. “Não era simplesmente um livro de ciência abstrata, mas também de aplicação, e tratou a Economia Política não como uma coisa em si mesma, mas como um fragmento de um todo maior.” (CW, I. 243). Esses dois interesses dividem bem o texto entre os três primeiros livros mais técnicos sobre produção, distribuição e troca, e os dois últimos livros, que abordam as influências do progresso social e do governo sobre a atividade econômica (e viceversa). O trabalho técnico está em grande medida obsoleto. A relação estabelecida por Mill entre economia e sociedade, entretanto, permanece de grande interesse.

Em particular, Mill dividiu preocupações com outros (por exemplo, Carlyle, Coleridge, Southey, etc.) sobre o impacto moral da industrialização. Embora muitos tivessem recebido bem a riqueza material produzida pela industrialização, houve uma sensação de que esses mesmos pilares do desenvolvimento econômico britânico – a divisão do trabalho (incluindo a Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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simplicidade e a repetitividade crescentes do trabalho) e o aumento crescente de fábricas e empresas – levaram a uma insensibilização espiritual e moral. Coleridge expressou isso em seu contraste de mera “civilização” com “cultivo”:

A estabilidade da nação [...] e seu progresso e liberdade pessoal [...] dependem de uma civilização que progride continuamente. Porém a civilização não passa, ela própria, de uma boa mistura, que não está muito longe de ser uma influência corrupta, como uma cólera doentia, não como a flor da saúde; e uma nação tão notável designa-se mais propriamente de um povo envernizado do que um povo polido, quando sua civilização não se fundamenta no cultivo e desenvolvimento harmonioso daquelas qualidades e faculdades que caracterizam nossa humanidade. Devemos ser homens para então sermos cidadãos. (COLERIDGE, 1839, 46).

“Civilização” expressa traços centrais da modernização, incluindo a industrialização, o cosmopolitismo e o aumento de riqueza material. Mas, para Coleridge, a civilização precisava estar subordinada ao cultivo de nossa humanidade (expresso em termos similares àqueles posteriormente encontrados em Sobre a Liberdade).

Esta preocupação com o impacto moral do crescimento econômico explica, entre outras coisas, seu comprometimento com um tipo de socialismo. Em um ensaio sobre o historiador francês Michelet, Mill elogia as associações monásticas da Itália e da França depois das reformas de S. Benedict: “Ao contrário das comunidades inúteis de ascetas contemplativos no Oriente, eles eram diligentes em lavrar a terra e fabricar produtos úteis; eles sabiam e pensavam que o trabalho temporal pode ser um exercício espiritual.” (CW, XX. 240). Foi o desejo de transformar o trabalho temporal em um exercício espiritual e moral que levou Mill a se colocar a favor de mudanças socialistas no local de trabalho.

Para transformar o local de trabalho, antes um cenário repleto de antagonismo, em uma “escola de simpatia” que permitiria às classes operárias se sentirem parte de algo maior que elas mesmas – mitigando desse modo o egoísmo feroz encorajado pela sociedade industrial –, Mill recomenda as “cooperativas industriais”. Mill pensava que essas cooperativas tinham uma vantagem em relação às comunas de outras instituições socialistas porque eram capazes de competir com firmas tradicionais (sua queixa contra muitos outros socialistas é que eles não valorizavam a competição como um estímulo moralmente útil para a atividade). Essas cooperativas podem assumir duas formas: um sistema de participação nos lucros em que o Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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pagamento do operário está vinculado ao sucesso do negócio, ou uma cooperativa operária em que as classes proletárias dividem a posse do capital. A última era preferível porque transformava todos os operários em empresários, desenvolvendo muitas das faculdades que o mero trabalho assalariado deixava atrofiar.

Embora Mill tenha argumentado que, dado seu nível geral de educação e desenvolvimento as classes operárias eram geralmente inaptas para o socialismo, ele pensava que as sociedades industriais modernas deveriam dar pequenos passos em direção ao fomento das cooperativas de apoio. Dentre esses passos incluir-se-ia a instituição de parceria comercial limitada. Até a época de Mill, sócios comerciais dividiam toda a responsabilidade pelas perdas da empresa, incluindo qualquer propriedade pessoal que possuíssem – o que, obviamente, constituía forte obstáculo à fundação de cooperativas de trabalhadores.

As recomendações de Mill para a organização econômica da sociedade, como suas políticas públicas e sociais, sempre prestaram cuidadosa atenção ao modo como instituições, leis e práticas impactavam o bem-estar intelectual, moral e afetivo dos indivíduos, que operavam sob ou com elas.

h. Ensaios sobre a Religião

A crítica de Mill às doutrinas e instituições religiosas tradicionais e sua promoção da “Religião da Humanidade” também dependeram largamente das preocupações sobre o cultivo humano e a educação. Embora os “radicais filosóficos” benthamianos, incluindo Mill, considerassem a cristandade como uma superstição particularmente perniciosa, que nutria indiferença ou hostilidade para com a felicidade humana (a pedra de toque da moralidade utilitarista), Mill também pensava que a religião poderia, potencialmente, servir a necessidades éticas importantes, fornecendo-nos “concepções ideais maiores e mais bonitas do aquelas que vemos realizadas na prosa da vida humana.” (CW, X. 419). Assim sendo, a religião eleva nossos sentimentos, cultiva a simpatia com outros, e imbui, até mesmo em nossas atividades menores, um senso de propósito.

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Publicados postumamente, os três Essays on Religion (1874) – sobre a “Nature”, a “Utility of Religion” e o “Theism” – criticaram as idéias religiosas tradicionais e formularam uma alternativa na forma da Religião da Humanidade. Juntamente com a crítica dos efeitos morais da religião que ele partilhou com os benthamianos, Mill foi também crítico da indolência intelectual que permitia a crença em um Deus onipotente e benevolente. Ele sentia, seguindo seu pai, que o mundo como nós o encontramos não poderia possivelmente vir desse Deus, dados os excessivos males nele; ou seu poder é limitado ou ele não é completamente benevolente.

Além de atacar argumentos relativos à essência de Deus, Mill repudia uma variedade de argumentos a favor da sua existência, incluindo todos os argumentos a priori. Ele conclui que a única demonstração legítima da existência de Deus é um argumento a posteriori e probabilístico do desígnio do universo – o argumento tradicional (decorrente de Aristóteles) de que traços complexos do mundo, como o olho, são pouco prováveis de terem surgido por acaso, logo, deve haver um autor. (Mill reconhece a possibilidade de que Darwin, em A Origem das Espécies (1859), tenha fornecido uma explicação completamente naturalista desses traços, mas sugere que é cedo demais para julgar o sucesso de Darwin).

Inspirado por Comte, Mill encontra uma alternativa para a religião tradicional na Religião da Humanidade, em que uma humanidade idealizada torna-se o objeto de reverência e os traços moralmente úteis da religião tradicional são supostamente purificados e realçados. A humanidade se torna uma inspiração por estar localizada, imaginativamente, dentro do drama da história humana, que tem um destino ou fim, nomeadamente, a vitória do bem sobre o mal. Como diz Mill, a história deveria ser vista como “o desdobramento de uma grande epopéia ou ação dramática”, que termina “na felicidade ou miséria, na elevação ou degradação, da raça humana.” É “um incessante conflito entre poderes do bem e do mal, do qual cada ato feito por qualquer um de nós, insignificante como nós somos, forma um dos incidentes.” (CW, XXI. 244). Quando começamos a nos ver como participantes desse drama maniqueísta, como combatentes ao lado de pessoas como Sócrates, Newton e Jesus para assegurar a vitória final do bem sobre o mal, tornamo-nos capazes de maior simpatia, sentimento moral e um senso enobrecido do sentido de nossas vidas. A Religião da Humanidade, deste modo, age como um instrumento de cultivo humano. Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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3. Conclusão O intelecto de Mill se comprometeu com o mundo ao invés de fugir dele. Sua filosofia não é uma torre de marfim, mesmo quando lida com o mais abstrato dos temas de filosofia. Sua obra é de interesse duradouro porque mostra como uma mente afiada se esforçou e tentou sintetizar movimentos intelectuais e culturais importantes. Ele se colocou nas interseções dos conflitos entre iluminismo e romantismo, liberalismo e conservadorismo, e historicismo e racionalismo. Em cada caso, como alguém interessado no diálogo e não na exibição de idéias, ele realizou esforços sinceros para ir além da polêmica, em direção a uma análise constante e profunda. Essa análise produziu respostas desafiadoras a problemas que ainda permanecem. Quer alguém concorde ou não com suas respostas, Mill serve como um modelo para pensar sobre problemas humanos de um modo sério e civilizado.

4. Referências e Estudo Complementar Notas

PILBEAM, Pamela. Saint-Simonians in Nineteenth-Century France. Hampshire: Palgrave Macmillan, 2013.

* = obras com nota

Textos Primários

BENTHAM, Jeremy. Deontology together with A Table of the Springs of Action and The Article on Utilitarianism. Edited by Amnon Goldworth. Oxford: Clarendon Press, 1983. _______. An Introduction to the Principles of Morals and Legislation. Oxford: Clarendon Press, 1996. _______. The Works of Jeremy Bentham. Edited by John Bowring. 10 vols. New York: Russell and Russell, 1962. CARLYLE, Thomas. A Carlyle Reader. Edited by G.B. Tennyson. Cambridge: Cambridge University Press, 1984. _______. Critical and Miscellaneous Essays. Philadelphia: Casey and Hart, 1845. Volume VI - Número 16 - Ano 2014 - ISSN 1984-9052

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_______. Past and Present. London: Ward, Lock, and Bowden, Ltd., 1897. COLERIDGE, S. T. C. On the Constitution of the Church and State According to the Idea of Each (3rd Edition), and Lay Sermons (2nd Edition). London: William Pickering, 1839. COMTE, Auguste. A General View of Positivism. 1848. Reprint. Dubuque, Iowa: Brown Reprints, 1971. MILL, James. An Analysis of the Phenomena of the Human Mind. Edited and with Notes by John Stuart Mill. London: Longmans, Green and Dyer, 1869. *MILL, John Stuart. The Collected Works of John Stuart Mill. Gen. Ed. John M. Robson. 33 vols. Toronto: University of Toronto Press, 1963-91. * As edições de padrão acadêmico incluem obras, cartas e notas publicadas de Mill; um recurso notável. _______. A System of Logic. New York: Harper & Brothers, 1874. _______. On Liberty. Peterborough, Canada: Broadview Press, 1999. PALEY, William. The Principles of Moral and Political Philosophy. Indianapolis: Liberty Press, 2002 [1785].

Textos secundários BRITTON, Karl. ‘John Stuart Mill on Christianity.’ In James and John Stuart Mill: Papers of the Centenary Conference, John Robson and Michael Laine (eds.). Toronto: University of Toronto Press, 1976. *CAPALDI, Nicholas. John Stuart Mill: A Biography. Cambridge: Cambridge University Press, 2004. * Um tratamento recente e muito minucioso da vida e obra de Mill. CARLISLE, Janice. John Stuart Mill and the Writing of Character. Athens, GA: University of Georgia Press, 1991. COLLINI, Stefan. ‘The Idea of “Character” in Victorian Political Thought.’ Transactions of the Royal Historical Society, 5th series, 35 (1985), 29-50. *________. Public Moralists, Political Thought and Intellectual Life in Great Britain 1850-1930. Oxford: Clarendon, 1991. * Uma história útil que inclui uma discussão do contexto intelectual e institucional de Mill. *COLLINI, Stefan, WINCH, Donald; BURROW, John. That Noble Science of Politics: A Study in Nineteenth-century Intellectual History. Cambridge: Cambridge University Press, 1983. * Obra muito valiosa sobre o discurso político britânico do século dezenove; inclui a discussão dos Radicais Filosóficos.

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*PACKE, Michael. The Life of John Stuart Mill. New York: MacMillan Company, 1954. * Anterior à obra de Capaldi, a biografia padrão; ainda contém detalhes biográficos úteis. RAEDER, Linda C. John Stuart Mill and the Religion of Humanity. Columbia: University of Missouri Press, 2002. ROBSON, John M. The Improvement of Mankind: The Social and Political Thought of John Stuart Mill. Toronto: Toronto Univ. Press, 1968. _______. ‘J. S. Mill’s Theory of Poetry.’ In Mill: A Collection of Critical Essays, J. B. Schneewind, (ed.). London: MacMillan, 1968. RYAN, Alan. The Philosophy of John Stuart Mill. London: MacMillan, 1970. *_______. J. S. Mill. London: Routledge and Kegan Paul, 1974. * Uma boa introdução aos escritos e argumentos centrais de Mill. *SCHNEEWIND, J. B. Sidgwick’s Ethics and Victorian Moral Philosophy. Oxford: Clarendon Press, 1977. * Ainda o melhor tratamento existente da filosofia moral vitoriana; inclui um exame extremamente valioso do conflito entre utilitarismo e intuicionismo. SEN, Amartya, and Bernard Williams, eds. Utilitarianism and Beyond. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1982. SHANELY, Mary Lyndon. ‘Marital Slavery and Friendship: John Stuart Mill’s The Subjection of Women.’ Political Theory, Vol. 9, No. 2 (May 1981), 229-247. ______. ‘Suffrage, Protective Labor Legislation, and Married Women’s Property Laws in England.’ Signs, Vol. 12, No. 1 (1986). *SKORUPSKI, John. John Stuart Mill. London: Routledge, 1989. *Inquestionavelmente, o melhor volume único sobre a filosofia geral de Mill. _______. ‘Introduction.’ In The Cambridge Companion to Mill, edited by John Skorupski. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. *______. (Editor). The Cambridge Companion to Mill. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. * Inclui um número de artigos importantes e uma extensa (embora por agora um pouco fora de moda) bibliografia. SMART, J. J. C. ‘Extreme and Restricted Utilitarianism.’ The Philosophical Quarterly, (October 1956), 344-354. *THOMAS, William. The Philosophic Radicals: Nine Studies in Theory and Practice 1817-1841. Oxford: Clarendon Press, 1979. * Fonte muito boa sobre o Radicalismo Filosófico.

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TURNER, Michael J. “Radical Opinion in an Age of Reform: Thomas Perronet Thompson and the Westminster Review”, History, Vol. 86 (2001), Issue 281, 18-40. WILLIAMS, Raymond. Culture and Society 1780-1950. New York: Columbia University Press, 1983. *WILSON, Fred. Psychological Analysis and the Philosophy of John Stuart Mill. Toronto: Toronto Univ. Press, 1990. * O tratamento mais minucioso das idéias sobre psicologia de Mill.

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RECENSÃO

André, José Maria. (2012). Multiculturalidade, identidade e mestiçagem: o diálogo intercultural nas ideias, na política, nas artes e na religião. Coimbra: Palimage, 306 pp.

Carlos Alberto Alves1

Os fluxos migratórios e a multiculturalidade são objeto de estudo no âmbito das humanidades e das ciências sociais. Neste contexto, o livro de José Maria André (JMA), professor de Filosofia e de Teatro na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (FLUC), tem como ponto de partida a filosofia do Renascimento, que baliza o fim da Idade Média e o começo da Idade Moderna. Sobressai nesta obra a preocupação com a pessoa e a sua relação com a política, a religião, mas também no que se refere à filosofia, à ciência, à arte, à moral e à cultura em geral, passando ainda pelo pensamento utópico, que, de uma maneira geral, o século passado tentou reabilitar, para refletir sobre a identidade e a mestiçagem no mundo contemporâneo. É verdade que o livro também retoma a reflexão iniciada numa obra anterior, com 146 páginas, publicada em Coimbra, pela Ariadne Editora, há precisamente oito anos, com o título: Diálogo intercultural, utopia e mestiçagem em tempos de globalização. Os sete capítulos do livro destacam o papel das artes, sobretudo o contributo do teatro no confronto e aproximação entre diferentes visões do mundo, ou seja, aquilo que é designado como diálogo intercultural; realçam a utilidade das humanidades, tema presente nos capítulos primeiro, quarto e sétimo, que inicialmente foram apresentados em conferências para professores de Filosofia, no Colóquio Internacional “Why Culture” e na receção aos alunos do 1.º ano das licenciaturas da FLUC, em 2001. Os capítulos segundo, terceiro, quinto e sexto foram publicados na Revista Filosófica de Coimbra, na Communio – Revista Internacional Católica, na revista Biblos e em livros, em Portugal e em Espanha.

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Licenciado em Filosofia e doutorando em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Email: caa30@hotmail.com

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Ora, o destaque de JMA vai para a multiculturalidade contemporânea  caracterizada pela erosão do Estado-nação, por um lado, e pela globalização, por outro  e ainda para a sociedade em rede, designada como Telepolis, ou seja, nova forma de polis (cidade). No início do terceiro capítulo, é explicada a razão para a escolha do conceito de multiculturalidade, em vez de multiculturalismo, nestes termos: Multiculturalidade tem um conteúdo fundamental descritivo, significando a existência de uma pluralidade de culturas numa proximidade geográfica. Já o conceito de multiculturalismo tem sobretudo um conteúdo normativo, correspondendo à designação atribuída a algumas políticas de resposta ao fenómeno da multiculturalidade, bastante contestadas quer por autores e correntes de matriz liberal, quer por pensadores que defendem antes a necessidade de uma interação cultural (p. 105, nota 1).

O multiculturalismo com vista a gerir as diferenças raciais teve a sua gênese nos Estados Unidos da América (EUA) na década de 50 do século XX, altura em que teve início a revogação da legislação racista que, desde a segunda metade do século XIX, precisamente a partir de 1876, atingiu negros e asiáticos. A legislação racista (Lei de Jim Crows) foi revogada pelo Civil Rights Act, em 1964, dando início à discussão política, nos EUA, sobre o multiculturalismo, que viria a influenciar também alguns países como o Brasil, colônia portuguesa até 1822, tanto mais que a construção da identidade brasileira foi alicerçada no mito racial. A partir da década de 90 do século XX, foram implantadas políticas multiculturais que vieram permitir ao Governo brasileiro, em 2003, promover a lei que instituiu, para o ensino básico, a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira, a que se juntou idêntica medida relativamente ao ensino sobre a cultura dos povos indígenas, em 2008. A reflexão de JMA permite compreender as representações do mundo e a questão da multiculturalidade, assim como o diálogo entre culturas e povos; aborda também questões relacionadas com a democracia, os direitos humanos, as migrações e a tolerância, evocando os princípios da resistência cultural, da consciência crítica, da vigilância epistemológica e, acima de tudo, da capacidade de desconstrução incondicional das ideias que ameaçam, de forma totalitária, a capacidade de pensar e o primado das línguas maternas, considerado, no capítulo sétimo, «berço em que nascemos para os outros e para o mundo» (p. 302). Relativamente aos desafios do mundo contemporâneo, é realçado o fato de vivermos numa sociedade em que os cidadãos deixam de se circunscrever aos limites territoriais do Estado de que são oriundos. São também temas de reflexão as questões que se prendem com a globalização contra-hegemônica, a promoção do desenvolvimento e o progresso econômico

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justo dos povos. É feito um apelo para a formação do projeto multicultural e emancipador, assim como a dimensão política da cultura e das suas potencialidades, para que se possa resistir contra outras formas de dominação presentes na sociedade atual. O papel do teatro, da dança, da música e da pintura em favor do diálogo intercultural também é destacado por JMA, que não confunde o diálogo intercultural com o diálogo inter-religioso, dando conta dos limites do diálogo entre crentes de diferentes religiões que permite atalhar ressentimentos do passado. Apresenta, igualmente, o cristianismo, também considerado “religião do Livro” e dos que reconhecem a fé em Jesus Cristo, reconhecendo-O como Filho de Deus e mensageiro universal da salvação. Ao pensar sobre o diálogo inter-religioso e intercultural, uma vez que a cultura e a religião têm em comum o fato de terem como sujeito homens e mulheres, o capítulo sexto alude ao Concílio Ecumênico Vaticano II  convocado em 1959 e cujos trabalhos foram iniciados em outubro de 1962, com o Papa João XXIII, e concluídos em dezembro de 1965 pelo Papa Paulo VI  que permitiu à Igreja Católica, instituição missionária universal, debruçar-se sobre variados temas, especialmente o ecumenismo e a missão dos católicos no mundo contemporâneo. O Concílio possibilitou, assim, ao catolicismo juntar no seu compromisso a contingência dos povos e das nações, isto é, fazendo suas também as «alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo os pobres e de todos aqueles que sofrem» (GS 1). Quanto à mestiçagem, resultante da ideologia do império colonial, iniciada nos séculos XV e XVI e que se prolongou até ao século XX, tal como o modelo de assimilação, que foi a base da política colonial  herdeira de uma matriz monocultural e etnocêntrica na relação com o outro  foi muitas vezes imposta. Entretanto, a reflexão sobre a mestiçagem está marcada por uma grande carga histórica, devido ao processo de colonização, razão pela qual o termo mestiçagem tem sido substituído por alguns conceitos como hibridação, hibridismo, sincretismo, de forma a caracterizar o processo intercultural. Relativamente a Portugal, país considerado um dos pioneiros da globalização e que construiu o seu império colonial, registra o primeiro desembarque de africanos cativos trazidos da costa africana em 8 de agosto de 1444, em Lagos, data que marca o início da presença africana em Portugal, cuja herança perdura até aos nossos dias, como mostram os estudos levados a cabo por investigadores portugueses e estrangeiros, nomeadamente António Brásio, Didier Lahon, Isabel Castro Henriques, José Ramos Tinhorão, entre outros.

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O movimento revolucionário de 25 de abril de 1974 permitiu o fim do Estado Novo, regime político autoritário, corporativista, colonialista e antidemocrático, iniciado com a ditadura militar de 28 de maio de 1926 e institucionalizado pela Constituição política de 1933. A Revolução de 1974 permitiu, igualmente, a transferência, para os movimentos de libertação, da soberania política que Portugal exercia nas ex-colônias africanas. A instauração do regime político democrático em Portugal, consolidado na década de 80, tendo em conta o problema da imigração, criou estruturas e programas para a educação multicultural, desafiando as escolas a criarem condições sociais, pedagógicas e didáticas para promoverem a integração, na sociedade portuguesa, de alunos estrangeiros (muitos deles provenientes das ex-colônias portuguesas) e facilitarem, desta forma, o acesso ao conhecimento. JMA chama a atenção para a mestiçagem de existência, conceito filosófico que quer dizer «o que está aí», aquilo que é equiparável à realidade, que, no existencialismo contemporâneo, significa vida ou realidade humana, como é realçado na página 15 do livro, onde é transcrito um trecho do conto com o título: «Afinal, Carlota Gentina não chegou de voar?», de António Emílio Leite Couto, mais conhecido pelo nome literário Mia Couto, escritor e biólogo moçambicano, natural da Beira, em 1955, filho de portugueses estabelecidos em Moçambique no século passado. Eu somos tristes. Não me engano, digo bem. Ou talvez: nós sou triste? Porque dentro de mim não sou sozinho. Sou muitos. E esses todos disputam minha única vida. Vamos tendo nossas mortes. Mas parto foi só um. Aí, o problema. Por isso, quando conto a minha história me misturo, mulato de raças, mas antes de existências. (Mia Couto. (1987). Vozes Anoitecidas. Lisboa: Caminho, 3.ª edição, p. 85.)

Em suma, o livro de JMA é, assim, um contributo importante que permite pensar as questões da multiculturalidade, da identidade e da mestiçagem da existência, sem deixar de lado as ideias, a política, a estética e a religião, num registro que nos faz pensar sobre o que somos e queremos ser no século XXI. O desafio será, então, o de cada um de nós contribuir para o diálogo intercultural num mundo cada vez mais global.

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