A Rapariga Dos Lábios Azuis

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quetzal ave trepadora da América Central, que morre quando privada de liberdade; raiz e origem de Quetzalcoatl (serpente emplumada com penas de quetzal), divindade dos Toltecas, cuja alma, segundo reza a lenda, teria subido ao céu sob a forma de Estrela da Manhã.



Por que gostamos de um homem e não de outro? Ele tinha cavalo, um cavalo de raça: luminoso, o bicho, como se pela manhã alguém lhe afagasse o sol no pêlo. Um homem a cavalo ostenta botas e esporas, colete e chapéu. Observa-nos de cima, causa medo e assombro. E eu levantei a cabeça, ousei olhar os seus olhos, assim me pedia o inquieto coração. Ele firmou a rédea, mas dessa vez nem chegou a estancar o freio.


Francisco Duarte Mangas


A Rapariga dos Lábios Azuis

quetzal série língua comum


Título: A Rapariga dos Lábios Azuis Autor: Francisco Duarte Mangas Revisão: Carlos Pinheiro Projecto gráfico original: RPVP Designers Design da capa: Rui Rodrigues · Quetzal Editores Fotografia da capa: © Christian Weigel/Corbis Pré-impressão: Fotocompográfica Execução gráfica: Bloco Gráfico, Lda. Unidade Industrial da Maia © 2011 Quetzal Editores [Todos os direitos para a publicação desta obra em língua portuguesa, excepto Brasil, reservados por Quetzal Editores]

ISBN: 978-972-564-930-5 Depósito legal: 320 754/10 Quetzal Editores Rua Prof. Jorge da Silva Horta,1 1500-499 Lisboa PORTUGAL quetzal@quetzaleditores.pt Tel. 21 7626000 5 Fax 21 7625400


Quando os homens têm razão não são jovens. E.E. Cummings

Gavião, gavião branco Vai ferido vai voando A. Garrett



Casa

Quatro ou cinco homens, não mais. Desceram descalços a montanha e em silêncio. No instante em que os pés acharam a calçada tosca, tamanha pobreza terá acirrado o cão, cresceu aferroado pelo odor desconhecido: um dos homens, lesto, trava-lhe a fúria, Rasgou a cabeça do bicho, como quem abre um pão fresco. Os quatro ou cinco homens, não mais, haviam de levantar do chão a casa. Casa térrea. Em frente, no pequeno eido, vivia uma figueira, tronco robusto, copa escassa. Parecia um plátano, o pobre plátano que o Outono decapita. A robustez da figueira não provinha da crueldade da poda: fustigada pelos ventos da serra, botou corpo e tolheu a viagem ambiciosa dos ramos. É mais velha do que eu. Difícil calcular a idade da árvore, a minguada palavra avó guarda um rebanho de tempo. Chão de saibro, irregular. Havia a caixa grande, cama ao fundo rente à parede; um pau comprido, suspenso como trapézio, onde a roupa iludia a humidade. E a mesa? A lareira, mansas chamas avivam o negro luzidio de dois potes.


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A avó sabia aliviar a rudeza do mundo. Abrir um pão quente com as mãos, imagem de manhã feliz, cega a brutalidade do homem a escadraçar a queixada do bicho. Ou quereria ensinar-me o desacerto de averiguar as pessoas pela vestimenta? Os quatro ou cinco homens, não mais, demoram um ano a erguer a casa. Bebiam água do regato, comiam pão duro e azeitonas surripiadas das oliveiras. Azeitona por curtir esparrama um travo acre. Fica na boca sabor amargo, como o silêncio humilde dos homens. Pedra a pedra, levantaram a casa e os socalcos de duas leiras — resgatadas a alvião da terra agreste. Corria o mês de Agosto, ano mil oitocentos e noventa e dois. A casa estava pronta a acolher afectos e embair as tempestades. Vinda do Sul, raiz cingida no musgo humedecido, a figueira seria plantada no Inverno do ano seguinte. As raízes, na despedida dos frios, agarram-se à terra, tocadas pelo receio de perder o festim, o fértil lume primaveril. Cada homem era legítimo dono de um saco de serapilheira, limpa e enxuta acomodaram aí a escassa ferramenta. Uma terça parte das moedas quedou no mestre, as outras luziram nas mãos dos restantes artistas. Cambiaram de roupa. No regato, com vagar, lavaram o rosto, os braços até ao ombro. Oração, inaudível, pedira ao supremo arquitecto do mundo para abençoar a casa. O sol dobrou o monte, subiram parcimoniosos ao largo. Havia uma concertina, correria de crianças, o sorriso de outros homens despertado pelo vinho. A aldeia, em nome de São Frutuoso, estacava mimosas floridas na orla do caminho. Um tapete de lírios bravos, vigilado pela mão orvalhada da noite, rompia no terreiro da capela. Na taberna outros homens, a quem a luz viva do azeite roubava a sombra. Perto da porta, depuseram os sacos de


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aniagem. Gesto delicado, quem ofende a ferramenta desmerece o ofício, e no mesmo devagar chegaram ao balcão. Pediram pão e vinho. Um dos pedreiros, talvez o mestre, desabrigou do bolso a navalha. Repartiu o pão. A figueira era um tormento para a avó. Os figos pretos, enormes, acendiam a voracidade dos rapazes. A avó durante o dia abandonava a casa; os rapazes subiam o murete, em redor do eido, mas os braços famintos cessavam aquém da doçura dos frutos. Pelo tronco lograr o cume seria tarefa inglória. Esses mesmos rapazes, os meus olhos viram, abraçavam um pinheiro e, breve, emergiam na coroa a despojar ninho de pombo bravo. Donde irrompia a destreza? Quem lhes ensinou a arte felina? Davam um salto, e logo os braços cingiam a casca rugosa da árvore: fincavam os pés no tronco, o corpo, como uma mola, estendia-se. A figueira sacudia abraço pleno. É certo, sobre a fome lei nenhuma vinga: restolhavam as pedras na verdura das folhas, raras vezes atingiam o alvo, quase sempre amorteciam a sonora queda na indefesa telha vã. A avó chegava a casa alumiada pelas estrelas. Quando ouvi pela primeira vez o nome do povoado, a dúvida desagregou-se: a avó era diferente das outras mulheres, de todas as outras avós. Por isso descarecia de falar do meu avô, que nunca vi na casa térrea. Nunca vi em parte alguma. A avó ia aos Anjos, Fica na cabeça da serra! Quando fores grande, vais comigo. Os anjos habitam outro mundo. Sendo assim: por que secreto caminho a avó atravessa as nuvens? Extraordinário rio de dúvidas, a infância. Mastigaram o pão devagar, pela avidez jamais se afronta a fome. Do mesmo modo, quase litúrgico, beberam o vinho, sem atender aos desmedidos gestos de sombra dos outros homens a garatujar nas paredes,


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Quem foi o destemido que me matou o cão? Os grandes gestos de sombra caíram no soalho imundo. A pergunta avinhada, humedecida de ódio, parecia uma ordem. Uma sentença. O mestre pôs duas moedas no balcão e segurou a navalha: as sombras perderam a rigidez, estremeceram. Em pouco tempo, só os quatro ou cinco homens esculpidos pela fome povoavam a taberna. O mestre guardou a navalha. Pediu vinho, vinho. Como se o vinho, nessa noite, vertesse o sol no trágico trilho da serra. Levava peixe do mar à aldeia dos Anjos, habitada por gente como nós, sem asas (é breve o curso do extraordinário rio). Certa vez, um homem ceifava feno num paul despenhado, debaixo do sol severo de Julho. Mandou parar a avó, comprou dois chicharros. O homem estripou o peixe na lâmina da gadanha — assim o comeu, sem ponta de sal, sem passar pela alquimia do fogo, Os homens famintos são como árvores, embora andem. Muitas vezes, a avó falava como se estivesse a ler os livros sagrados. No azul aguado dos seus olhos, de repente, vi as árvores a caminhar, pesadas, sisudas como vacas no regresso do pasto. A meio da tarde do dia seguinte, a notícia desceu aflita a encosta. Trouxe-a um jovem pastor, como se fosse a primordial labareda do fim do mundo. O moço, cara mais branca do que papel de fumar, chafurdou a cabeça na pia de o gado beber e só depois, estocado pelo silêncio do povo, expeliu a atormentação, Três homens mortos! E são dos nossos? Têm as cabeças esfaceladas, os bichos comeram-lhes as tripas. Pelo matagal dentro corre um rasto de sangue apagado e moscas... Pela roupa? Estão como vieram ao mundo!


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A avó nunca me contou esta parte do episódio. Saberia, por certo, cerzir uma descrição sem espevitar pesadelos. Mas não quis contar. O meu bisavô foi o único a seguir o pastor até ao local da aparição fúnebre, crismado depois como o Sítio dos Mortos Andarilhos. Nada viu, nem cadáveres, nem o fio de sangue apagado a confluir no matagal, Estavam aí, pareciam cerdos. Cisco e folhas apegados ao corpo, não amaluquei! «Toca o rebanho, rapaz. Faz-se tarde: em breve o Sol ficará entre a Lua.» O moço seguiu a ordem do mais velho, tocou, picado pela vergonha, a rês no caminho da aldeia. Trouxe um cinzel denunciado por uma estria de luz no meio das urzes, descia o pastor o puído caminho da serra. Perante os homens que o aguardavam no largo, abonou-lhes o relato, São dos nossos? Sem olhar o homem preocupado com a identidade dos defuntos, ergueu o cinzel e fê-lo retinir na calçada, Os mortos foram para casa, voltam um dia. Baixou-se lentamente, recolheu o escopro. Abandonou o largo. A descoberta do moço das ovelhas não esmoreceu a festa. O andor de São Frutuoso saiu da capela, supliciou o tapete vegetal, deu a volta à aldeia, volveu ao pequeno templo. Mas algo de estranho ocorrera durante a missa. Alguns devotos declinaram sem sentidos, não havia ainda o padre levantado o pão ázimo. Os fracos de espírito, sempre os houve, viram no desfalecimento sinal irrefutável do demo. Nos ouvidos dos executantes da cilada, abrigados pela noite, testemunha muda e inimputável, repercutia o retinido do cinzel. Um deles, após a atribulada celebração, abeira-se do meu bisavô, chama-o à banda. Propõe negócio: trocava umas tesouras de poda, a bem dizer novas, pelo rompido escopro,


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«De tesouras estou servido, as figueiras poda-as o vento.» Os devotos desmaiados eram traslados para junto da pia do gado. Mão em concha, arcaico baptismo, vertia-lhes a frescura da água na nuca. Desse modo reaviam os sentidos, exauriam palavras desavindas como quem vomita o fel da insânia. Libertos dos vestígios do demónio, corriam à taberna, narinas dilatadas como potros, em busca da lucidez. As mulheres, zelosas da privacidade, benzeram-se e recolheram a casa em passo estugado. Nem o padre, nesse dia infausto, achara desagravo para o acontecimento. O desmaio dos fiéis tivera mais força do que a morte de três ou quatro homens talhados pela fome, toldados pelo vinho, a meio da serra. Nesse ano, o desfecho da festa em honra de São Frutuoso ocorreu ainda perante a luz do dia. Agarrou pelas golas e abanou o homem que insistia na permuta das tesouras de poda, a bem dizer novas, pelo escopro, Eles mataram-me o cão! e seguiu rumo a casa, emaranhado em silêncio e revolta. A alvião fez os alicerces da moradia da figueira. Havia de chegar do Sul. Os homens de límpida consciência esfacelam o ódio enquanto cavam a terra.


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