O Nome é uma Ilha
Estou aqui. Já faz mil oitocentos e vinte e cinco dias e catorze horas que estou na véspera da travessia. Faz oitocentos e vinte e cinco dias, catorze horas e cinco segundos que vivo entre algum lugar e lugar algum.
Você está aqui. Este é o ponto menos quatro. Estamos antes do ponto zero, porque se o fosse, eu não teria o sentimento angustiante de viver sempre a prévia de algo, viver um aquém de um lugar.
Estamos aqui, no limite. Talvez no limite daquilo que se convém a chamar humanidade.
Continuo aqui porque claramente ainda não cheguei onde queria. Ainda não fiz o meu ponto. Quero fazer o ponto, traçar a linha que conecta o menos dois ao menos um até o zero. Quero esquadrinhar a região que gostaria de ser, a ilha.
Quero ser esse lugar. O lugar da travessia.
Se você continua aqui, então estamos desenhando uma linguagem para fazer um ponto em comum.
Mas para isso, precisa traçar uma linha, correr um risco.
A viagem já começou,
porque você quis embarcar nessa comigo.
Vou redimensionar o mapa que carrego para você poder navegar na sua travessia também.
Já aviso que nele não contém bordas,
E que a ilha que queremos esquadrinhar não existe.
Nosso mar é rochoso, Estamos olhando do fundo do mar para a superfície, consegue enxergar alguma coisa?
Todas as ilhas escondem embaixo de si uma montanha.
Assim a paisagem é inversa, tudo vira uma questão de dimensão.
Como o mapa, que esconde a montanha da ilha quando visto de cima.
Estamos à deriva em alto-mar,
atravessando os limites do eu em alto-mar.
(Estamos atravessando um furacão em alto-mar.)
O ponto menos três
ficou para trás, Estamos desenhando nossa travessia à medida que o nosso barco deixa um rastro de corte na água.
O x marca o local de partida.
A nossa chegada será imprecisa, porque o mapa é como o de uma criança.
E esse mar que atravessamos ainda não tem um nome.
-1
Vá até o canto da sua paisagem e calcule a distância entre mim e você.
Essa é a distância entre o ser e o nome próprio.
O nome próprio é um substantivo de propriedade,
O nome próprio é aquele que denomina quem herdou a língua da ilha.
Se foi seu pai, suas primas ou sua avó, A ilha só se funda quando ganha um nome.
Quando colocamos um território no mapa, damos nome a ele
E é assim que fundamos lugares.
Quando colocamos uma bandeira em um território, damos propriedade a ele
E é assim que fundamos substantivos.
Mas quando traçamos os limites desse território, e traduzimos em mapa,
Misturamos a fundação desse lugar com os sentidos de impropriedade.
A ilha é um lugar impróprio porque a cada fundação, se torna um substantivo de impropriedade.
Porque a cada momento que é habitada, ela é outra
Se desloca e se torna um lugar nomeável.
Daí queremos conhecê-la, traçar seus limites e suas altitudes.
Estamos prestes a alcançar nosso ponto zero, Mas eu não sei mais se devo nomear esta ilha.
Daqui é possível enxergar uma formação rochosa no horizonte,
Ela é uma linha tortuosa e comprida,
Que se estende desde a serra do mar até o ponto onde estamos. Delineio o espaço com os olhos como quem desenha as ondas do mar vistas da praia,
mas essa ilha não tem praias.
Queremos atracar o barco em algum de seus portos, mas não há portos na ilha.
A ilha tem uma bandeira em seu cume,
É possível vê-la balançando nervosamente com o vento.
Tento desenhar o cume da montanha
Mas o mapa parece o mar visto de baixo novamente.
Seria preciso determinar de qual eixo estou falando em cada uma das superfícies:
eixo x, eixo y e eixo z.
Estes são os eixos que determinam se estamos entre a terra e o céu.
Mas ao ultrapassar os limites do papel, notamos que não há indicação sequer de que aqui é a terra, em cima é o céu e lá é a ilha.
O Nome é uma Ilha
Porque já houveram outras que passaram por aqui para fundá-la,
Porque o Nome diz respeito a um corpo, E acho que ele deveria dizer respeito, também, Aos outros corpos que navegam por este, Aos outros corpos que também carregam seu nome, Moldando não um corpo, mas um arquipélago
Arquipélago de ser, De isolamentos e agrupamentos de si,
Atravessado por pessoas como eu e você,
Que decidimos correr esse risco.
O Nome é uma Ilha porque comumente não escolhemos nosso nome,
Somos fundados por quem nos atravessa
Fundações que vamos descobrindo
Cavando nossos outros nomes,
Os nomes da Ilha que estamos esquadrinhando,
E as tantas fundações anteriores que foram erguidas em sua geologia.
Na medida em que esse território herda um nome,
Tal escrito desenha seu papel desempenhado como lugar.
Quando nomeamos uma ilha, Ela passa a ser circunscrita sobre essa nomeação.
Estou tentando te convencer de que não é preciso dar nome às ilhas que pretendemos habitar e fundar
De que talvez, por uma travessia mais cabível
Seja a partir da desidentificação.
A desidentificação é um processo que corpos não-conformativos utilizam
Como ferramenta político-identitária
Para refundar seus corpos
E esquadrinhar outras possibilidades de ser
Nesse oceano de travessias,
A partir de uma percepção de impropriedade.
De se tornar um lugar impróprio, Um corpo impróprio,
Um mapa da travessia impróprio.
Talvez, para isso, seja preciso desfincar nossas bandeiras
Abandonar a necessidade de um porto seguro
Desenhar mapas mais como uma criança.
É a partir dela,
Desta ilha que ainda não chegamos
Neste mapa do oceano
Em que percebemos as distâncias
Da tentativa de fundar nossos lugares, Nossas travessias,
E daquilo que podemos chamar de Ilha.
Fugir da paisagem, habitar os cantinhos, o lugar de sombra, eu e a ilha, a parte de mim em Urano, a parte de mim aqui, no espaço, nesta localização, o mapa que me segue, a sombra que se segue, o espelho, um pedido consentido, as línguas que me deram um nome, você é o espelho, a paisagem habitada, o lugar praticado, eu e você, você também tem uma parte de si em Urano, você também tem um mapa que te segue, um corpo que paga com o próprio nome, a impropriedade, parte da cidade, parte do corpo, parte do eu, os cantinhos de Urano que habito escapando, tudo isso é a fronteira, o delimitador, a linha de fuga pontualmente organizada no papel, eu e você nesta borda do humano e não-humano, nós é o deserto, desertar é ir para o deserto que habita em nós mesmas, meu nome é impróprio, sou uma ilha com um nome herdado, nós uranistas, eu e você no limiar, indefinição, indefinido, infinito, o mar, a ilha que emerge de um vulcão, imagens de dor, setenta cavalos soltos na serra do mar, uma escrita delirante, um desenho de alucinações, uma parte cega da linha, uma ponta amolada de faca, um traço incisivo na carne, dois pontos, impróprio, meu nome próprio, tudo tem seu duplo, a falta precede o exagero, e por isso vejo o oceano do lado de cá, cartografado, esquadrinhado, o impossível, vidas impossíveis, eu e você na serra do mar, na falésia, na dor da faca cega, nos traços do corpo, nas travessias de vida, me atravesso em você, você é quem quero atravessar, te vejo de longe e digo que é o mar, a dor, o tesão, a enxurrada do eu, e a sua sombra que te persegue seu nome que se paga com o corpo, o meu nome que paga com o corpo, paga caro pela sua sobrevivência de mulher, que já não é mais aqui, na cidade, a paisagem que quero fugir, habitar os cantinhos, o lugar de sombra, eu e a ilha, a parte de mim em Urano
sobre O Nome é uma Ilha, 14 de setembro de 2023