Ensaio Bodisatva
Budismo & Transformação de Mundo
1
ÍNDICE 04
Editorial
Darma na Vida Cotidiana 82
Arte, mundo interno e ação no mundo
Palavras do Lama 06
Avidya coletiva
Roteiro de Prática 86
Meditação da atenção introspectiva
ESPECIAL: 12 14 20 30 38
Silêncio em Movimento Zen e ação social
68
Mestre Tokuda
Ativismo e compaixão inseparáveis Arte Zen Entrevista Kaz Sensei
Ensaio 42 52
Mahasanga 90
Um universo dentro do pincel
Artigo 94
Gaia e a flecha envenenada
Bodisatva.com.br 102 O fundamentalismo não é pessoal, é uma atitude
Uma xícara de chá e outros koans Zen ilustrados
104 Aberto para Perguntas
Visão
107 Darma & Arte
Artistas e o samurai desempregado
111 Ponto Final Entrevista 76
Chagdud Khadro
Design_ Aline Paiva
O propósito principal do Sutra do Coração é explicar a prática central no budismo mahayana que, como o título sugere, é a realização da sabedoria além da sabedoria. Realização nada mais é do que concretização, e sugere que tudo relacionado ao sutra não é apenas uma investigação intelectual, sendo, também, prática – prática de meditação.
Acesse o site e cadastre-se para saber de todas as novidades. Enviamos para todo o Brasil: www.lucidaletra.com.br facebook.com/LucidaLetra
@lucidaletra
COLABORAM NESTA EDIÇÃO José Eishin Fonseca
Praticante budista, jornalista, um dos fundadadores e, por muito tempo, editor da revista Bodisatva.
EXPEDIENTE
Alessandra Destro Pizzigatti
Idealizador do projeto: Lama Padma Samten
Musicista e tutora do CEBB, Alessandra conheceu o Lama Samten em 1996 e vem se dedicando integralmente ao budismo desde 2005. Hoje vive na Aldeia CEBB Mendjila em SC, onde colabora com as atividades locais.
Davi Carneiro
Jornalista especializado em viagens pela Universitat Autònoma de Barcelona, Davi já esteve em 33 países e vive há quatro anos em Bucareste, na Romênia. Escreve sobre viagens, literatura e budismo Soto Zen: http://davicarneiro.com.br/blog/
Fábio Rodrigues
Tutor do CEBB, artista visual, professor do programa Cultivating Emotional Balance, cofundador do olugar.org. Mora em Joinville e trabalha apoiando espaços de transformação por meio da arte e da meditação. Para saber mais: artecontemplativa.com
Monge Edu Chōshin
Monge Edu Chōshin (Eduardo Chianca) é discípulo de Mestre Tokuda. Nasceu no Recife, em 1983. É secretário da SSZB e do Eishō-ji. Formou-se em jornalismo pela UFPE e trabalha como assessor de comunicação. Atualmente, integra o Centro Zen do Recife.
Erik Pema Kunsang
Tradutor de escrituras budistas antigas, “construtor de pontes” para a vida moderna, autor, professor budista e instrutor de meditação, membro do conselho diretor de 84000: Translating the Words of the Buddha, fundador da Rangjung Yeshe Publications e LEVEKUNST art of life.
Daniel Gisé
Natural de São Paulo, Daniel Gisé é formado em artes visuais pela UNESP. É arte educador, quadrinhista e ilustrador. Dá aulas de desenho na ABRA e na Fundação Casa em São Paulo.
Equipe editorial e de redação: Lia Beltrão, João Vale, Janaína Araújo e Luís Indriunas Jornalista responsável: Lia Beltrão - DRT 5855 PE Projeto gráfico e diagramação: Diego Navarro Revisão final: Dirlene Ribeiro Martins, Stela Santin e Guilherme Erhardt Comunicação on-line: Lilian Tavares, Polliana Zocche e Elen Cézar Distribuição e comunicação: Lorena Sousa e Rafaela Valença Anúncios: Lilian Tavares e Polliana Zocche Palavras do Lama: edição por Janaína Araújo, João Vale e Lia Beltrão; transcrição de Claudia Allegro || ESPECIAL - Zen e ação social: texto por Davi Carneiro | Ativismo e compaixão inseparáveis: texto por Lia Beltrão; edição por Fábio Rodrigues, Dirlene Ribeiro Martins e João Vale | Arte Zen: texto por Janaína Araújo, Luís Indriunas e João Vale | Entrevista Kaz Sensei: entrevista por Henrique Lemes e Lia Beltrão; tradução para o inglês (perguntas) por Javier Gómez; tradução para o português (respostas) por Lilian Moreira Mendes || ENSAIOS | Um universo dentro do pincel: abertura por Lia Beltrão; seleção de
obras por Fábio Rodrigues e Diego Navarro | Uma xícara de chá e outros koans Zen ilustrados: abertura por Stela Santin; seleção de koans por Lia Beltrão e Stela Santin; articulação: Polliana Zocche; créditos dos tradutores e ilustradores na própria matéria || Visão - Artistas e o samurai desempregado: abertura por Lia Beltrão; tradução por Marcelo Nick; revisão de tradução por Caroline Souza; ilustração por Diego Navarro || Entrevista Chagdud Khadro: entrevista por João Vale; transcrição e tradução por Sophia Araripe, Louise Machado, Bruna Crespo, Cintia Ceccarelli, Marcelo Nick, Kátia Mafra; revisão por Jana Macêdo e Dirlene Ribeiro Martins || Darma no Cotidiano - Arte, mundo interno e ação no mundo: texto por Fábio Rodrigues || Roteiro de Prática - Meditação da atenção introspectiva: texto por Alessandra Pizzigatti || Mahasanga - Mestre Tokuda: texto por Eduardo Chianca || Artigo - Gaia e a flecha envenenada: texto por José Eishin Fonseca; ilustração por Diego Navarro|| bodisatva.com.br: texto por Erik Pema Kunsang; tradução para o português por Sandra Coelho; ilustração por Diego Navarro|| Aberto para Perguntas: seleção e transcrição de perguntas por Bruna Crespo || Darma & Arte: articulação e edição por Carolina Martins || Ponto Final: quadrinhos por Daniel Gisé || Todos os textos desta edição foram revisados por Dirlene Ribeiro Martins. Créditos de imagens: Zen e ação social: p. 14: foto por Vitoria Leona; p. 16: foto de Buddhist Peace Fellowship (Stand Up Washington, manifestação pela proibição do porte de armas de fogo e por leis mais sensatas de controle de armas, Seattle, EUA); p. 16: Zen Hospice Project: Frank Ostaseski ao lado de um homem, foto por A. Raja Hornstein, publicada pela Lion’s Roar (https://www.lionsroar.com/how-will-youdie/); p. 17: Lama Padma Samten e Bernie Glassman (fundador do Zen Peacemakers) no CEBB Caminho do Meio, foto por José Guilherme Benetti Marcon; p. 17: Thich Nhat Hanh com crianças em Plum Village, onde há mais de trinta anos desenvolve um trabalho de mindfulness e compaixão com crianças, pais e educadoras(es), foto publicada pelo UCSD Center for Mindfulness (https://ucsdcfm.wordpress. com/2012/06/); p. 17: Mosteiro Zen Morro da Vargem, fotos por Vitoria Leona || Arte Zen: p. 30: artista Fernando Duarte, fotos por Eraldo Andrade; p. 32:
(acima) Árvores parque da cidade - reprodução de óleo sobre tela de Fernando Zenshô, (abaixo) O touro está por hora manso - reprodução de óleo sobre tela de Fernando Zenshô - imagem do livro O monge o touro; p. 33: a dançarina Shundo Emile Sugai no espetáculo O monge e o touro, no Templo Taikozan Tenzuizenji, no Pacaembu, em São Paulo (30/07/2017), por Genzo André Spinola e Castro. p. 34: 40 anos, 40 encontros performance inspirada na cerimônia do chá de Erika Kobayashi, no Viaduto do Chá, São Paulo, 2016, por Caio Loureiro; p. 35: (acima) A menina e as sombras, Parque da Independência, São Paulo, SP, 2011, por Genzo André Genzo Spinola e Castro, (abaixo) Chá, Templo Taikozan Tenzuizenji, 2012, por Genzo André Spinola e Castro; p. 36: (acima) desenho de Sofu Roberto Mello, da série Ar, técnica mista: nanquim, acrílico e papel, (abaixo à esquerda) desenho de Sofu Roberto Mello, da série Ar, técnica mista: nanquim, acrílico e papel, (abaixo à direita) Monja Waho Sensei no espetáculo Therighata - As Mulheres Antigas, no Templo Taikozan Tenzuizenji, foto: Genzo André Spinola e Castro; p. 37. imagem de telas pintadas por Tiffani H. Gyatso. Agradecimento especial a Fábio Rodrigues, que gentilmente se colocou como ponte entre nós e seu mestre, Kazuaki Tanahashi, nossa grande inspiração nesta edição.
A revista Bodisatva é uma publicação do Centro de Estudos Budistas Bodisatva (cebb.org.br). Se você quer ser um apoiador permanente, anunciante ou colaborar de outra forma com este projeto, entre em contato: bodisatva.com.br/apoie
Tiragem desta edição: 1500 exemplares A sede da Bodisatva está localizada no CEBB Caminho do Meio, Estrada Caminho do Meio, 2600 Viamão-RS CEP: 94.515-000 revista@bodisatva.com.br instagram: @revistabodisatva facebook.com/revistabodisatva
Editorial Amigos e amigas, Esta edição de aniversário da revista Bodisatva volta às origens. Reencontramonos, como em seu nascimento, em 1990, com o silêncio e o ensinamento curto e direto da tradição Zen. Mas desta vez, inspirados pela vinda de Kazuaki Tanahashi ao Brasil, exploramos aquilo que vai além da almofada e que reverbera do zazen para o mundo em duas manifestações: arte e ativismo. A expectativa pela chegada desse multifacetado mestre trouxe à tona perguntas que, nestes tempos de verdadeiros desastres políticos, sociais e ambientais em nosso país e no mundo, muitos praticantes do Darma têm se feito. É realmente possível praticar os ensinamentos do Buda em meio a este mundo que grita em dor e agressão? Sabedoria é silêncio ou é ação? Como acalmar nosso coração e se relacionar com todos os seres com o mesmo olhar de compaixão e amor? O planeta parece ter sido fatalmente atingido por uma flecha, envenenada com nossa própria ignorância, como reflete José Eishin Fonseca em Gaia e a flecha envenenada. Ainda assim, a vida de Sensei Kaz é uma prova de que a ação lúcida é possível. Certamente, ele contemplou profundamente as regiões de Avidya coletiva de nosso tempo, da qual nos fala o Lama Padma Samten, e sabe como se mover por dentro delas. As reportagens sobre Zen e ação social, de Davi Carnerio, e Arte Zen, de Luís Indriunas, Janaína Araújo e João Vale, trazem, respectivamente, exemplos de ativistas e artistas que têm feito eles mesmos o esforço de integrar o Darma naquilo que
6
a vida lhes oferece: seja uma tela em branco, seja um grupo de presidiários requisitando aulas de meditação. Esta edição inclui ainda Artistas e o samurai desempregado, um texto original de Trungpa Rinpoche comentando as tradições vajrayana e Zen, e uma entrevista exclusiva com Chagdud Khadro. Em Roteiro de Prática, Alessandra Pizzigatti compartilha conosco a meditação da Atenção Introspectiva e, em Darma no Cotidiano, Fábio Rodrigues, aluno de Kaz Sensei e do Lama Samten, fala-nos sobre seu aprendizado com a arte. Além disso, nesta edição de aniversário inauguramos uma nova sessão, Mahasanga, na qual compartilharemos e celebraremos juntos o movimento de praticantes e mestres de outras tradições, começando com a comemoração dos 50 anos de Mestre Tokuda no Brasil. A cereja do bolo desta edição talvez seja o ensaio Uma xícara de chá e outros koans Zen ilustrados. Um grupo de generosos tradutores, ilustradores e uma boa orquestradora de mandala – Polliana Zocche – tornaram possível este ensaio tão nosso: koans clássicos acompanhados do imaginário de nossa própria sanga. Que esta edição possa servir de inspiração para mantermos, mesmo neste mundo tão turbulento, o coração completamente aberto e seguirmos exercendo o poder que todos temos de criar mundos mais amplos, inclusivos e lúcidos.
Bodisatva | Edição 30
Com carinho, Equipe Bodisatva Junho de 2018
Budismo & Transformação de Mundo
7
Foto: Marcia Gazolla
Palavras do Lama
Avidya coletiva Como desenvolver algum nível de lucidez e uma visão coletiva que substitua a visão da bolha? Como podemos nos movimentar coletivamente?
8
Bodisatva | Edição 30
Palavras do Lama
E
m geral, leva muito tempo para nos interessarmos pela essência dos ensinamentos: as Quatro Nobres Verdades, o Caminho de Oito Passos, a meditação. Antes de chegarmos a essas etapas, todos nos sentimos como uma peça em alguma rede, com muita dificuldade de sair de dentro daquela estrutura, agindo de acordo com um conjunto de relações estabelecidas.
Guerras Mundiais –, que nasceram de acumulações das visões coletivas que se contrapõem umas às outras e que se justificam. Elaboram-se teorias e doutrinas nacionais para expressar aqueles tipos de visões, e depois elas se chocam entre si. Logo após, criam-se eventos fictícios para justificar um movimento totalmente desproporcional.
Dessa forma começam-se não só as guerras, mas os movimentos e as visões macro, que vão sendo desidratadas e desmanchadas. Elas se Podemos até parar e desenvolver liberação chocam no espaço sutil, e no espaço grosseiro vão sobre uma visão própria de mundo, sobre como dando outros resultados. Vemos hoje os radicais vemos as realidades, a partir de um treinamento da mente. Mas também podemos chegar a algum islâmicos explodindo cidades, mas lembrem-se lugar, olhar e perceber que dos dez mil judeus mortos as imagens que chegam à por mês em escala indus“Estamos usando o trial. Como alguém se nossa mente são reforçadas aspecto luminoso das organiza para fazer algo tão coletivamente por uma horrendo? visão de grupo, uma visão nossas vidas de uma cultural. forma densa, presa à Visão econômica – As perda da visão, e por abordagens econômicas Gostaríamos de fazer algo mais profundo, mas isso ficamos sem rumo, presentes se sustentam de modo sutil e luminoso. O estamos todos sem capacidestrutivos.” valor econômico depende dade de nos levantar e fazer disso, pois não há algo que outras coisas. Nossas peças valha por si só – tudo é estão presas, e ajudamos também os outros a ficarem presos em suas visões diretamente ligado a uma visão sutil. da realidade. Desta maneira, estabelecemos o O modelo econômico atual inclui trabalhar e processo que chamamos de avidya individual e se fixar no tempo que falta para a aposentadoavidya coletiva. ria; não há a possibilidade de retiros, méritos, As várias áreas de avidya coletiva compaixão. É muito limitado porque não serve para gerir a nossa vida. Estamos usando o aspecto As bolhas coletivas de avidya são respaldadas luminoso das nossas vidas de uma forma densa, por uma visão comum. É interessante listarmos a presa à perda da visão, e por isso ficamos sem quais bolhas coletivas estamos presos, e há muitos rumo, destrutivos. exemplos disso: a ciência, a visão de nação, os elementos da abordagem econômica, as explicações José Lutzenberger relata sobre o período da causais. Existe uma densidade nas visões coletivas Segunda Guerra em que homens buscavam agrie muitos tipos de justificativas. cultores e pediam para trocar pianos por comida. Como resposta, eles mostravam galpões cheios Guerras e nações – Olhamos, por exemplo, de pianos. Não valiam mais nada! Isso é o valor para as grandes guerras – Primeira e Segunda econômico! Budismo & Transformação de Mundo
9
Photo: Mike Wilson (Unsplash)
Palavras do Lama
Uma visão ampla, que vá além do sistema econômico, traz grandes transformações para todo o meio ambiente.
Na nossa bolha atual, qualquer situação social é explicada e substituída pela abordagem econômica. Os níveis de desemprego são estudados dentro da abordagem econômica, que é sinônimo de problema social. A economia flutua, mesmo na zona do euro, onde o desemprego é elevado. Nessa visão, melhorar a vida das pessoas significa apenas melhorar a economia. Visão ambiental – Ao mesmo tempo, todos estamos colaborando com uma bolha coletiva e destruindo o meio ambiente. As pessoas geram esgotos não tratados que seguem para dentro do rios. Isso é comovente! Fazem emissários para tratamento, mas as regiões de tratamento não estão prontas. Além disso, há a produção de lixo tóxico,
10
que fica de legado para as gerações futuras. Nos rios e mares, os plásticos estão dentro dos animais, sendo ingeridos por eles. Estamos extinguindo todos os espaços selvagens, livres, e provavelmente teremos a extinção disso. Olhem um parque, aquilo não é uma floresta, porque não tem sucessão. O espaço selvagem tem uma sucessão natural, onde os animais e plantas têm liberdade de ação. Sempre tem algo surpreendente, e esse processo depende da diversidade das sementes, dos animais, dos ventos. Uma planta organiza o espaço para que outras plantas venham, numa sucessão natural. Mas não temos mais espaços livres, as árvores estão colonizadas, limitadas,
Bodisatva | Edição 30
Palavras do Lama e não percebemos. Surge também o pensamento de que árvore é uma coisa perigosa dentro da cidade. Isso é um tipo de visão na qual não vemos a sucessão e não enxergamos o processo natural. Povos originários – Nos tempos de avidya coletiva, não damos significado e não nos relacionamos com os povos originários. Já se passaram 500 anos no Brasil e não sabemos o que fazer. Eles são sobreviventes desse processo e nem conseguimos entendê-los. Há um toldamento da visão, pois não conseguimos ver.
Como podemos nos movimentar coletivamente? No budismo Vajrayana surge a noção da Mandala como uma experiência individual e coletiva. Se estamos treinando dentro do aspecto da Sabedoria Primordial, percebemos a liberdade da condição luminosa e vazia. Nesta condição, conectamo-nos a diferentes inteligências que brotam da experiência primordial.
Ou seja, o Buda Primordial emana diferentes visões. Uma dessas inteligências pode ser Chenrezig. Olhamos com compaixão todos os seres, Violência – Na questão da violência e insegureconhecendo sua natureza búdica, ilimitada. E rança, vamos convivendo como se fosse natural. A partir disso, surge o adoecimento psicológico, vemos que esses seres, ao se reconhecerem como como depressão, os aspectos psicóticos, as doenlimitados, estão inevitavelmente presos ao sofriças sociais epidêmicas, e os mento ilusório, possuindo surtos afloram. Retiramos as apenas as alternativas “ Tudo parece lúcido, pessoas e depois isolamos, que eles veem dentro das mas nada disso funciona parece natural. A ciência bolhas. como tratamento.
parece natural, as explicações históricas existem para confirmar tudo. Isso é avidya coletiva. Ela nos administra, nos educa, nos ensina a aprender e responder dentro disso.”
E o que acontece? No meio disso, vamos nos movendo e parece que estamos indo bem. Essa é a sensação da bolha: estamos fazendo a nossa parte. Mas aquilo está se acumulando e vai dar problema. Avidya é um fenômeno, uma ação não perceptiva. Aquilo atua, mas não vemos que está atuando e não vemos a limitação da visão. Tudo parece lúcido, parece natural. A ciência parece natural, as explicações históricas existem para confirmar tudo. Isso é avidya coletiva. Ela nos administra, nos educa, nos ensina a aprender e responder dentro disso.
Para superar avidya coletiva, uma visão de lucidez coletiva Como desenvolver algum nível de lucidez e uma visão coletiva que substitua a visão da bolha?
Pode brotar também a inteligência de Prajnaparamita, olhando tudo e vendo a vacuidade, luminosidade, o aspecto extraordinário do surgimento de todas as coisas, e o fato de que, mesmo que as coisas tenham surgido, não há solidez. As diferentes inteligências búdicas produzem diferentes inteligências de mandalas. Este aspecto é coletivo porque tudo o que aparece em diferentes lugares é uma multiplicidade de seres e experiências. Surge, assim, uma visão coletiva que agora brota da lucidez. Os bodisatvas entram ativamente no ambiente do mundo e não esperam que os seres acessem a compreensão da visão das várias mandalas imediatamente.
Budismo & Transformação de Mundo
11
Palavras do Lama Complementaridade e linguagem apreciativa Hoje, não é mais o tempo de uma visão final única. Precisamos da complementaridade: diferentes visões e estruturas dialogam e se enriquecem umas com as outras. Mas o que fazer diante dos conflitos inerentes ao choque de visões? O processo crítico é um problema porque não ajuda o outro a flexibilizar. É preciso encontrar uma agenda comum, ou seja, algo com que todos concordem que seria favorável. Precisamos, assim, de um processo que encare a existência do conflito e tente, quando não extingui-lo, pacificá-lo. Surge, então, um software que podemos chamar de linguagem apreciativa.
A conversa apreciativa pode surgir onde o conflito é inevitável, ou em um ambiente mais favorável, onde o conflito pode se resolver. É realmente possível reduzir o conflito, resolver algumas coisas e elaborar uma pauta conjunta. Com os povos originários, podemos elaborar uma pauta conjunta, pois todos precisamos da terra. O agronegócio e o movimento ecológico podem ter uma pauta conjunta, mesmo com visões diferentes. Se o agronegócio lembrar que o rio precisa existir, na medida em que entenderem isso, eles não vão apenas colocar um cabo e bombear um rio que passa na frente de casa, mas vão pensar de forma ampla e tentar proteger o rio de maneira ampla, para manter o equilíbrio. A bolha da visão exploratória e autocentrada não funciona. Se mantivermos um ambiente equilibrado será bom para todos; do contrário, todos vão perder. Temos, assim, uma pauta possível.
Vamos supor: nós somos inimigos. Estamos nos matando, mas estamos no mesmo barco. A conversa apreciatiDestruímos o barco va, dentro de visões de em que nós estamos ou bolhas coletivas mais vamos continuar lutanReunião de mandala no favoráveis, pode fazer do dentro desse barco? CEBB Caminho do Meio, Viamão(RS) surgir novas perspectiEntão, combina-se vas e ajudar as pessoas a uma agenda apreciativa andar melhor no mundo. Não há como escapar de na qual concordamos, no mínimo, que ninguém abordar esta questão – o efeito coletivo de avidya destrói o barco!
12
Bodisatva | Edição 30
Palavras do Lama se exerce sobre os praticantes e sobre as pessoas que queremos proteger. Uma ação nesse nível é interessante porque trabalha diretamente com a própria sabedoria: vacuidade e luminosidade.
para aprofundar nossas compreensões, das nossas mentes, dos seres, do universo. Esse aspecto coletivo é inseparável do aspecto individual; estão todos juntos.
O praticante e a cultura de Terra Pura
Se restringirmos ao aspecto individual, vamos dizer que o mundo é ilusório, tudo surge e cessa, não se fixa em nada; não há como andar neste mundo e chegar a algum lugar. Mas Chenrezig ajuda a configurar novas perspectivas como mandalas e terras puras.
O budismo tem uma função dentro de uma perspectiva coletiva. Esta função é inescapável, porque, ao sairmos de um retiro, com que olho veremos as aparências? Com o olho que reifica e consolida a bolha? Se olharmos assim e construímos desse modo, o retiro terá sido inútil e faremos todas as atrocidades novamente.
Atuando desse modo, não estamos presos a nenhuma filosofia, nenhum movimento político ou a uma visão psicológica. Usamos a base da Ao repousarmos em uma visão mais elevada, compreensão de como esta realidade se estabeleproduzimos sonhos mais ce. Isso é um compromisso elevados, ajudamos uns para trazermos benefícios “Geramos, assim, uma onde estivermos. Assim, aos outros. Isso reforça a capacidade de cada um ser cultura de Terra Pura, vamos estudando e adicioo agente da sua realidade, nando outras visões, em uma nova estrutura um patrocinador do seu vários níveis, nos conecmundo. Isso nos tira da potando com as múltiplas reque aproveita os sição na qual pertencemos à flexões e contribuições das vínculos e é capaz avidya coletiva. diversas áreas do conhecimento. Geramos, assim, de sonhar.” Há 500 anos demandauma cultura de Terra Pura, mos e esperamos de uma uma nova estrutura que dimensão de poder a solução para as nossas aproveita os vínculos e é capaz de sonhar. vidas. Pedimos ou, quando muito, endurecemos. Agimos como se não fôssemos patrocinadores Não nos afastamos das pessoas, mas vamos, dos nossos sonhos, das realidades e da auto-orga- através da visão apreciativa, nos vinculando cada nização da própria vida. vez mais, de forma coletiva. Quando estamos vinculados uns aos outros, tudo faz muito mais Nesse processo, que chamamos de mandala de sentido. Realmente nos vemos como iogues e Chenrezig, nos colocamos em marcha indeioguinis do cotidiano! Não temos vontade de pendente dos recursos financeiros. As moedas sair do mundo, pois descobrimos que temos algo reduzem tudo a uma perspectiva econômica, mas muito mais amplo para oferecer. é melhor entender primeiro que existe uma rede viva que dá forma a uma estrutura social, e essa estrutura dá sentido ao movimento econômico. Este texto é uma transcrição e edição do ensiEntão, precisamos entender que o mundo sempre namento oferecido pelo Lama Samten em 18 de é construído por nossas visões. O mundo é vazio fevereiro, último dia do Retiro de Verão 2018, e luminoso! O mundo é o laboratório perfeito que aconteceu no CEBB Caminho do Meio. Budismo & Transformação de Mundo
13
ESPECIAL
Especial
Silêncio em movimento Arte e ativismo Zen
Milagres de Cada Momento| Miracles of Each Moment Acrílica sobre tela, 14,5 x 16 cm 2016
14
Bodisatva | Edição 30
ESPECIAL
P
or trás da calma, o Zen é um mundo intenso. Existe mesmo este adágio budista de que, quando um monge Zen deseja transformar algo, ele apenas senta. “Apenas sentar” é seguir as instruções do zazen, mas não só. É também estar na inteireza, aqui e agora. A experiência de Kaz Sensei – que acredita que qualquer grande professor é também um artista – foi a inspiração para os textos que compõem este Especial. O Kaz se lançou como um pássaro em questões cruciais para a sua época. Como professor do Darma, artista e ativista, integrou de tal forma visão e ação que, quando encontramos mesmo um de seus enzos, ou círculos Zen, entendemos a força da sua vida – também ela, uma forma de arte.
Os textos que seguem contam, também, algo sobre nosso tempo: estamos diante de muita desconexão. Corpo e mente de um lado; energias, do outro. Insistimos em conexões virtuais sem afeto, mas com muita opinião. Rotulamos e diagnosticamos. Falamos até nos inflamar. Enquanto fazemos isso, o mestre segura firme o pincel, faz um traço perfeito na tela com o corpo-mente-coração. Como é hipnotizante ver a ação de mulheres e homens que, cotidianamente, caminham na complexidade de situações aparentemente desoladoras para oferecer sua solidariedade. O mestre está ali, pincel na mão, e não pensa sobre a tela, mas deixa a arte surgir no momento. O ativista – nós – estamos ali, no meio da confusão do mundo, mas nosso coração permanece inabalável e, ainda assim, completamente aberto. Na arte e no mundo social, o budismo Zen – a principal herança do Mestre Dogen – tem em comum a premissa de uma integração radical. Não se pode acreditar que o samsara é um lugar e o nirvana é outro. Não se pode praticar Zen pela metade.
Budismo & Transformação de Mundo
15