ANO XVIII
| Edição 29 | Verão de 2018
O SOM FEMININO DO DARMA Lama Padma Samten nos fala sobre Arya Tara As canções das mulheres anciãs | Entrevista com a primeira Gueshe-ma Mulheres de sabedoria por Tiffani Gyatso | Mbya-Guarani na terra de Nhanderú Roteiro de prática com Henrique Lemes | Entrevista S. Emª Kunga Rinpoche
“Stay and Listen” por Tiffani Gyatso
ÍNDICE 07
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Especial O som feminino do Darma Therigata: canções das antigas mulheres A primeira Gueshe-Ma Polifonia feminina
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Visão Além de exagero e negação
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Darma na vida cotidiana Para abrir o coração
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Roteiro de prática Sentando com todos os seres
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Artigo Uma pulga atrás da orelha
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bodisatva.com.br O papel da mente na saúde Quatro dias pelas ruas de São Paulo
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Aberto para perguntas
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Arte & Darma
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Ponto final Quadrinhos por Daniel Gisé
Palavras do Lama Saudando Arya Tara
Ensaio A terra é de Nhanderú Mulheres de sabedoria
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Editorial
Entrevista S. Emª. Kunga Rinpoche
Design_ Aline Paiva
A Lúcida Letra é uma editora focada em livros sobre budismo e meditação, publicados com critério e cuidado. Alguns autores do catálogo: Chögyam Trungpa Rinpoche, Dzogchen Ponlop Rinpoche, B. Alan Wallace, Jetsunma Tenzin Palmo, Tenzin Wangyal Rinpoche, S.S. Dalai Lama, Dzongsar Khyentse Rinpoche entre outros.
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COLABORAM NESTA EDIÇÃO José Eishin Fonseca
Praticante budista, jornalista, um dos fundadadores e, por muito tempo, editor da revista Bodisatva.
Tiffani Gyatso
Especializada em Thangkas,Tiffani realiza workshops no Brasil e outros países e promove retiros de arte em seu espaço nas montanhas, o Atelier YabYum. Anualmente promove Art Trips para Índia.
Henrique Lemes
Antropólogo e tutor do CEEB, Henrique conheceu o Budismo aos 18 anos e desde então tem se dedicado ao Darma de forma integral. Hoje vive no CEBB Jetavana (RS), onde oferece apoio para pessoas em retiro.
EXPEDIENTE Idealizador do projeto: Lama Padma Samten Equipe editorial e de redação: Lia Beltrão, Janaína Araújo, João Vale e Luís Indriunas Jornalista responsável: Lia Beltrão DRT 5855 PE Projeto gráfico, diagramação e ilustração: Diego Navarro Comunicação on-line: Lilian Tavares, Polliana Zocche e Élen Cezar Revisão final: Dirlene Ribeiro Martins, Caroline Souza, Polliana Zocche e Henrique Lemes
Márcia Baja
Arquiteta e professora de yoga, conheceu o Lama Samten quando tinha 24 anos. Hoje, dedica-se totalmente ao Darma. Mora no CEBB Darmata (PE), onde colabora com as atividades locais.
Leila Massière
É acupunturista pela Escola Tai Ji e pelo IMAM, mora em Recife (PE) e coordena a Shen - Estudos de Medicina Chinesa. Facilita grupos de estudos e meditação no CEBB Recife.
Daniel Gisé
Natural de São Paulo, Daniel Gisé é formado em artes visuais pela UNESP. É arte educador, quadrinhista e ilustrador. Dá aulas de desenho na ABRA e na Fundação Casa em São Paulo.
Nesta edição: O som feminino do Darma: Texto por Lia Beltrão; Revisão por Afonso Leite, Agradecimento especial à Gabriela Araújo por suas sugestões | Polifonia feminina: Texto por Roberta Lira, Lia Beltrão e Janaína Araújo; Revisão por por Cláudia Laux e Dirlene Ribeiro Martins | A Primeira Gueshema: Entrevista por Lia Beltrão; Edição por Luis Indriunas; Revisão por Arildo Dias | Therigatha: Abertura de Lia Beltrão; Seleção de poemas por Lia Beltrão e Carol Souza | Mulheres de Sabedoria: Pinturas de Tiffani Gyatso; Texto de Janaína Araújo | Entrevista Kunga Rinpoche: Entrevista por Janaína Araújo; Revisão por Letícia Garcia e João Vale Neto; Agradecimento especial ao Lama Jigme Lawang e à sanga Drukpa do Recife (PE) | Palavras do Lama: Edição por Luis Indriunas e João Vale; Revisão por Arildo Dias | Aberto para Perguntas:
Seleção de perguntas e Edição por Luís Indriunas; Revisão de texto por Arildo Dias e Dirlene Ribeiro Martins | Palavras do Lama: Seleção de trecho por João Vale; Edição de texto por Luís Indriunas | Visão: Seleção de trecho por Stela Santin; Tradução por Lia Beltrão | Ensaio A Terra é de Nhanderú: Fotografias por Daniel Rezinovsky e Lia Beltrão; Concepção e edição: Lia Beltrão e Helisa Canfield; Revisão: Dirlene Ribeiro Martins | Darma na Vida Cotidiana - Para abrir o Coração: Texto de Márcia Baja; Transcrição e edição por Janaína Araújo; Revisão por Bruna Crespo | Roteiro de prática: Texto de Henrique Lemes; Revisão: Afonso Leite; Agradecimento especial a’O Lugar e Gustavo Gitti | Darma & Arte: Texto por Luís Indriunas, Julya Vasconcelos, Lia Beltrão, Stela Tredice e Carolina Martins | Artes e diagramação (anúncios): Andreia Sol; Fábio Martins, Gastón Santibañez e Lilian Tavares Agradecimento especial à Monja Wahô Degenszajn por sua inspiração, gentileza e por intermediar para que os poemas traduzidos pela Monja Coen Roshi fossem publicados nesta edição. A Revista Bodisatva é uma publicação do Centro de Estudos Budistas Bodisatva (cebb.org.br). É um projeto sem fins lucrativos e se mantém em funcionamento graças à generosidade daqueles que se sentem beneficiados de alguma maneira pelo conteúdo que veiculamos. Nossa aspiração, abençoada pelo Lama Samten, é que a comercialização da revista e a constituição de um rede de apoiadores permanentes permitam que a Bodisatva seja um projeto viável também financeiramente: além de subsidiar nossos próprios custos, a ideia é que, a médio prazo, os praticantes que têm mantido o projeto vivo possam trabalhar de forma remunerada e que outros projetos editoriais possam surgir a partir daí. Se você quer ser um apoiador permanente, anunciante ou colaborar de outra forma com este projeto, entre em contato: revista@bodisatva.com.br
Tiragem desta edição: 1500 exemplares A sede da Bodisatva está localizada no CEBB Caminho do Meio, Estrada Caminho do Meio, 2600 Viamão-RS CEP: 94.515-000 revista@bodisatva.com.br instagram: @revistabodisatva facebook.com/revistabodisatva
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Bodisatva | Edição 29
Editorial Amigos e amigas, A publicação da Bodisatva nº29 marca, no mundo das coisas palpáveis, uma novíssima fase da revista. Menos de um ano atrás, em uma conversa no CEBB Darmata em janeiro de 2017, uma equipe pequena e recém-nascida compartilhou com o Lama Samten a vontade de retomar a versão on-line da revista e dar outra cara para a impressa. Em resposta, as sugestões do Lama foram tantas que nossas canetas mal conseguiam acompanhar! Ele nos deu uma lista de possíveis colaboradores, falou sobre a logística dos anúncios, sugeriu pautas e entrevistados, projetou custos, e deixou clara para nós sua visão editorial para a Bodisatva. Para ele, além de trazer conteúdo que seja verdadeiramente útil para nossa prática – como ensinamentos de mestres e mestras e textos que tragam a visão de praticantes sobre o caminho – a Bodisatva deve ser também um veículo que comunique a visão de Terra Pura, que nos faça ver que é possível agir no mundo a partir de um lugar amplo, de compaixão e sabedoria. Bênçãos e instruções recebidas, começamos a trabalhar com uma equipe que cresce a cada dia. Desde abril, ocupamos a web com dois textos por semana e em outubro o novo site foi lançado. Agora em dezembro, a revista impressa ressurge com novo projeto editorial e gráfico, com tamanho diferente e mais páginas. Foi nossa escolha construir uma revista mais contemplativa, com imagens que nos
levassem para dentro, e tanto as fotos do encontro do CEBB com os Mbyá-Guarani como as pinturas de Tiffani Gyatso encaixaram perfeitamente com esta aspiração. Cada edição vai trazer um conteúdo Especial, e o tema da n. 29 foi uma sugestão do próprio Lama: mulheres e o caminho espiritual. O Som Feminino do Darma traz quatro textos que falam de praticantes e mestras que furaram — com olhos de sabedoria e compaixão — as bolhas das culturas patriarcais às quais pertenciam. Para além de questões de gênero, a tradicional seção Visão traz um trecho do primeiro livro de Elizabeth Mattis-Nangyel — a ser lançado no Brasil em breve. Outro maravilhoso material de inspiração, é o texto de Márcia Baja “Para Abrir o Coração”. Uma linda fala do Lama Samten conecta os ensinamentos sobre as Quatro Nobres Verdades à sabedoria de Tara no artigo Saudando Arya Tara. Inauguramos seções novas, como Roteiro de prática, que traz nesta edição Henrique Lemes falando sobre como sentar com todos os seres, e Darma & Arte, uma expansão deliciosa do tradicional “Darma com Pipoca” para outras linguagens artísticas como literatura e artes plásticas, além, claro, do cinema. Como foi a tradição durante muitos números da Bodisatva, fechamos com um Quadrinho de inspiração zen, para deixar nossa mente com gostinho de abertura, de vida sem ponto final. Nossa mais sincera aspiração é que estas páginas nos ajudem a viver vidas mais lúcidas e com mais amor e compaixão!
Budismo & Transformação de Mundo
Com carinho, Equipe Bodisatva Dezembro de 2017
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Palavras do Lama
Saudando Arya Tara, a natureza feminina 8
Bodisatva | Edição 29
Palavras do Lama Arya Tara é o próprio entendimento de que a natureza dos fenômenos é cíclica e, por isso, ela aponta para o refúgio mais interno: a nossa capacidade aberta e criativa inata.
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rajnaparamita é a condição natural na qual todos os Budas repousam. Ela é chamada de mãe dos Budas. Uma das formas de pensar Prajnaparamita é como Arya Tara, a deidade feminina mais popular no budismo tibetano. Para nós, não é possível um porto seguro que não seja repousar e agir a partir da condição de Prajnaparamita e também de Arya Tara. Isso é fácil de entender quando percebemos que, mesmo durante uma única vida biológica, nós podemos ter várias vidas psicológicas, várias vidas de identidades específicas. Dentro de uma mesma vida, nós vivemos e morremos várias vezes: nas nossas profissões, nos nossos relacionamentos. Essas vidas e mortes são a condição natural da nossa vida. A cada ano, nós fazemos planos, nós vivemos os nossos planos por um tempo, depois esses planos cessam, se completam, dão origem a outros planos, e assim vai indo. Nós temos também ciclos que são mensais, ciclos diários, ciclos que são ideias que a gente tem durante um dia, objetivos curtos. É como quando nós nos reunimos em uma sala para ouvir uma palestra e daqui a pouco vamos todos embora. Então tem um ciclo que começa quando a palestra começa, e o ciclo cessa. É como se estivéssemos condenados a ter experiências cíclicas o tempo todo, ou seja, coisas começam, têm uma duração e cessam. Algumas vezes nós geramos conexões tão intensas nessas nossas vidas transitórias que nós nos afligimos, ainda que essas vidas transitórias cessem. Não é sequer necessário que essas conexões sejam muito relevantes à vida para que a gente se conecte, mas, sejam quais forem elas, nós vamos ter inevitavelmente este aspecto cíclico.
Por exemplo, as crianças começam um jogo — que é um tipo de vida também, mas se o jogo terminar, se aquilo parar, a criança se sente meio mal. Nós estamos vendo a novela num certo horário, se a gente tiver que interromper aquilo, a gente também se sente meio mal. A gente está vendo um filme, aquilo é interrompido, nós nos desajeitamos. A gente está no computador, na internet, a ligação cai, nós já ficamos meio desajeitados também. Então nós temos essas aflições que surgem pela impermanência, pela descontinuidade das nossas experiências. Quando nós começamos um ciclo desses, nós aspiramos a que ele se complete, que ele vá até o fim, então nós temos essa espécie de apego a isso. Nós temos também apegos aos resultados e, por isso, sofremos. Então o Buda vai dizer: dentro da experiência cíclica as nossas felicidades também são impermanentes. Nós temos coisas boas, aquilo dura um tempo e cessa. Aí se diz que há vários sofrimentos, devido a isso. Por exemplo: nós aspiramos à felicidade e, eventualmente, não alcançamos aquela felicidade. A gente não alcança aquilo a que estava aspirando. Então nós sofremos porque não alcançamos. Também nós encontramos objetivamente condições felizes, mas podemos ter medo de perder esta felicidade, aí sofremos porque esta felicidade pode desaparecer. Também nós encontramos situações felizes e sofremos porque, não só a gente podia perdê-la, como a gente perde mesmo. É assim. A gente teve aquilo, não tem mais. Nós encontramos situações felizes, mas vemos seres que têm um “olho pesado” para nossa situação feliz, e a gente se aflige porque eles olham assim.
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Palavras do Lama Outros olham para nós e eles querem arrancar de nós as condições. Outros olham para nós e se sentem agredidos pela nossa felicidade. Nós também, às vezes, temos medo de mudar. Eu estou feliz assim, mas talvez eu não esteja completamente feliz. E se eu mudar? E daqui a pouco eu não quero mais isso que eu quero. Então vocês vão ver que há essa classe de infelicidade também porque a gente obteve exatamente o que queria, mas nesse momento nós estamos em processo de mudança, então aquilo que a gente obteve, talvez agora, justo porque é tão bom, tão estruturado, tão arrumado, tão harmônico, a gente não consiga sair daquilo que lentamente começa a se tornar uma prisão, mas é a prisão que a gente construiu para nós, mas nós já não estamos mais querendo aquilo, nós estamos em um processo de saída.
sejam estáveis. Nós criamos conexões com fatores transitórios, fatores impermanentes. Assim, a nossa felicidade, uma vez estruturada, como está na dependência de fatores impermanentes, esses fatores mudam, a felicidade afunda. Esta é a causa. Não tem outra causa. Vocês não precisam colocar a culpa nas outras pessoas, dizer que elas são as causas. Vocês coloquem no fato de vocês terem se tornado dependentes desses fatores transitórios. Aí o Buda fala a terceira nobre verdade. Ele diz: uma vez que tudo isso é artificial, o sofrimento é construído artificialmente — ele é construído por essas conexões artificiais, uma vez que isso se dá assim, nós podemos nos libertar do sofrimento. Esta é uma boa nobre verdade. Uma nobre verdade otimista, ou seja, todos nós podemos nos libertar do sofrimento e das causas do sofrimento. Nós também podemos ajudar os outros a se libertarem do sofrimento e das causas do sofrimento.
Nós temos sofrimentos porque as coisas mudam, nós temos sofrimentos porque nós mudamos. Nós podemos encontrar dificuldades em qualquer tipo de construção. Tão pronto aquilo se estabelece, nós temos sofrimentos. Assim, o Buda diz: essa é a primeira nobre verdade. Todos nós estamos submetidos a estas circunstâncias. Aí o Buda formula a segunda nobre verdade. Ele diz: os seres, eles vivem isso, mas isso não é natural. O sofrimento não é natural. O sofrimento é construído. O sofrimento é construído por causas, por artificialidades, e estas artificialidades dizem respeito ao fato de que nós passamos a nos estruturar através de relações transitórias. Nós não estabelecemos causas de felicidade que
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Então, é justo porque há essa terceira nobre verdade, que nós podemos nos conectar com Prajnaparamita e Arya Tara, porque essas qualidades não são nossas. Não somos nós que praticamos, não fomos nós que inventamos isso. Por exemplo, quando a gente diz: eu vou praticar compaixão, ou amor, nós não podemos dizer que compaixão e amor sejam nossos. Eles são tão nossos quanto a Lua que nós vemos numa poça d’água no chão, numa noite de luar. A Lua não pertence à poça d’água e, assim, quando vocês se relacionarem com essas qualidades de Tara, vocês estão se relacionando com algo muito mais amplo.
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Palavras do Lama Quando nós nascemos, nós já encontramos a expressão de compaixão e de amor. Quando nós morremos, as expressões de compaixão e de amor seguem. Então, na verdade, nós estamos fazendo contato com algo realmente maravilhoso.
No Tibete, falam-se de vinte e uma qualidades de Tara, mas, na verdade, são muitas mais. Porque Arya Tara é o próprio entendimento que a natureza dos fenômenos é cíclica e, por isso, ela aponta para o refúgio mais interno: a nossa capacidade aberta e criativa inata. Este é o ponto. Esta condição aberta e criativa, quando acessada, tem o poder de transformar o ambiente interno e externo, de ajudar os seres.
Eu me alegro especialmente porque a prática de Tara manifesta a conexão de sabedoria através da forma feminina.
Isso é especialmente maravilhoso, porque a forma feminina sustenta o mundo. É maravilhoso que a gente possa ver a forma feminina, sendo o lago encantado onde a Lua da natureza ilimitada se manifesta.Vocês devem lembrar que nós não somos nem homens nem mulheres, mas a natureza feminina existe. A natureza feminina, ela construiu o mundo. Ela constrói, sustenta, ela acalenta o mundo todo. Então ela é um lago acolhedor, encantado, onde a natureza ilimitada pode refletir e se manifestar. Cada um de nós tem uma vida curta, mas a natureza feminina, ela é construída também, e ela tem uma expressão muito mais longa do que uma única vida humana. Então é encantador nós combinarmos, nós permitirmos que essa natureza ilimitada, ela se reflita nas nossas naturezas mortais, e também ela se impregne de forma perfeita à natureza feminina. Então essa combinação maravilhosa da mãe do mundo com a natureza de Buda produz Arya Tara. As qualidades de Arya Tara são diversas e incluem a qualidade de ser uma heroína corajosa, de destruir as negatividades e de sorrir diante das aparências. Como é possível tantas qualidades?
Entender a manifestação de Arya Tara, Guru Rinpoche, Tcherenzig no mundo é ver de maneira mais nítida a quarta nobre verdade: há um caminho através do qual todos os seres podem atingir a liberação. Ao nos aprofundarmos nesse caminho, deixamos de nos ver como seres isolados. Nós só existimos em processos de relação.
No budismo se diz: quando você estabelece relações positivas ao redor, na verdade você surge através de relações positivas. Não é que você seja alguém e aí tenha relações positivas com o mundo. Você se constrói através de relações positivas. Então a primeira recomendação do Buda é essa: você não crie relações negativas. Não crie sofrimentos no mundo. Não produza ações de aflição sobre os outros. Não se construa a partir de relações negativas. Surja através dessas relações positivas. Esse é a forma que temos de cultivar a inteligência de Arya Tara dentro de nós na nossa vida.
Este texto foi extraído do ensinamento proferido pelo Lama Padma Samten em 2004, no Museu da República do Rio de Janeiro, a convite da Mandala de Tara.
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ESPECIAL
Especial
O som feminino do Darma As poderosas vozes das primeiras mulheres budistas da Índia e do Tibete
“Para que as mulheres encontrem caminhos viáveis para a liberação, nós precisamos da inspiração de outras mulheres que tenham conseguido permanecer fiéis às suas próprias energias sem se tornar fixadas a seu gênero e que tenham, com esta integridade, atingido completa liberação.” Lama Tsultrim Allione Foto: Cristian Newman
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ESPECIAL
“A história que aprendemos é a história dos homens, das guerras, das conquistas. A história das mulheres ainda não foi contada e precisamos que seja.” Lama Padma Samten
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som das vozes que têm transmitido o Darma do Buda às gerações e gerações de praticantes tem sido um som predominantemente masculino. No budismo tibetano, até à diáspora, monjas não tinham treinamento filosófico, muitas delas sequer eram letradas, e suas práticas religiosas eram restritas a rituais e performance de cerimônias. No budismo japonês, ainda hoje em muitos templos e centros de prática, praticantes repetem solenemente todos os dias o nome daqueles que sustentaram a linhagem desde o tempo do Buda: sempre homens. Até recentemente, uma monja ordenada tinha que obedecer a oito preceitos a mais que um monge — sendo que o primeiro afirma que, ainda que ela tenha cem anos de ordenação e um monge um dia, ela deve se curvar diante dele e considerá-lo superior. Ainda assim, desde que a primeira mulher se colocou diante do Buda para ouvi-lo e alcançar a liberação, uma legião de outras tem tomado o mesmo refúgio e avançado no caminho até a iluminação para benefício de outros seres de forma desimpedida e completa. Além de terem sido desafiadas a ultrapassar os obstáculos internos e mais sutis de sua própria mente, essas mulheres enfrentaram obstáculos externos típicos das sociedades patriarcais às quais pertenciam. Quer estas mulheres vivessem em um ambiente explícito de repressão que tolhia sua liberdade espiritual, quer as amarras que lhes impediam a liberação fossem mais sutis e internas, os relatos de como elas fizeram a transição de seres comuns para grandes praticantes, arhats ou budas, merecem ser contados a partir de suas próprias vozes. Considerada por muitos estudiosos uma linhagem perdida, esse conjunto de vozes femininas se apresenta nos dias de hoje não como um fio, linear e reto, mas como um magnífico mosaico de diferentes formas, texturas e cores. Ou como um coro de incontáveis vozes, ressoando sons femininos de sabedoria e compaixão.
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ESPECIAL
Um templo de muitas mulheres Nas pinturas de um templo budista aos pés dos Himalaias indianos, encontramos uma bela imagem do Buda Shakiamuni em uma parede nobre, à direita do altar. Do outro lado, à esquerda, com o mesmo tamanho e com uma aura de mesma cor e intensidade da do Buda, vemos uma mulher de cabelos brancos. O Buda e esta mulher formam uma sugestiva simetria em relação a nós que os miramos.
muitas discípulas, cada uma com seu nome, figuras de uma história ainda pouco conhecida. Em cada espaço do templo flutuam monjas, ioguines e dakinis. Sempre coloridas, mulheres que dançam, meditam, trabalham. E aos pés do próprio Buda e de Mahapajapati, vemos vinte e quatro discípulas: mulheres cujas vidas foram impactadas pelo encontro cara a cara com o próprio Buda e que graças à intervenção desta “senhora corajosa e persistente”, como diz Jetsunma, puderam entrar no caminho da mendicância. Uma história que, saibamos ou não, tem a ver com a nossa.
Este templo foi idealizado e construído pela Uma senhora com o Darma no mestra budista Jetsunma Tenzin Palmo e a mucoração em uma poderosa lher de cabelos brancos com a mesma aura do conjunção de eventos Buda é Mahapajapati Gotami, a primeira monja budista e a responsável por fazer com que o camiMahapajapati era irmã de Maya, mãe do príncinho para a liberação do sofrimento apresentado pe Sidharta. Ambas eram esposas do Rei Suddhopelo Buda fosse extensivo às mulheres. Em um dana e quando Maya morreu, pouco depois do ensinamento sobre os poemas de realização das nascimento do pequeno Sidharta, Mahapajapati primeiras monjas, reunidos em uma coletânea o tomou como filho. Anos chamada Therigatha: depois, o jovem príncipe canções das antigas O templo idealizado por deixou o palácio e, quando mulheres, Jetsunma nos Jetsunma é uma extensão retornou após ter atingido a lembrou do extraordidesse ensinamento e, iluminação, Mahapajapati o nário papel de Mahaapesar de não propagar recebeu de braços abertos, pajapati e das mulheres orgulhosamente esse ouviu seus ensinamentos e que a seguiram para a status, não seria uma se tornou praticante leiga. estruturação do budismo em seus primórdios.
surpresa se fosse considerado o templo tradicional budista com maior número de figuras femininas em suas paredes.
O templo idealizado por Jetsunma é uma extensão desse ensinamento e, apesar de não propagar orgulhosamente esse status, não seria uma surpresa se fosse considerado o templo tradicional budista com maior número de figuras femininas em suas paredes. Encontramos, claro, as vinte e uma Taras protegendo os dois lados do altar, e também Yeshe Tsogyal e Mandarava. Machig Labdron abençoa, dançando nua, as práticas de Chod que as monjas do convento realizam ali periodicamente. Vemos Milarepa cercado por
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Neste momento, Mahapajapati já desfrutava de certo respeito tanto por sua idade quanto por ser a esposa do rei, e ao receber ensinamentos espirituais de forma direta, o que era bastante incomum para as mulheres da época, outras mulheres passaram a procurá-la pedindo orientação e ajuda espiritual. Muitas delas faziam parte do grupo de cortesãs, artistas ou musicistas do harém do príncipe Sidharta e que, após sua partida, haviam de certo modo perdido seu senso de identidade. Outras eram mulheres cujos maridos, pais ou filhos haviam morrido devido a
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