Ação Cultural na Terceira Idade

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Adilson Marques (organizador)

Ação Cultural na Terceira Idade: a criação de textos e a dimensão subjetiva do envelhecimento

São Carlos - SP 2010


Copyright  2010 Adilson Marques Direitos reservados desta edição: BN Editora Ltda. Proibida a reprodução total ou parcial Revisão, diagramação e fotolitos: BN Editora Ltda.

M357a Marques, Adilson (organizador) Ação Cultural na Terceira Idade: a cria­ção de textos e a dimensão subjetiva do enve­ lhecimento - Adilson Marques (org.) / São Carlos: BN, 2010. 64p. ISBN 85-99601-12-9 1. Educação. 2. Narrativa. 3. Estímulo à Leitura I. Título.

CDD – 370

Diretor: José Antonio Picharillo Av. Com. Alfredo Maffei, 1708 - Jd. São Carlos 130561-270 - São Carlos - SP Fone/Fax: (16) 3376-1333 / 3413-3133 e-mail: bn_editora@terra.com.br


Sumário Lembranças e reflexos.............................................................................. 07 Meus esquecimentos............................................................................... 09 Arte de criança.......................................................................................... 10 Saudade da figueira.................................................................................. 11 Uma história verídica.............................................................................. 13 Eu e o planeta Terra................................................................................. 15 A histório da Salvador.............................................................................. 16 Mariazinha................................................................................................ 17 E ... aí?....................................................................................................... 18 Eu só queria ser feliz!............................................................................... 20 Minha boneca de louça............................................................................ 22 Saudade do bonde.................................................................................... 23 Lembranças da estação............................................................................. 25 Meus pés descalços.................................................................................. 26 Lembranças de infância........................................................................... 28 Viagens de trem........................................................................................ 30 Lupi, a boneca sincera.............................................................................. 32 Onde mora a felicidade?.......................................................................... 34 A Alegria, a Lua e o Sol............................................................................ 39 O gato inteligente..................................................................................... 40 Seu João.................................................................................................... 41 Ritinha...................................................................................................... 42 A história de João Batista......................................................................... 44 Solange..................................................................................................... 45 Alegria, alegria!......................................................................................... 46 A semente de girassol............................................................................... 48 A velhinha moderna................................................................................. 49 A minhoca................................................................................................ 50 O canarinho.............................................................................................. 51 A estrela sem luz...................................................................................... 52 O pé de Ipê............................................................................................... 53 O cão e o gato........................................................................................... 55 A guerra dos animais................................................................................ 56 A lagarta encantada................................................................................... 57 A criança e o médico................................................................................ 59 Uma gota de chuva.................................................................................. 60 Fraternidade............................................................................................. 62 Posfácio..................................................................................................... 63


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Lembranças e reflexos Antonio Almeida

Há coisas na vida que não tem explicação. Entre elas, está minha aversão por carne. C ausa-me espanto que pessoas comam carne com tanta avidez, saboreando e deleitando-se com o cheiro que, para mim, é tão desagradável que marcou um momento de minha vida de forma inesquecível. Que idade eu tinha? Cinco... Talvez seis anos... Lembro-me de meus pais visitando meus avós maternos na cidade de Pederneiras e o quintal enorme com muitas árvores também grandes e frondosas... Mas será que era mesmo tudo tão grande ou eu é que era pequeno? O chão era coberto de folhas secas que farfalhavam sob meus pés, enquanto os pássaros nos ramos disputavam frutos. E o ambiente da casa era místico, misterioso e alegre por causa do canto dos pássaros, enchendo o ar de trinados e melodias. Tudo isso despertava em mim a admiração, mas também a vontade de caçá-los para poder sentir suas plumagens em minhas mãos. Eu gastava horas construindo arapucas que davam muito trabalho, mas não pegavam nada. Também ficava horas observando o meu avô. Em uma tosca bancada de marceneiro, ele entregava-se ao mister de confeccionar artesanalmente violões e guitarras. Não sei porque eu tinha medo dele, embora o meu avô nunca ralhasse comigo. Talvez fosse pelo fato de minha avó chamá-lo de “senhor Antonio”. Se ela o tratava tão cerimoniosamente é que, por certo, ele deveria ser muito bravo! Mas o que eu quero contar é o seguinte. Em um determinado momento, minha avó me chamou e quando, correndo, atendia ao seu chamado, fui surpreendido por um 7


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sanduíche enorme que mostrava, entre duas metades pálidas de pão, um recheio de carne vermelha demais para o meu gosto. Tentei esquivar-me de todos os modos que imaginei no momento: “não estou com fome; com certeza vai tirar-me o apetite para o almoço; daqui a pouco eu venho...” Mas a insistência da minha avó não deixou margem para discussão ou recusa. Sem possibilidade de negar-me ao suculento lanche, segundo a opinião dela, comecei a luta contra o monstro! Atacava-o a dentadas, mas o vermelho da carne parecia lábios a debocharem de mim. Os bocados que eram pequenos cresciam na minha boca e se recusavam a serem engolidos. Foi uma luta cruel e desigual, sob o olhar bondoso e amoroso da minha avó: “come querido que está uma delícia!”. Com muito sacrifício consegui negociar com ela e deixar metade para mais tarde. A metade derradeira nunca mais me viu porque daí por diante quando minha avó gritava pelo meu nome, antes que eu respondesse, minhas pernas, sem que eu as pudesse controlar, levavam-me apressadamente para bem longe! Meus avós morreram, a casa com seu quintal mudou de donos; mas um dia, já homem feito, passando por Pederneiras, não pude resistir à tentação de passar pela frente da casa e esticar o olhar para dentro. As lembranças da minha infância e a figura bondosa da minha avó ainda estavam lá. Eu estava tão distraído nas minhas recordações quando uma voz familiar veio de dentro me chamando: “Toninho, venha comer o lanche que preparei para você!”. Não tive nem tempo para pensar, pois, minhas pernas num reflexo repentino e incontrolável levaram-me depressa para bem longe. Nunca me esqueci, nem da minha avó, nem daquela carne vermelha, mas nunca mais passei por lá...

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Meus esquecimentos Benedito Oliveira

Onde esqueci minha bengala? Será que foi no banco ou na rua? Será que almocei, nem me lembro mais... Temperei o bife com sal? Parece que a carne estava crua... Onde esqueci minha dentadura? E os meus óculos, onde estarão? Não consigo nem achar minhas abotoaduras... Olha! Minha bengala em cima do colchão! Resmungo o tempo todo, infeliz comigo mesmo. Passo o dia procurando, acho isto e perco aquilo. Acho que já estou gagá... Será que encontro o caminho do asilo? Tento em vão revitalizar-me e ter mais ânimo. Relembrar de tudo, ter mais esperança... Mas sei que é um sonho impossível... Onde já se viu poder voltar a ser criança! Às vezes me pergunto: Fui um bom pai? Será que fui um bom filho? Sei que a vida é um jogo de cartas marcadas E nos tornamos o que não desejávamos ser. Que Deus nos acolha hoje e no instante de morrer!

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Arte de criança Maria Kanashiro

Quando eu estava com dez anos de idade, vivi uma experiência que jamais me esqueci. Meus avós, imigrantes japoneses, moravam na roça, onde tinha muitos pombos. Eles atacavam e destruíam as plantações. Por isso, meu avô sempre armava arapucas para capturá-los e comê-los. Mas, num certo dia, após caçá-los, ele me deu um para segurar enquanto matava outro. O meu avô começou a apertar o pombo por debaixo da asa até ele esmorecer e morrer. Achei tão cruel aquela cena que fiquei com pena dos pombos. Na hora pensei em uma forma de livrar o que estava em minhas mãos de tão doloroso destino. Assim, sem que o meu avô percebesse, afrouxei as mãos e deixei o pombo fugir. Fui repreendida por ele e quase apanhei. O castigo foi não comer pombo no jantar, mas fiquei com a consciência tranqüila por ter poupado a vida daquela pobre criaturinha.

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Saudade da figueira Maria Cavallaro

... Era ela que mais chamava a atenção de todos que por ali transitavam. Sim, era ela a mais bonita, a mais frondosa e a mais imponente árvore daquela praça: a inesquecível figueira. Até hoje, quando se referem a ela, chamam-na de figueira amiga. Árvore de grande porte, raízes profundas e galhos enormes como se fossem braços abertos para o céu. Sua sombra acolhia a todos sem distinção. Ninguém sabia dizer, ao certo, quantos anos ela tinha. Alguns diziam que era uma árvore centenária. Certamente, ela viu os primeiros fiéis cheios de Fé carregando a imagem da santa e entrando em procissão na igrejinha, no dia de sua inauguração. Também viu as primeiras casinhas brancas se avolumando a sua volta e as pessoas que vinham de longe para a vilinha que almejava crescer e se tornar uma cidade. Todos encontravam nela a sombra acolhedora para refrescar-se na estação mais quente do ano e esquecer-se dos compromissos, contemplando a tranqüilidade local, pois acolhia a todos que ali vinham em busca de abrigo e proteção. E quantas promessas de amor ela não escutou. Quantos corações não foram gravados nela com o nome dos casais. Em sua memória devem estar gravadas as conversas dos idosos que relembravam o passado e contavam histórias para as crianças, tudo ao som do borbulhar sereno e sem pressa do riacho que corria tranqüilo, ladeira abaixo, em direção à Lagoa Serena. E como ela também deve ter se divertido com as crianças que brincavam sob sua copa, o dia inteiro, criando brin-

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quedos com seus frutos e sementes. De onde ela estava, dava para ver muitas coisas e, com certeza, ela viu os carros de boi que desapareciam gradativamente da paisagem, os bondes que trafegavam pelos trilhos que se deterioravam, os automóveis e ônibus que começavam a ocupar o espaço das ruas, além do comércio que não parava de crescer no centro da cidade. Anualmente, o inverno traz ventos fortes e chuvas frias e pesadas, mas a figueira a tudo resistia como um guerreiro valente e robusto, pois suas raízes estavam fincadas profundamente no solo. Porém, numa manhã triste, chuvosa e fria, alguns homens chegaram na praça, trazendo nas mãos folhas de papel assinadas por autoridades. Várias pessoas se aproximaram curiosas e souberam que aqueles homens lá estavam para derrubá-la. Diziam que ela estava velha e colocava em risco a vida da população. E foi sob protesto e com lágrimas nos olhos que assistimos a derrubada de nossa amiga figueira, sem que nada pudéssemos fazer. Porém, tenho a certeza que ela não morreu, pois estará sempre presente em nossas lembranças e nas histórias que contaremos para os netos, ensinando-os a amar, a respeitar e a preservar a natureza.

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Uma história verídica Gracia Santa

Quando eu era criança, adorava ouvir a minha mãe e meus irmãos mais velhos contando os feitos de meu pai, em nossa fazenda. Ele veio da Europa e não conhecia direito o valor do dinheiro brasileiro, que na época era o “réis”. Como ele desconfiava da honestidade dos banqueiros e das bancarrotas, todo o dinheiro que ganhava com a venda de telhas, tijolos, animais, café etc., ele não guardava no banco, mas dentro de um garrafão tampado com uma rolha de cortiça que costumava pendurar em uma laranjeira ou enterrar em um buraco no assoalho da casa. Ele não imaginava que o tempo era cruel e apodrecia a rolha, permitindo que cupins e outros bichos entrassem dentro do garrafão. Certo dia, ao desenterrar o dinheiro, notou que ele havia virado pó. Em relação ao que estava na laranjeira, meu irmão mais velho, após subir para brincar na árvore, viu o garrafão e pensou tratar-se de um ninho de pássaro grande. Com uma vara, cutucou o objeto até o derrubar. Quando foi ver o que era, descobriu que era assim que o meu pai guardava o suado dinheiro da família. Da mesma forma, só encontrou pó ao abrir o garrafão. Apesar disso, meu pai fazia muita coisa boa. Por exemplo, ele sabia fazer diferentes remédios com plantas medicinais. Eu me lembro de vê-lo preparando os remédios e entregando para as pessoas que o procuravam. Ele curava as pessoas e também os animais. Vi várias pessoas agradecidas trazendo presentes para ele. Porém, o meu pai nunca aceitava, dizendo que a cura havia sido feita por Deus. Ele tinha o dom de curar com as mãos também e fazia isso de graça. Na fazenda onde morávamos, 13


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vinham pessoas com epilepsia, doenças venéreas, dores em geral, vermes e tudo o que se possa imaginar. E muitas saiam curadas por causa das orações que ele fazia. Com os animais não era diferente. Lembro do dia em que ele curou um cavalo que estava com bicheira. Perto de sua barriga, havia uma grande cavidade cheia de larvas. O animal não conseguia dormir ou comer em paz. O meu pai fez uma prece e as larvas começaram a cair no chão. Enquanto elas iam caindo, ele ia falando em italiano: de um a um, de dois a dois, de três a três ... até o buraco ficar completamente limpo. Em seguida, ele pegava creolina e passava no lugar com uma pena limpa. Depois de algum tempo a cavidade cicatrizava e o animal ficava curado. Se a pessoa ou o animal estava em outra cidade, não havia problema. Ele orava com as mãos estendidas na direção. Muitos eram curados e depois vinham até a nossa fazenda para agradecer. Ele foi um homem muito alegre e sem apego às coisas materiais. Nossa casa vivia cheia de pessoas. Ele faleceu com 93 anos de idade. E foi por causa de um acidente, porque ele nunca ficou doente. Após a sua morte, várias pessoas começaram a procurar pela fazenda outros garrafões esquecidos ou enterrados por ele.

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Eu e o planeta Terra Geraldo Rodrigues

Durante minha passagem por este planeta fiquei fascinado com as coisas que o Pai do Céu criou; Um imortal que é coisa divina, Uma irmandade Universal. Os animais, as aves, os peixes Seres microscópicos e gigantes Que fábula!... A vegetação. As cores e as flores de qualquer Espécie a desabrochar O vento que sopra, a água que cai... O giro do planeta em torno do Sol. A física quântica mostrando Que para cima ou para o meu interior Tudo é infinito E tudo isso compactado Cabe na minha mão. Quando eu partir desta matéria que me envolve Serei parte do plano espiritual e Mesmo assim, continuarei um curioso Praticando a serenidade e a sabedoria. Hoje sou apenas um ser humano Com defeitos e virtudes Procurando aprimorar a espiritualidade. Bom dia, boa tarde, boa noite e... Até breve! 15


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A história de Salvador Catharina Marino

Esta história aconteceu nos últimos anos do século XIX e nos primeiros anos do século XX. Ela se passou com meu sogro de nome Salvador, que saiu da Itália, da Província de Ospedaleto Euganeo, distrito de Padova. Veio para o Brasil, juntamente com o pai, a mãe e duas irmãs mais velhas. Ele estava com 10 anos de idade. Seguiram para São Paulo, onde um irmão mais velho, que já estava no Brasil, e responsável pela vinda da família, os aguardava em uma hospedaria de imigrantes. De lá partiram para o interior de São Paulo, onde iriam trabalhar em lavouras de café. Mais tarde se mudaram para uma fazenda de nome Itaguassú, na região de São Carlos. Salvador conheceu uma moça que morava na mesma fazenda com o pai, que também era italiano, e a mãe já falecida. Começaram a namorar com o consentimento do pai da moça, que tempos depois não queria mais o namoro. Como os dois se gostavam muito, resolveram fugir. No dia seguinte, procuraram uma delegacia para se casarem. O pai da moça, descontente com os acontecimentos disse que deserdaria a filha e rogou-lhes uma praga. Ele dizia que eles jamais haviam de constituir família. Algum tempo depois, a moça engravidou. Porém, por problemas de saúde, faleceu sem dar à luz. Salvador, meu sogro, depois de algum tempo, conheceu uma moça em Rio Claro, de nome Ignes. Eles se casaram em maio de 1909. Eles tiveram 10 filhos, sendo que, no dia 15 de maio de 1959, comemoraram bodas de ouro, com toda a família reunida. Em 1966 faleceu Ignes e, em 1970, meu sogro Salvador.

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Mariazinha Maria Teresinha

Mariazinha vivia com os pais e avós em uma casa ampla, porém simples, em um sitio, longe da cidade. Ela era a filha mais velha do casal. Vivia feliz com seus familiares e com os animais. Gostava de contemplar as árvores frutíferas, as flores e demais plantas. Um de seus passatempos prediletos era subir nas árvores para brincar com as irmãs e primos, além de saborear os deliciosos frutos. Seus pais criavam gansos que protegiam a casa. Eles eram simples, mas se preocupavam com a educação dos filhos. Os pais estudaram até a terceira série. Quando chegou a hora de Mariazinha freqüentar a escola, foi morar com os avós paternos, porque perto do sitio não tinha escola. Ela ficou triste, mas entendeu que precisava se afastar da família. Nesse período nasceu o irmãozinho dela. Elas eram em três irmãs e a chegada de um menino alegrou a todos. Mas o tempo foi passando e Mariazinha se formou. Ela continuou morando com os avós, pois estavam velhos e precisando de cuidados. Quando seu avô partiu para o plano espiritual e sua avó foi morar na casa de um de seus filhos, Mariazinha voltou a morar com os seus pais e também a estudar. Ela fez faculdade e se tornou professora, o que ela sempre idealizou, já que o seu grande sonho sempre foi o de poder aprender e ensinar.

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E ... aí? Maria Áurea

Bom dia, amigo rio, estou lhe dizendo bom dia por ser muito cedo. Veja! O sol já despontou no horizonte, iluminando este recanto da Terra. Deveria ser um belo dia, mas observe o que aconteceu neste local durante a noite. Minhas irmãs árvores e toda a vegetação foram destruídas pelo fogo. Muitas morreram, outras como eu, ainda se recuperam, embora leve muitos anos para que isto aconteça. Olhe para mim, cheia de queimaduras. Só não morri graças a você, que me mantém umedecida, porque vivo às suas margens. Os pássaros e outros animais, que faziam da minha copa sua morada, fugiram ou morreram queimados. Estou completamente desfolhada, sem flores e sem frutos... o que será de nós? – Minha amiga, que direi de mim? Eu era um rio límpido, transparente e cheio de vida. Fornecia alimento para todos. Agora estou completamente destruído, imundo, mal cheiroso... a vida sumiu do meu leito. Já não alimento mais ninguém, nem dessedento os animais e os homens. Estes não tiveram compaixão nem respeito. Sem piedade me condenaram a ser um esgoto que repele todos que se aproximam de mim. – Oi... eu também quero pronunciar-me. Eu sou a Terra, sobre a qual correm as suas águas e também dou sustentação aos vegetais e as florestas. Incluam-me nas suas reclamações. Eu também fui afetada pelos desmandos dos homens. Estes, sem dó nem piedade, atiram no meu interior lixo de toda espécie: lixo nuclear, lixo hospitalar e outros que não se decompõem. Ainda mais, envenenam-me com todo tipo de agrotóxico e queimadas que destróem os micro-organismos, que são partes dos meus componentes. Eu também sofro muito. 18


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– Ai, ai, ai... eu sou o ar que todos respiram. Sem mim não há vida. Estou enfermo, quase agonizante. Me afetam com um sem número de toxinas através de chaminés, veículos e outros meios que expelem gases nocivos. – Amigos, nós todos somos ultrajados, maltratados e por isso mesmo, nos rebelamos. Mas não por maldade. E sim por que são desrespeitadas as leis que nos regem. Por isso reagimos através de cataclismos, como ciclones, terremotos e enchentes. – Será que nem assim o homem acorda?

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Eu só queria ser feliz! Irene Feitoza

Aconteceu comigo em uma cidadezinha chamada Arapiraca, estado de Alagoas. Morávamos em uma casa grande, com terreno de chão batido. Lembro-me como se fosse hoje, das três mangueiras enormes que faziam sombra em todo o quintal. Eram dois pés de manga rosa e outro de manga espada. As mangas que eu mais apreciava eram as rosas. Porém, as mais bonitas e vistosas, ficavam sempre nos galhos que ultrapassavam a cerca e caiam na casa do vizinho. Eu e minha prima subíamos sempre para nos deliciar com aquelas mangas suculentas. No quintal do vizinho, deitados à sombra dos galhos, víamos sempre um casal de namorados. Para nós era pura diversão, não tínhamos nenhuma maldade. Éramos apenas crianças. Eu tinha oito anos e minha prima dez. Mas, num certo dia, fui pegar uma manga muito bonita que estava em um galho que pendia para o lado do vizinho. Naquele dia eu fui sozinha, sem a minha prima. Quando eu estava quase apanhando a fruta, olhei para baixo e vi o casal. O rapaz também me viu. Ele disse que eu estava mostrando a calcinha para ele e que contaria tudo para o meu pai. Eu desci correndo e fui para casa assustada. Meu avô, um homem muito bravo, estava em casa, naquele dia. O vizinho chegou e contou para ele. O meu avô, por sua vez, contou para o meu pai, que na época era dono de uma padaria. O meu pai largou tudo o que estava fazendo e veio para casa com a cinta na mão. 20


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Eu estava em meu quarto me trocando para ir à escola. Ele entrou e me deu uma surra, com muita violência. Até hoje tenho cicatrizes dos machucados feitos pela fivela da cinta e aprendi que os adultos se esquecem rapidamente que os atos de uma criança costumam ser realizados de forma inocente.

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Minha boneca de louça Lucia Pierin

Eu e minha família morávamos em um sitio. A vida era muito difícil. Para nos locomover ou andávamos a pé ou de carroça. Não existia fogão a gás. Só forno caipira e fogão a lenha. Minha família era composta por meu pai, minha mãe e nove irmãos. Não tínhamos televisão, somente um rádio a pilha. Nem eu nem meus irmãos conhecíamos a cidade. A primeira vez que fui em uma cidade, foi em Itirapina. A viagem durava duas horas de caminhada. Lá pedi a meu pai que me comprasse um par de sapatos. Ele comprou um muito grande e pediu para eu colocar um pano na ponta, para o aproveitar enquanto eu ainda crescia. Alguns metros da loja de sapatos e vi em uma vitrine uma boneca de louça muito linda e pedi para o meu pai comprar. Ele disse que não tinha dinheiro. Ao chegar em casa comecei a ter febre porque queria muito aquela boneca. Meu pai precisou voltar novamente a Itirapina para comprá-la. Ele foi e voltou a pé. Eu fiquei muito contente e guardava a boneca com muito carinho. Porém, um dia minha sobrinha pediu para brincar com ela. Eu não queria deixar, mas ela chorou tanto que eu não tive alternativa. Quando ela estava com a boneca no colo, passou um porco correndo e a derrubou juntamente com a minha linda boneca. Não sobrou nada. A boneca espatifou-se no chão. Fiquei muito triste e não parei de chorar o resto do dia. Mas perdoei a minha sobrinha, pois ela não teve culpa de ter sido atropelada por um porco desvairado.

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Saudade do bonde Maria Rosa

Em 1940 eu morava na Vila Prado na cidade de São Carlos. Eu tinha 9 anos de idade. Era eu quem levava o almoço para o meu pai que trabalhava num curtume perto da Santa Casa. Eu ia a pé da Vila Prado até lá. Todos os dias eu saia às 9h20 e passava na casa da minha prima. Nós levávamos o almoço para os dois, meu pai e meu tio. Descíamos a rua Visconde de Inhaúma e atravessávamos o rio do mercado por uma pinguela ou por dentro do próprio rio. Seguíamos por aquela mesma rua até o final e atravessávamos um caminho que saia em frente à Santa Casa. Ali acabava a cidade. Depois da Santa Casa só tinha mato. Precisávamos seguir por uma estrada de terra para chegar ao curtume. Para voltar para casa pegávamos o bonde em frente a Santa Casa e pedíamos ao motorneiro que nos deixasse viajar sem pagar, pois não tínhamos dinheiro. Ele sempre deixava. O ponto final era na rua General Osório em frente à capela do seminário. Nós descíamos do bonde correndo e íamos direto para a escola, o grupo escolar da Vila Prado que ficava próximo do ponto final do bonde. Hoje, quando eu passo na Vila Nery, em frente ao Balão do Bonde, sinto uma imensa saudade daquele tempo.

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Lembranças da estação Jeni Diniz

Lembro-me de minha infância, já tão distante, como se fosse ontem. As lembranças que não saem da minha memória são dos passeios que realizei com o meu pai, na Estação da Cia. Paulista de Estrada de Ferro, na cidade de São Carlos. Meu pai tinha 26 anos de idade, mas aparentava menos. Ele usava o seu melhor traje: o terno e a gravata, indispensável na época para ocasiões especiais. Eu também estava vestida como se fosse a uma festa. Andávamos na plataforma de um lado para o outro. Era costume naquele tempo passear na Estação aos sábados e domingos. Para lá se dirigiam famílias inteiras e também moças e rapazes solteiros. Eu me sentia uma rainha caminhando ao lado de meu pai. Ele era meu ídolo. Apesar de seus defeitos, tinha verdadeira adoração por ele. Num certo dia, passeando pela estação, passamos perto de algumas moças e uma comentou: “Nossa... um rapaz tão jovem e já tem uma filha desse tamanho!”. Eu fiquei feliz com o comentário, mas o meu pai depois de andarmos alguns metros me falou o seguinte: “Quando passarmos em frente às moças diga que eu não sou o seu pai... fale que sou o seu tio”. E foi o que fiz, toda contente e ingênua. Ao chegarmos em casa fui correndo contar todos os detalhes do passeio para a minha mãe. Não preciso nem dizer que, depois daquele dia, os passeios com o meu pai foram ficando mais raros. Quando eu ia à estação ferroviária, sentia uma indefinível sensação de prazer quando o farol da estação ficava verde e se ouvia uma sineta. Era o sinal que o trem estava saindo da 24


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estação mais próxima, ou de Ibaté ou de Itirapina. Eu ficava ansiosa esperando aquela gigantesca máquina chegando à estação. Aos olhos de uma criança de cinco anos, o trem era algo imenso e fascinante. Hoje acho a estação muito pequena, mas, na época, ela parecia muito grande. Eu ficava admirada vendo as pessoas que partiam ou que chegavam, as famílias e os amigos se encontrando ou se despedindo. Quase todos tinham lágrimas nos olhos. Alguns de alegria e outros de tristeza, já manifestando saudade de quem partia. Eu acompanhava também os funcionários da estação carregando imensas malas e os vendedores de doces e frutas, que ofereciam seus produtos para os passageiros, sempre apressadamente. Gostava também de observar uma mocinha que, da sala de espera, cuidava para que tudo funcionasse perfeitamente. Sem falar que a maioria das pessoas se vestia de forma elegante quando ia à estação, um fato que ficava também admirando. Porém, assim que o trem partia, toda a movimentação ia diminuindo e a estação ficava quase deserta. O ritmo da estação me causava um sentimento que não consigo descrever. Hoje me lembro como se tudo aquilo fosse um belo filme em que atuei como coadjuvante. O único momento triste era o de voltar para a casa. Porém, restava o consolo de saber que no próximo final de semana tudo se repetiria. Hoje, só de pensar naquela experiência, me vem à mente o aroma característico da locomotiva, os sons característicos e toda aquela movimentação de pessoas que alegrava a minha alma de criança.

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Meus pés descalços Lucia Ferreira

Nasci em 1946, na cidade de Ibaté, no interior do estado de São Paulo. Meu marido, com quem sou casada há 44 anos, nasceu na cidade de Dois Córregos. Tivemos quatro filhos e quatro netos, até o momento. Apesar de toda essa alegria que a vida me proporcionou, ainda guardo na memória a infância difícil no sítio São José, propriedade de meu avô José Gianlorenço. Para estudar, era necessário andar cerca de 3 quilômetros e meio pelas estradas de terra. Diariamente, eu e cinco primos, todos com a mesma faixa etária, fazíamos aquele percurso que, de um lado, tinha plantação de eucalipto e, de outro, cana de açúcar. Brincávamos muito durante o trajeto. Nossa professora morava em Araraquara. Ela ia de trem até a estação Tamoio onde uma charrete a aguardava e a conduzia até a escola. Ela lecionava, ao mesmo tempo, para as crianças do primeiro, segundo e terceiro ano. Ao todo, éramos em cerca de 60 alunos. O fato interessante era que não tínhamos sapatos. Usávamos, na época, alpargatas com sola de barbante. A umidade das trilhas por onde passávamos molhava os nossos pés. Assim, eu e meus primos, preferíamos andar descalços. Os nossos calçados eram escondidos em moitas de cana e, antes de chegar à escola, lavávamos os pés em um riozinho. Na volta da escola pegávamos os calçados, lavávamos os pés em um rio perto de casa e os colocávamos novamente nos pés. Nossos pais nem desconfiavam disso. Esse era o nosso segredo para as alpargatas durarem tanto tempo. Também costumávamos comer frutas pelo caminho, como gabiroba, goiaba e banana; subir em árvores, pular cobras coloridas e até mesmo correr de cachorros loucos e de 26


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boiadas. E tudo isso era feito com os pés descalços. Em dias de chuva, eu não voltava para a minha casa. Eu dormia na casa da minha tia Arminda, que ficava mais perto da escola. Minha infância foi muito ativa. Eu me lembro de muitas outras coisas, como dos balanços de corda nos galhos das árvores, a água escorrendo da bica para beber e para lavar a roupa, mas o que me dá mais saudade é de lembrar a minha mãe me perguntado, freqüentemente: “filha! Você é feliz?”. Hoje posso dizer que sou muito feliz pela vida e família que Deus me deu. Obrigada mãe por tudo e até lá!

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Lembranças de infância Creusa Tassinari

Eu nasci em São Carlos e sou a quinta filha de uma família de seis filhos. Mesmo morando na cidade, bem próximo ao centro, a casa era bem simples. Nela, até criávamos galinhas e porcos no quintal. A rua era de chão batido, onde as crianças que moravam próximas se reuniam para brincar. Não tínhamos brinquedos, mas a gente se divertia como podíamos e éramos contentes mesmo assim. Na minha rua passava boiada várias vezes ao dia e eu subia em um portão, pegava uma varinha e cutucava os bois. Medo era coisa que eu não sentia, pois desconhecia o perigo. O importante mesmo era me divertir. Em frente a minha casa, há mais de 50 anos, tinha um muro alto que pegava o quarteirão inteiro. Era a chácara da família Scallize. Nessa chácara havia dezenas de mangueiras de todas as qualidades e quando maduras, dava água na boca das crianças. O filho do caseiro era um menino excepcional. Ele tinha síndrome de Down e se chamava João. Quando nós percebíamos que ele estava no quintal, cantávamos aquela musica do Ivon Curi: “Ah! João Bobo é gozado quer casar ah... ah... ah... com a rosa do Prado.” Ele ficava com muita raiva e, para se defender, jogava manga nas outras crianças. Quanto mais a gente cantava, mas manga ele jogava. 28


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Não fazíamos isso por maldade. Era o jeito que descobrimos para poder chupar mangas. E não tínhamos consciência que procedendo daquela forma, estávamos ferindo o sentimento do garoto. Os nossos pais nunca chamaram a nossa atenção. Não nos esclareciam da maldade que fazíamos com o João. O preconceito naquela época era muito grande, não da parte das crianças, mas dos próprios adultos. Hoje eu sinto vergonha de ter agido assim, mas o importante é que aproveitei a experiência para minha própria mudança interior, superando meus preconceitos para, a cada dia, ser uma pessoa melhor.

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Ação Cultural na Terceira Idade:

Viagens de trem Serafim Rodrigues Neto

Vou entrar no “túnel do tempo” para contar esta história, que acredito e tenho certeza, formaram os melhores anos de minha infância. Citei o túnel do tempo, pois digo sempre aos meus familiares e amigos o seguinte: “o que eu mais gostaria que acontecesse em minha vida era entrar em um túnel do tempo e voltar aos seis, sete anos de idade”. Eu sei que é pura ilusão, mas é o sonho que tenho. Essas viagens de trem que eu, meus pais e meu irmão fazíamos para a cidade de Rio Claro, estado de São Paulo, onde reside até hoje a minha tia Aparecida, irmã de minha falecida mãe, são as mais belas recordações que tenho de minha infância. Uma vez por mês, pelo menos, a nossa família fazia essa viagem de trem. Costumávamos sair bem cedo de casa, por volta das cinco horas da manhã, aos domingos. Morávamos na rua Jesuíno de Arruda, dois quarteirões do Mercado Municipal. Passávamos no Bar Pistelli, que ficava na rua Episcopal, entre as ruas General Osório e Geminiano Costa, para comprar o seu famoso pó de café, moído na hora. A minha tia adorava o café do Bar Pistelli. Chegando na estação ferroviária, que hoje é o Museu Histórico e Pedagógico Cerqueira César, a Estação Cultura, meu pai comprava as passagens e íamos para a plataforma esperar o trem. Eu adorava aquele momento, ficando na expectativa da chegada do trem que vinha da cidade de Araraquara. Quando entravamos no trem, eu corria na frente de meus pais para pegar um lugar que ficasse na janela, pois eu gostava de apreciar as paisagens bonitas entre São Carlos e Rio Claro. A viagem durava aproximadamente uma hora e, duran30


a criação de textos e a dimensão subjetiva do envelhecimento

te o trajeto, eu e meu irmão pedíamos ao nosso pai para comprar doces, balas, chocolates e refrigerantes. Pedíamos também para ele comprar gibis do Fantasma e do Pato Donald. Uma das coisas engraçadas dessas viagens, era o cheiro delicioso do pó de café que levávamos para a minha tia. O aroma se estendia por todo o vagão. Muitas pessoas queriam saber onde meu pai tinha comprado aquele café. Quando chegávamos a Rio Claro, na rua em frente à estação ferroviária, existia um ponto de charretes. Subíamos na charrete e, alegres, íamos para a casa da tia Aparecida. Eu apreciava o barulho que o cavalo fazia com seu galope nos paralelepípedos das ruas de Rio Claro. Já na casa dela, a primeira pergunta que nos fazia, depois dos cumprimentos, era: “Vocês trouxeram o pó de café?” E todos respondiam juntos: “sim!” Essas viagens de trem foram inesquecíveis!

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Ação Cultural na Terceira Idade:

Lupi, a boneca sincera Maria Áurea

Lupi é uma boneca sonhadora. Muitos sonhos foram realizados, outros vivem ainda na imaginação. Ela é muito franca, o que às vezes a leva a ofender outras bonecas com as suas críticas. Outro dia, encontrou-se com sua amiga Lalá e, sem mais delongas, lhe perguntou: – Lalá, onde você foi no sábado passado? Nós combinamos assistir a uma peça teatral que está fazendo muito sucesso. Esperei até o início do espetáculo e você não apareceu. O que aconteceu? Por que você faltou ao compromisso assumido? – Desculpe-me, esqueci de te avisar. Eu precisei fazer compras com a minha mãe e perdi a hora... – Você perdeu um excelente espetáculo. Espero que numa próxima oportunidade você seja mais responsável. Lupi ficou chateada com o esquecimento da amiga. Ela quase perdeu o espetáculo por causa disso. Porém, apesar de ser muito responsável em seus compromissos e de não apreciar a falta de consideração dos outros, ela se aborreceu por não ter perdoado a amiga. Ela gosta de tudo muito bem feito. Aprecia a verdade, sem mácula. E por isso sofre muito. Lupi também gosta de estudar. Aprecia o desenvolvimento da cultura e da tecnologia e fica desapontada consigo mesma quando não acompanha o raciocínio das bonecas que ela considera cultas. Para Lupi, é uma verdadeira frustração não conseguir assimilar os ensinamentos transmitidos pelos outros. Porém, quando a idade chegou e sua memória também começou a falhar, compreendeu o esquecimento de Lalá e se arrependeu de ter sido tão rigorosa com a amiga. 32


a criação de textos e a dimensão subjetiva do envelhecimento

Para estimular a memória resolveu fazer alguns cursos. Encontrando Juju, perguntou a ele se conhecia algum curso bom para estimular a memória e o raciocínio. E o amigo respondeu: – Sim, eu estou fazendo aulas de matemática. É muito bom para exercitar a mente. Quero que a minha permaneça ativa por muito tempo. – Que disposição! Estou admirada! Quase todos têm pavor de matemática. Eu também preciso fazer algo para não enferrujar meu raciocínio. Acredito que é importante ser ativo sempre e não só fisicamente. O raciocínio deve ser estimulado, porém, acho que não vou fazer matemática, mas o curso de criação de textos para não perder a capacidade de escrever. Além disso, vou convidar a Lalá. Ela é minha melhor amiga e será uma chance de pedir desculpar por ter me sentido ofendida quando ela se esqueceu do nosso compromisso no teatro.

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Ação Cultural na Terceira Idade:

Onde mora a felicidade? Lourdes Ferraz

Lutécia, município do interior de São Paulo, conta com quinze mil habitantes, aproximadamente. Na cidade, numa casa simples, humilde, mas muito bem cuidada, com um pequeno e lindo jardim na frente, reside uma senhora, dona de uma maravilhosa história de vida. Seu nome é Marieta Hosória Cunha de Andrade. Ela nasceu no dia 07 de novembro de 1939, na Fazenda Santa Fé, localizada em Santa Cruz do Rio Pardo, município vizinho de Lutécia. Seus pais chamavam-se Antonio Francisco da Cunha e Alexandrina Maria da Cunha, que tiveram sete filhos (sendo ela a primogênita). Eles sempre moraram na zona rural, trabalhando nas fazendas de café da região. Os quatro filhos mais novos estudaram na escola multisseriada que funcionava numa casa adaptada próxima à vila dos colonos, mas os três mais velhos, entre eles, D. Marieta, não puderam estudar, pois tinham que ajudar os pais na roça, não tendo tempo para os estudos. D. Marieta só teve chance de frequentar a escola e ser alfabetizada muitos anos depois, na década de 70, quando foi implantado pelo poder público o curso de adultos na cidade através do programa MOBRAL (Movimento Brasileiro de Alfabetização). Aos dezenove anos, ainda trabalhando duro na roça, D. Marieta conheceu José Messias de Andrade, também trabalhador rural. Começou o namoro, e quase um ano depois, com a permissão dos pais, casaram-se. Foram morar numa outra casa; um novo lar começava a ser formado. D. Marieta teve, então, que dar conta dos afazeres domésticos, mas isto não a excluiu do trabalho na roça. Dupla jornada de trabalho, mas sem acréscimo de salário. Continuaram trabalhando juntos na Fazenda de Café até que, quase dois anos depois, 34


a criação de textos e a dimensão subjetiva do envelhecimento

surgiu uma oportunidade melhor e José Messias consultou a esposa: – Marieta, o que você acha da idéia da gente sair daqui para trabalhar na Fazenda São Luis? – Por que isso agora? Vou ficar longe dos meus pais? Perguntou Marieta. – Escuta, mulher, lá o salário é melhor, vamos ter uma casinha do mesmo jeito e trabalhar na lavoura de feijão, milho, cana e arroz... – Então o serviço vai aumentar muito lá na roça? – Não, Marieta. O tempo de trabalho do dia vai ser o mesmo, só que o Sr. Theodoro paga melhor e ainda dá para cada empregado um pouco de tudo que é colhido lá na fazenda. Percebe que isso vai ajudar a gente economizar e um dia, talvez, a gente pode comprar uma casinha na cidade... – Você tem razão. Esta pode ser mesmo a nossa hora de começar a guardar um dinheirinho para um dia termos nossa própria casinha na cidade e ter uma vida melhor que esta aqui da roça. Depois de conversarem longamente sobre o assunto, decidiram que mudariam para a Fazenda São Luis, mas D. Marieta disse que teriam de visitar os pais a cada quinze dias, pelo menos. O marido concordou. Os pais de Marieta foram avisados sobre a mudança e as condições nas quais ela aconteceria. José Messias fez os acertos necessários com o patrão. Recebeu seu dinheiro e o de Marieta também. Tudo acertado, mudança preparada e lá se foram os dois em busca de uma vida melhor, ainda que na roça. Chegaram na Fazenda São Luis, sua nova sede de trabalho. Foram bem recebidos pelos companheiros e pelo novo patrão. Com o passar do tempo notaram que a vida na Fazen35


Ação Cultural na Terceira Idade:

da São Luis não era lá muito diferente da vida que levavam na outra fazenda, pois trabalho é sempre trabalho, mas para D.Marieta era também a esperança de um dia ter sua casinha na cidade. Vieram os filhos. Teve, aos 24 anos, o primeiro, Joaquim Antonio. Um ano depois chegou Daniel Henrique. Passaram-se dois anos e chegou uma linda menina, a caçula, Sandra Regina. Os três filhos foram a alegria dos pais e dos avós maternos. Infelizmente, os pais de José Messias moravam longe e raramente mantinham contato com ele. Com a chegada dos filhos, as visitas de Marieta à casa dos pais foram se escasseando. Não havia mais tempo e nem condições. D. Marieta havia deixado o trabalho na roça pouco antes do nascimento do seu primeiro filho e não conseguiu mais retornar. Agora seu tempo estava todinho dedicado aos filhos, ao marido e à casa. Ficava ainda mais feliz quando seus pais vinham visitá-los. Continuaram morando e trabalhando na fazenda, economizando sempre. Assim que o filho Joaquim completou sete anos, D. Marieta disse ao marido: anos.

– José, o Joaquim precisa ir pra escola. Ele já fez sete José respondeu com uma pergunta: – E como vai ser isso se aqui neste lugar não tem escola? – Ele vai ter que estudar na cidade, respondeu Marieta. – Mas como mulher? Fica longe demais. – A gente vai ter que se mudar. – Como assim? – Está mais que na hora de pegar nossas economias e comprar uma casinha na cidade. Logo chega a vez do Daniel e não demora é a Sandra que tem de ir para escola. 36


a criação de textos e a dimensão subjetiva do envelhecimento

– Eu sei de tudo isso e também sei de sua enorme vontade de ver nossos filhos na escola para que aprendam a ler e escrever, a contar, e não sejam como nós. Eu entendo tudo isso, mas eu vou fazer o que lá na cidade? Só sei trabalhar na roça. – O jeito vai ser você continuar aqui mesmo na roça... – E você vai ficar sozinha com as crianças na cidade? Não conhecemos quase ninguém lá. Vai ser difícil. – Você continua na roça, mas vai morar na cidade junto com a gente, e viaja todo dia com o caminhão de bóia-fria. – Você tem razão. É isso mesmo!Vamos tentar... E mais uma vez tiveram que reorganizar suas vidas. Tomaram todas as providências necessárias para a mudança. Teriam que ficar atentos à adaptação das crianças à vida urbana, por isso trataram de preparar rapidamente a mudança, pois em menos de um mês as aulas seriam iniciadas. D. Marieta, embora estivesse feliz com a mudança para a cidade, com sua casinha nova, com a oportunidade de estudar, sentia medo, muito medo. Ela sempre morou na zona rural, sempre teve seus pais e seus irmãos por perto. Na cidade tudo seria mais difícil, ela tinha certeza disso, mas não desanimou. Queria oferecer aos filhos o estudo que ela não pode ter. Sabia que a escolaridade aliada a uma boa formação fariam de seus filhos pessoas mais felizes, com chances maiores de se tornarem bons trabalhadores, escolhendo profissões mais valorizadas e menos árduas como a dela, a de seu marido, a de seus pais e a de muitos outros antepassados. Quarenta anos se passaram desde a mudança para a cidade. Muita luta. Muita alegria. Muitas perdas. Muita conquista. Três filhos lindos, educados, estudados, amorosos. Todos já casados e cada um morando com sua própria família em cidades diferentes, mas não muito longe de Lutécia. Tem cinco netos: duas meninas e três meninos. Sua maior felicidade, hoje, é receber a visita dos filhos e netos. É feliz, mesmo 37


Ação Cultural na Terceira Idade:

morando sozinha, por saber que seus filhos são pessoas boas, cultas e que também batalham para oferecer o melhor para suas famílias. Apesar do pouco estudo que teve, D. Marieta tem o hábito de ler, mas gosta, principalmente, dos livros de literatura infantil, especialmente as histórias mais famosas de Charles Perrault, dos Irmãos Grimm, de Hans Christian Andersen como Cinderela, O Gato de Botas, A Bela Adormecia, Chapeuzinho Vermelho, O Pequeno Polegar, Os músicos de Bremem, Branca de Neve, Rapunzel, O Patinho Feio, O Soldadinho de Chumbo, Uma Família Feliz, Histórias que o Vento contou, etc... para contá-las aos seus netos quando eles a visitam. Todos adoram ouvir as histórias que a vovó conta, sejam histórias de ficção ou a história de sua trajetória de vida. Sempre que possível, com a ajuda dos filhos, visita os irmãos, todos também com suas famílias formadas. Dos quatro irmãos mais novos, três moram na cidade e um no sítio. Os dois mais velhos ainda continuam na zona rural. D. Marieta, embora morando sozinha, não se sente solitária. Ela tem consciência que fez o melhor que pôde pela sua família e sabe conviver em harmonia com os amigos e vizinhos. Ela é muito querida pelos familiares e amigos, o que a faz sentir-se muito feliz.

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A Alegria, a Lua e o Sol Madalena Soares

A ALEGRIA nasceu em 15 de janeiro de 1953. Apesar de não ter tido infância, e desde pequena assumir muitas responsabilidades, cuidando da casa e dos irmãos menores, além de ajudar seus pais na lavoura, ela não chorava. Aliás, nem quando o seu pai lhe batia de cinta quando chegava em casa e não tinha janta pronta. A ALEGRIA teve 12 irmãos, fora os que viraram estrelinhas. Os menores tomavam água de arroz acreditando que era leite. Seu irmão caçula morreu devido à pobreza da família. O pai da ALEGRIA foi um herói. Quando ela tinha 9 anos de idade, sua casa pegou fogo e não sobrou nada. Tudo virou pó. Mas nem essa tragédia foi suficiente para que a ALEGRIA chorasse. A família passou a viver em uma praça até o seu pai conseguir outra casa. Quando ele conseguiu, todos ficaram felizes, mas a família precisava continuar dormindo no chão, porque dentro da casa não tinha nada. Mas a ALEGRIA sabia que para se ter qualquer coisa na vida era necessário muito trabalho. E depois de muitos anos passando por dificuldades, novamente o fogo veio e destruiu tudo pela segunda vez. Seu pai não teve mais força e desistiu da vida. Ele ficou oito anos sem sair do quarto, indo apenas ao banheiro. Um de seus filhos contraiu AIDS e morreu. Seu pai deixou de ser o SOL. Hoje é apenas mais uma estrelinha no céu. E ele deixou sozinha a LUA, a mãe da ALEGRIA, que ainda hoje procura manter acesas as palavras que ele gostava de dizer: O medo bateu à minha porta. A fé atendeu, e não havia ninguém...

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Ação Cultural na Terceira Idade:

O gato inteligente Jovino Bueno

Dona Alice tinha um gato muito inteligente. Ela o adorava e o tratava como se fosse uma pessoa da família. Ele entendia tudo o que ela falava e a acompanhava onde ela ia. Mas, em um certo dia, Dona Alice foi passear com o gato e ele encontrou um amigo e começou a brincar, correndo para lá e para cá, até perder sua dona de vista. Ela, desesperada, passou a procurá-lo. Sem o encontrar, foi até a delegacia. – Seu delegado, vim fazer uma ocorrência. – O que aconteceu, dona Alice? – Meu gatinho desapareceu, delegado! – Com tanto trabalho que eu tenho e a senhora vem falar do seu gato... – Seu delegado, ele é especial. Eu converso com ele como se fosse uma pessoa. – Pois então eu acho que a senhora deve ir para casa. Possivelmente, ele está tentando ligar para passar a localização de onde a senhora deve ir buscá-lo.

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Seu João Maria Rosa Moreira

Seu João era um homem que tinha uma chácara muito grande; era quase um sítio. Ele criava galinhas, porcos e tinha alguns pássaros de estimação. Lá morava um mocinho que ajudava a cuidar das criações. Seu João tinha também 5 cães, um macho chamado Bob e 4 cachorrinhas: Lilica, Flora, Xuxa e Mocinha. A Lilica era a preferida de seu João. Ele achava que ela ia tomar conta da chácara dando aviso quando chegasse alguém. Fez até uma casinha de madeira só para ela. Um dia o Bob morreu, e ficaram só as cachorras. Seu João ficou doente e as outras três cachorrinhas ficaram tristes, mas a Lilica nem se importou. Um dia, o empregado foi tratar das criações e as três aproveitaram para entrar em casa e foram até o quarto visitar o dono. Ele estava dormindo e elas voltaram tristes. Alguns dias depois, elas voltaram ao quarto e o viram melhor. Ele já se sentava na cama e tomava café. Elas ficaram felizes abanando o rabinho. Ele as chamou pelo nome e todas subiram na cama. Seu João deu um pedacinho de pão para cada uma. Elas ficaram ainda mais felizes. Foi aí que o seu João percebeu que a cachorrinha que mais estimava nem se importou com ele. Então se deu conta que não se pode fazer diferença nem com os animais. Eles precisam de carinho e amor como qualquer ser humano. Este fato serviu de lição para o seu João.

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Ação Cultural na Terceira Idade:

Ritinha Marli

Ritinha nasceu em uma pequena cidade do interior paulista e desde pequena acompanhava o seu pai no trabalho, um armazém aonde a maioria dos fregueses ia para comer mortadela e tomar vinho enquanto ouviam as histórias dele sobre as guerras e, principalmente, sobre Fidel Castro, o ídolo de seu pai. Também costumava ouvir os homens narrando suas aventuras amorosas e os diversos filhos espalhados pelo mundo. E ficou horrorizada quando viu uma jovem ser expulsa da escola e do clube da cidade porque o namorado espalhou como e onde namoravam. O único homem que parecia ser diferente dos demais, era um jovem senhor que vinha da roça para fazer compras. Ele sempre vinha com um chapéu de palha e uma roupa bem limpinha. Porém, sempre que ele ouvia a voz de uma mulher ou de uma menina, ele se afastava tampando o rosto com o chapéu. Na cidade, diziam que ele havia difamado a moral de uma linda jovem que, desesperada, cometera suicídio. Era o remorso que o fazia agir sempre dessa maneira. Ritinha e suas amigas esperavam ele chegar e assim que o viam, corriam atrás dele balançando a saia e dizendo em coro: “nós somos mulheres!, nós somos mulheres!...”. Ele sempre saia correndo e as meninas eram colocadas de castigo pelos pais, porém, no mês seguinte, a história se repetia. Ritinha cresceu imaginando que o homem era um ser muito poderoso e, por isso mesmo, queria ser também homem. Não queria seguir os passos da mãe e da avó que diziam “sim, meu amo!” para os maridos, mas também não gostava do medroso. 42


a criação de textos e a dimensão subjetiva do envelhecimento

Entrou para a faculdade, em um curso onde era a única mulher em uma turma de 150 alunos. Na faculdade, ela descobriu que nem todos os homens eram iguais àqueles que conheceu na infância. Conheceu homens educados, companheiros e fez muitos amigos. Chegou até a se apaixonar por um amigo da faculdade e se casou. Mas, antes de contrair o matrimônio, disse para ele: – Eu não sei cozinhar. E ele respondeu: – Não tem importância, eu sei. Ele achava que era modéstia da parte dela, pois todas as mulheres sabiam cozinhar naquela época. Mas ela não sabia nem fazer arroz ou café. E ele teve que ensiná-la. Ritinha foi um desastre na cozinha. Explodiu a panela de pressão quando foi cozinhar lentilha. Picou folha de louro na farofa, parecendo gilete. Melou toda a mão para fazer bolinho e não saiu nada... Seu marido chegou e em minutos terminou de fazê-los. Mas não era só na cozinha que ela se atrapalhava. Nem costurar uma meia ela conseguia. Porém, com muita paciência, seu marido foi a ensinando várias coisas e o medo de ser mulher foi sendo vencido. Hoje ela gosta de ser mulher, mãe e é muito feliz.

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Ação Cultural na Terceira Idade:

A história de João Batista Devair Alves

João Batista tinha 69 anos de idade e era filho de um camponês. Desde pequeno ajudou o pai como lavrador. Casou-se novo e teve 8 filhos. Ele se mudou para a cidade quando um de seus filhos lhe indagou: – Pai, eu queria estudar! Como João Batista não teve essa oportunidade ficou sensibilizado e se mudou com a família para a cidade. Foi trabalhar na indústria. Um de seus filhos se tornou contador e um outro foi trabalhar em um banco. Ambos ajudam financeiramente a família. Apesar de se sentir feliz por ter saído da fazenda e ter ido para a cidade grande, João Batista nunca se esqueceu da vida no campo, da floresta que dava abrigo a muitos seres vivos, como pássaros e esquilos. Ele fica emocionado quando seus filhos lhe dizem: – Meu pai, estamos muito contentes com a força que você nos deu! Obrigado pai pelo seu esforço. E ele responde: – Meus filhos, graças a Deus eu pude dar a chance para vocês estudarem, algo que eu não tive. Felizmente, vocês não terão as mesmas dificuldades na vida que eu tive.

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Solange Renata Aparecida Justel

Solange era uma jovem de bem com a vida. Isso incomodava sua amiga Marilena. Intrigada com a bondade da Solange, perguntou: – Solange, por que você faz questão de ser sempre boa com todos? – Ora, devemos sempre tentar dar o melhor de nós, sem esperar nada dos outros. – Mas Solange, me explique isso direito... Existem tantas coisas que não compreendemos. Existem pessoas boas e pessoas más. São tantas coisas que acontecem em nossas vidas. Eu não consigo entender o porquê das guerras, as revoltas da natureza... – Sabe Marilena, se você fizer a sua parte, sendo bondosa com todos, o mundo será melhor. É preciso hoje plantar o futuro que queremos colher. – Sabe Solange, acho que você tem razão. Nós seremos mais felizes se pensarmos dessa maneira.

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Ação Cultural na Terceira Idade:

Alegria, alegria! Dulce Julião

Minha cachorrinha Fanny havia quebrado a patinha. Ela estava se recuperando, mas o fato dela não poder fazer as suas traquinices, deixava-a desanimada. Ela até tentava pegar seu toco de rabo, esbravejava com uma mosquinha que teimava em não lhe dar sossego, mas nada disso a deixava feliz. E parecia que eu a ouvia dizer: “Que vidinha parada!”. Cansada de não ter o que fazer, ela se deitava originalmente, com a cabeça entre as patinhas, e se aquietava, esperando o tempo passar. Foi aí que tive uma idéia. Havia na rua, um cachorro maltrapilho do qual ela gostava muito. Era o seu amigo Salô. Ele era Terrível! Não havia cachorro mais bagunceiro na região! E eu pensei: “assim que o Salô passar por aqui, vou deixá-lo entrar e visitar a Fanny”. E foi o que fiz. Quando ele passou na rua com uma enorme bola de borracha na boca, eu o chamei e o deixei entrar em casa. Assim que a Fanny acordou e o viu, adorou a surpresa. A felicidade dos dois era imensa. E parecia que eu os escutava conversando: – Hei, você não vai acordar? Vamos brincar! – Estou acordando Salô! Mal consigo abrir os olhos. Você não vê que eu os abro e fecho toda hora? – Ah! Você é muito mole, é uma palerma! – Você sabe que a filha da minha dona, a Duda, está viajando. Estou morrendo de saudade... – E eu com isso, Fanny? Eu quero mesmo é brincar... – Logo, logo, ela liga aqui para casa e vou saber como ela está. Não suporto mais a saudade. – Entendo! Então é por isso que você pula, late, grita, fica parecendo uma Maria acesa quando seus donos conversam ao telefone? 46


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– Adivinhão! Um dia desses vou tirar o telefone da mão deles e falo eu mesma com a Duda. Como uma cachorrinha saudosa sofre... – Que bobagem, Fanny! Você é uma sonhadora. Isso nunca vai acontecer. Você não sabe segurar o telefone e cachorros não falam! – Mas eu tenho certeza que ela entenderá os meus latidos... Obviamente que, enquanto conversavam, iam virando a casa de pernas para o ar. E, depois de algum tempo, lá estavam os dois dormindo juntinhos, felicíssimos, como se fossem dois anjinhos.

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Ação Cultural na Terceira Idade:

A semente de girassol Luzia Izabel Picchi

No tempo em que ninguém sabia o que era um girassol, uma semente muito miudinha foi parar em um saco com sementes de outra espécie. Desconhecendo aquela semente, o cultivador resolveu separá-la das outras. Ele, porém, não percebeu que a jogou em uma terra fértil. Passou-se algum tempo e ela se transformou em um vigoroso e belo pé de girassol. E quando vieram as chuvas, brotou uma linda flor que seguia o sol brilhante, encantando a todos. Suas pétalas amarelas e seu miolo coberto com várias sementes, chamavam a atenção de todos. O cultivador ficou curioso para saber porque tantas sementes e para que seriam úteis. Com o passar dos anos, descobriu que as sementes eram ótimos alimentos para os pássaros, e que também serviam para se fabricar óleo e enriquecer a alimentação humana. Graças àquela pequena semente, hoje os fazendeiros daquela região cultivam grandes áreas com girassol.

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a criação de textos e a dimensão subjetiva do envelhecimento

A velhinha moderna Valda P. de Souza

Existe em minha cidade uma velhinha que mora em uma chácara e gosta de ir todos os anos para a praia. Ela é uma pessoa bem moderna e gosta de se vestir bem, com roupas coloridas e brincos grandes. Ela esbanja saúde, mesmo aos 83 anos de idade. Seu nome é Doraci. Alguns anos atrás, ela quebrou o pé e mesmo assim ela foi à praia. Para tomar banho de mar, enrolou um plástico no pé. Ela permaneceu feliz, mesmo com o pé quebrado. Para tudo ela dava um jeito. Porém, seu pé começou a doer e ela procurou uma casa de saúde no litoral. Ao se consultar com o médico, este falou: _ A senhora não pode molhar o pé na praia, nem com um plástico enrolado nele. A água é fria demais e vai fazer a dor aumentar. Mas ela não obedeceu a recomendação do médico e, nos dias seguintes, voltou a tomar banho de mar. Como ele havia previsto, o pé começou a inchar e a dor ficou insuportável. Ela, envergonhada, procurou outro médico que também a repreendeu e ainda receitou cinco injeções e nada de praia por uma semana.

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Ação Cultural na Terceira Idade:

A minhoca Darcy Julião

Era uma vez uma minhoca que não queria nada com a vida, só queria saber de sombra, terra fofa e úmida. Mas, num certo dia, ela descansava tranquilamente quando se aproximou um pássaro muito sábio que resolveu ajudar aquela minhoca a se melhorar e perguntou: – O que você faz aí na superfície da terra? E a minhoca, inocentemente, respondeu: – Estou me refrescando um pouco nesta sombra. – Não seria melhor você descansar embaixo da terra? - retrucou o pássaro. – Cada um descansa do jeito que quer! Vá embora e me deixe em paz! – Acho que você ainda não sabe que os pássaros adoram comer minhocas. Se você ficar aí dando sopa eu vou te engolir e saciar a minha fome... Ouvindo isso, a minhoca rapidamente afundou-se na terra e lá permaneceu assustada e com medo do pássaro. Pouco tempo depois, dois homens passaram por ali e vendo o húmus produzido pela minhoca, resolveram recolher aquele material, elogiando a qualidade. A minhoca descobriu que as pessoas apreciavam o trabalho realizado por ela. Isso a deixou muito feliz e passou a produzir conscientemente muito mais húmus. Também começou a canalizar vias para irrigação subterrânea e outras coisas mais que facilitavam a agricultura. Sentindo-se realizada, nunca mais foi preguiçosa e começou a estimular outras minhocas para o trabalho produtivo. Foi assim que ela percebeu que a vida era muito mais do que sombra e terra fofa. O mais importante de tudo na vida é ser útil para os outros. 50


a criação de textos e a dimensão subjetiva do envelhecimento

O canarinho Irene Feitosa

Expresso através do meu canto tudo o que penso. Isto me deixa feliz. Eu sou um canarinho que adora cantar para a minha dona, não importa se ela está lavando roupa, cozinhando, limpando a casa ou ouvindo música. Ao lado dela, sinto-me como se estivesse em uma floresta cheia de árvores com meus companheiros. Apesar de me sentir feliz por levar alegria para a minha dona, que me ama muito, tinha dias que me sentia solitário. Certo dia, percebendo que eu estava triste, ela falou: – O que está acontecendo com o meu bichinho? O que está se passando com você? E eu respondi, cantando: – Eu gostaria de ter uma companheira, formar uma família e ter muitos filhotes... Parece que ela entendeu o que eu disse porque, no dia seguinte, ela trouxe uma canarinha para casa e juntou galhinhos que encontrou no quintal, adequados para a confecção de um ninho, bem aconchegante. Eu fiquei muito feliz. Aproximei-me dela, que bateu as asinhas para mim, dando sinal que também estava contente com aquele encontro. Ela conquistou meu coração. Naquele mesmo dia fizemos juras de amor e resolvemos constituir uma família. Já se passaram alguns anos e nesse tempo tivemos filhotes que já cresceram e já temos até netos. Nossa dona fez um viveiro enorme que parece uma floresta. Dentro dele tem frutos, flores e também um grande lago para que possamos nos refrescar e beber água limpa.

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Ação Cultural na Terceira Idade:

A estrela sem luz Rosa Accioli

Era uma vez uma estrela muito triste que, no seu espaço, estava sendo discriminada. Ela sofreu muito, pois se sentia ofendida pelas outras estrelas. Gradativamente, sua Luz foi se apagando. Procurou vários caminhos para reacender sua Luz, mas nenhum deles funcionava. Porém, em um certo dia, lembrou-se que o Sol tinha uma Luz muito forte e pensou que poderia pedir um pouco para ele. Aproximou-se dele e disse: “amigo Sol, você que tem uma Luz tão intensa, me dê um pouco, por favor!” E o Sol respondeu: – Minha cara amiga estrela, eu não posso fazer isso. Você é que precisa fazer sua Luz voltar a brilhar. Você já tem dentro de você tudo o que precisa para a reacender. Para isto, basta amar. A estrela voltou esperançosa para o seu canto e disse para si mesma que, a partir daquele dia, não descansaria enquanto não voltasse a brilhar como antes. E assim, através da valorização de sua própria força interior, voltou a ser bonita e brilhante. Hoje, se olharmos para o céu, a veremos tão brilhante quanto o Sol.

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a criação de textos e a dimensão subjetiva do envelhecimento

O pé de Ipê Palmira Pez

Em um bosque, longe do agito das cidades, havia um Ipê muito tímido, porém, muito exigente com ele mesmo. Ele era extremamente perfeccionista e exigia que suas flores fossem sempre perfeitas, todas iguais, sem variação de cor e sem manchas que as deformassem. Apesar disso, ele era muito sensível e tolerante com os outros, fato que o tornou líder naquele bosque. O que sempre o deixava muito feliz era ver e sentir os pássaros criando ninhos em seus galhos ou sobrevoando suas flores. Nos dias ensolarados, se alegrava vendo os raios do sol atravessando sua copa e, nos dias de chuva, adorava sentir a água caindo sobre seu corpo e irrigando suas raízes. E nas noites de Lua cheia, ficava admirando o céu e as estrelas. Além disso, era nesse período que as águas do rio subiam e se aproximavam dele, com suas águas serenas e cristalinas. O rio sempre chegava da mesma maneira e cumprimentava os Ipês, afirmando que suas flores embelezavam o bosque. Também cumprimentava uma Jaqueira e agradecia pelos seus frutos maduros caídos no chão e que eram recolhidos pela sua água. Por onde passava, o rio dizia: – Olá meus amigos. Estou muito feliz em revê-los. Como sempre, todos muito floridos e sorridentes. Eu, por minha vez, sigo com as minhas águas e peixes levando energia e alimento pelos caminhos determinados por Deus. E o pé de Ipê, como porta-voz do grupo agradecia: – Querido amigo rio, nós é que agradecemos a Deus pela água que nos fornecesse, sempre cristalina e saborosa. Siga o seu rumo sempre em paz e não se esqueça jamais de nós. Aqui você sempre será bem-vindo e tratado com o res53


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peito e amor que merece. Com a mudança da Lua, o rio se afastava daquele bosque, fechando mais um ciclo em sua jornada, deixando o Ipê com saudade, mas esperançoso de um novo encontro dali a algumas semanas.

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O cão e o gato Akira Ninomiya

Certa vez, na cidade de Marília, no interior do estado de São Paulo, dentro de uma granja, dois filhotes, um de cachorro e outro de gato, se conheceram. O cachorro era o responsável pela segurança do local e o gato lá chegou em busca de comida. Ao contrário do que se imaginava, o cachorro adotou o gato como amigo. A amizade entre os dois era admirada por todos, mas, infelizmente, o cachorro foi doado para uma família residente em São Paulo, o que deixou os dois amigos muito tristes. Depois de alguns meses, o gato tomou coragem e disse que partiria para São Paulo em busca do amigo, sem imaginar a distância que os separava e o tamanho daquela cidade, o que dificultaria o encontro com o amigo cão. Foram longos meses de viagem e de aventura, mas, praticamente esgotado, o gato chegou à capital do estado. Para sua sorte, o cachorro havia ficado conhecido pelo fato de ter ajudado a salvar uma criança durante uma enchente e sua imagem estava sendo exibida em todos os canais de televisão. Graças a este fato, foi fácil encontrar o amigo. O cachorro ficou muito surpreso e feliz quando viu seu amigo chegando e chorou muito de emoção. Apesar do tempo e da distância, ele jamais havia se esquecido dos momentos agradáveis que passaram juntos na granja.

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A guerra dos animais Elisa Gonçalves

Esta história eu costumava contar para os meus filhos, quando eles eram pequenos. Era sobre a guerra entre os quadrúpedes e as aves. O primeiro grupo era chefiado pelo leão, pelo elefante e pela pantera. Já as aves, pelo avestruz. E este dizia aos seus súditos: – Amigos! Eu não posso acompanhá-los no vôo, mas os orientarei, além de passar as armas com as quais venceremos os inimigos: 3 ovos. Você, águia, deverá acertar a cabeça do elefante. Já o falcão, a do leão. Por fim, cegonha, você acertará a pantera. Quando os demais animais perceberem que seus líderes foram derrotados, fugirão com medo. E mandaremos nossa aviação de caça, as vespas, sobre todos eles. A vitória será nossa! E assim aconteceu. O elefante, ao ser atingido, revirou a tromba, deu um suspiro e desmaiou. Em seguida o leão e a pantera foram também atingidos. As hienas, desesperadas, começaram a gritar em todas as trincheiras que seu líderes estavam mortos. Virou uma confusão tremenda. E quando todos os animais se preparavam para fugir, foram cercados pelas vespas. E foi assim que as aves derrotaram os animais de quatro patas.

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A lagarta encantada Creusa Lopes

A horta era grande. Havia uma infinidade de verduras: alface, almeirão, couve, pimenta, tomate, cebolinha, salsa, agrião, entre outras. Era um verdadeiro paraíso para a lagarta que não fazia outra coisa senão comer. No canteiro de couve, duas plantas chamavam a atenção. Uma, pela estrutura de seu caule, tamanho e cor de suas folhas, podia se afirmar, sem sombras de dúvidas, que era mais velha. A outra, também pela estrutura, via-se que era bem jovem. A planta jovem vendo a lagarta disse: – Lá vem aquela nojenta. Ainda ontem comeu um pedacinho de uma das minhas folhas. Veja! Fiquei deformada... A planta mais velha riu e disse: – Ora Nininha, mais cedo ou mais tarde, suas folhas terão que ser cortadas e, provavelmente, irão alimentar alguém. Para isso você nasceu. – Eu sei, tia Nena, mas não quero ser devorada por essa lagarta nojenta, gostaria de ser servida em um banquete. Depois outra, eu não gosto dela. Veja! ela já esta furando o tomate... – A lagarta não vai durar muito tempo, Nininha. Pode observar que, logo, logo, ela vai morrer, ou seja, passar por uma transformação. – Transformação? O que é isso tia? – Fique observando Nininha, você ainda tem muita coisa a aprender. Assim, Nininha passava as horas observando a lagarta. Viu quando ela se rastejou até um galho mais grosso da pimenteira e começou a construir com matéria de seu próprio 57


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corpo um casulo que ficou pendente no galho. Isso desagradou Nininha. – Veja tia, ela agora pendurou sua mortalha bem na minha frente. Fez de propósito, não quero olhar mais... – Teu erro, Nininha, é olhar tudo pelo avesso. Na verdade, o casulo, ou a mortalha, como quer você, não precisa ser olhado como túmulo, pode ser visto como útero. – Útero?! Ah! agora que não estou entendendo mais nada mesmo. O útero não protege a vida? E ela não está morrendo? – Eu disse que ela ia passar por uma transformação. Muitas vezes na vida é preciso morrer. Não falo da morte física. É preciso abandonar aquilo que sempre fomos para nos tornar uma outra coisa. Podemos chamar isso de metamorfose. E nunca é fácil, Nininha Numa manhã bem colorida, para espanto de Nininha, de dentro do casulo, por ela intitulado mortalha, saiu uma esplêndida borboleta azul, deixando a manhã ainda mais bela. Antes de virar um belo refogado de couve, acompanhamento de uma suculenta feijoada, Nininha aprendeu que a metamorfose também pode ser chamada de ressurreição, e para que haja ressurreições é necessário que primeiro haja mortes. Se a lagarta não tivesse morrido, ela seria sempre a lagarta nojenta, segundo Nininha. Mas, morrendo, ela virou uma borboleta azul. O tempo tem o poder de transformar as coisas e as situações. Uma lagarta vira borboleta, um velho transformase novamente em criança. Seria esse o fim de nossas longas explorações de adultos? Chegar ao ponto de onde partimos, a criança, para então nos reconhecemos pela primeira vez?...

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A criança e o médico Dirce Sanchez

Ruth foi uma criança muito ativa e inteligente. Ela morava em uma fazenda e lá vivia subindo em árvores para brincar. Numa certa manhã, se deparou com um enxame de abelhas e levou tantas picadas que caiu da árvore e quebrou o braço. Sua família a levou para o hospital, na cidade mais próxima, e lá ela ouviu o médico dizer: – Você só tem 6 anos de idade e já faz tantas travessuras! Você é uma menina muito esperta. Quando você crescer quero que você seja minha secretária. E se você tiver vocação para a medicina, tenho certeza que será uma excelente médica. Ruth, porém, respondeu com certo desdém: – Eu sou muito criança para pensar nestas coisas. E como se profetizasse sobre o futuro, falou: _ Mas eu quero mesmo é ser cantora! Duas ou três décadas se passaram e a cidade cresceu muito. Ninguém mais se lembrava daquela história no hospital, quando os jornais anunciaram o show de uma cantora que havia nascido em uma fazenda da região e que era sucesso internacional. Ao ver a matéria, o médico ficou emocionado e fez questão de ir à apresentação e rever sua antiga paciente. Após a apresentação que o encantou, ele foi ao camarim abraçá-la e lhe dar parabéns. Assim que ele entrou, Ruth o reconheceu e ficou tão feliz com o reencontro que o convidou para ser o padrinho em seu casamento. Na hora ele aceitou. Além de padrinho de casamento, o médico também foi o padrinho de seu primeiro filho. Hoje, Ruth canta apenas na escola para a terceira idade que frequenta e não mais profissionalmente. Ela já está velhinha e aposentada, e sonha com o dia em que poderá cantar no céu, reencontrando seu velho amigo médico. 59


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Uma gota de chuva Marelisa

Em algum lugar no espaço, bem longe da Terra, milhões de gotinhas de chuva conversavam, fervilhavam, questionavam-se mutuamente: – Quem chegará à Terra? Com quem iremos? Com a furiosa tempestade ou com a garoa tranqüila que refresca as tardes de verão?... Repentinamente, sem que nenhuma conseguisse se despedir das demais, inicia a trajetória de uma límpida gota em direção à Terra. Enquanto descia, imaginava como seria feliz se pousasse nas pétalas de uma rosa, podendo sentir o seu perfume ou, então, ajudar a umedecer a relva e refrescar os pés dos viajantes cansados que lá buscariam refúgio e paz. Também gostaria de parar no lago próximo ao bosque onde poderia ouvir as conversar dos enamorados... Porém, enquanto ela sonhava com o seu futuro, não percebeu que inúmeras gotinhas foram unidas para a criação de uma forte chuva da qual também fazia parte. Ao chegar à Terra, se entristeceu ao ver que contribuía para que algumas pessoas perdessem tudo o que possuíam; estragou a festa de casamento de uma jovem romântica, entre outras coisas negativas causadas pela chuva. Triste e desolada, ficou questionando o porquê daqueles fatos, mas ficou aliviada quando percebeu que ela não tinha tanta responsabilidade sobre muitos danos. Se os bueiros, esgotos e outros locais não estivessem sujos e entupidos menor seria o estrago. Continuou sua trajetória rolando, espichando-se para penetrar nas superfícies apertadas até chegar próxima de uma enorme quantidade de água azul, clara e bonita. Timidamente pediu licença para unir-se àquelas águas. Ela foi recebida, 60


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porém, precisaria ficar às margens da represa, longe de suas profundezas. Sentiu-se realizada com as crianças que vinham molhar os pés, brincando nas margens da represa. Ficava contente com os passarinhos que lavavam a plumagem e matavam a sede. Porém, o tempo passou e chegou a hora dela virar vapor. Ela subiu, subiu e chegou novamente ao espaço. Várias gotinhas se aproximaram dela e perguntaram: – Como foram seus dias na Terra? E ela respondeu: – Estive em lugares tristes e situações difíceis, mas também passei momentos maravilhosos. Com os difíceis aprendi; nos maravilhosos, dividi. Uma outra gota se aproximou e querendo ironizá-la falou: – Para quem queria morar apenas em jardins, não deve ter sido muito fácil... – Realmente, não foi. Mas estou feliz por ter conhecido um mundo que talvez você não conhecerá, pois a Terra está passando por grandes transformações. Eu desci, vivi, sofri e me sinto realizada... As outras gotinhas entreolharam-se e resolveram ficar quietinhas, apenas olhando a longínqua Terra lá de cima. E foi assim a história dessa gotinha que viveu dificuldades, mas não se deixou abater, pois sempre acreditou que o acaso não existe e tudo o que acontece é para o aprimoramento de todos os seres.

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Fraternidade Benedito Oliveira

Naquele dia, eu me sentia deprimido, desolado. Julgava-me um criminoso. Minha consciência me acusava de mil horrendos pecados. Ouço bater em minha porta, quem será? Corro atender, sem nada entender. Lá estava um senhor de meia idade, uma mulher e duas crianças, que deduzi serem seus filhos. – Estou pedindo, senhor... e mal terminou a frase de tão envergonhado. Mas algo estranho havia no olhar dos recém-chegados e eu disse: – Entrem nesta humilde casa, sou aposentado. Cheguem à minha mesa, não se façam de rogados. Há café, pão, leite... sintam-se à vontade. Mas, desculpe-me, não fomos apresentados. – Sou Justino, minha mulher e meus filhos. Gustavo e Carlinhos são arteiros, são danados. E eu perguntei, preocupado: – Estes meninos estão na escola? – Não exatamente, eles estavam. Meu desejo é arrumar um emprego e amparar minha família. Obrigado amigo pela acolhida, mas já vou indo cuidar da vida. A morte é certa e peço desculpas por incomodá-lo logo cedo. Emocionado, recolhi aquela família por alguns dias. Seu Justino arrumou serviço e a esposa também. Os meninos voltaram a freqüentar a escola. Apesar de idoso, ainda me sinto pronto para socorrer os outros.

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Posfácio Foi muito gratificante acompanhar a produção textual dos alunos da UATI ao longo dos últimos anos. Tudo começou em 2008, quando os estimulei a participar do concurso Talentos da Maturidade e ofereci uma oficina para ajudá-los na produção do texto. Apenas quatro se inscreveram em um universo de aproximadamente 200 alunos. Mesmo assim, tivemos uma grata surpresa quando soubemos que o aluno Antonio Almeida havia sido um dos vencedores na categoria contação de histórias. O fato despertou o interesse de outros alunos e, em 2009, 21 textos foram produzidos e inscritos no referido concurso. Os textos foram elaborados em oficinas ministradas durante as férias escolares do mês de julho. Estimular a leitura e a criação de texto na terceira idade foi se tornando, gradativamente, um trabalho muito prazeroso. Com mais alunos interessados, em 2010, foi possível ministrar, pela primeira vez, uma disciplina regular voltada para a “criação de textos literários”. A disciplina seguiu um roteiro criado por mim, onde, em cada encontro, os alunos tinham uma tarefa a cumprir: criar personagens, diálogos, contextualizar o tempo e o espaço da narrativa etc. E tudo isso a partir da própria experiência de vida, projetando-se, de certa forma, na personagem. Com este processo, visávamos, acima de tudo, o autoconhecimento. Assim, mais importante que simplesmente estimular a produção de textos, está o chamado “processo de individuação” da pessoa idosa. Acredito que, ao escrever ou mesmo narrar sua experiência de vida através de personagens fictícios ou não, todo esse processo permite que novos universos simbólicos venham á tona e o processo gerontagógico se torna mais rico com a manifestação de imagens e arquétipos que vão ganhando forma durante as narrativas. Esta possibilidade de parar para refle63


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tir sobre sua experiência de vida propicia o autoconhecimento e favorece a realização do self (Eu profundo). Não é à toa, por exemplo, que as práticas educativas do Oriente valorizam tanto as narrativas e a contação de histórias, pois elas possuem um caráter transformador, integrando o campo do consciente (elemento de diferenciação individual) e do inconsciente (campo da união cósmica). E este trabalho é valido na educação de crianças e também na de idosos, pois é uma experiência universal e atemporal. Além disso, estimula a memória, o raciocínio, a expressão e a criatividade, tão necessários como a atividade física ou uma alimentação mais saudável nesta etapa da existência humanizada. O ato de escrever e de narrar um texto é um dos mais significativos recursos em qualquer trabalho de anima-ação cultural, entendendo esse termo conforme o defini em minha tese de doutorado “nossas lembranças mais pessoais podem vir morar aqui!”, defendida em 2003, na USP, ou seja, em um programa sócio-cultural voltado para o autoconhecimento e para a realização do Self, partindo da experiência de vida para chegar à consciência da (in)finitude. Adilson Marques - graduou-se em Geografia pela USP, onde também fez o mestrado em Educação Comunitária e doutorado em Antropologia das Organizações. Desde 2003 leciona na Universidade Aberta da Terceira Idade (UATI), na cidade de São Carlos/SP. Idealizou e coordenou o projeto Homospiritualis que, durante a década da cultura de paz (2001-2010) organizou vários eventos para estimular a tolerância religiosa e a diversidade cultural no município. É autor de 18 livros, sendo este o terceiro que aborda a questão do envelhecimento. Os outros livros relacionados com a terceira idade são: – Nas Trilhas Indeléveis de Hermes: memória, topofilia e ação cultural (2004) – Envelhecimento e Espiritualidade (2005) 64


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Os alunos escritores da UATI, em ordem alfabética: Antonio Almeida - Cirurgião dentista aposentado, reside em São Carlos desde 1944. Akira Ninomiya - Nasceu em 1938 na cidade de Marília. Está na UATI desde 2007 e se sente em casa ao lado dos amigos. Benedito Oliveira - Nasceu em São Carlos em 1938. Trabalhou como telegrafista Morse. Catharina Marino - Está na UATI há sete anos. Fez muitos amigos e se sente feliz. Creusa Lopes - Nasceu em Jaú em 1950. Mudou-se para São Carlos ainda na infância e gosta muito das aulas da UATI. Creuza Tassinari - É casada. Tem um filho e uma neta. Ama muito a família. Darcy Julião - Nasceu em Nova Europa e veio para São Carlos em 1975. É casado e procurou a UATI para se manter atualizado. Devair Alves - Ex-trabalhador rural, passou muitas dificuldades na vida, mas agradece sempre a Deus pela família que tem. Dirce Pierin - Adora a UATI, os professores, os funcionários e os demais alunos. Dulce Julião - Nasceu em Barretos. Tem 3 filhos e gosta de cantar e interpretar. Elisa Gonçalves Papa - Adora ler e escrever. Herdou do pai o talento para contar histórias. Geraldo Rodrigues - Nasceu em Jaú. É artista plástico e gosta de assuntos relacionados com espiritualidade. Gracia Santa - Tem 84 anos e é uma pessoa extrovertida. Adora contar histórias. Irene Feitoza - Tem 77 anos e adora manga. Na UATI se sente realizada. Jeni Diniz - Foi para a UATI graças a uma amiga. A escola transformou a sua vida. Jovino Bueno - Nasceu em 1942 em Araçatuba/SP. Gosta de música e poesia. Na adolescência participou de uma dupla sertaneja. Lourdes Ferraz - Foi professora da rede pública de ensino e se aposentou como diretora de escola. Gosta muito de escrever. 65


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Lucia Ferreira - Considerasse uma pessoa feliz. Frequenta a UATI desde 2007. Luzia Izabel - Professora aposentada, adora plantas e as aulas da UATI. Madalena Soares - Apesar das dificuldades na vida, confia plenamente na bondade de Deus. Marelisa - Adora livros espiritualistas e ajudar o próximo Maria Aurea - Adora música clássica e popular. Na UATI suas disciplinas favoritas são as relacionadas à música. Maria Cavallaro - Nasceu em 1928 em São Carlos. Queria ser advogada, mas teve que parar de estudar ao terminar o primário. É feliz por ter conseguido garantir os estudos aos cinco filhos. Maria Kanashiro - Esta na UATI desde 2005 e é muito feliz. Maria Rosa - Gosta de jogar baralho e se diverte com os cinco netos e os dois bisnetos. Maria Terezinha - Professora aposentada. Sente muita saudade do pai. Marli - Formou-se em Engenharia numa época em que apenas os homens procuravam essa profissão. Aprendeu a cozinhar com o marido. Palmira Pez - Nasceu em 1945 em Termas de Ibirá. Esta na UATI, campus 2, desde sua inauguração, em 2005. Serafim Rodrigues - É católico, mas gosta de estudar sobre todas as religiões. Renata Aparecida Justel - Nasceu em Santos e freqüenta a UATI desde 2007. Gosta de estudar o budismo. Rosa Accioli - Nasceu em São Carlos, em 1945. Sua família descende de portugueses e de franceses. Está na UATI desde 2007. Valda Souza - Vaidosa, gosta de participar de desfile de modas e de viajar.

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