978-85-65242-29-5-O próximo alvo-WEB

Page 1

Capítulo 0 – Não conheço ninguém que baixe tanta porcaria como você, viu? – disse o amigo que ia ao lado, no banco de passageiro da frente. – Cara, eu já disse, HD não é lixo. Mas, também, um tera é para isso mesmo, não é? – Uma coisa não tem nada a ver com a outra – disse George. – Tem sim – um dos dois amigos que iam atrás ergueu a garrafa de cerveja. O nível etílico de todos, menos o motorista, já estava bem elevado. – Isso deve ter sido algum plugin que você instalou. – Estou falando – George tomou um dos poucos goles a que se permitia, já que estava ao volante. – O Internet Explorer parou de funcionar, do nada. Não instalei nada. Tive que usar o Firefox. Depois reinstalei o IE e tudo voltou ao normal. A Linha Vermelha estava totalmente livre, para a sorte deles. Tinham que chegar à Lapa antes de onze e meia, já que a turma do trabalho havia planejado uma festa surpresa para Joana, funcionária da mesma equipe de programadores. – Não dá para ir mais rápido? – perguntou o passageiro do lado. As palavras já saíam mais arrastadas. – A Joana é uma garota de programas. Faz programas, assim como todos nós – ele enfatizou


o “programas” e deu uma gargalhada. – Infelizmente não dá para dizer “assim come todos nós” – os que iam atrás riram. – Sim, ela merece nossa consideração... – disse George. Eis o resultado de três programadores ficando bêbados: piadas sem graça e um senso de humor aflorado. George era o sóbrio da vez. Já estava imaginando como seria a volta do bar. Talvez tivesse que arrastar algum deles até dentro de casa, novamente. – Que sorte, hein? – George comentou com o colega ao lado e apontou para o fluxo contrário, totalmente engarrafado. – Ah, sexta-feira. Normal. – Já passa das onze. Deve ter acontecido alguma coisa. Eu passei por aí mais cedo. Estava ruim, claro, mas não estava tão parado – George deu uma pausa na cerveja. Nunca se sabia quando poderiam encontrar uma blitz pela frente. Já tendo passado pelo hospital do Fundão, notou a luz de um farol que persistia no retrovisor interno. – Por que esse cara não passa logo? – perguntou George. O amigo olhou para trás. – Deve estar fumando, conversando com o garupa, sei lá. Sabe como é motoqueiro. Os colegas que iam atrás se viraram para observar o motociclista e ergueram as garrafas, propondo um brinde. Segundos depois, a motocicleta emparelhou do lado esquerdo do carro. O garupa olhava através do vidro. – Cara, acho melhor ir mais rápido – disse o amigo que ia na frente. George acelerou. A tranquilidade se transformou em pânico num milésimo de segundo. Como qualquer carioca, ele estava ciente do que representavam dois homens numa motocicleta àquela hora da noite: podia ser um assalto. A qualquer momento, algum deles poderia sacar uma arma ou atirar uma pedra. Certamente não estavam bem intencionados.

12


A adrenalina continuou invadindo suas veias, e sua respiração cada vez mais rápida acompanhava a aceleração do carro. Contudo, o esforço de George não adiantou. O motociclista acelerou também, mantendo-se próximo à porta. George olhou em volta, mas não havia sinal de cabine da Polícia por perto. Quando George tentou mudar para a faixa da direita, já próximo à saída para a Linha Amarela, o garupa sacou uma arma e deu dois disparos, atingindo seu peito. Ele sentiu suas forças se esvaírem. A motocicleta partiu em disparada. – Cuidado! – gritou seu amigo. George freou o carro para impedir uma tragédia maior, fazendo os pneus cantarem. Perdeu o controle e atingiu uma minivan, que não reduziu a velocidade mesmo com a lateral totalmente amassada. Ninguém pararia para ajudar ou para tomar satisfação naquele ponto da Linha Vermelha, principalmente depois de presenciar uma cena daquelas. – George! George, fala cara! Diz alguma coisa! Com o carro parado bem no meio da pista, seu amigo tentou obter alguma resposta, mas ele não conseguia se mover. Tentou virar os olhos para a direita, mas não pôde. Sua visão já começava a ficar turva. Os que iam atrás saíram e começaram a tentar ligar para obter ajuda. Suas vozes ficavam cada vez mais distantes. O amigo tocava o seu braço direito e sacudia-lhe o corpo enquanto o encarava, mas os sentidos já não captavam nada. Sua consciência desapareceu em meio ao olhar desesperado do colega de trabalho. Seu último pensamento: nada de aniversário surpresa naquela noite.

13


Capítulo 1 Mais uma vez na terra natal. Matheus visitava a mãe e o irmão sempre que podia; geralmente durante as festas de fim de ano. Naquele mês de março, entretanto, conseguiu uma brecha, uma sexta-feira de folga, e aproveitou uma boa promoção para comprar uma passagem e permanecer até a noite de sábado com eles. Apesar da folga, ele trouxera seu notebook. Havia trabalhos pendentes que não podiam esperar até segunda-feira. Melhor dizendo, seu chefe não podia esperar até segunda-feira. Sentado à mesa de jantar, Matheus trabalhava nos laudos da operação I-Licitação II. – Não acredito que veio aqui para trabalhar – disse João Paulo ao entrar na sala. – Como sabe que estou trabalhando? Existe bola de cristal em Braille agora? – Daria para ouvir o barulho das teclas a quilômetros. Antes de seu irmão perder a visão, Matheus não acreditava que a audição de um cego pudesse ser tão apurada, especialmente quando a cegueira não fosse de nascença. Por mais que estivesse acostumado, sempre se surpreendia.


– Estou só navegando na internet – disse Matheus, brincando com os sentidos do irmão. – Só enquanto a mãe prepara o almoço – sabia que seu irmão podia perfeitamente distinguir entre o padrão de digitação de alguém trabalhando e o padrão de alguém atualizando suas redes sociais. – Ah, claro – João Paulo se sentou no sofá. – Com essa atividade frenética no teclado, deve ser algum jogo bem interessante. – Pelo menos estou gastando mais calorias que você. Ambos tinham porte físico semelhante: eram altos e relativamente fortes. Fora isso, contudo, alguém que os observasse dificilmente notaria outra semelhança. O irmão não ligava tanto para o penteado, por razões óbvias, enquanto Matheus costumava partir o cabelo para o lado, e por isso o chamavam de Clark Kent quando fazia faculdade. Além disso, enquanto o resultado do sedentarismo podia ser visto na cintura de João Paulo, Matheus mantinha a forma física em dia. João Paulo ligou a TV e começou a mudar de canal a cada 20 segundos, em busca de algo para ouvir; era uma mania com a qual Matheus estava acostumado desde pequeno. – Se conheço bem o meu irmão caxias, que é pontual até para ir a festa de casamento, vai entregar esses laudos absolutamente dentro do prazo. – Ok, eu sou um cafona que tem a mania de chegar no horário certo aos casamentos. Eu admito – Matheus deu um longo suspiro. – Sabe como é, ainda não me acostumei com essas modernidades. Sempre esqueço que os convites de casamento já não trazem mais o horário da cerimônia. Eu fui a um no ano passado, por exemplo, e o convite veio mais ou menos assim: “Data: 29 de maio de 2010. Horário: você decide!”. João Paulo riu alto da piada. Matheus apenas sorriu com o canto da boca. Dona Glória Erming saiu da cozinha. Aproximou-se e beijou Matheus na cabeça sem precisar se abaixar muito.

15


– Vou pôr a mesa para o almoço. – Tudo bem, mãe. Matheus desligou o notebook e a ajudou. Com a refeição servida, sentou-se de frente para o irmão e ao lado da mãe. Era sua primeira refeição em família desde a chegada, no dia anterior. Ver João Paulo tateando a mesa para se servir ainda doía. Mais de 12 anos depois, todo o episódio voltava e ficava vívido em sua mente sempre que vinha visitá-los. Por mais que se comunicassem regularmente através do Skype, presenciar a deficiência ao vivo o fazia se lembrar de que o irmão precisava de ajuda para suas atividades diárias, e também de que sua mãe não podia contar com a ajuda do filho distante. Aquilo que Matheus estava presenciando era culpa sua. Essa culpa o atormentava como uma penitência eterna, que a distância atenuava, mas ficava mais dura a cada visita. Sabia que não dormiria bem por algumas semanas depois que voltasse ao Rio. João Paulo baixou o volume da TV. – E o trabalho? – perguntou João Paulo. – Nada de novo. Colete evidências. Proteja as provas. Escreva os laudos. Repita. Enfim, o ciclo interminável da Computação Forense. – Sei que já disse isso, filho, mas você não precisa morar no Rio para ser perito. Parece que vão abrir vagas novamente aqui mesmo, em Natal. – Fiquei sabendo, mas minha vida é lá no Rio. Você sabe. A viagem de Matheus ao Rio para iniciar seu mestrado, havia 10 anos, não fora surpresa para a família. Ele já havia começado vários meses antes a demonstrar seu interesse pela pesquisa acadêmica. O que não deixara claro era que realmente pretendia permanecer no Rio depois do curso. Anos depois, fora um dos primeiros num concurso para a Polícia Federal. – Além do mais – disse Matheus –, eu tive bons motivos para sair daqui.

16


– Uma dor profunda no coraçãozinho despedaçado – disse João Paulo. Matheus o olhou com ar de reprovação. Claro que o irmão não percebeu. – O que pretende fazer hoje? – perguntou dona Glória. – Acho que vou ficar em casa mesmo. Dois dias é muito pouco tempo. No máximo, talvez me encontre com uns amigos hoje à tarde. Talvez os mesmos que encontrei ontem à noite. – Fico feliz, mesmo que fique por perto só por dois dias – disse dona Glória. Matheus fitou sua mãe e sorriu. Depois, falou olhando para o irmão. Sentia que ele percebia a mudança no tom de voz quando o encaravam. – E esse trabalho remoto? Está dando certo mesmo? – Bem, uma das desvantagens de se trabalhar de casa é que acham que você pode trabalhar mais do que o normal, mas já estou acostumado. João Paulo trabalhava havia menos de um ano para uma empresa de consultoria em Telecom. Trabalhava sempre em casa, onde dispunha de seus aparatos de acessibilidade, enquanto seus colegas trabalhavam localmente, no CPD de uma empresa de telefonia. Perder a visão parecia ter trazido um impacto maior para Matheus do que para o próprio irmão. Foi um contratempo que não o impediu de se tornar um dos melhores no que fazia. Quatro anos mais velho, João Paulo sempre fora o mais inteligente dos dois, apesar do esforço sempre feito pelo caçula para ser o primeiro da turma. A um gesto de Matheus, sua mãe passou o arroz. Ela apenas ouvia. – Nem quando há algo novo em produção eles chamam para comparecer? – perguntou Matheus. – Não tem necessidade. A VPN deles funciona muito bem. Acesso o ambiente de produção, resolvo os bugs, faço tudo daqui. – Mas você sabe que existem meios de se locomover com eficiência, não sabe? – disse Matheus.

17


– Claro, cães adestrados, bengala, etc. Vai por mim, se eu puder ficar em casa, prefiro. Não preciso sair para “ver gente”. Além do mais, imagine se eu saísse todo dia para ir ao trabalho. Tropeçaria em tudo, com esse meu jeito estabanado, só para não perceber a cara de espanto de todo mundo ao ver as pontas estraçalhadas dos sapatos. De uma coisa Matheus sabia: também por sua culpa, seu irmão passara a ser mais recluso. Sempre extrovertido, João Paulo gostava de sair bastante quando enxergava. Agora, mal saía de casa, ainda mais com as facilidades para se comunicar de igual para igual nas salas de bate-papo virtuais. Era incrível como uma decisão errada podia afetar o resto da vida de alguém, sob tantos aspectos. – Ah, João. Estou pensando em apresentar outro trabalho na ICCyber. Mas, desta vez, vou tentar fazer uma apresentação melhor do que um gravador com a tecla Play pressionada. – Mesmo tema? – Uma melhoria do que apresentei na última vez. – Quem sabe algum dia a gente não apresenta algo juntos? – Lógica Contextual e Telecom? – Matheus parou para pensar, enquanto tomava seu suco. – Ainda não vejo como juntar as duas coisas. – Telecom e Computação Forense têm mais coisas a ver do que imagina! – João Paulo gesticulou com a mão direita, apontando para o irmão um pedaço grande de carne preso ao garfo, sem perceber. Matheus e sua mãe riram.

18


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.