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Sumário Capítulo 1

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Capítulo 2 24 Capítulo 3 32 Capítulo 4 44 Capítulo 5 58 Capítulo 6 67 Capítulo 7 78 Capítulo 8 89 Capítulo 9 103 Capítulo 10 117


Capítulo 11

132

Capítulo 12

144

Capítulo 13

160

Capítulo 14

173

Capítulo 15

185

Capítulo 16

201

Capítulo 17

215

Capítulo 18

231

Capítulo 19

248

Capítulo 20

262

Capítulo 21

274


Prólogo J

á faz alguns anos desde que o primeiro homem decidiu estudar a respeito de seus ancestrais. Afinal, todo ser humano morre – mas nem toda morte é devidamente explicada. Os estudos são parcialmente sigilosos e a maioria das universidades e de intelectuais não os admite; porém, mesmo às escuras, alguns assassinatos no passado puderam ser descobertos. Recentemente, todos os cientistas dessa área estavam buscando incansavelmente qualquer tipo de resto mortal da família do último czar russo, que tem sua história mundialmente conhecida e, muitas vezes, versões poéticas cada vez mais absurdas. A verdadeira questão é que já se passaram 15 anos de pesquisas e muito pouco foi descoberto, deixando que as versões fantasiosas se espalhassem ainda mais, tornando uma misteriosa história de guerra, de inimigos políticos, de magia, de assassinatos e, principalmente, de loucura. Contudo, os cientistas consideravam que parte dessas histórias poderia ser verdadeira. Afinal, ninguém cria nada de repente, e tudo possui algum fundamento. E, a partir desse novo foco de busca, os cientistas voltaram suas pesquisas para campos como a Metafísica, deixando a Sociologia de lado. E foi então que as verdadeiras descobertas começaram a aparecer...

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1 Novembro de 2002 Em algum lugar próximo à Broadway

L

una, para o chão! – Katy berrou, empurrando-me para a calçada de um beco escuro, enquanto ouvíamos um estilhaçar de vidro acima de nós. Eu tinha um pequeno problema desde minha infância, o qual só se revelava algumas vezes – e era muito conhecido por sonambulismo. Parecia que tinha exagerado dessa vez, e que tinha metido minha colega de quarto – e melhor amiga – Katy em uma encrenca horrível. Finalmente consegui acordar e coloquei as mãos sobre minha nuca, para tentar evitar que qualquer pedaço de vidro causasse algum tipo de ferimento completamente indesejado. Não que eu fosse uma pessoa que não se machucasse, muito pelo contrário, mas sinceramente queria evitar vidros na minha cabeça. – Meu Deus! Que diabos foi isso? – falei, engasgada, ainda cobrindo a cabeça e tentando observar Katy se levantando. – Eu não sei... – ela balançou a cabeça, sentando-se na calçada úmida. – Acho que estouraram uma janela de algum dos prédios, mas parece que a intenção foi realmente a de acertar nossas cabeças.

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Dei um risinho, já começando a achar graça da situação. Meu Deus! Como é que consigo fazer uma coisa dessas diante de tal acontecimento? – Por que alguém ia querer matar uma dupla de adolescentes? Realmente, somos duas garotas de 15 anos perdidas pela Broadway; então, qual seria o interesse em nos matar? Nos roubar, sequestrar, até faria algum sentido... Mas por que nos matar? – Luna, como é que a gente consegue? – O que? – Não sei... Nos meter nessas coisas... – É nosso charme... A essa altura já estávamos rindo da situação, e começávamos a nos levantar e a retirar os estilhaços de vidro do corpo, pensando em uma boa desculpa para ninguém perguntar a razão de termos saído no meio da noite e de estarmos voltando naquele estado. Porém, mal sabíamos o que ainda estaria por vir...

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Um ano mais tarde – Em Washington Eu estava assistindo a um seriado, observando Lisa Kudrow se esquivar de facadas, enquanto combatia centenas de homens. Era incrível como qualquer pessoa podia parecer impressionante com a ajuda de um dublê – e isso poderia acontecer até mesmo com a Phoebe de Friends. De qualquer maneira, era sábado à noite – um sábado particularmente idêntico a todos os outros, desconsiderando que eu acabara de receber uma ligação de minha mãe, praticamente ordenando que pegasse um avião para a cidadezinha de Nome. Nome era localizada em uma pequena província do Alasca e tinha, no máximo, quatro mil habitantes. Contudo, era uma ligação de minha mãe, e ela parecia muito preocupada, tanto que pude sentir a urgência presente em sua voz. Então, talvez – só talvez – eu devesse começar a fazer as malas. Ora, o que se deve levar de roupas para o Alasca? Não tenho praticamente nada capaz de me fazer suportar o delicioso frio daquela região – além de alguns casacos que serviam muito bem no inverno de Washington; contudo, pelo que aprendi durante meus 16 anos, o que pode me ajudar em Washington, pode ser um estorvo no Alasca. Tudo bem, talvez não tenha aprendido isso ainda, mas quem sabe? Certo. Hã... É, certo. Acho que devo ligar para uma agência de viagens, não é? Nada melhor do que um telefonema a uma

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secretária eletrônica dizendo: “Olá, me desculpe, mas quantas passagens você tem disponível para o Alasca? E para hoje à noite, é claro...”. Se a agente de viagens não desligar na minha cara, tenho certeza de que a própria secretaria eletrônica o faria. Mesmo assim, eu precisava urgentemente de uma passagem; então, o que mais poderia fazer? Agarrei o telefone do gancho próximo a minha cabeça e disquei rapidamente os números de que me lembrava – temendo estar ligando para alguma pizzaria, por exemplo. No primeiro toque, alguém atendeu: – Boa-tarde! Agradecemos por você ter ligado para a companhia Air Virgen, e em breve o sistema te redirecionará para um de nossos agentes. Desejamos que você faça uma excelente viagem! – uma voz metálica soou, seguida de um bipe, e depois para uma voz humana: – Companhia Air Virgen de viagens, Sasha falando. Como posso ajudar você? A voz da garota parecia forçada – embora ela tentasse exibir uma falsa animação, provavelmente forçada pelo patrão. Engoli seco antes de proferir palavras que pareceriam ridículas: – Olá, meu nome é Marie Fry. Estou em Washington e preciso de uma viagem para hoje à noite, só de ida, para o Alasca. Seria possível? Por alguns instantes a linha ficou muda, e pude ouvir o barulho de papéis sendo remexidos. Era possível supor que Sasha estava buscando a informação.

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– Senhora Fry, confesso que seu pedido é um tanto incomum... – ela conteve um risinho. – Muito incomum, para ser sincera. Não conheço tantas pessoas que requisitaram uma passagem só de ida para o Alasca, ainda mais na temporada de inverno. Respirei fundo pela segunda vez e disse: – Por acaso você é paga para achar alguma coisa? Estou só pedindo uma passagem, mas, se isso for um trabalho extremamente desgastante para a madame e para suas unhas feitas, tenho certeza de que outra companhia me ajudará com meu problema – falei, tendo a certeza de que a mulher estava se utilizando de todas as suas forças para não me dar uma resposta grosseira. – Se não puder me ajudar, sinto muito, mas... – Não... – ela respondeu, interrompendo-me. – Temos um voo para hoje, daqui a sete horas. Quer fazer a reserva? Agora começávamos a falar a mesma língua. – Estou agradecida, “Shasha”... Pode fazer a reserva no nome de Marie Claire Fry – e coloquei o telefone no gancho, sem esperar por mais nada. Tudo bem, a passagem já foi. Agora preciso de comida. E aposto que omeletes cairiam muito bem. Meus dotes culinários nunca foram exatamente o que se chamam de “bons”, mas dessa vez a mistura de ovos com pimenta, salsa, carne e queijo estava digna de ser jogada pela janela. Perdi mais de uma hora da minha vida para fazer essa porcaria, e agora era engoli-la ou jogá-la para o vizinho.

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Foi uma sorte maravilhosa não ter passado mal depois que comi minha omelete. E, para melhorar ainda mais a situação, eu tinha tempo para arrumar as malas, tomar um bom banho e ligar para o proprietário do meu apartamento; além disso, já estava vestida aceitavelmente. O que ainda estava falando? Ah... Chamar um táxi. Ótimo, chamar um táxi e arranjar dinheiro para pagá-lo, pagar também o avião e ainda deveria sobrar algo para me instalar em Nome antes de encontrar meus pais – não que fosse difícil localizar duas pessoas em uma cidade tão grande quanto aquela, mas... Decidi que seria melhor ligar para a recepção e pedir que mandassem um táxi para cá, o que já ajudaria muito. Felizmente, o motorista parecia entender a urgência de minha situação, e chegou pouco depois de meia hora. Pronto, agora tudo estava feito; seja lá o que mamãe queria me dizer, não ia esperar por muito mais tempo. Bati a porta da frente e a tranquei. Deixei a chave na portaria, e continuei andando – com dificuldades – enquanto carregava as três malas. Mentalmente, dei adeus ao District Hotel e entrei no táxi, lembrando-me, finalmente, de checar meus recados do celular... Katy... Nós não nos falávamos já fazia alguns meses. Na verdade, desde que voltamos das férias do colégio paramos de nos falar. Nenhuma de nós sabia exatamente o motivo, mas eu sabia que não falaria com ela até que me desse alguma satisfação do seu sumiço, de ter ignorado todas as minhas cartas na época que estava viajando. Qual era o problema dela? Em uma tarde, juramos amizade eterna; na outra, já nem nos olhávamos mais. Porém, mesmo assim, eu sabia que Katy

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passaria o fim de semana com a família em algum lugar do Caribe, e ela havia deixado oito mensagens no meu celular. “Oi, Luna. É a Katy. Ainda se lembra de mim? Por que não atende mais ao telefone? Me responda, por favor! Assim que receber essa mensagem, me ligue de volta”. “Luna. Quero ir me despedir de você, eu preciso fazer isso. Não vou me sentir bem se não o fizer... Contudo, você vai me perdoar? Me perdoe por tudo aquilo que fiz antes: foi estúpido. Eu sou sua amiga. Quero ser. Só preciso de sua ‘aprovação’. Me atenda logo, sei que está me ouvindo!”. “Desde o verão, estou me sentindo péssima por não estarmos nos falando. Estou com muitas saudades!”. “Luna, mamãe disse que você poderia ir para Cancun conosco; então, acho que seria uma ótima forma de nos desculparmos. O que acha?”. “Por que é que não me responde logo? Estou ficando preocupada! Me ligue, Luna, por favor, me ligue!”. “Olha, nós nunca fomos de brigar ou de nos desentender; então, compreendo que quer fazer dessa primeira vez algo dramático e inesquecível, também pensei muito nisso, mas acho que tudo isso já foi o suficiente”. “O que você quer, afinal? Virar uma ‘patricinha’ metida, uma líder de torcida? Quer ser como todas as outras garotas do resto do mundo? Bom, se quer assim, para mim está ótimo!”. “Me perdoe, Luna! Por favor, me perdoe! Preciso falar com você o mais rápido possível. As coisas não andam nada bem...

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Tem alguém perto de nós, tem alguém vigiando nossa casa desde ontem à noite, preciso de sua ajuda”. Por fim, as mensagens acabaram. Não havia mais nenhuma de Katy, apenas uma de minha mãe avisando que estariam me esperando no aeroporto quando fosse necessário; porém, confesso que a última mensagem de Katy me deixara um tanto quanto preocupada. Antes de qualquer coisa, ela era minha amiga. Não... Ela havia me esquecido, tratava-me como se eu fosse um “nada”, então provavelmente só estava tentando vencer alguma aposta idiota que havia feito com suas novas amiguinhas. É... não vou nem ao menos responder para ela... Então, passei a ignorar tudo o que meu sexto sentido e minha consciência tentavam me dizer, concentrando-me nas ruas da cidade, e em um menino que olhava com a cara inchada para um balão que se perdia na imensidão dos céus nublados de Washington. O caminho até o Aeroporto Internacional de Baltimore, onde eu havia feito minha reserva para Nome, seria longo. Longo e, provavelmente, silencioso... Cheguei ao aeroporto antes do que imaginei, e o tempo ainda me permitia que descansasse antes do voo; teria, pelo menos, uns 30 minutos antes de sair. Paguei a Harold, o motorista, um maço de “verdinhas” e me acomodei em um dos bancos da sala de espera. Estava com a atenção fixada em uma garota em especial, que despertou minha curiosa sem motivos aparentes. Era um pouco mais velha do que eu, e tinha uma pele morena muito bem cuidada, mas

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escondida sob seus cabelos ondulados. Porém, o que mais me chamou atenção nela foi o fato de que segurava com força um pingente em seu pescoço; não consegui reconhecer o que estava entalhado na corrente, mas era fácil de supor que a garota era religiosa. – Passageiros do voo 147A, sigam para a ponte de embarque – uma das comissárias anunciou pelos alto-falantes. Graças a Deus, agora estaria acomodada no avião, apenas esperando a hora de chegar à bela e gelada Nome.

“Luna, me desculpe... Luna, somos amigos. Luna, Luna...”. Eu ouvia uma voz sutil me chamar pelo nome, mas não havia ninguém em toda a extensão do meu campo de visão – na realidade, não havia nada nele. “Luna...”. Tinha certeza de que tudo não passava de um sonho, sempre soube distinguir quando estava sonhando graças a uma professora do jardim de infância que dizia: “Quando sonhamos, às vezes até voamos; então, você consegue perceber se está sonhando, ou se está realmente acontecendo”. O fato é que aquilo se tratava mesmo de um sonho – não porque eu estava voando, claro, mas porque estava em um cemitério. Não é um tipo de lugar que eu goste de frequentar... Eu podia começar a sentir as gotas pesadas da chuva me retirando do mundo, deixando-me totalmente isolada; porém, ainda assim, conseguia ouvir com perfeição a voz que me chamava, fazendo-me sentir um pouquinho melhor... Eu queria sair daquela chuva! Então, comecei a correr... Correr o mais

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rápido que meus pés permitiam, fugindo de tudo aquilo que estava praticamente me cegando. Continuei correndo, até desabar sem equilíbrio em uma poça de lama; porém, algo estava errado. Eu devia ter sentido alguma coisa nessa queda, qualquer coisa; no entanto, em vez disso, senti dois braços agarrando fortemente os meus, evitando que meu corpo atingisse o chão fofo. Levantei os olhos para tentar enxergar o caminho a minha frente, mas imediatamente me arrependi disso: estávamos apoiados em uma lápide com as inscrições desbotadas de tal forma que eu não consegui saber de quem era o túmulo. Desisti do cemitério e busquei focar meu olhar no rosto do rapaz a minha frente. A chuva ainda estava terrivelmente torrencial; em razão disso, não consegui distinguir suas feições. Apenas sentia que o conhecia, embora não me lembrasse de onde; a sensação de estar ali era inquietante e, ao mesmo tempo, assombrosa... Senti algo fofo embaixo dos meus pés – eram rosas, brancas como a luz emitida pelo luar, mas que agora estavam cobertas de terra e de barro. “Luna, sinto sua falta, sinto muito sua falta...”. A voz do rapaz soou novamente, mas dessa vez parecia querer conter um soluço engasgado. “Eu lamento ter feito as escolhas erradas, talvez se nós voltássemos a nos falar... por favor...”. Embora não tivesse a menor ideia de quem se tratava com aquela voz melodiosa e inquietante, eu me sentia segura e feliz, como em um pequeno refúgio da chuva... do mundo; entretanto, com a mesma velocidade que a voz surgiu, ela desapareceu, e senti meu corpo penso cair de joelhos sobre a terra fofa – e, mais uma vez, estava sozinha.

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Eu ainda podia ouvir a chuva caindo ruidosamente sobre as lápides ao meu redor.

Acho que adormeci profundamente porque, quando fui capaz de recuperar minha consciência e meus sentidos, estava sentada na poltrona ao lado da garota que eu observava. – Oi! – ela disse, colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha. – Quando fui procurar minha poltrona, você já estava dormindo. A comissária acabou de anunciar que já estamos chegando, mas achei indelicado te acordar... – e deu uma risadinha. Balancei a cabeça e tentei ajeitar meus cachos rebeldes – provavelmente estaria com a pior cara possível, mas não estava ligando para isso agora. Afinal, dentro de poucas horas eu estaria na casa dos meus pais, tomando uma bela ducha – e espero que a água seja realmente quente, porque eu já era capaz de perceber que o frio estava sendo bem cruel. – Tudo bem – sorri, ou forcei um sorriso. – Eu te vi na plataforma de embarque, mas, como agora estamos sentadas uma ao lado da outra, deixe apresentar-me: meu nome é Luna. – Nice pour vous rencontrer, Miss Luna – ela respondeu em francês, abrindo um sorriso maior. – Mon nom est Selene le Boursier. Francesa? Uh lá lá... Nunca havia conversado com ninguém em francês antes, mas conseguia identificar algumas palavras – o suficiente, pelo menos, para entender o que a garota dizia. – Uh lá lá, cherè. Está bem longe de casa, não? Aliás, o que uma dama francesa está fazendo em direção ao inverno do Alasca?

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– É uma viagem a negócios – ela deu de ombros. – Sou estagiária na empresa do meu tio, e ele quer que eu faça uma pequena pesquisa sobre as plantas medicinais presentes no Alasca. – Plantas medicinais no Alasca? Parece incrível! Seu tio faz o que? – Ele é empresário, mas se formou em Farmácia e se especializou em ervas medicinais. No entanto, agora seu trabalho sobra para a família também... – ela deu de ombros novamente. – Parece incrível... – murmurei, quase que para mim mesma. Puxa, seria muito melhor estar indo a Nome para fazer uma pesquisa, não para, provavelmente, ouvir péssimas notícias de minha mãe... Por alguns segundos, não pude evitar que uma inveja brotasse dentro de mim, aquela garota tinha muita sorte... – É um trabalho bem legal! – Selene sorriu, mas seu olhar se estendeu aos horizontes do céu escuro. Parecia estar se lembrando perfeitamente de algo que não desejava compartilhar. Porém, se percebeu que eu ainda a observava, não disse nada e voltou a falar: – Acho que vamos descer logo. De uma maneira assustadora, a comissária anunciou o que Selene dissera e, por alguns minutos de conversa, fui capaz de esquecer meu sonho. Estava na hora de ver minha família mais uma vez.

Peguei o primeiro táxi que vi e, em pouco tempo, cheguei à casa de meus pais. O lugar era simples, uma casa completamente

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rústica – daquelas que ainda tinham até madeira no assoalho –, mas realmente muito aconchegante, eu precisava admitir. Já era noite. Estava frio por ser o Alasca, mas, ainda assim, muito frio.

Eu corria como nunca corri em toda a minha vida. Era exatamente assim que eu imaginava que seria fugir da morte. Mal tinha tempo de respirar ou de prestar atenção no local onde meus pés passavam e, ocasionalmente, pulavam – estava em completo pânico; só conseguia enxergar uma fumaça turva a minha frente, bloqueando meus olhos, enquanto um cheiro ocre invadia minhas narinas. Eu já não fazia a menor ideia de onde mamãe, vovó ou meus irmãos poderiam estar, mas só conseguia focalizar em minha mente a frase: “Preciso sair daqui”. Minha consciência começava a sumir, mas, talvez por algum milagre, consegui identificar uma sombra passando por entre os pilares em chamas. “Socorro...”, murmurei, colocando a mão perto da boca, evitando o máximo possível de fumaça. “Socorro!”. O fio de esperança que encontrei sumiu tão depressa quanto veio, pois não havia mais nenhum sinal do vulto e, então, o pensamento de que aquele poderia ser Rasputim me ocorreu. É claro que ele não me ajudaria! Mas essa impressão estava errada; pelo pouco que ainda me restava de visão, vi um rapaz coberto pelas cinzas, provavelmente da minha idade, cortando a nuvem de fuligem a sua volta, enquanto agarrava meu braço e me levava para outro lugar. Para ser sincera, já não fazia a menor diferença se escaparia ou não dali viva, e estava permitindo que o rapaz me levasse para onde bem entendesse – não estava dando a mínima se aquele era mais um dos disfarces de Ras-

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putim. Não fazia mais diferença – porque... provavelmente todos os outros já estavam mortos. Minha mãe Alexandra e vovó estavam planejando nos levar para um lugar seguro, a fim de que pudéssemos esperar até Rasputim ser capturado e devidamente enforcado. Mas todos sabiam que papai já não tinha mais força política e que dificilmente seus aliados e os duques acreditariam que um mago sombrio estava atrás de nós. Então, a única solução era fugir e esperar a coisa toda acabar. Mas pensar nisso foi o maior erro: a coisa só acabaria quando todos nós estivéssemos mortos. Quando voltei a controlar todos os meus sentidos, puxei o ar com força para meus pulmões e observei o jardim do palácio a minha frente. Podia ver toda a minha casa ser consumida pelo fogo, que escapava pelas janelas, destruindo o que sobrou das cortinas e levantando uma fumaça horrível para a Lua Minguante. Era praticamente impossível não chorar. Meu salvador pousou a mão em meu ombro e forçou um sorriso. Só então fui capaz de ver suas feições de verdade: possuía olhos dourados, cabelos escuros completamente chamuscados e cobertos de fuligem, pele branca e era muito, muito forte. Quando seus lábios se torceram para sorrir, algumas cicatrizes em seu queixo ficaram muito evidentes. Mas eu não tinha a menor ideia de quem era aquele homem. Só sabia que ele tinha salvado minha vida, mas ainda não tinha certeza se era grata por isso. “Você está péssima”. Ele forçou outro sorriso, e passou a mão pelo cabelo de uma maneira quase canina. “Mas temos de correr. Ele vai voltar logo”. Eu não estava com a menor capacidade ou vontade de responder. E ele pareceu perceber isso, porque agarrou meu pulso e voltou a correr, partindo para uma parte da floresta de inverno.

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“Ele?”, perguntei, finalmente, quando estava recuperando meu passo. “Quem?”. “Você sabe quem”, ele balançou a cabeça, aumentando o passo. “Rasputim”. É claro. “A propósito”, o rapaz me olhou, “meu nome é Dyllan”. “Anastácia”. Pressionei minhas têmporas com muita força, quase parecendo que as esmagaria, e toquei a campainha da casa dos meus pais.

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