Temas de Direito Penal
C omb inação de l e i s: p oss ib ilida de ou n ã o? Ana Cláudia Peixoto de Melo1 Revisor: Rafael Castro
O presente artigo tem como escopo analisar o seguinte questionamento: é possível a combinação de lei em matéria penal para favorecer o réu? Diante dessa indagação, este artigo consiste na análise da lei, e interação com a doutrina e jurisprudência, a fim de desvelar diferentes nuances para um posicionamento acerca desta temática. A importância deste estudo está em trabalhar com um tema polêmico, não pacificado pelos tribunais, contemporâneo e de grande interesse social, econômico e jurídico, que de maneira direta e indireta influencia os integrantes da sociedade. Primeiramente, antes de adentrar na questão, é importante relatar a função das normas penais, cuja finalidade é a proteção dos bens jurídicos: vida, liberdade e propriedade, em consonância com os princípios da Constituição Federal de 1988. As normas penais são abstratas (alcançam o maior número possível de casos); imperativas (obrigam a todos); e gerais (ou seja, se dirigem a
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Ambos alunos do 5o semestre do UniCEUB.
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todos em igual situação). Pode-se então dizer que as normas penais visam tipificar infrações e fixar as respectivas penas ao indivíduo que agir em desconformidade com as condutas corretas da sociedade. A Constituição Federal em seu art. 5º, XL, ao afirmar que “A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”, é um prisma para direcionar o Código Penal. Não se tem dúvida quanto a essa questão, pois se sabe que a mais benevolente para o réu prevalecerá. A grande inquietação está na possibilidade de combinar leis para beneficiar o réu, temática sobre a qual vários doutrinadores se debruçam. Nucci2 explana sobre as duas vertentes doutrinárias e elucida a possibilidade de o juiz fazer uma aplicação das leis conflitantes. Neste sentido, entendem-se normas novas e antigas, e em face do caso concreto poderá aplicá-las, mas sem combinação, para evitar a criação arbitrária de outra lei. A primeira que defende a possibilidade de combinar leis penais para beneficiar o réu, do qual Rogério Greco,3 Mirabete,4 Ney Moura Telles5 e outros doutrinadores,6 defendem esse posicionamento. Para Greco: “Somos da opinião de que a combinação de leis levada a efeito pelo julgador, ao contrário de criar um terceiro gênero, atende aos princípios constitucionais da ultratividade e retroatividade benéficas”,7 ou seja, a lei não ficaria em desconformidade com nenhum princípio constitucional, pelo contrário, estaria em observância aos dispositivos legais. Um tema bem polêmico que movimenta tal questionamento é acerca da Lei no 11.343/06,8 que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas
2 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: parte geral: parte especial. 8. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2012. p. 108-127. 3
GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte geral. 9. ed. Niterói, RJ: Impetus, 2007.
4 MIRABETE, Julio Fabbrinni. Manual de direito penal: parte geral. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2004. v. I, p. 67. 5
TELLES, Ney Moura. Direito penal: parte geral. São Paulo: Atlas, 2004. v. I, p. 107-108.
Cf. Assis Toledo e Celso Delmanto, ambos doutrinadores, fundamentam em cima dessa corrente que possibilita a combinação de leis penais. 6
GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte geral. 9. ed. Niterói, RJ: Impetus, 2007. p. 116. 7
8 Art. 33 da Lei no 11.343/06 — Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar,
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sobre Drogas (SISNAD), que revogou a Lei no 6.368/76, também conhecida como Lei de Tóxicos. A maioria dos casos concretos analisados refere-se a essa lei. É importante ressaltar que a combinação de leis é analisada sob a vertente de favorecer o réu. Pergunta-se: se o agente foi condenado por tráfico de entorpecentes, é possível aplicar a pena da Lei no 6.368/76 e a Lei no 11.343/06, § 4o, ou seja, a combinação das duas leis para favorecer o réu, a primeira (Lei no 6.368/76) prazo de reclusão menor e a segunda (Lei no 11.343/06) com a redução de pena? A jurisprudência vem admitindo essa possibilidade como se pode notar no caso elencado: 1. Entende a colenda Sexta Turma do egrégio Superior Tribunal de Justiça, de forma majoritária, ser viável a combinação de disposições favoráveis de distintas leis a fim de beneficiar o réu (preceito sancionador do art. 12 da Lei nº 6.368/76 com a causa de diminuição do § 4º do art. 33 da Lei nº 11.343/06) [...] (HC 94.244/SP, rel. ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 15/9/2009, DJe 28/9/2009).
A outra vertente não permite essa viabilidade, tendo em vista ferir o princípio da legalidade, isto é, tal posicionamento explana que o juiz legislaria por conta própria e criaria uma terceira lei (lex tertius). Dos
prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena — Reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa. § 4o — Nos delitos definidos no caput e no § 1o deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa. Art. 12 da Lei no 6.368/76 — Importar ou exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda ou oferecer, fornecer ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a consumo substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena — Reclusão, de 3 (três) a 15 (quinze) anos, e pagamento de 50 (cinquenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa.
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doutrinadores pesquisados, fazem parte desse posicionamento Nelson Hungria9 e Aníbal Bruno.10 Esses juristas alegam que é lícita a aplicação da lei mais benéfica, mas ressalva que a lei tem de ser aplicada em sua totalidade, pois consideram ilícito ao juiz fazer uma composição de leis, pois neste caso bateria de frente com os princípios da Carta Magna. Segue abaixo um julgado acerca desse posicionamento: [...] II — Não é possível a conjugação de partes mais benéficas das referidas normas para criar-se uma terceira lei, sob pena de violação aos princípios da reserva legal e da separação de poderes. Precedentes. III — A questão relativa à possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos não foi apreciada nas instâncias inferiores. Assim, seu conhecimento em sede originária pelo Supremo Tribunal Federal implicaria dupla supressão de instância. Precedentes. IV — Habeas corpus conhecido em parte e, nessa extensão, denegada a ordem.11
Em face do art. 2o do Código Penal — “A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado” –, pode-se perceber claramente o amparo feito ao réu e aos princípios constitucionais. Entende-se que é vedada essa possibilidade de combinar leis, tendo em vista que a ultratividade deve ser levada em conta por completo e não parcialmente. E ao pensar em um todo, mesmo sabendo das dificuldades em elencar toda a sistemática da sociedade na lei, acredita-se que não foi a intenção do legislador inserir esta possibilidade, pois no Código Penal Militar a lei não deixou brechas: 9 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. 4. ed. São Paulo: Forense, 1958. v. I, p. 112. 10
BRUNO, Aníbal. Direito penal. São Paulo: END, 1956. v. I, tomo I, p. 263-264.
HC 94687, relator(a) min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, julgado em 24/8/2010, DJe-168 DIVULG 9-9-2010 PUBLIC 10-9-2010 EMENT VOL-02414-02 PP-00350. 11
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Ana Clá u d i a P e i xoto d e M e lo Art. 2o — Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando, em virtude dela, a própria vigência de sentença condenatória irrecorrível, salvo quanto aos efeitos de natureza civil. [...] Parágrafo 2o — Para se reconhecer qual a mais favorável, a lei posterior e a anterior devem ser consideradas separadamente, cada qual no conjunto de suas normas aplicáveis ao fato.
O anteprojeto da parte geral do Código Penal trata dessa polêmica discussão e a proposta é: “Para aplicar a lei mais favorável, o juiz poderá considerar conjuntamente as normas da lei anterior e da lei posterior do que nelas transpareça como mais benigno.”12 Diante do exposto, acredita-se ser defeso ao juiz cumular a lei mais benéfica, pois ofenderia o princípio da legalidade, ou seja, haveria uma terceira lei a qual não foi intenção do legislador. Por isso a necessidade de reforma do Código Penal para poder abarcar essas inquietações. Os doutrinadores pesquisados, em sua maioria, acatam essa possibilidade, mas mesmo assim salienta-se essa impossibilidade.
12 DOTTI, René Ariel. A reforma do código penal. Disponível em: <http://www.migalhas. com.br/dePeso/16,MI151777,61044A+reforma+do+Codigo+Penal+Proposta+para+a+Parte +Geral+II>. Acesso em: 26 jun. 2012. O jurista é membro da Comissão de Juristas constituída pelo Senado Federal para a elaboração do anteprojeto de reforma do Código Penal.