“Onde buscarei paixão, para conceber novas ideias? De que inferno trarei palavras com algum calor?” (Colligere, Crítica). Nas próximas folhas estãos nossas vidas: esse fanzine é como um show de hardcore sem palco, onde todxs dançam, onde as coisas se fundem de uma maneira que não sabemos mais quem é a fonte de energia, o que reflete o quê. Essa edição do fanzine é também uma edição de nossas vidas, e no editorial do mundo vemos um cenário de muitas incertezas, onde diariamente nos é anunciado um novo ataque, uma nova forma de absorver ao máximo nossas energias e nossas vidas. São nesses momentos cruciais que temos de revolucionar tudo, a urgência e a novidade dos ataques nos assombra e nos deixa um pouco perdidxs, as formas institucionalizadas e mais comuns de se rebelar por vezes se mostram ineficientes – “quando pensava ter todas as respostas, mudaram as perguntas” (Colligere, Bendito em seus olhos maldito em tua boca). O bom velhinho já nos alertava para não deixarmos ser oprimidos pela tradição de todas as gerações passadas, é preciso buscar o novo do novo e revolucionar tudo. E muito disso tudo já está acontecendo. É preciso compartilhar novas experiências e novos métodos para os nossos novos desafios. Nós enquanto fanzine buscamos mudança em nossa organização, queremos mudar a nossa perspectiva de construção coletiva, deixar de ser uma soma de trabalhos individuais produzindo um uno, e ser um trabalho essencialmente coletivo, de forma que não consigamos ter algum sentido em separado, algo que é necessariamente subversivo e urgente às nossas vidas como um todo. Que as próximas páginas possam colaborar, inspirar, convidar todxs a fazerem coisas novas, construir novas ideias, e tudo isso numa perspectiva coletiva. Em homenagem ao Ifanzine, Jornal Microfonia, VegVeg, Lavanderia, Fanzine “20 anos atrás de nada” as bandas Under Bad Eyes, Better Leave Town, Teu Pai Já Sabe? e Pense.
Edição 03 - 2017 Projeto: Shilton Roque Edição: Shilton Roque Diagramação: Felipe Soares Capa: Diogo Galvão e Thiago Trapo Revisão: Pedro Lucas Colaboradores: Matheus Correia, Bárbara Oliveira, João Pedro, Carlos Alberto (Mamá), Mariana Araújo, Eveline Timboo, Pedro Bomba, Thiago Jonas, Pablo Moreno, Felipe Soares, Thalles William, Adalberto Almeida e Olga Costa. Contato: borntozine@gmail.com Cartas: Avenida Itapetinga, 427, Bairro Potengi. Natal - RN CEP 59124400
EDITORIAL #3
veRSoS contRovéRSiaS FiGuRaS de dia de são nunca à tarde meio do nada. nó na garganta boca abraçada. olho do furacão cio do coiote. pé das plantas vai e vem do serrote. cu do pardal no eixo no entanto no estado no grau.
é a pedra é o asfalto é o cheiro de chorume é o oco é o fato artefato de perfumes paradeiro dredeloqui são parteiras dando um toque sobre leis luas loves e liquens
liso no canto na exatidão errada não ninguém na morte premeditada. piso no riso no choro que vem boca que fala palavra que tem.
lavadeiras só comentam, comem e complementam fazendo considerações: tudo isso é absurdo curdo mudo tudo isso, juntar palavras sem nexo é amplexo, complexo, convexo
que aparece e se apresenta e depois vai embora pulando dançando jogando conversa fora.
pois bem bom bem esse poema vem como prova de que estou a treinar
versos, controvérsias, figuras de linguagem e som pois espera-se uma relação com a palavra dita pra que um verso sirva no diálogo com angústias nas conversas paralelas com apertos, nós, para peitos e raios pra que assim seja o poema como um copo dágua que é aquilo que não se nega a ninguém. Pedro Bomba
moRaR na liteRatuRa resolvemos o problema com a dívida do banco decidimos ontem que não vamos pagar faremos poemas eletrônicos em extratos e saldos e depositaremos em caixas os funcionários lerão os versos sem fundos nada escrito nada nadinha só viagem da minha cabeça resolvemos ontem que vamos morar juntos no mesmo barco eu confessei sobre meus medos e lemes e cais, meus sais falei de quando quebrei o braço três vezes e como um empurrão é uma coisa potente falei do murro na cara que levei do ex namorado da menina que eu me apaixonei na escola, o óculos caiu e eu não vi mais nada o bom de apanhar numa briga é que para o resto da vida a possível vingança está instaurada
mas eu preffiro as noites e os encontros o prato que se come frio é demais para os meus sentimento resolvemos correr riscos e eu opto por um apito ao invés do medo o som do apito vai e volta você chamou atenção isso que vai e volta é um boomerang seu doido pode ser também o estado permanente dos últimos três anos afirmei o qual faço poemas sobre coisas que não existem, palavras revuntáveis coisas que eu vou longe demais e no fim volto como se estivesse recitando poemas para uma multidão de pessoas elas me olham, eu as vejo e quero que todas elas te conheçam e criem carinho por sua fome contínua por preferir verde e roxo ao invés da propriedade privada resolvemos morar na literatura um do outro é isso que esse poema quer dizer é algo gravíssimo, um erro, um equívoco um descuido literário morar na literatura um do outro é como confiar no vento quase ninguém consegue enxergar mas é óbvio que está ali vejam como balançam os versos de meu cabelo. PedRo bomba é Poeta e autoR do livRo “o chão diSPÕe a queda” (laboRatÓRio cocuRuto da cabeça, 2017).
a inSuStentÁvel leveZa do v i R t u a l Quando Matrix invadiu as telas, com um mundo que nem todos podiam ver, no final dos anos 90, a sociedade virtual ainda tomava corpo. Não existia, o que viria a se tornar um mundo à parte: o facebook. Apesar de, essa rede social específica ter várias implicações no mundo dito moderno, o foco, aqui, é a música. O mundo se dividiu ainda mais. Observando ambientes modernos, nas vitrines das lojas ou em sites especializados em decoração, é aterrorizante ver que os livros sumiram das prateleiras e aquele som da sala, quando tem, é apenas um objeto de decoração em um formato “vitrola vintage”. Triste. Nas páginas dos livros está a grande possibilidade de soltar a imaginação. No som da vitrola, as sonoridades que alegram o ambiente. Hoje o iphone tornou as músicas presas aos fones de ouvido. Solidão. Muito antigamente, talvez algumas mentes nem consigam imaginar, a música não era um produto físico. As pessoas ouviam e precisavam memorizar para tocar novamente. Passou-se a escrevê-las. Depois, bem depois, a gravá-las. Com a gravação, a música podia ir para qualquer lugar! A internet é o advento que conseguiu levar as músicas nunca ouvidas para todos os cantos do planeta! Maravilha! Não querendo ser pessimista, mas já sendo: do jeito que as coisas estão caminhando, voltaremos para o estágio inicial. Como isso será possível? A música, cada vez mais, está nas esferas virtuais. Os equipamentos dos estúdios cada vez mais sofisticados para gravar instrumentos, vozes, efeitos, tudo o que sua imaginação quiser! Para depois, pasmem (!) ser comprimido e estragar todo o trabalho de horas para captar o som, mixar e masterizar. Isso é o MP3. Para divulgar a música para todos os cantos, como já mencionado, está beleza! Mas e o trabalho de horas no estúdio, ficará no limbo? Aí é que entra o material físico. É aí que entra a não assinatura do óbito da música como forma e objeto para se colecionar, ou para se ter a mão, independente de uma máquina que te leva para um mundo virtual, que poderá deixar de existir a qualquer momento. O que você faria se a internet desse um pau gigantesco e parasse de funcionar? Imagino que muitos fariam absurdos para conseguir entrar na rede de novo. Porém, prefiro acreditar que a imaginação humana não está tão deteriorada ainda. Nesse momento, querido leitor, você olhará para a estante e verá livros e discos (LP, compacto, CD e fita cassete) e seu dia, e porque não, a sua vida estará salva! O.C. olGa coSta FaZ RetRatoS PaRa o JoRnal micRoFonia (Pb).
diY oR die: ou como o haRdcoRe Salvou minha vida
É incrível como as músicas que ouvimos acabam se tornando trilhas sonoras das nossas vidas em determinadas circunstâncias. Poucos sabem mas venho passando por um momento estranhamente difícil nessa minha vida. Às vezes parece que o tão esperado fim de ciclos que há muito tempo haviam expirado seus prazos de validade e o início de outros para os quais não nos preparamos direito nos deixam um pouco perdidos no meio do caminho. A gente se questiona “e agora?” e sem pensar direito vai em busca de respostas para perguntas que talvez nem nós mesmo sabemos formular. É normal em momentos como este sentirmos medo. Medo de mudança, medo de falhar... Eu particularmente tenho medo demais. Às vezes travo, sem saber o que fazer, empurro o tempo só mais um pouco pra não encarar o problema e acabo vendo a vida passar diante de mim. Aí percebo que pouco tempo é demais pra gastar a vida e me forço a achar as respostas ao mesmo tempo que tento formular as perguntas. A gente recorre a um, dois, três amigos, aos pais, irmãos, à companheira e parece que ninguém entende o que estamos querendo dizer. Talvez porque nem nós saibamos. Pouca gente insiste em satisfação nessa vida que não traz nenhum recurso. E a gente só vai, vai e vai embora. Se lembrando que quanto mais ficarmos parados mais iremos nos arrepender de nunca termos feito nada. Então buscamos refúgio na literatura, na poesia, no cinema, na música... e percebemos que às vezes a gente não precisa imediatamente achar respostas ou formular perguntas. A gente só precisa se sentir compreendido. Ouvir alguém dizer que também tem medo, que também tem dúvidas, que não quer se arrepender do que fez e que ainda temos tempo pra mudar. A volta da Pense e sua passagem pelo Nordeste foi algo que me encheu de esperança para esse começo de ano. Primeiro porque não tive a oportunidade de conhecê-los na primeira turnê junto com a Born e segundo porque foram eles que disseram muito do que eu precisava ouvir nesses momentos difíceis. Poder agradecer, trocar uma ideia e me sentir compreendido era tudo que eu podia esperar num encontro como esse. E foi o que aconteceu. Só não esperava que de uma simples brincadeira eu acabaria enfrentando mais um medo e subiria ao palco pra cantar Seguro Demais. E mesmo sem nunca ter feito isso na minha vida fui lá e cantei. Cantei de olhos fechados, mas cantei. Cantei pros meus velhos amigos que estavam ali embaixo, pros meus novos amigos ali em cima, pra minha banda, pra minha companheira... mas principalmente pra mim mesmo. Tocar não é o mesmo que cantar. Mas eu precisava botar aquilo pra fora. E fazer isso da maneira que o foi me deixou infinitamente mais leve, como se a energia daquele show por si só já não fosse suficiente. Cantei pra reafirmar tudo aquilo que já havia me servido de consolação e também pra tentar gravar as palavras desta canção em mim da mesma forma que estão gravadas na pele do Cris. E agora sim acho que vão ficar pra sempre. Obrigado a todos os velhos, novos e futuros amigos. Eu amo vocês! <3 Mais uma vez o hardcore salvando minha vida. adalbeRto almeida é GuitaRRiSta da boRn to FReedom, PaRelhenSe, anti-PublicitÁRio e SeRvidoR da uFRn.
dePoiS de 13 Poucas vezes eu senti o fluxo da história de modo tão evidente quanto no dia 20 de Junho de 2013. Enquanto caminhava pela BR-101, que atravessa a zona sul de Natal, observava lojas fechadas, supermercados e shoppings escondidos atrás de tapumes; a avenida de asfalto escuro da cidade onde nasci e onde vivo há 43 anos, vazia de carros, possuída por uma multidão de pessoas que caminhavam a pé, juntas, em direção a algum lugar incerto. Naquele dia, eu não estava sozinho. Havia estudantes, black blocks, skatistas, gente de sindicato, militantes de partidos de esquerda, políticos do PT, gente dos movimentos sociais, pessoas de bicicleta, famílias empurrando carrinhos de bebê. Tudo isso junto a militares reformados, pastores evangélicos, e profissionais liberais de classe média, trajando camisas da seleção brasileira. Naquele dia, a rua estava paradoxalmente coesa e multiforme. Havia um senso de unidade superior que ligava a massa em um sentido de fluxo, apesar dos conflitos periféricos de grupos extremistas que tentavam expulsar os militantes partidários da rua. Mas a história insistiu em não caminhar para frente. Aquele momento, em que a energia social da revolta eclodiu no país, foi calculadamente desdobrado e desmontado, e hoje, quatro anos depois, vivemos as consequências da imensa ressaca que se seguiu às Jornadas de Junho. Muitos analistas, especialmente da chamada “esquerda consequente”, põe nas costas de 13 a culpa pelo retrocesso político das agendas progressistas no país. Para esses analistas foi a espontaneidade daqueles dias, a suave anarquia de inverno, com seu horizontalismo, sua pluralidade e seu caráter coletivo, que abriu caminho para o desmonte do governo do PT e o surgimento de uma turba neofascista que ameaça lançar na mesma fogueira do obscurantismo o “extremo centro” liberal e a esquerda radical. Na minha opinião essa é uma leitura redutora do fenômeno de 13. Não há como negar: o ovo da serpente fascista estava na rua naquele mês de Junho. Mas também não há como esconder que a semente de um sentimento genuíno de transformação e mudança estava posta naquele solo. O desmonte inteligente e competentemente articulado pelo consórcio das elites dominantes nacionais e estrangeiras contra o espírito emancipatório de Junho, foi sim, a peça fundamental no estreitamento do campo progressista (somado, é evidente, aos equívocos vexatórios da dita “esquerda consequente”).
O desmonte inteligente e competentemente articulado pelo consórcio das elites dominantes nacionais e estrangeiras contra o espírito emancipatório de Junho, foi sim, a peça fundamental no estreitamento do campo progressista (somado, é evidente, aos equívocos vexatórios da dita “esquerda consequente”). Essa estratégia de desmonte se deu em dois movimentos bem definidos. Em um primeiro momento, ainda o calor do conflito na rua, usaram cassetetes, bombas de gás e balas de borracha para pura e simplesmente reprimir a força do levante. Depois, após o recuo do PT logo que terminou o segundo turno das eleições de 14, com a elaborada articulação ideológica do discurso midiático, cindiu a rua em dois. De um lado colocaram os “cidadãos de bem”, postos com suas camisas da CBF no cordão verde amarelo. O cordão dos que eram “contra a corrupção”. Do outro lado, empurraram os “militantes do PT”, com suas bandeiras de esquerda, para o cordão encarnado. O cordão dos que eram “a favor da democracia”. Essa narrativa não apenas esvaziou o potencial disruptivo e transformador da rua de 13, mas também abriu caminho para a consolidação de um movimento de cisão entre capitalismo e democracia, que vem se delineando desde a crise de 2008 e da eclosão dos movimentos globais de contestação que explodiram a partir de 2011 em diversos países do mundo. Ora, se de um lado estavam os que eram “contra a corrupção” e por isso queriam a caçar a cabeça de qualquer “esquerdista” que se aventurasse a sair na rua, e do outro lado estavam os que eram “a favor da democracia” e por isso se dispunham a levar bala de borracha e cheirar gás lacrimogêneo para defender o resultado das eleições de 14 e manter o PT no governo; já seria autorizado pensar que é possível ser “contra a corrupção” sem ser “a favor da democracia”, ou que seria factível defender uma agenda “a favor da democracia” que não fosse “contra a corrupção”. Tal cisão entorpeceu ideologicamente a nação, abrindo caminho para se empurrar subliminarmente o discurso de que é possível pensar a existência de uma “ditadura honesta” ou de uma “democracia corrupta”. A direita liberal, acreditando poder usar essa estratégia para recuperar o poder, abriu a caixa de pandora de um movimento de retorno de conteúdos psicossociais recalcados. Escancarou a porteira para a radicalização autofágica que desmonta a própria pretensão do liberalismo político de ser uma ideologia de consenso e de síntese. Fez nascer, da terra arrasada que sobrou após o golpe, a floresta soturna das antigas monstruosidades autoritárias que percorrem a história do país. Depois de 13 o novo mundo não nasceu, e o velho mundo não morreu. Ficaram os monstros. Pablo caPiStRano é eScRitoR, dRamatuRGo, PRoFeSSoR de FiloSoFia e diReito do iFRn.
tRiloGia SuJa da PRaia do meio Sento calado na mesinha da sala e deixo o salitre engrossar minha pele. Acendo um cigarro. Faço uma breve prece. Sinto cheiro do café subindo e me ponho uma xícara. Uma vez ela me disse que eu tenho gosto de café: amargo no primeiro contato porém doce no final. Uns meses atrás. Praia do meio e reler o Livro dos Abraços. Celebração da voz humana. Sinto vida por aqui. Lagoa Nova tem cara de classe média ascendente. Fachada de prédios e comida cara. Penso na vida das pessoas daqui. Os locais desempregados que vivem com suas famílias e mergulham todo dia no final das tardes. Os noias pedindo dinheiro no calçadão e os pintas que fumam maconha em cima do quebra-mar. As putas e seus programas em troca de uma pedra de crack ou cinco reais, em motéis sinistros ou mesmo nas esquinas que de noite são só uma massa de concreto cinza e céu escuro. Penso nas mortes por dívida. Um dia antes de madrugada eu ouvi disparos. Dois de uma vez seguidos de mais quatro. Descarregaram o cano. Quando fui almoçar no pf aqui perto ouvi umas mulheres dizerem que mataram o filho de Pedro que entregava garrafões de águas na vizinhança. ... Como aquela mulher naquele outro dia. Estava amarrando o tênis e ouvi o grito desesperado vindo da rua. Corri pra frente do portão e lá estava ela segurando a filha nos braços enquanto gritava que o bebê estava morrendo. A criança pendia pra um lado e pro outro como uma boneca de carne e um fio espesso de saliva caia de sua boca. Devia ter comido veneno de rato ou algo assim. A mãe deve ter descido até a rua atrás do posto de saúde que fica por ali. Uma grande placa de orçamento do governo federal e ainda fechado. Todo esse golpe. Um senhor de idade correu pra rua enrolando numa toalha. Os vizinhos saiam das casas. Era meio dia. Outra mulher colocou a mãe e a criança dentro de um carro e disparou para algum lugar. Tudo que eu fiz foi ficar com a mão inutilmente em cima do cadeado. Ninguém soube dizer o que aconteceu com elas.
... A praia do meio é como uma pessoa. Algumas vezes ela está tão seca que o mar só começa depois das pedras como um limiar misterioso e letal. Outras a maré está tão cheia que as ondas vão quebrar no calçadão. Não tenho dúvida que a praia do meio ainda vai engolir toda essa cidade como o vendaval que varreu Macondo do mapa. Uma onda quebra no calçadão enquanto eu caminho. Respinga gotas de sal no meu rosto. Um dia quando eu já for totalmente pó as ondas vão me levar pra qualquer lugar e pra todos lugares ao mesmo tempo. Sento na borda e observo as ondas quebrando debaixo dos meus pés pesados. Me sinto parte daquilo tudo: daquela quarta a tarde onde o calçadão é só um corredor solitário e eu posso brincar que ele é todo meu na verdade. Dos azulejos encardidos dos quiosques que vendem álcool e gordura para os turistas e os locais do mesmo jeito. Dos transeuntes perdidos na imensidão e dos cartões postais comprados no artesanato. Das barraquinhas solitárias a beira mar e seus amantes fugitivos. Contemplo pois tudo agora é parte de um estado contemplativo. Minha cidade, minha praia. Iemanjá pintada de azul em uma época em que o mar ainda era azul na mente e nas cores de quem houve de pintar um azul que sempre foi um verde como a cor dos olhos de uma morena que só existe nos sonhos de alguém que porventura só soube traduzir em melancolia. Toda essa poesia. Levanto e vou seguindo meu caminho. João RebouçaS é videomaKeR e FotÓGRaFo e acRedita que quando aS imaGenS não baStam aS PalavRaS Salvam o dia. JÁ FeZ coRRe com um monte de Gente e atualmente toca GuitaRRa no GRuPo de RocK beaR FiGht.
mulheReS RaivoSaS maS mudaRão como? o mundo!
Pra quem está há um tempo no rolê, olhar pra trás e ver o crescimento do feminismo e a ocupação dos espaços por parte das minas é uma das coisas mais gratificantes pra quem sempre andou na pendenga, entre gritos, choros, agressões às nossas ideologias e levantes pessoais e coletivos. Indubitavelmente, nossa persistência e resistência nos trouxe até aqui. Porém ainda existe algo que incomoda, sempre tem. E são esses paralelos que tô querendo questionar. Quando colocadas sobre a mesa, as pautas das mulheres chamam atenção pela sua grandeza e pluralidade... São tantas as opressões que não sabemos nem por onde começar a falar. Dentre os assuntos mais marcantes, nossos direitos, nossa participação no combate ao machismo e ao patriarcado, uma série de denúncias de abusadores (sejam eles supostos companheiros ou não), e demais questões relacionadas às relações de poder, sempre fazem-se presentes. Nos fóruns virtuais, apoio, sororidade e irmandade são as posturas mais presentes frente às temáticas citadas, o que denota de uma evidente mudança de postura pessoal das minas perante as demais. Esse apoio fez crescer em nosso meio uma relação de cumplicidade que vem garantindo, por vezes, nossa segurança individual, despertando ou mantendo empoderamentos e estimulando o bradar de novas vozes. Mas o que nos falta? Por que ainda não temos mais para todas as mulheres? É mais que entendido que o feminismo deve servir às mulheres, suas liberdades e direitos sociais. E ainda é muito fácil notar nossa cultura, desde as camadas mais populares, arraigados de costumes machistas, que subjugam as mulheres de formas mais sutis até as formas mais escancaradas, resultando em inúmeros casos coletivos de violência doméstica, sexual, obstétrica, etc. O que eu quero levantar então é: por quê parece coerente querer atuar e transformar um fenômeno coletivo por meio de atitudes individuais e virtuais? Como os debates pleiteados tão energicamente nos fóruns e textos afora vão atingir as mulheres pobres, negras, as LBT, por exemplo? Quais os critérios que usamos para definir quem constrói ou não as nossas fileiras? Infelizmente a cultura do “fazer por” ainda está muito presente no meio ativista, e aqui principalmente o meio ativista desprovido de uma maior organização. Sempre que questionada a utilidade do feminismo virtual nas camadas mais oprimidas, é comum levantar-se possibilidades de “fazer uma ação”, “fazer uma campanha”, “fazer uma conscientização”. Ideias muito longe do real espírito solidário do “fazer juntas”.
Infelizmente a cultura do “fazer por” ainda está muito presente no meio ativista, e aqui principalmente o meio ativista desprovido de uma maior organização. Sempre que questionada a utilidade do feminismo virtual nas camadas mais oprimidas, é comum levantar-se possibilidades de “fazer uma ação”, “fazer uma campanha”, “fazer uma conscientização”. Ideias muito longe do real espírito solidário do “fazer juntas”. Não quero com isso desmerecer o ativismo feminista ou todos os seus ganhos a médios e curtos prazos. Não se trata disso. Porém, vale refletir que fazer juntas ativismo, seja ele por meio da internet, ou da música, ou das intervenções urbanas têm um alcance restrito àquelas mulheres que primeiramente POSSAM e CONSIGAM apropriar-se dele, o que aqui entenderemos como as mulheres do nosso próprio meio. E assim segue-se incoerentemente tentando afetar um todo com os fragmentos dispersos de nossas partes. Ainda nessa mesma linha de raciocínio, não é incomum vermos, ao mesmo tempo, mulheres negras, pobres, LGBTs e (porque não) homens, sendo facilmente excluídas/os de discursos que de alguma forma as/os contemplaria e na sequência sendo veementemente repreendidas/os caso cometam algum “deslize” sobre a “matéria não estudada”. Cultura essa que nos afasta (mais do que aproxima) de movimentos específicos e de praticar a interseccionalidade das lutas não necessariamente enquanto um princípio, mas pelo entendimento de que nossas lutas não podem e não devem se sobrepor às demais lutas das minorias. Ora, entendendo o capitalismo enquanto mantenedor de uma lógica de produção e reprodução que se estende aos âmbitos de nossos lares, relações interpessoais, de trabalho, nas escolas, faculdades, maternidade, mesma lógica essa que mantém exploração e exclusão de outras populações específicas, me é impensável pensar o feminismo por fora de um viés de esquerda, classista e combativo. Que entenda que para além do patriarcado, temos algo maior a combater juntas. Esse texto não tem a intenção (e nem deve ser entendido como proponente) de desmerecimento de reivindicações restritas às nossas necessidades individuais, mas sim como provocador do fato de que devemos ir além, nos organizando nos nossos locais de moradia, de trabalho, nas periferias, nas escolas, fazendo nós, por nossas mãos, o que o sistema nunca nos entregará de mão beijada. É entender que cada ataque à saúde, à educação, à previdência vai ser sentido mais acentuadamente por mulheres desprivilegiadas, pelas donas de casa, pelas terceirizadas, pelas pretas e periféricas. É um chamado à organização corpo a corpo, olho a olho e nas ruas. É chamar ao entendimento que a libertação da mulher nunca virá sem a libertação humana. bÁRbaRa oliveiRa, também conhecida como binha, é militante anaRquiSta, FeminiSta e enFeRmeiRa obStetRa (não neceSSaRiamente neSSa oRdem), ouve mÚSica como Se a vida tiveSSe tRilha SonoRa e acRedita que tudo o que PReciSamoS é amoR, caFé e Revolução Social.
queeR PunK
É sempre muito difícil começar a escrever um texto, ainda mais quando se tem muito tempo que não se escreve nada. Recebi um convite pelo meu querido amigo Shilton para escrever algo sobre queer no meio punk… Um assunto bem complexo tendo em vista que somos todxs muito novxs nisso tudo aqui no Brasil, porém já temos um leque de muitas abas sobre assunto: pessoas, coletivos, bandas. Então acho melhor fazer da melhor maneira “Mamá de se fazer isso”, ou seja, falando de forma simples sobre a minha vivência nisso tudo. Quando me mudei para Curitiba com meu companheiro e começamos a frequentar os espaços de shows organizados pelas pessoas de lá, já nos identificamos rapidamente com muita gente. Muitxs eu já conhecia por carta, outrxs não. Enfim, conheci a Manú (uma querida amiga) que andava com o pessoal sxe punk. Ela chegou bem pertinho de mim e disse: “Eu sei bem o que vc passa, Mamá, tb passo o mesmo”. Aquilo ali me fez ir pra casa pensando sobre como o punk/hardcore/sxe tratava disso. De como era visto, como era “aceitx”, como aquele meio que me faz sentir tão liberto me começava a soar meio contraditório e não tão legal assim. Era como se não se falar daquilo era uma forma de respeitar, mas notava que quem era se sentia incomdadx de alguma forma, por algum motivo… Talvez pelo fato de não se falar sobre o assunto. Eu sempre fiz serigrafia em camisetas, e em Curitiba comecei a fazer para as bandas locais. Tinha um pequeno estúdio num apto que morava e tudo que produzia era em forma de troca por algum material que estivesse faltando na salinha de serigrafia. Um dia me bateu a ideia de fazer um pouco mais, de começar a produzir materiais sobre homofobia dentro dos espaços de shows. Pegamos (eu, Felipe Arruda e Paulo), criamos um coletivo para se falar sobre isso. Começamos a produzir pequenos zines com o nome de “O Marinheiro” e panfletos com textos sobre gênero, homofobia/lesbofobia/ transfobia no punk. Todo show que tinha lá estavam as bichas levando comida vegan, material gay/queer para distribuir e vender. O resultado foi bem positivo, em menos de um mês recebemos muitos e-mails de meninos e meninas que passavam pelo que passávamos. Com as mesmas frustrações de não se sentir à vontade num meio em que deveriam se sentir. Sempre respondíamos com o maior carinho apoiando a pessoa a fazer o mesmo que nós em sua cidade. Infelizmente muitxs decidiram se afastar, outrxs poucxs não. Começamos a conhecer muitas pessoas legais com isso, e nele veio o queer engatinhando, chegando tão calmo, mas nos dando uma puta vontade de continuar. Hoje notamos várias vertentes dentro dele, no punk/hardcore/sxe/crust, no funk, no rap, nos coletivos, nas ruas, nos pixos. Somxs muitxs, e somxs fortes. Amo o fato de não existir uma definição entre nós , ou não aceitarmos ela entre a gente. Amo o fato de podermos transitar e nesse caminho podermos ditar nossas próprias regras, desejos, anseios. Sintam, permitam, amem-se. Esse texto foi escrito ao som de Against Me. Maringá, 09 de fevereiro de 2017, Mamá.
mamÁ (ou caRloS toSteS) é bicha, bicha, queeR, PRoPRietÁRio do vaca, metido a FaZeR comida veGan.
o veGaniSmo e a luta PoR teR o que comeR no ShoPPinG Aqui no Brasil, uma recente campanha destinada à maior rede de fastfood mundial e promovida pela Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB) tomou proporções talvez tão grandes quanto controversas, fazendo com que as discussões a respeito do veganismo na sociedade de consumo voltassem a ser mais urgentes do que nunca. A campanha consistiu na criação de um abaixo assinado solicitando ao Subway a inclusão de um lanche vegetariano estrito em seu cardápio. Numa sociedade em que o número de pessoas adeptas às dietas vegetarianas cresce exponencialmente, trazendo também consigo toda a pluralidade característica da expansão de movimentos sociais, essa espécie de “súplica em massa” para muitos pode parecer nem um pouco problemática. Entretanto, essa iniciativa, assim como uma série de outras questões ligadas ao consumo de produtos destinados a veganos, é sintomática e evidencia que, por mais que o número de veganos ao nosso redor cresça, a verdadeira libertação parece estar ficando cada vez mais distante. A campanha, curiosamente encabeçada por uma das mais expressivas instituições de promoção ao vegetarianismo no país, é nada mais que reflexo do principal – e em muitos casos o único – anseio de muitos adeptos ao vegetarianismo estrito nesse momento: ter cada vez mais opções, com cada vez mais acessibilidade, de alimentos prontos para o consumo. Não por coincidência, dentro dessa nova onda de expansão do vegetarianismo, o surgimento de diversos empreendimentos e produtos voltados para a alimentação vegana, ou mesmo a adequação de empresas que passam a ofertar opções para os veganos em seus menus, acontece de maneira jamais vista anteriormente. Nem estamos falando aqui de pequenos empreendimentos ou iniciativas individuais de produção vegana, que também são crescentes, mas que certamente fortificam o movimento e possibilita que pessoas vivam com mais autonomia e estendendo ao seu ganha pão suas concepções éticas. Estamos falando aqui de grandes empresas e grupos que abriram seus olhos, ou estão tendo eles abertos por nós mesmos, para a existência do dinheiro gasto por veganos no mercado.
Obviamente não há nada de errado em desejar ter cada vez mais o que comer fora de casa, principalmente considerando nossas pesadas rotinas de trabalho, estudo e outras atividades que quase sempre nos são impostas. Não há nada de errado em, ao sermos diariamente engolidos pelo sistema, desejar fazer compras com praticidade, confiabilidade e preços mais justos. Nadar contra a corrente às vezes cansa, e muito. Daí uma primeira análise de todo esse painel de um novo veganismo em expansão pode nos parecer muito positivo. Entretanto, se nós, ou as instituições que deveriam estar lutando pelos direitos dos animais, passamos a tratar com centralidade a reivindicação, feita a uma empresa que possui a maior parte de seus insumos provenientes da dor e do sofrimento de animais, sobre uma opção que contemple nossos anseios de consumo, alguma coisa parece estar fora do lugar. Em confusos tempos de acordos e alianças com os que outrora enxergamos como inimigos – e na maior parte dos casos ainda o são – essa situação nos parece ser só mais uma. Ainda que a pluralidade de referências e concepções dos tempos atuais não nos dê uma relação direta e obrigatória entre o veganismo e o combate à lógica do capital, é impossível pensar na libertação animal de maneira plena até que animais passem a não serem mais vistos como mão de obra de baixíssimo custo ou como matéria prima para geração de lucro, e disso, de maneira ampla, o mercado certamente não está disposto a abrir mão no momento. Enquanto o atual sistema produtivo perdurar e nossos esforços se concentrarem em brigarmos por bolinhos de grão de bico em bandejas ao lado de rosbifes e queijos processados, o que conseguiremos como resultados serão somente novas roupas para velhos problemas e algumas consciências um pouco mais leves por não colocarem células animais dentro de seus pratos, dentro de seus corpos – “afinal, a minha parte eu faço”. Um veganismo limitado a reivindicar opções de consumo livres de ingredientes animais não passa de uma dieta vegetariana estrita em que pessoas motivadas por sabe-se-láo-que, esvaziadas de concepções políticas, somente contribuem para que o mercado, outrora rechaçado por toda crueldade praticada aos animais, se adeque a seu novo consumidor, não perca dinheiro, e continue matando e escravizando animais – inclusive os humanos – em outras instâncias. Acredito que os animais só poderão ser verdadeiramente livres quando todo o qualquer ser senciente do planeta também o for. Por esse motivo sigo defendendo um veganismo que faz das pequenas escolhas do dia a dia ações de resistência ao modelo imposto, sendo através do consumo de produtos locais, sendo comprando roupas em brechós, sendo não estabelecendo relações de trabalho hierárquicas, sendo optando por levar para o shopping meu próprio sanduíche ao invés de financiar a matança promovida pela Subway. A busca pela libertação animal não pode desconsiderar a urgência da busca pela dignidade humana e assim seguimos lutando, até que TODXS, sem exceções, sejamos livres. maRiana aRaÚJo é humana de haYa e lobinha, FaZedoRa de hambÚRGueR na delectuS, tomadoRa de ceRveJa FoRte, caFé de 5 em 5 minutoS e batata Palha em qualqueR comida.
cada dia um a menoS
essa camisa que tá na sua mão está suja com o meu sangue você tá me entendendo bem, não está? essa camisa que tá na sua mão está suja com o meu sangue e não é pouco não lembra daquele dia que minha mãe chorou na sua frente pedindo pra me deixar viver? não lembra, né? porque eu sou só uma subtração irrelevante aos olhos de quem calcula o tempo de vida de zé, de maria, de amarildo e de cláudia sou só mais uma equação montada pra ser encaixada no conjunto dos inexistentes. no conjunto vazio. sou. programado. pra. deixar. de. existir. quando. você. quiser. e agora eu tô morto subtraído eliminado descartado. foi você que fez isso. não se engane foi você que me matou. mas, apesar disso, a culpa é minha deveria ter prestado atenção nas histórias de minha avó ela sempre disse que a morte veste preto, te leva pra passear e te mata a. morte. veste. preto. agora eu sei que é verdade fui levado. minha úlltima visão foi de uma caveira simbolizando a morte de todos nós e de lá, eu nunca mais voltei.
n e R v o S i S m o É como se fosse a minha cabeça pendurada no relógio. tic, tac A rotina nos come vivo com farofa e torresmo e a agonia do sentir carnal que habita nosso peito enferrujado destroça o coração dos loucos hiperativos, depressivos das madrugadas adentro Veja, num eterno relance que vomita sua inquietude e que balança feito gangorra quebrada de domingo aparece a sensatez da obra do menino-que-nunca-se-conformou Disseram pra ele que o sabor da poesia era de caviar e que não se come caviar sem paletó muito menos se escreve poema sem dinheiro mas de tudo que foi empurrado goela abaixo o menino soube dizer que pra teu verso ser do mundo precisava gritar rebeldia e então escreveu seu primeiro poema. Não se sabe ao certo qual foi perdeu-se com o tempo ou alguém fez questão de perdê-lo mas dizem as línguas vermelhas que tem a ver com uma tal de foice, um tal de martelo e um mundo diferente. Vai ver o menino incomodou demais e teve sua passagem de ida adiantada pelos homens de preto (aqueles de coturno, não os de molotov). mas de tudo que foi deixado de memória sabemos que nosso canto nunca foi o da pirâmide ordinária: a gente pertence ao mundo novo ao eterno retorno da indignação que corta o peito a gente pertence ao menino que se revoltou. E cabe a nós nos revoltarmos também. Agora. matheuS coRReia é eStudante de ciÊnciaS SociaiS da uFal, militante anaRquiSta e Poeta.
o homem doRme SuJo e Faminto no chão duR o No chão duro das praças. No chão sujo da rua. No chão da esquina no chão o homem sujo o homem dorme o homem faminto de tudo tranquilo dorme, enquanto as buzinas rufam com violência a prepotência dos homens loucos.
o amoR
deSabou noS PoRÕeS de entulho O amor desabou nos porões de entulhos Parou na fila pra saída da BR Esfriou no calor do congestionamento Atropelou o pedestre na faixa de pedestre Contaminou o leite do menino com formol. O amor esqueceu de dizer boa noite, obrigado e boa sorte. Esqueceu o abraço quente, O sorriso mais contente, a brincadeira de ciranda das crianças. Esqueceu de querer mais um menino Pra encher o vão da casa. Esqueceu o amor que partiu, nem disse adeus pelos momentos que viveu. Parece ter sempre mais um corpo por aí sozinho. Parece sempre ter mais uma alma a ser devorada, Um corpo a ser aninhado e depois deixado para continuar o ritmo dessas novas jornadas. Só canto os laços que se deixam pra que eles não sejam esquecidos E tenham em algum ponto da história, Uma foto, uma rubrica, qualquer traço Que sugira que ele esteve entre nós.
ReGiSt Ro Colocarei nas palavras a morte e vida dos homens. Contarei dos pequenos gestos que tecem seus dias. Narrarei das histórias de amor as paixões perdidas. Lamentarei cada sonho esquecido diante da labuta da vida. Descreverei de quando seu corpo em dor se revirando sozinho na cama. Apanharei cada gota de lágrima da fé que vai sendo vencida. Registrarei em foto os homens que estão desapercebidos nas esquinas. Guardarei sua voz para que não seja levada ao vento. Porque a voz não pode ser abandonada nas ruas! Essa é palavra, testemunha viva da história dos homens, essa história que também é a minha.
ã
Rebeli o
Enquanto o mundo arde lá fora, tu adoras meu corpo e eu te chupo por inteiro. Meu pulso saltando a garganta enquanto bombas explodem fagulhas ao vento. Gargantas que gritam em agonia e eu gemendo sem medo. Sinto que as forças fogem e o corpo treme por inteiro. Faça guerra meu amor, faça amor e guerra, porque meu corpo não estremece enquanto teu corpo pesado não me vence no chão, me esmagando entre suas pernas. Eclode as rebeliões, não há celas fechadas nem homens de bem nessas terras. É matar ou morrer, o que importa? Se eu fujo deslizando sobre você e entre seus dedos agonizando é como se pudesse morrer de prazer e assim não acordar ao dia amanhecer, para ver se a cidade já foi tomada ou se continua as mesmas leis que permitem às pessoas uma a uma a perecer. Eva Timboo eva timboo, cicliSta, veGetaRiana e autoRa de alGunS veRSoS PoR aÍ.
GaRanta aGoRa Sua vaGa no meRcado de tRabalho
A frase acima está presente na maioria das propagandas de universidades privadas e de instituições que ofertam cursos técnicos, bem como na boca de muita gente. Quantas vezes ouvi por aí “Ah, mas fazendo esse curso você tem emprego certo ao final!”. O slogan guarda dois grandes problemas e é sobre eles que me proponho a discorrer nas próximas linhas. O primeiro problema é que ele trata a educação como um mero produto, para que você consiga se tornar um produto mais atrativo em um dos tantos mercados em que se vendem produtos, o mercado de trabalho. O segundo problema é que essa afirmação é necessariamente mentirosa, por projetar a falsa ideia de que há vagas pra todo mundo, desde que você se esforce o suficiente para ser o já citado produto atrativo. Começando pelo fim, é importante pôr as lentes da realidade e enxergar a situação para além a ideologia. Partindo das lições da Bauman, que muito bem nos explica os fundamentos da sociedade do consumo, os processos de recomodificação do trabalho (emprego), com base na ideologia neoliberal - necessários para a manutenção da ordem de produção e acumulação vigentes – caminharam para uma desresponsabilização coletiva da garantia do emprego, tomando a bola do Estado, governos, empresários, trabalhadores – da coletividade – e passando para a esfera individual. Nesse sentido, o termo empregabilidade tornou-se uma grande arma midiática e ideológica para que internalizemos uma culpa pelo nosso desemprego. Quantas vezes você não já foi jogado de uma entrevista pela outra dizendo que para aquele cargo era necessário tal formação e quando você concluía o requisito para o emprego o que lhe era exigido era outra coisa? Desse jeito você continua sem emprego e a culpa é sua por isso, segundo esse discurso. No final das contas, quem lucra? Uma pista estaria nas empresas que vendem a “formação” necessária para que você se apresente como o produto – mão-de-obra – empregável – desejável.
Sendo assim, percebemos que tudo não passa de falácia, pois, ao adentramos um pouco mais nos fundamentos do neoliberalismo, encontramos a competitividade como fundamento, e essa jamais permitirá o “pleno emprego”, ela exige que haja excluídos, é condição para sustentação dessa lógica. Mas o nosso problema 2 não para por aqui. Quando tá todo mundo sabendo disso e começa a reclamar e compreender a incompatibilidade entre a empregabilidade e o pleno emprego, é sacado o conceito de empreendedorismo como resposta. Ora, ou você tem que se tornar um produto desejável ao mercado de trabalho, pela empregabilidade, ou você tem que ter a capacidade de vender outro produto, ainda que seja você, em outros mercados. Ainda não falamos do nosso primeiro problema, que é a forma como esse discurso serve para cimentar uma concepção de educação que contribui para a manutenção da ordem vigente. Quando mencionamos que curso “a” ou “b” nos garante uma vaga no mercado de trabalho estamos reduzindo o rico processo educativo que pode ser encarado como formação humana, formação para a vida, caminho para emancipação dos sujeitos, a um mero instrumento do sistema para alimentar a engrenagem deste, recheando-nos das competências exigidas pelo mercado de trabalho. O que chamaremos de educação de caráter instrumental é uma educação que se curva exclusivamente às necessidades do mercado, o que faz com que esta abra mão, ou coloque em segundo plano, uma gama de processos importantes para a humanidade e sua sobrevivência adequada, regular e minimamente digna no planeta terra. Ao se curvar às determinações do mercado de trabalho, a educação se torna também um mercado e um grande balcão e, por vezes, forja-se a propaganda enganosa apenas para enriquecer algum patrão em algum lugar. É importante lembrar que, foi deixando o mercado conduzir as ações estatais que fomos empurrados à grandes crises, com ressacas curadas por grandes guerras e a custo de muita fome, sofrimento e morte. Queremos com tudo isso demonstrar o quão perigoso é reproduzir esse discurso da educação instrumental, empregabilidade e empreendedorismo. É necessário fazermos uma reflexão crítica do quanto guiamos nossas escolhas por meio dessas ideias para que não abandonemos lutas importantes por trabalho, emprego e educação de qualidade social, em troca da corrida da empregabilidade para a competição de produto mais desejável no mercado de trabalho, pois como todo produto, podemos ser descartados antes mesmo de irmos para as prateleiras, ou sermos consumidos até o fim e jogados em um lixão junto aos nossos pares. Shilton Roque Shilton Roque é trabalhador do IFRN, vocalista da banda Born to Freedom, mestrando em Educação Profissional e editor desse Zine.