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ano II
fevereiro/2018
no 14
ISSN 2526-9577
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772526
957717
ESPECIAL
Tecnologia assistiva:
autonomia, qualidade de vida e inclusão social Vade Mecum Forense
Direito e Ficção
Processos e Procedimentos
Interseção entre o direito sucessório e a administração na sociedade limitada
Extraordinário
Do periculum in mora inverso (reverso) à luz do CPC-2015
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Rosilene Gomes da Silva Giacomin
Alcilei da Silva Ramos
Reis Friede
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Editora chefe: Adriana Zakarewicz Conselho Editorial: Almir Pazzianotto Pinto, Antônio Souza Prudente, Celso Bubeneck, Esdras Dantas de Souza, Habib Tamer Badião, José Augusto Delgado, José Janguiê Bezerra Diniz, Kiyoshi Harada, Luiz Flávio Borges D’Urso, Luiz Otavio de O. Amaral, Otavio Brito Lopes, Palhares Moreira Reis, Sérgio Habib, Wálteno Marques da Silva
À frente dos grandes temas jurídicos
Diretores para Assuntos Internacionais: Edmundo Oliveira e Johannes Gerrit Cornelis van Aggelen
Ives Gandra da Silva Martins
Tributação sobre a Receita - Pág. 6 l
nº 13
898881
janeiro de 2018
9
ISSN 2526-8988
l
772526
ano II
O incidente de assunção de competência no CPC/2015 DOUTRINA Demócrito Reinaldo Filho A nova lei alemã que obriga provedores de redes sociais a remover conteúdo publicado por usuários – um modelo para o Brasil?
TENDÊNCIAS
PORTAL JURÍDICO
Reis Friede
Eduardo Luiz Santos Cabette
Eleição Direta nos Tribunais
Em tempos de febre amarela e Lava Jato todo mundo quer imunidade: vereadores e prisão em flagrante
Colaboradores: Alexandre de Moraes, Álvaro Lazzarini, Antônio Carlos de Oliveira, Antônio José de Barros Levenhagen, Aramis Nassif, Arion Sayão Romita, Armand F. Pereira, Arnoldo Wald, Benedito Calheiros Bonfim, Benjamim Zymler, Cândido Furtado Maia Neto, Carlos Alberto Silveira Lenzi, Carlos Fernando Mathias de Souza, Carlos Pinto C. Motta, Damásio E. de Jesus, Décio de Oliveira Santos Júnior, Eliana Calmon, Fátima Nancy Andrighi, Fernando Tourinho Filho, Fernando da Costa Tourinho Neto, Georgenor de Souza Franco Filho, Geraldo Guedes, Gilmar Ferreira Mendes, Gina Copola, Gustavo Filipe B. Garcia, Humberto Theodoro Jr., Igor Tenório, Inocêncio Mártires Coelho, Ivan Barbosa Rigolin, Ives Gandra da Silva Martins, Ivo Dantas, Jessé Torres Pereira Junior, J. E. Carreira Alvim, João Batista Brito Pereira, João Oreste Dalazen, Joaquim de Campos Martins, Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, José Alberto Couto Maciel, José Carlos Arouca, José Carlos Barbosa Moreira, José Luciano de Castilho Pereira, José Manuel de Arruda Alvim Neto, Lincoln Magalhães da Rocha, Luiz Flávio Gomes, Marco Aurélio Mello, Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, Mário Antonio Lobato de Paiva, Marli Aparecida da Silva Siqueira, Nélson Nery Jr., Reis Friede, René Ariel Dotti, Ricardo Luiz Alves, Roberto Davis, Tereza Alvim, Tereza Rodrigues Vieira, Toshio Mukai, Vantuil Abdala, Vicente de Paulo Saraiva, William Douglas, Youssef S. Cahali. Arte e Diagramação: Augusto Gomes Revisão: Equipe ZK Editora Marketing: Diego Zakarewicz Comercial: André Luis Marques Viana Central de Atendimento ao Cliente Tel. (61) 3225-6419 Home-page: www.zkeditora.com/pratica Redação e Correspondência artigos@zkeditora.com.br
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Revista Prática Forense é uma publicação mensal da Zakarewicz Editora. As opiniões emitidas em artigos assinados são de inteira responsabilidade dos seus autores e não refletem, necessariamente, a posição desta Revista. Anúncios publicidade@zkeditora.com.br
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por
ARQUIVO PESSOAL
PRIMEIRA PÁGINA
Murillo de Aragão
Sobre culpas e omissões
A
s crises na segurança pública repetem-se periodicamente no Brasil. Ainda que os índices melhorem aqui e ali, em 2016, por exemplo, registraram-se quase 70 mil mortes por homicídio e latrocínio no País. Rebeliões em presídios são recorrentes. Greves de policiais também, assim como e participação das Forças Armadas na segurança dos Estados. A sequência de eventos, que só pioram a cada ano, alimenta o debate sobre de quem seria a culpa por esta situação. União e Estados acusam-se mutuamente. Já especialistas dizem que ambos erram, ou seja, a responsabilidade seria de todos. É verdade. A culpa é de todos, e não só dos Estados e da União. A culpa também é, portanto, das elites brasileiras, que tratam o tema de forma episódica. Quem pode contrata segurança privada e usa carro blindado. Quem não pode sofre. E o tema não chega às mesas de decisão por indiferença das elites e omissão da classe política. As próprias categorias profissionais envolvidas em geral só se mobilizam para tratar de interesses da corporação, pouco contribuindo para o aprimoramento das políticas de segurança no País. Só em Brasília, mais de dez delegados de polícia devem se candidatar a deputado distrital e federal neste ano. A agenda preferencial, porém, é equiparar salários com a Polícia Federal, e não melhorar a segurança pública. Ao permitirem que o corporativismo prevaleça sobre as agendas do bem comum, nossas elites assumem culpa grotesca. Semelhante à culpa das elites venezuelanas, que fracassaram e deixaram o país chegar às mãos de Hugo Chávez. A Venezuela paga até hoje pela omissão das elites. Quando o Brasil flerta com Jair Bolsonaro, está trilhando um caminho semelhante ao percorrido pelo país vizinho. Paradoxalmente, temos uma imensa responsabilidade e um cuidado extremo com o sistema financeiro. Nosso Banco Central é um dos melhores do mundo, assim como o sistema adotado é um dos mais lucrativos e seguros do planeta. Caso levássemos para a segurança pública 30% da competência aplicada às finanças, a situação no País seria muito melhor.
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PRIMEIRA PÁGINA Nossas elites se omitem quando não percebem o dano que a insegurança pública causa à economia. Nosso turismo é ridículo perto de nossas potencialidades. Pessoas deixam de sair de casa por medo de assalto. Empresários dos ramos relacionados ao turismo deveriam ser os primeiros a se mobilizar para melhorar a segurança no Rio de Janeiro, por exemplo. Existem ainda duas tradições gravíssimas: a apologia da cultura do crime e a criminalização da atividade policial. O policial, em princípio, é considerado um problema, até que se precise dele. Há um enorme preconceito, em especial em relação à Polícia Militar. É verdade que quase todos os dias se noticiam mortes acidentais de cidadãos por causa de confrontos com policiais, mas desqualificar a atividade é ser contra o Estado de Direito. As autoridades tampouco cumprem o seu papel. A polícia prende, a Justiça solta. E milhares de presos aguardam julgamento há anos: em um terço das prisões 60% dos presos estão nessa situação. E não há a devida indignação a esse respeito. O debate é enviesado, como no recente episódio do indulto de Natal. A distribuição de salários dentro do sistema é absolutamente desproporcional. Compare-se o salário médio de um policial militar com o de um promotor. O Ministério Público, como defensor da sociedade, deveria ser mais atuante no que diz respeito a essas distorções. Verbas postas à disposição pelo governo federal não são usadas pelos Estados por falta de planejamento e excesso de burocracia. Apenas 4% dos recursos do Fundo Penitenciário Nacional foram utilizados em 2016. É incrível a omissão e incompetência dos Estados, que não sabem administrar seus respectivos sistemas prisionais nem sequer utilizar as verbas federais disponíveis para a segurança pública. A Força Nacional, cuja concepção é muito boa para a nossa realidade, carece de recursos, de pessoal e de maior institucionalização. Iniciativa para melhorar esse quadro foi arquivada pelo Congresso. Tampouco há investimento significativo no sistema de inteligência, apesar de avanços recentes, com maior engajamento dos serviços de inteligência das Forças Armadas e da Polícia Federal no combate ao crime organizado. O Congresso demora a dar a devida resposta à questão. Temos iniciativas que deveriam ser postas em votação, como a proposta de emenda constitucional que estabelece para a segurança pública competência comum da União, de Estados e municípios. Deveríamos refletir sobre a unificação das Polícias Militar e Civil. Outra iniciativa é a criação de um sistema único de segurança pública, nos moldes do SUS, que integraria políticas, recursos e ações sob a supervisão do Ministério da Justiça ou de um Ministério da Segurança Pública. Tais propostas tramitam lentamente. Devemos ir além e envolver municípios e comunidades em iniciativas como as que se veem, por exemplo, no Chile. Destaco a Segurança Ciudadana da Municipalidad de las Condes, que recentemente começou a utilizar drones para ampliar a vigilância da região. O desperdício de recursos do Fundo Penitenciário Nacional é uma prova de que não falta dinheiro. O que falta é planejamento e vontade política. Mas falta, sobretudo, participação da sociedade civil no debate e na alocação das verbas tanto da segurança pública quanto das Forças Armadas. Vivemos tempos de guerra civil. E não é de hoje. Na guerra civil da Síria morreram, em 2016, cerca de 60 mil pessoas, menos do que no Brasil no mesmo período. A imagem das balas traçantes nos morros do Rio de Janeiro na virada do ano nos remete à guerra que estamos vivendo. E combatê-la é responsabilidade de todos. A questão, sob todos os pontos de vista – cultural, econômico, social e político –, até hoje não foi tratada com a prioridade que a cidadania merece. MURILLO DE ARAGÃO é advogado, consultor, cientista político, professor, é doutor em sociologia pela UNB.
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LANÇAMENTO
FAMÍLIAS
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“Foi a importância da interação entre Famílias, Psicologia e Direito que levou as visionárias Tereza Rodrigues Vieira, Valéria Galdino Cardin e Bárbara Brunini a organizarem esta obra que traz as mais importantes figuras da atualidade que não têm medo de ver a realidade da vida.” Maria Berenice Dias
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sumário
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Primeira Página Sobre culpas e omissões
Especial
Murillo de Aragão
Tecnologia assistiva: autonomia, qualidade de vida e inclusão social Regina Elaine Santos Cabette, Bianca Cristine Pires dos Santos Cabette e Eduardo Luiz Santos Cabette
21
Questões de Direito
19
Destaque Só o instituto nos salva
Entre indultos e insultos
Bolívar Lamounier
Sergio Ricardo do Amaral Gurgel
27
Casos Práticos O desequilíbrio social no tratamento dos militares
24
A hipervulnerabilidade do consumidor-turista
Keila Corrêa Nunes Januário
30
Know How Freud e a religião Rômulo de Andrade Moreira
Saiba Mais
Vitor Guglinski
36
Direito e Ficção Extraordinário Alcilei da Silva Ramos
39
Enfoque Uso excessivo de algemas
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Eudes Quintino de Oliveira Júnior
Vade Mecum Forense Interseção entre o direito sucessório e a administração na sociedade limitada Rosilene Gomes da Silva Giacomin
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Fichário Jurídico Responsabilidade do Flamengo diante dos atos de violência protagonizados no Maracanã
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Exceptio rei judicataevel in judicium deductae
Leonardo Sarmento
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Expressões Latinas
Vicente de Paulo Saraiva
Processos e Procedimentos Do periculum in mora inverso (reverso) à luz do CPC-2015 Reis Friede
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Espaço Aberto Majoração inválida da CFEM Paulo Honório de Castro Júnior
ESPAÇO RESERVADO PARA APOIADORES
ESPECIAL
Tecnologia assistiva: autonomia, qualidade de vida e inclusão social1
Regina Elaine Santos Cabette, Bianca Cristine Pires dos Santos Cabette e Eduardo Luiz Santos Cabette
DIVULGAÇÃO
por
“
A tecnologia assistiva contribui de forma fundamental para o avanço dos Direitos Humanos, de maneira que pessoas com deficiência possam obter autonomia e qualidade de vida transpondo barreiras e obstáculos com a aplicação de normas e recursos de acessibilidade.
”
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Q
uais alternativas e soluções pode a sociedade adotar, criar e/ou galgar para que todos tenham autonomia, qualidade de vida e inclusão so cial para uma vida digna e possível? O tema é claramente interdisciplinar, pois que implica num conjunto de medidas que somente podem ser levadas a termo com a concorrência de várias áreas, tais como aquelas tecnológicas, as sociais e humanas e a jurídica. Esta última é essencial, seja porque já há uma gama enorme de leis, convenções, decretos, resoluções e portarias que tratam internamente e externamente da questão da acessibilidade e dos direitos das pessoas com deficiência, as quais precisam ser postas em prática na sua interface com os demais ramos implicados; seja porque em algum ponto pode ser necessário ainda ampliar ou promover melhoras na regulamentação dessas questões. A Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República já deu o primeiro passo criando o Comitê de Ajudas Técnicas em 2006, sendo que, sem que a sociedade cobre realmente apoio e incentivo, e muito mais importante, se a sociedade não se mobilizar em prol da criação de recursos e serviços que tornem a vida das pessoas portadoras de deficiência ou limitações possível, a sociedade permanecerá desigual e injusta. Hoje o termo Ajudas Técnicas é conhecido como Tecnologia Assistiva e trata de uma área do conhecimento interdisciplinar para criação e/ou adequação de produtos, serviços e estratégias que visem o progresso da acessibilidade promovendo autonomia, qualidade de vida e inclusão social, não só às pessoas com mobilidade reduzida, mas também para sua família que sofre junto com todo esse processo preconceituoso e limitante (RIBOLI, 2010). Em agosto de 2007, o CAT/ SEDH / PR aprovou o termo Tecnologia Assistiva como sendo o mais adequado e passa a utilizá-lo em toda a documentação legal por ele produzida. Desta forma, estimula que o termo tecnologia assistiva seja aplicado nas formações de recursos humanos, nas pesquisas e referenciais teóricos brasileiros. O comitê sugere também que se façam os possíveis encaminhamentos para revisão da nomenclatura em instrumentos legais. A aprovação no CAT para a oficialização do termo tecnologia assistiva leva em conta a ausência de consenso sobre haver diferença conceitual entre os termos pesquisados no referencial teórico internacional. Os conceitos aplicados a cada um destes termos ora se assemelham, ora mostram algumas diferenças, principalmente na abrangência, pois podem referir-se especificamente a um artefato ou podem ainda incluir serviços, práticas e metodologias aplicadas ao alcance da ampliação da funcionalidade de pessoas com deficiência. O CAT considera também que há uma tendência nacional já firmada da utilização do termo Tecnologia Assistiva no meio acadêmico, nas organizações de pessoas com deficiência, em setores governamentais (MEC, MCT, CNPq) e no mercado de produtos. Justifica ainda que tecnologia assistiva, por ser um termo criado para representar um conceito específico nos remete diretamente à compreensão deste conceito e se solidifica. O CAT propõe ainda que as expressões “tecnologia assistiva” e “ajudas técnicas”, neste momento, continuem sendo entendidas como sinônimos, pois em nossa legislação oficial ainda consta o termo “ajudas técnicas”. O serviço de TA agregará profissionais de distintas formações como engenheiros, arquitetos, designers, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, médicos, assistentes sociais, psicólogos, entre outros, para o atendimento do usuário da TA.
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ESPECIAL De acordo com o CAT:“Consideram-se ajudas técnicas, para os efeitos deste Decreto, os elementos que permitem compensar uma ou mais limitações funcionais motoras, sensoriais ou mentais da pessoa portadora de deficiência, com o objetivo de permitir-lhe superar as barreiras da comunicação e da mobilidade e de possibilitar sua plena inclusão social. Parágrafo único. São ajudas técnicas: I – próteses auditivas, visuais e físicas; II – órteses que favoreçam a adequação funcional; III – equipamentos e elementos necessários à terapia e reabilitação da pessoa portadora de deficiência; IV – equipamentos, maquinarias e utensílios de trabalho especialmente desenhados ou adaptados para uso por pessoa portadora de deficiência; V – elementos de mobilidade, cuidado e higiene pessoal necessários para facilitar a autonomia e a segurança da pessoa portadora de deficiência; VI – elementos especiais para facilitar a comunicação, a informação e a sinalização para pessoa portadora de deficiência; VII – adaptações ambientais e outras que garantam o acesso, a melhoria funcional e a autonomia pessoal” (LIMA.2007). Existe uma classificação em três níveis diferentes: classe, subclasse e detalhamento da classificação, com explicações e referências. O primeiro nível mais geral de classificação tem onze classes de produtos assistivos, respectivamente, para (BERSCH, 2013): 1 – Tratamento médico pessoal; 2 – Treinamento de habilidades; 3 – Órteses e próteses; 4 – Proteção e cuidados pessoais; 5 – Mobilidade pessoal; 6 – Cuidados com o lar; 7 – Mobiliário e adaptações para residenciais e outras edificações; 8 – Comunicação e informação; 9 – Manuseio de objetos e equipamentos; 10 – Melhorias ambientais, ferramentas e máquinas; 11 – Lazer (BERSCH, 2013). Este projeto visa a aplicação da tecnologia assistiva para criar, implementar e adequar recursos, equipamentos e produtos em geral para a população, buscando meios de acessibilidade inovadores, modernos e, principalmente, mais baratos, que estejam ao alcance da população como um todo, sem restrição de classe social e/ ou financeira. Possibilitar às pessoas com deficiência viver de forma autônoma e participar inteiramente de todos os aspectos da vida com a criação e/ou adaptação de equipamentos e recursos tais como meios de transporte, instalações internas e externas, inclusive escolas, residências, instalações médicas e locais de trabalho: Facilitando a mobilidade pessoal das pessoas com deficiência a custo acessível; Facilitando às pessoas com deficiência o acesso a tecnologias assistivas, dispositivos e ajudas técnicas de qualidade, tornando-os disponíveis a custo acessível;
Incentivando entidades que produzem ajudas técnicas de mobilidade, dispositivos e tecnologias assistivas a levarem em conta todos os aspectos relativos à mobilidade de pessoas com deficiência. 10
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Além disso, o projeto ainda conta com o objetivo de estruturar a área de conhecimento e competências da tecnologia assistiva e políticas públicas, estudar a elaboração de normas a respeito da tecnologia assistiva e promover a criação de recursos humanos e pessoas especializadas na área. Direitos Humanos Como visto, a temática das chamadas “Tecnologias Assistivas” constitui uma via de concreção da inclusão das pessoas com deficiência e de promoção de uma igualdade material, conforme mandamentos nacionais (constitucionais, ordinários e regulamentares). Essa via aproxima o Direito posto interna e externamente das áreas tecnológicas, sociais e humanas, não em uma relação meramente multidisciplinar ou auxiliar, mas, necessariamente, em uma relação interdisciplinar e até mesmo, transdisciplinar, em que os saberes precisam de contato íntimo e em que cada um dos envolvidos na pesquisa se dispõe a uma troca de conhecimentos complementares em imbricação e jamais sobreposição. Os Direitos Humanos, para cujo exercício e pleito não se exige mais do que tão somente a pertença à categoria dos seres humanos, independentemente de raça, cor, etnia, religião, origem, condição financeira ou atributos físicos ou intelectuais; somente podem ser mais do que meras normas “programáticas”, letras postas em papéis, mediante a atuação concreta da pesquisa inter e transdisciplinar realizada nos moldes deste trabalho. É por meio da consideração das normas jurídicas nacionais e internacionais postas às pessoas com deficiência e seu direito a uma vida plena e digna, que se pode partir para uma união de saberes e para a produção efetiva de dispositivos capazes de promover uma facilitação e/ou uma superação de obstáculos práticos para que as pessoas com deficiência possam exercer plenamente sua condição humana de forma digna. Dessa maneira, por um véu de esquecimento ou indiferença, acobertamos diuturnamente a desigualdade e a ofensa à dignidade humana das pessoas com deficiência. Violamos, no mínimo por via omissiva, seus direitos humanos mais fundamentais de acesso ao estudo, à informação, ao lazer, à saúde física e mental, à expressão, à cultura etc. Isso pode ser feito de forma inconsciente, mas essa inconsciência não torna menos cruel e injusta a desigualdade e a violação à humanidade dessas pessoas. Como bem aduz Dworkin: “Um sistema político não – igualitário não se torna justo simplesmente porque todos acreditam equivocadamente que é justo” (DWORKIN, 2012, p. 22).
A pesquisa, produção e investimento em instrumentos, aparelhagens, vias diferenciadas e toda espécie de inovação com vistas à inclusão social da pessoa com deficiência, implica, claramente, em um tratamento privilegiado desse grupo social. Não obstante, não se trata de uma discriminação condenável ou negativa e sim de uma discriminação positiva, pois que vai ao encontro da promoção dos direitos fundamentaisdessas pessoas. O grande ideal do projeto é a colaboração para a autenticidade e possibilidade de vida digna a todos, além de proporcionar aos profissionais envolvidos a formação de recursos humanos, aprendizado interdisciplinar e ainda, a enorme satisfação em aliviar e tornar possível e feliz a vida das pessoas com deficiência ou idosas e de seus
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ESPECIAL familiares. Além de toda parcela ferramental o projeto visa contribuir para a definição de políticas públicas quanto ao tema, que a cada segundo se torna mais urgente. O que se pretende é realmente a aplicação das políticas públicas, avançar na área da tecnologia assistiva, trazendo grande desenvolvimento social, tecnológico e humano para a sociedade em geral. No aspecto científico pretende-se impactar com criação de novas tecnologias e inventos também na área da tecnologia assistida para o bem comum e proteção e aplicação dos direitos humanos (SILVA, 2017). No campo jurídico há vasta gama de normas que se consubstanciam em tratados e convenções internacionais, a começar pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 e da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU – 1948), até, mais especificamente, a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada pelo Brasil pelo Decreto 186/08. Dessas normativas internacionais se estabelece a necessidade de promover à igualdade e inclusão das pessoas com deficiência, usando de instrumentos jurídicos internos, mas, principalmente, partindo desses instrumentos jurídicos para a realização de projetos capazes de criar condições de efetiva participação em igualdade desses indivíduos na sociedade plural e democrática. A Constituição Federal de 1988 abraça o “Princípio da Igualdade” em seu art. 5º, caput e segue no reconhecimento de especiais tratamentos às pessoas com deficiência com o claro objetivo de promover à igualdade material reclamada pela igualdade formal instituída como direito fundamental (v.g. art. 37, VIII; art. 203, V; art. 208, III; art. 227, § 1º, II e § 2º). Outros diplomas legais abordam a questão dos hipossuficientes e a necessidade de tratamentos especiais, em estrito cumprimento das normas convencionais e constitucionais pertinentes. São exemplos o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90), o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03) e, principalmente, o recente Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/16). Bem pouco crível e até ingênuo crer que a iniciativa privada vá se debruçar na tarefa da promoção da acessibilidade, inclusão, igualdade e consequente dignidade das pessoas com deficiência. Nesse passo, é de esperar que o impulso para essas ações positivas de inclusão parta de políticas públicas, fomentadas pelo Estado em conjunto com a sociedade civil. É nesse aspecto que a pesquisa com o incentivo estatal, realizada pelas universidades públicas e privadas, é um instrumento imprescindível para a concretização dos ideais acima expostos (BOBBIO, 1992). Assim que os Direitos Humanos das pessoas com deficiência poderão superar o nível já alcançado de reconhecimento e até de positivação de normas legais internas e externas, passando para ações concretas de produção de instrumentos, aparelhos, vias de comunicação e facilitação capazes de, com sustento na juridicidade, na ética, na ciência e na tecnologia, tornarem concretos direitos fundamentais abstratamente estabelecidos. Este é o diferencial que justifica e torna imprescindível o apoio a esta pesquisa: sua capacidade, pelo trânsito harmonioso entre as diversas áreas do conhecimento implicadas, de tornar efetiva a inclusão social das pessoas com deficiência. Engenharias e Tecnologia Assistiva No âmbito da tecnologia assistiva, as engenharias desempenham um papel amplo efundamental. Dentre as especialidades das engenharias podem-se citar algumas das maisnotórias: 12
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Engenharia mecânica – cria, desenvolve, projeta e supervisiona a produção demáquinas, equipamentos, veículos, e ferramentas específicas da indústria mecânica. Cria protótipos e testa os produtos obtidos, define normas e procedimentos de segurança, acompanha e analisa testes de resistência. E na tecnologia assistiva utiliza-se todo esse conhecimento da área da mecânica para a criação e desenvolvimento de equipamentos e produtos para auxiliar na mobilidade do deficiente físico. Engenharia Elétrica / Eletrônica – projeta e desenvolve componentes, equipamentos e sistemas eletroeletrônicos empregados em automação industrial, sistemas de geração, transmissão e distribuição de eletricidade e eletrônica de consumo (aparelhos de rádio, TV e vídeo). O engenheiro elétrico atua na tecnologia assistiva juntamente com o engenheiro mecânico, desenvolvendo todo artefato elétrico necessário a cada projeto. Engenharia de Produção – é fundamental em empreendimentos de quase todos os setores. Cabe a ele gerenciar os recursos humanos, financeiros e materiais de uma empresa a fim de elevar sua produtividade e rentabilidade. Ao associar conhecimentos de engenharia a técnicas de administração e fundamentos de economia, é capaz de propor procedimentos e métodos que racionalizam o trabalho, aperfeiçoam a produção e ordenam as atividades financeiras, logísticas e comerciais de uma organização. Essa área de conhecimento atua na tecnologia assistiva estudando a viabilidade financeira, gerenciamento de recurso humanos e logística da produção dos recursos e serviços. Engenharia Civil – projeta, gerencia e executa obras como casas, prédios, pontes, viadutos, estradas e barragens. Constrói ou reforma, especifica as redes de instalações elétricas, hidráulicas e de saneamento do edifício e define o material a ser usado. Na tecnologia assistiva pode ser útil na edificação de residências, escolas, prédios etc. com foco na acessibilidade e criação de ambientes favoráveis à situação do deficiente físico. Engenharia de Computação – projeta e constrói computadores, periféricos e sistemas que fazem a integração entre hardware e softwares, utilizando placas e circuitos e pode projetar sistemas digitais, computadorizados e robôs. Na tecnologia assistiva pode efetuar todo tipo de automação em equipamentos, residência etc. E assim para todas as áreas de conhecimento das engenharias em geral. A tecnologia assistiva nas engenharias pode ser separada em dois campos: a) Recursos Podem variar de uma simples bengala a um complexo sistema computadorizado. Estão incluídos brinquedos e roupas adaptadas, computadores, softwares e hardwares especiais, que contemplam questões de acessibilidade, dispositivos para adequação da postura sentada, recursos para mobilidade manual e elétrica, equipamentos de comunicação alternativa, chaves e acionadores especiais, aparelhos de escuta assistida, auxílios visuais, materiais protéticos e milhares de outros itens confeccionados ou disponíveis comercialmente (BERSCH, 2013). b) Serviços São aqueles prestados profissionalmente à pessoa com deficiência visando selecionar, obter ou usar um instrumento de tecnologia assistiva. Como exemplo,
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ESPECIAL
FOTO: AUTOR
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podemos citar avaliações, experimentação e treinamento de novos equipamentos (BERSCH, 2103). No UNISAL, campus São Joaquim já foi desenvolvido por alunos das engenharias um projeto em que uma cadeira de rodas manual foi transformada em uma handbike elétrica. Esse equipamento foi doado a uma ex-aluna e funcionária desta instituição. A figura 1 apresenta fotos do equipamento em questão.
Figura 1 – Handbike elétrica Fonte: Autor 14
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Foram palavras da funcionária contemplada com a doação: “Minha liberdade! Estou muito feliz sou livre agora e agradeço muito a vocês.” Esse tipo de ajuda é um dos inúmeros casos de pessoas com deficiência que se pode auxiliar e tornar sua vida digna, livre e feliz. E foi por meio de conhecimentos da área das engenharias e uma enorme força de vontade em contribuir e fazer algo para mudar o panorama das pessoas com deficiência, que esses alunos e coordenadora proporcionaram essa nova vida à funcionária. É da mesma forma e com uma variedade enorme de outros equipamentos e produtos que este projeto pretende desenvolver e promover a dignidade, a autonomia e a liberdade a essas pessoas. É notório que a tecnologia assistiva sem o conhecimento das engenharias não seria possível, assim como a junção destes conhecimentos com a interdisciplinariedade com a medicina, psicologia, educação física, fisioterapia, direito entre outros é imprescindível. Este projeto no campo das engenharias aponta inúmeras formas de adaptação, invenção e construção de equipamentos, recursos e serviços, por meio do conhecimento e competência dos professores, alunos, técnicos e demais profissionais que integram a equipe. Além das cadeiras handbikes elétricas acima citadas, ainda existe, já em andamento a adaptação de carros para transporte de cadeiras de rodas para tretraplégicos e a seguir apresentam-se alguns dos muitos projetos que poderão acontecer, em ligeira descrição: – O projeto domótica – casa inteligente – visa à automação residencial, que adapta e reformula seus princípios conforme o comportamento do morador (usuário) do sistema ou por meio da sua própria interação, onde serão analisados eventos ocorridos no dia a dia, para que tais não precisem da intervenção do usuário, transformando-os em algo automático, confortável e possível, além da preocupação com soluções alternativas de baixo custo e acessíveis (TONIDANDEL, 2004). – Projetos de próteses e órteses pode-se avaliar o comportamento de um membro robótico e suas utilidades quando integrada ao ser humano. Um dos objetivos é somar as qualidades do ser humano a uma máquina, para ampliar as possibilidades de recuperação de pessoas que nascem ou perderam partes de seu corpo em algum acidente (BIAGIOTTI et al, 2002). Estes são alguns dos projetos idealizados pela equipe, que já se encontram em fase de possível desenvolvimento se obtiverem os recursos financeiros necessários. Outros muitos projetos previstos estão em fase de pesquisa, aquisição de conhecimento e interação da equipe multi/transdisciplinar. Multidisciplinaridade, transdisciplinaridade ou interdisciplinaridade? Multidisciplinaridade, transdisciplinaridade ou interdisciplinaridade? Qual delas caracteriza este projeto? Sabe-se que a multidisciplinaridade ocorre quando há mais de uma área de conhecimento em um determinando projeto ou propósito, mas cada uma mantém seus métodos e teorias em perspectiva. Na interdisciplinaridade mais de uma disciplina se une em um projeto comum, com um planejamento que as relacione. Essas áreas trocam conhecimentos e enriquecem ainda mais as possibilidades. Como resultado, há um novo saber, menos fragmentado e mais dinâmico. A transdisciplinaridade é a integração contínua dos conhecimentos, mantendo uma relação
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DIVULGAÇÃO
ESPECIAL
“
O grande foco, no âmbito jurídico, será a questão dos Direitos Humanos e Fundamentais das pessoas com deficiência, indicando como as iniciativas do projeto poderão se converter em vias de aplicação prática das normas que determinam o tratamento promotor de igualdade material entre as pessoas sãs e as com deficiência.
”
complexa dos diversos saberes sendo que nenhum é mais importante que o outro (CARDONA , 2010). Diante do exposto pode-se dizer que este projeto une as áreas tecnológicas, sociais, humanas e biológicas, e essa relação não é somente multidisciplinar, mas, essencialmente, interdisciplinar e mais ainda, transdisciplinar. Durante todo o processo e desenvolvimento deste projeto os saberes e as experiências necessitam estar em contato contínuo e profundo, sendo que todos os envolvidos na pesquisa se propõem a trocar conhecimentos complementares visando resultados melhores, mais realistas e fieis ao escopo do projeto. Os pesquisadores comprometidos com todo o processo têm como ideal apoiar e fomentar a evolução e concretização social pretendida, promovendo a autonomia, qualidade de vida e inclusão social das pessoas com deficiência ou qualquer restrição de mobilidade, lhes proporcionando liberdade e a vida digna. Contribuições Científicas ou Tecnológicas da Proposta Na área do Direito será relevante o estudo das normas nacionais e internacionais que reconhecem e estabelecem os direitos fundamentais e humanos das pessoas
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com deficiência, emprestando o necessário embasamento jurídico para cada uma das iniciativas propostas durante o trabalho de pesquisa e elaboração das diversas formas instrumentais de inclusão social dos deficientes, que serão desenvolvidas pelos demais participantes. O grande foco, no âmbito jurídico, será a questão dos Direitos Humanos e Fundamentais das pessoas com deficiência, indicando como as iniciativas do projeto poderão se converter em vias de aplicação prática das normas que determinam o tratamento promotor de igualdade material entre as pessoas sãs e as com deficiência. O Direito posto, em cotejo com as iniciativas do projeto, poderá demonstrar como é viável tornar efetiva a promoção da inclusão e da igualdade dos deficientes em nossa realidade. Na área das engenharias a relevância científica é notável no que se refere ao ganho de prática, conhecimento e grande aprendizagem, além do enorme benefício da interdisciplinaridade para com as demais áreas atreladas ao projeto. Construção de recursos humanos em pesquisa e desenvolvimento tecnológico. Ainda tem-se a grande satisfação de poder vivenciar a possibilidade de participar e colaborar para a inclusão social das pessoas com deficiência ou alguma restrição de mobilidade. Poder fazer parte de uma sociedade mais igualitária e livre e ainda conseguir vislumbrar a questão dos Direitos Humanos e Fundamentais das pessoas com deficiência, podendo contribuir para a aplicação prática das normas e a promoção da inclusão e da igualdade dos deficientes em sociedade, acrescenta a uma área da ciência exata seu necessário componente humano e humanitário. De grande importância e uma oportunidade excelente de alunos, pesquisadores e colaboradores nacionais e estrangeiros compartilharem seus conhecimentos fazendo com que áreas de saberes tão distintas possam juntas fazer a diferença para a sociedade e mudar a vida de cidadãos lhes oferecendo uma condição de autonomia e vida digna. Da mesma forma os profissionais das diversas áreas (fisiatria, educação física, educação etc.) inseridas neste projeto poderão ter grande contribuição científica para seu crescimento como cidadão e profissional. Para a sociedade em geral a criação dos equipamentos, recursos e serviços mencionados anteriormente possibilitará igualdade e condições financeiras para aquisição destes, já que um dos objetivos do projeto é o baixo custo dos produtos. Considerações Finais Em se tratando de um projeto com ênfase na melhoria de qualidade de vida e procura por baixo preço nos produtos, processos e serviços que serão criados e/ ou adaptados para dar autonomia e vida digna às pessoas com deficiência, com toda certeza o projeto possui enorme potencial de inovação social, tecnológica e científica. Esse potencial será conseguido por meio da criação, desenvolvimento e confecção dos inúmeros equipamentos, recursos e produtos obtidos com a interação de todos os excelentes profissionais, alunos, técnicos, professores e pesquisadores envolvidos. Além da inovação pode-se vislumbrar neste projeto a ainterdisciplinaridade, multidisciplinaridade e transdisciplinaridade alcançada entre os vários saberes aqui inseridos. O grupo tem em mente outros projetos com o mesmo intuito deste primeiro, utilizando do conceito da tecnologia assistiva que envolve produtos, recursos,
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ESPECIAL metodologias, estratégias, práticas e serviços que objetivam promover a funcionalidade, relacionada à atividade e participação, de pessoas com deficiência, incapacidades ou mobilidade reduzida, visando sua autonomia, independência, qualidade de vida e inclusão social. O conceito de tecnologia assistiva contribui de forma fundamental para o avanço dos Direitos Humanos, de maneira que pessoas com deficiência possam obter autonomia e qualidade de vida transpondo barreiras e obstáculos com a aplicação de normas e recursos de acessibilidade. NOTA 1 Trabalho interdisciplinar apresentado originalmente e publicado nos Anais do III CONISE – Congresso Internacional Salesiano de Educação – Direitos Humanos e Formação de Professores – tensões, desafios e propostas, out., Lorena: Unisal, 2017. Referências BERSCH, Rita. INTRODUÇÃO À TECNOLOGIA ASSISTIVA Porto Alegre 2013. Disponível em http:// www.assistiva.com.br/Introducao_Tecnologia_Assistiva.pdf Acesso em09/01/2017, acesso em 09/01/2017. BIAGIOTTI, L., LOTTI, F., MELCHIORRI, C., VASSURA, G. How Far Is the Human Hand? A Review on Anthropomorphic Robotic, DEIS – DIEM, University of Bologna, 40136 Bologna, Italy, 2002. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 9ª. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992. CARDONA, Fernando Vilas Boas, Transdisciplinaridade, Interdisciplinaridade e Multidisciplinaridade. Disponível em http://www.webartigos.com/artigos/transdisciplinaridade-interdisciplinaridade-e-multidisciplinaridade/34645/. Acesso em 10/01/2017. DWORKIN, Ronald. A virtude soberana. A teoria e a prática da igualdade. Trad. Jussara Simões. 2ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2012. LIMA, Aline Cristina Bezerra Leite Carvalho. A inclusão social das pessoas com deficiência como efeito da efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana: análise no plano normativo. Disponível em http://www.tce.ce.gov.br/edicoes/revista-controle-volume-x-n-2-jul-dez-2012/ send/194-revista-controle-volume-x-n-2-jul-dez-2012/2052-artigo-18-a-inclusao-social-daspessoas-com-deficiencia-como-efeito-da-efetivacao-do-principio-da-dignidade-da-pessoahumana-analise-no-plano-normativo, acesso em 10/01/2017. RIBOLI, Cleci Janete Piovesan, et al. A Pessoa com Deficiência e o Princípio da Dignidade Humana. 2010. Disponível em https://www.unicruz.edu.br/15_seminario/seminario_2010/CCHC/A%20 PESSOA%20COM %20DEFICI%C3%8ANCIA%20E%20O%20PRINC%C3%8DPIO%20DA%20 DIGNIDADE %20HUMANA.pdf. Acesso em 08/01/2017, acesso em 10/01/2017. SILVA, Luzia Gomes da. Portadores de deficiência, igualdade e inclusão social. Princípio: a Dignidade da Pessoa Humana Disponível em http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_ artigos_leitura&artigo_id=11413, acesso em09/01/2017. TONIDANDEL, F., TAKIUCHI, M., MELO, E. Domótica Inteligente: Automação baseada em comportamento. Congresso Brasileiro de Automática. (2004) REGINA ELAINE SANTOS CABETTE é Doutora em Engenharia e Tecnologia Aeroespacial, Mestre em Física na área de Dinâmica Orbital e Planetologia, Licenciada em Física e Professora de Cálculo do Curso de Engenharia do Unisal e Coordenadora do Projeto UnisalCeleritas, Membro do Grupo de Pesquisa DAMA do Unisal e Pesquisadora Colaboradora da Pós – Graduação em Física da Unesp. BIANCA CRISTINE PIRES DOS SANTOS CABETTE é Bacharel em Direito pelo Unisal. EDUARDO LUIZ SANTOS CABETTE é Mestre em Direito Social, Pós – graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.
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por
ARQUIVO PESSOAL
DESTAQUE
Bolívar Lamounier
Só o instinto nos salva
A
ideia é aterradora e absurda, mas, no momento, tudo indica que o Brasil está perdendo a capacidade de equacionar seus problemas de maneira racional e civilizada, pela via da política. Nessa marcha, só o instinto de sobrevivência nos salvará. No falatório sobre a intervenção, sobre as candidaturas presidenciais, sobre o funcionamento das instituições, o tom predominante é um desânimo furibundo, e até mais que isso, uma vontade meio doida de achar uma solução fácil, rápida e definitiva, ainda que o preço seja a quebra da ordem civil. No limite, é como se todos quisessem que metade (sua metade) da população matasse a outra, presumindo que a metade sobrante se dedicaria sinceramente à realização dos valores que elegeu como os mais altos. Isso vem por todos os lados, não é privilégio de nenhum partido ou grupo ideológico. E o pior, infelizmente, é que por trás dessa fumaça realmente há muito fogo. Tal desorientação não chega a surpreender, pois estamos mal e mal saindo da pior recessão de nossa história, tomando consciência da metástase de corrupção que se difundiu por quase todo o sistema institucional do País. Dispenso-me de elaborar este ponto, limitando-me a observar que o cartel das empreiteiras botou no bolso praticamente toda a estrutura partidária de que dispúnhamos : quatro ou cinco organizações com algum potencial e umas trinta obviamente inúteis. Hoje, vemos esvair-se até aquele elementar sentimento de lealdade sem o qual a vida interna de um partido se torna inviável.Na mais alta Corte de Justiça do país, salta aos olhos que alguns juízes trabalham sorrateiramente para livrar o Sr. Luís Inácio Lula da Silva, um corrupto notório, já sentenciado a 12 anos e um mês de reclusão em regime fechado. No Senado e na Câmara, só quem mantém as estatísticas em dia sabe quantos parlamentares estão indiciados, acusados ou já na condição de réus. A intervenção federal no sistema de segurança do Rio de Janeiro pôs em alto relevo a questão da corrupção nos corpos militares e policiais, que inclui a entrega de armas potentes ao narcotráfico e à bandidagem em geral. Noves fora, então,
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DESTAQUE a ressalva que se há de fazer diz respeito à competência e à seriedade da equipe econômica, da equipe liderada pelo juiz Sérgio Moro e pela Polícia Federal, graças aos quais o país não descarrilou por completo. No culto da irracionalidade, a esquerda ganha por duas cabeças. Na questão da intervenção no Rio de Janeiro, por exemplo, ela aposta no fracasso com base em seus tradicionais cálculos eleitorais , ou num requintado cinismo, “esquecendo”, por exemplo, no tocante à concessão de mandatos coletivos, as posições que a ex-presidente Dilma Rousseff defendeu em 2016. Não só a esquerda, mas uma ampla parcelado Congresso recusou-se a aprovar a reforma da previdência, embora consciente da precariedade fiscal em que nos encontramos e de que o sistema brasileiro de seguridade é campeão mundial em transferir renda dos pobres para os ricos. Não me sinto no direito de aborrecer os leitores me estendendo sobre a deterioração em que se encontra nossa capacidade de conduzir racional e civilizadamente as operações de governo, mas há uma questão mais ampla, que transcende todas as já mencionadas, para a qual me vejo obrigado a chamar a atenção. Refiro-me ao médio prazo, ou seja, ao futuro de nosso país dentro de uma ou duas décadas. Nessa referência de tempo, se não recuperarmos a capacidade de raciocinar e colaborar, realmente, só o instinto de sobrevivência nos salva. O quadro que me esforcei por esboçaré em si mesmo sinistro, mas é brincadeira de criança se o colocarmos num horizonte de 20 anos. Já me referi outras vezes a esse ponto, e temo ter de voltar a ele muitas vezes nos próximos meses, ainda mais em se tratando de um ano eleitoral. A incapacidade da política acarreta uma progressiva liquefação do próprio Estado. O país perde sua stateness, ou seja, a presença efetiva da máquina de governo. Ninguém ignora que diversas áreas do Rio de Janeiro já há muito tempo se tornaram inacessíveis à autoridade pública. O que muitos talvez não saibam é que os Correios já não entregam correspondência em quase metade dos endereços da Cidade Maravilhosa. Refiro-me a ela porque é lá que a perda da “estatalidade” se tornou mais perceptível, mas em maior ou menor grau o processo se manifesta no país inteiro. Com um fator agravante: temos agora um vizinho, a Venezuela, onde o Estado atingiu um estágio avançado de putrefação, forçando centenas de milhares de cidadãos a buscarem refúgio em Roraima. Com a contração causada pela recessão engendrada pelo lulupetismo, nossa renda anual por habitante deve ser atualmente metade da correspondente à Grécia e bem inferior à de Portugal. Se, recuperando a economia, lograrmos crescer 3% (três por cento) ao ano, o que não é trivial, precisaremos de mais de 20 (vinte) anos para alcançar os dois países citados, e lá chegaremos com uma distribuição de renda muito pior, com uma situação educacional claramente inferior, com as condições de saneamento que conhecemos e possivelmente com índices ainda muito mais altos de violência. Isto significa que o debate públicodos últimos anos sequer arranhou a superfície dos verdadeiros problemas, que são a velocidade do crescimento e a profundidade das reformas de que necessitamos. Escusado dizer que não estou me referindo à antiga ladainha do governo forte , pedra de toque da retórica fascista, que por aqui vicejou vigorosamente à época da ditadura getulista. Refiro-me ao óbvio: o imperativo de quebrar a resistência dos grupos corporativos e encetar um esforço reformista muito maior. As reformas virão, de um jeito ou de outro: pelo caminho mais ou menos civilizado da política ou por sucessivas ondas de anarquia e violência. BOLÍVAR LAMOUNIER, cientista político, é sócio-diretor da Augurium Consultoria e autor do livro “Liberais e antiliberais: a luta ideológica de nosso tempo” (Companhia das Letras, 2016).
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QUESTÕES DE DIREITO
DIVULGAÇÃO
Entre indultos e insultos por
Sergio Ricardo do Amaral Gurgel
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Há quem defenda uma nova regulamentação para a concessão das clemências dispostas em lei, pois carecem de critérios mais rígidos e condizentes com os anseios de uma sociedade que já não está mais disposta a transigir com a criminalidade. Esse grupo comunga da opinião de que o indulto represente o ressaibo de tempos remotos, quando imperadores dotados de divindade decidiam, à luz do arbítrio, a sorte dos seus súditos, as vezes motivados por sentimentos nobres, as vezes pelos mais escusos.
”
N
o ano em que os assuntos de cunho criminal deram mais ibope do que as novelas de televisão, não é de se admirar que nos últimos dias de dezembro os jornais tenham se ocupado com o instituto do indulto. De repente, o povo brasileiro, ao qual sequer foi dada a chance de conhecer as regras relacionadas às variações gráficas da palavra “porque” - se junto ou separado, com ou sem acento - começou a discutir o porquê do decreto presidencial e do inconformismo ministerial. O indulto é previsto na Constituição da República como uma das atribuições do Presidente da República (art. 84, XII). Encontrase elencado entre as causas de extinção da punibilidade previstas no Código Penal, onde também há um capítulo específico sobre o assunto, inserido no título pertinente às penas. Por sua vez, a Lei 7.210/1984 (LEP - Lei de Execução Penal) tratou do tema de forma mais detalhada, complementando as regras da lei maior em matéria criminal. Deve ser entendido como uma clemência estatal, concedida pelo Presidente da República, que, por meio de um decreto, estabelece os requisitos para a aplicação da benesse. Todos os condenados que se ajustarem às condições estipuladas deixarão de ter o dever
QUESTÕES DE DIREITO de cumprir as suas respectivas penas. Nada impede que a iniciativa venha a ser tomada pelo próprio condenado, diretamente, ou por intermédio do Ministério Público, ou do Conselho Penitenciário, ou da autoridade administrativa. Nesses casos, sendo acolhido o requerimento, os efeitos se limitarão à pessoa do agente, não se estendendo a terceiros, ainda que estejam vivenciando situação jurídica idêntica, ou até menos gravosa. Por essa razão, do ponto de vista da iniciativa, o indulto pode ser classificado como coletivo ou individual, sendo que, este último, também pode ser chamado de graça. É na Lei Magna que encontramos os limites para a concessão do indulto. A regra constitucional veda que condenados por crimes hediondos e equiparados venham ser beneficiados por este instituto. Algumas confusões já foram geradas pelo fato de o legislador, no texto constitucional, ter se referido apenas à anistia e graça (art. 5.º, XLIII, da Constituição da República). Porém o bom senso imperou na hermenêutica do Supremo Tribunal Federal, que concebeu o termo em seu sentido amplo, isto é, leniência por parte do chefe da nação. E não havia como se admitir interpretação diversa, pois se é proibido o benefício de forma isolada (indulto individual ou graça), com mais razão ainda para um número indeterminado de pessoas (indulto coletivo). Por essa razão, foi reconhecida a constitucionalidade do art. 2.º, I, da Lei 8.072/1990, ao ratificar a inaplicabilidade de anistia, graça e indulto quando se tratar de crimes hediondos, tráfico, tortura e ou terrorismo (equiparados ou assemelhados). Tradicionalmente, o indulto costuma ser concedido no final do ano, próximo das festas natalinas, não se misturando às regras que dispõem sobre a saída temporária, vulgarmente conhecida como “indulto de Natal”, no qual o juiz pode autorizar presos condenados a passarem um breve período no seio familiar, desde que preenchidas as condições do arts. 123 e 124 da LEP. Para que o indulto propriamente dito possa ser aplicado, basta que o decreto presidencial apresente os respectivos requisitos objetivos e subjetivos, como, por exemplo, o percentual de pena já cumprido e o comportamento do beneficiado. Diante do caos generalizado enfrentado pelo País, não resta a menor dúvida sobre o caráter impopular de qualquer tipo de indulgência para com os criminosos em geral, especialmente quando o delito atinge o erário. A corrupção endêmica revelada nos últimos anos, somente aprofundou a desigualdade social e a miséria preexistentes. O indulto proferido pelo Presidente Michael Temer, na reta final do seu mandato, causou indignação popular, dominou os noticiários, e criou o ambiente apropriado para que o Ministério Público provocasse a Suprema Corte, e, a partir dela, a imprensa, até que a notícia chegasse às redes sociais, onde foram postados os mais contundentes insultos ao governo. O indulto não pode ser compreendido como um prêmio para criminosos, é o que vem sustentando a Ministra Carmen Lúcia, fazendo ecoar seu discurso por todos os cantos do território nacional. Só não apareceu ainda alguém que, com toda a vênia, questionasse a quem mais seria outorgado o perdão da pena senão aos transgressores da lei, considerados culpados por um delito. Não obstante as críticas quanto à opção política do governo federal, deve-se ter certo zelo no que tange aos seus aspectos jurídicos. Na legislação não há nada que impeça o Estado de abdicar do direito de punir indivíduos condenados por crimes, independente da quantidade de pena ou da espécie do crime, excetuando-se, é claro, aqueles que possuam a pecha da hediondez. Entretanto, do ponto de vista moral, é perfeitamente compreensível que a opinião pública se mostre escandalizada com 22
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arquivo pessoal
a medida, mas não há como se insurgir do mesmo modo no campo da legalidade. Se o projeto de lei que pretendia incluir os crimes de corrupção ativa e corrupção passiva no rol dos crimes hediondos não tivesse sido arquivado em 2013, após as agitações das ruas, então haveria argumentos irrefutáveis para o repúdio do ato em tela. Em contrapartida, assiste razão a quem questiona a extensão do decreto para réus que estavam sob a égide do “sursis” processual, pois estes sequer foram condenados em primeira instância, figurando apenas como simples acusados, sobre os quais o indulto não se aplica. Provavelmente a União usará da velha máxima de “quem pode mais, pode menos”, ou seja, se o Estado tem o poder de liberar das penas pessoas definitivamente condenadas, por que não poderia deixar de julgá-las? Todavia, ainda que nos pareça razoável, o fato é que a hipótese não se encontra abarcada em lei como passível de indulto, nem defendida pela maioria dos doutrinadores. Medida dessa amplitude poderia ter sido tomada por iniciativa do Congresso Nacional pela via da anistia, que atinge não somente as penas, mas o próprio fato delituoso. Independentemente da solução jurídica a ser confeccionada em breve, o episódio fez com que o tema pudesse ser novamente debatido e reavaliado, assim como ocorreu em 2001, quando o decreto assinado pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso colocou em liberdade milhares de detentos, entre eles o ator Guilherme de Pádua, condenado por homicídio duplamente qualificado praticado contra a jovem atriz Daniela Perez, assassinada com dezoito golpes de tesoura. Como na época do cometimento, o referido delito ainda não constava na lista dos crimes hediondos, a medida foi tecnicamente correta, embora seja discutível se conseguiu alcançar igual mérito no campo da moralidade, e se representa aquilo que se entende como senso comum de justiça. Há quem defenda uma nova regulamentação para a concessão das clemências dispostas em lei, pois carecem de critérios mais rígidos e condizentes com os anseios de uma sociedade que já não está mais disposta a transigir com a criminalidade. Esse grupo comunga da opinião de que o indulto represente o ressaibo de tempos remotos, quando imperadores dotados de divindade decidiam, à luz do arbítrio, a sorte dos seus súditos, as vezes motivados por sentimentos nobres, as vezes pelos mais escusos. Em pleno mundo digital, a aceitação do método de julgar conforme a posição do polegar depende de um poder de abstração bastante significativo. Chegou a hora de refletir sobre até que ponto o ânimo do legislador constituinte sofria influência do checks and balances ou se na verdade estava disposto a preservar determinadas práticas absolutistas que remontam o cenário dos Faraós. Em posição diametralmente diversa estão aqueles que lamentam pelo esforço no sentido de retirar dos governantes o poder de agir com misericórdia, desacreditando no homem e na sua capacidade de regeneração virtuosa. Não compreendem a razão de a humanidade continuar procurando a cura da delinquência por intermédio da segregação carcerária, como se o malfeitor fosse um ser criado por valores de comunidades alienígenas. Se não for encontrada outra forma conter a criminalidade, chegará o dia em que somente os algozes desfrutarão do privilégio de manter uma vida extramuros.
Sergio Ricardo do Amaral Gurgel é advogado da AMARAL GURGEL Advogados; professor de Direito Penal e Direito Processual Penal.
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SAIBA MAIS
A hipervulnerabilidade do consumidor-turista Vitor Guglinski
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Não há dúvidas de que a vulnerabilidade do consumidor-turista é agravada no ambiente estrangeiro, por isso dizendo-se que se torna um sujeito hipervulnerável.
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C
om frequência dizemos em nossos trabalhos que nunca podemos perder de vista que a razão de ser (ratioessendi) do microssistema de proteção do consumidor, em especial do Código de Defesa do Consumidor é a vulnerabilidade desse sujeito da relação jurídica de consumo perante o fornecedor de produtos e serviços. No ano de 1985, a 106ª Sessão Plenária da ONU estabeleceu, através da Resolução nº 39/248, o Princípio da Vulnerabilidade do Consumidor, reconhecendo-o como a parte mais fraca na relação de consumo, e por isso tornando-o merecedor de tutela jurídica especial, exemplo esse que foi seguido pelas principais legislações consumeristas do mundo, inclusive pela brasileira. Nada obstante o reconhecimento da vulnerabilidade de todos os consumidores, há grupos que demonstram uma fragilidade ainda maior nas relações de consumo, isto é, pessoas ainda mais vulneráveis à atuação do fornecedor. São os chamados consumidores hipervulneráveis, isto é, aqueles que, em razão de sua especial condição, ficam ainda mais expostos às práticas comerciais, à periculosidade e nocividade de certos produtos, a abusos, enfim, à toda atividade desempenhada pelos fornecedores no mercado de consumo. Esse grupo de consumidores hipervulneráveis é composto, v.g., por idosos, crianças, pessoas portadoras de necessidades especiais, deficientes mentais, analfabetos e semi-analfabetos, enfermos, pessoas sensíveis ao consumo de certos produtos, enfim, toda e qualquer pessoa que se revelamais fraca em razão de sua especial condição física ou psíquica. Sobre a matéria, Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin, um dos maiores consumeristas do Brasil, e hoje ministro do Superior Tribunal de Justiça, teve a oportunidade de se manifestar, ao proferir voto no REsp 586.316/MG. Destacamse alguns trechos, conforme transcrição: “Ao Estado Social importam não apenas os vulneráveis, mas sobretudo os hipervulneráveis, pois são esses que, exatamente por serem minoritários e amiúde discriminados ou ignorados, mais sofrem com a massificação do consumo e a ‘pasteurização’ das diferenças que caracterizam e enriquecem a sociedade moderna. (...) O Código de Defesa do Consumidor, é desnecessário explicar, protege todos os consumidores, mas não é insensível à realidade da vida e do mercado, vale dizer, não desconhece que há consumidores e consumidores, que existem aqueles que, no vocabulário da disciplina, são denominados hipervulneráveis, como as crianças, os idosos, os portadores de deficiência, os analfabetos e, como não poderia deixar de ser, aqueles que, por razão genética ou não, apresentam enfermidades que possam ser manifestadas ou agravadas pelo consumo de produtos ou serviços livremente comercializados e inofensivos à maioria das pessoas. O que se espera dos agentes econômicos é que, da mesma maneira que produzem sandálias e roupas de tamanhos diferentes, produtos eletrodomésticos das mais variadas cores e formas, serviços multifacetários, tudo em atenção à diversidade das necessidades e gosto dos consumidores, também atentem para as peculiaridades de saúde e segurança desses mesmos consumidores, como manifestação concreta da função social da propriedade e da ordem econômica ou, se quiserem, uma expressão mais em voga, de responsabilidade social.”
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SAIBA MAIS No âmbito da proteção civil do consumidor, o CDC prevê no art. 39, IV, como abusiva a prática do fornecedor que “prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços” (art. 39, IV). Dentro desse universo de consumidores hipervulneráveis, outro exemplo clássico é exatamente o do consumidor-turista, que, por se encontrar fora das cercanias onde normalmente vive, fica ainda mais exposto às práticas comercias que lhe são estranhas, isto é, que não fazem parte do seu dia a dia, inclusive às práticas abusivas de fornecedores de produtos e serviços. Diz-se, por isso, que o consumidor turista também é hipervulnerável. Quando viaja, o turista fica exposto a um ambiente completamente diferente do que está acostumado, exposto a práticas que lhe são, na maioria dos casos, estranhas, que nem de longe se parecem com o que vivenciam no país de origem. Não raro, esse universo diferente envolve, principalmente, questões de ordem comunicacional, em que o turista, a todo o momento, se vê às voltas com uma língua muitas vezes desconhecida ou, na melhor das hipóteses, pouco praticada. Sobre o tema, a professora e defensora pública Amélia Rocha tem a seguinte lição: “O consumidor-turista é um exemplo de consumidor com uma vulnerabilidade diferenciada, já que o produto adquirido tem um ‘prazo de validade’, precisa ser consumido naquele determinado período de férias ou feriado; e, por consequência, tal consumidor acaba se submetendo com mais facilidade a eventuais abusos. (...) Lazer não combina com litígios ou problemas, de modo que o respeito aos direitos do consumidor turista acaba sendo um diferencial positivo do destino turístico (In http:// www.opovo.com.br/app/colunas/ameliarocha/2012/10/20/noticiasameliarocha,2939933/ consumidor-turista.shtml).
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Acresça-se a isso o fato de que, frequentemente, o turismo visa exatamente o consumo (turismo de consumo), em que muitos consumidores viajam atraídos pelas facilidades de aquisição de bens de consumo por preços mais atraentes do que os praticados no seu país de origem. Daí se vê que, em muitos casos, o turismo tem apelo consumista, fato capaz de expô-lo ainda mais a situações de abusividade por parte do fornecedor. Destarte, não há dúvidas de que a vulnerabilidade do consumidor-turista é agravada no ambiente estrangeiro, por isso dizendo-se que se torna um sujeito hipervulnerável. Por fim, esclareça-se que o presente texto apresenta apenas breves linhas sobre o tema, o qual aprofundaremos oportunamente.
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Vitor Guglinski é advogado. Especialista em Direito do Consumidor. Membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon). Ex-assessor jurídico da 2ª Vara Cível de Juiz de Fora/MG. Autor colaborador da obra Código de Defesa do Consumidor: Doutrina e Jurisprudência para Utilização Profissional (Juspodivn). Autor colaborador da obra Temas Actuales de Derechodel Consumidor (editora Normas Jurídicas/Peru). Autor colaborador de diversos periódicos jurídicos.
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CASOS PRÁTICOS
O desequilíbrio social no tratamento dos militares Keila Corrêa Nunes Januário
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por
U
m dos principais problemas do Brasil, senão o principal, é a desigualdade e o desequilíbrio no tratamento de seus cidadãos. As diferenças são econômicas, políticas e sociais, entretanto, são mais escancaradas no que diz respeito ao tratamento em matéria previdenciária, quando fazemos um comparativo entre os oficiais e praças de carreira com os militares temporários das Forças Armadas.
CASOS PRÁTICOS Infelizmente, enfrentamos um caso emblemático em nosso escritório. Uma verdadeira falta de isonomia no tratamento dispensado a duas pessoas com problemas de saúde semelhantes. De um lado temos o Comandante do Exército, General E. D. C. V.B.que está acometido por uma doença neuromotora degenerativa que o deixa com dificuldades de locomoção e o obriga, em alguns momentos, a usar bengala para caminhar e a fazer uso de cadeira de rodas. De outro lado está o nosso cliente ex-Soldado F. O. S. J. do 52º Batalhão de Infantaria de Selva, que reside em Marabá-PA, incapacitado para atividades laborais, vítima de uma cardiopatia grave descoberta enquanto prestava serviço ao Exército Brasileiro, e que depois de uma internação no Hospital Militar cursou com paralisia dos membros inferiores tornando-o cadeirante.
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Grande parte desses jovens estão sendo amparados por decisões da Justiça Federal, que vem determinando a reintegração para o tratamento adequado e também para o recebimento de uma remuneração que garanta sua subsistência.
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Ocorre que, enquanto o General V. B. recebe todo o amparo médico e financeiro da Instituição, inclusive para continuar desempenhando um papel de liderança, o ex-Soldado F. O. S. J. não teve o mesmo destino, foi simplesmente excluído em 2015 das fileiras militares por não ser mais útil aos interesses daquela Força e, pasmem leitores, sem qualquer amparo médico ou financeiro, assim, abandonado pela Instituição Exército Brasileiro, ele passa por dificuldades para suprir dignamente suas necessidades básicas. A única conduta da administração militar foi entregar uma declaração que garante a continuidade do tratamento médico, mas em termos práticos não tem utilidade alguma, pois, o tratamento se resume a meras consultas, não cobre medicação, transporte, exames e o principal: alimentos. O mais absurdo é que mesmo sendo detectada em perícia médica, pelo Serviço de Saúde do Exército, a sua incapacidade temporária para o trabalho, o ex-Soldado F. O. S. J.foi dispensando sumariamente, como se fosse objeto descartável, configurando uma verdadeira ofensa à dignidade da pessoa humana, Princípio absoluto tão protegido pela Constituição Federal. Assim, ex-Soldado F. O. S. J. teve que recorrer ao Poder Judiciário para garantir a sua subsistência e da família, cujo processo tramita na 9ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal. Apesar da situação de completo abandono, e comprovada por documentos do próprio Exército, foi-lhe negado o pedido de antecipação de tutela para que fossem suspensos os efeitos do ato de exclusão, e reintegrado ao Exército pudesse dar continuidade ao tratamento sem prejuízo do recebimento do soldo. Esse tipo de exclusão social é vivenciado por milhares de ex-militares pelo Brasil afora. Infelizmente, trata-se de uma prática comum a exclusão das fileiras 28
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militares, sem o amparo médico e financeiro, de jovens que se acidentam em treinamento ou que são acometidos por doenças incapacitantes durante e em razão da prestação do serviço militar. No caso em tela, o pior dessa exclusão social, é aqula praticada contra jovens de famílias humildespoisa classe economicamente mais pobre da população, busca no serviço militar a oportunidade de seguirem carreira e se ascenderem socialmente e economicamente. Provavelmentejamais uma situação como a que vem sendo enfrentada pelo ex-Soldado seria vivenciada por um filho de autoridade ou por uma pessoa com melhores condições financeiras. Essa “exclusãosocial” é regulamentar, e está previsto no Decreto nº 57.654, de 20 de janeiro de 1966 artigo 140, trata-se da “Desincorporação”, que autoriza os Comandantes de Organizações Militares a excluírem o militar caso permaneça 90 (noventa) dias consecutivos ou não de licença em tratamento médico. Assim, apesar do Estatuto dos Militares ser uma lei federal do ano de 1980, e assegurar ao militar o direito a recuperação da saúde e inclusive a reforma, caso não se recuperar no prazo de 02 (dois) anos que permanecer agregado, aquele regulamento continua sendo aplicado em detrimento da Lei nº 6.880/80, que é uma norma hierarquicamente superior. Vale ressaltar que grande parte desses jovens estão sendo amparados por decisões da Justiça Federal, que vem determinando a reintegração para o tratamento adequado e também para o recebimento de uma remuneração que garanta sua subsistência. O ex-Soldado, atualmente, tem uma série de dificuldades de locomoção, não tem tratamento médico adequado, falta-lhe remédios, transporte para hospitais, entre outros, tratamento bem diferente do que vem sendo dispensado ao Comandante do Exército, o que retrata a desigualdade brasileira na atenção dispensada aos militares temporários e praças sem estabilidade, onde como sempre uma maioria (praças) ficam à mercê de uma minoria (oficiais) que detém o poder e os recursos, o que gera as desigualdades. Atualmente a família do O ex-Soldadosobrevive com um salário-mínimo mensal concedido pelo INSS, trata-se de um benefício assistencial previsto no artigo 203, inciso V da Constituição Federal, regulamentado pela Lei nº 8.742/93, moram na mesma casa com o ex-Soldado, a sua esposa seufilho de 4 anos, os pais desempregados, um irmão menor que não exerce atividade remunerada e todos, indistintamente dependem única e exclusivamente do benefício que F. O. S. J. recebe. Por fim, o desejo é que ambos se recuperem o mais rápido possível e que o exSoldado tenha um tratamento digno, sem quaisquer discriminação. Corrigir situações como o caso e do ex-Soldado F. O. S. J., também é vivida regularmente por militares temporários em todo o Brasil, é o nosso maior propósito. Quando mandamos um filho servir a Pátria o mínimo que esperamos é que ele seja tratado de forma digna, como ser humano!
Keila Corrêa Nunes Januário é advogada e sócia do escritório Januário Advocacia.
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DIVULGAÇÃO
KNOW HOW
Freud e a religião por
Rômulo de Andrade Moreira
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Além de uma ilusão, Freud vai mais além, identificando a religião como uma “neurose obsessiva universal da humanidade, originando-se, tal como a da criança, do complexo de Édipo, da relação com o pai”, fazendo uma analogia (conforme suas palavras mesmas) com a fase da neurose infantil, “ora mais, ora menos nítida, vindo do fato de a criança não poder suprimir com o trabalho intelectual racional muitas das suas exigências instintuais”, precisando reprimi-las, pois, como já o dissera em outra oportunidade, o Eu da criança é fraco.
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m 1927, Sigmund Freud, já reconhecido como o médico que introduzira a psicanálise para tratar de algumas doenças de fundo psíquico, escreveu um pequeno livro intitulado “O Futuro de uma Ilusão”, trazendo reflexões sobre a questão religiosa, e submetendo-a a uma análise até então simplesmente inimaginável.1 Talvez para deixar o texto com uma forma mais dinâmica, utilizou-se, muitas vezes, do que ele chamou de um “oponente oculto que segue meus argumentos com desconfiança”, cedendo-lhe “a palavra de quando em quando.” Note-se que ele já havia “inventado” essa “estratégia” de se valer de um interlocutor fictício quando antes escreveu, em 1926, um trabalho sobre “A questão da Análise Leiga: Diálogo com um Interlocutor Imparcial.”2 Como o título do trabalho não deixa dúvidas, a religião é tratada como uma ilusão, algo que o homem busca para explicar o que a ciência ainda não pode nos oferecer como resposta. Esta, a ciência, longe de ser uma ilusão e muito ao contrário, seria a única fonte para decifrar os enigmas da humanidade. Freud, agnóstico como se vê, estabelece quatro “bens” – digamos assim – de natureza psíquica que devem ser considerados na avaliação de uma civilização (ou cultura)3, sendo a primeira “o nível moral dos seus participantes.”4 Depois, teríamos o “seu patrimônio de ideais”5 e as “criações artísticas” com “as satisfações que podem ser obtidas de ambos.” Após identificar estes três primeiros componentes, menciona, então, o autor aquele que “talvez seja o mais importante elemento do inventário psíquico de uma cultura: suas ideias religiosas no mais amplo sentido”, ou seja, “suas ilusões.” Daí ele pergunta bem objetivamente:“Em que reside o valor especial das ideias religiosas?” Para começar a responder a sua própria indagação, Freud lembra que os desejos instintuais do homem, já sentidos a partir da infância – que vão desde o incesto até o desejo de matar -, são reprimidos ora por uma coação externa (a cultura ou a civilização), ora pelo próprio homem que a internaliza, fortalecendo o que ele chama de Super-eu. Com efeito, o viver em uma civilização exige do homem (e da mulher, por óbvio!) que renuncie a uma gama enorme de desejos instintuais, razão pela qual, por exemplo, não pode ele (nem ela tampouco), “escolher como objeto sexual toda mulher que lhe agradasse” (ou todo homem), matar “tranquilamente seu rival” ou “tomar qualquer dos bens do outro sem necessidade de permissão.” Se o pudesse “que beleza seria então a vida, que sequência de satisfações!” Evidentemente isso não é possível (seja pela coação externa, seja pela internalização da proibição), pois do contrário, tendo cada um os mesmos e todos os desejos, “no fundo, portanto, apenas um indivíduo teria felicidade irrestrita, eliminando-se as restrições culturais.” Em suma, venceria o mais forte, ao final e ao cabo. Portanto, “foi precisamente por causa desses perigos com que nos ameaça a natureza que nos juntamos e criamos a cultura,6 que se destina, entre outras coisas, a tornar possível nossa vida em comum”, de uma tal maneira que ele chega a afirmar ser “a principal tarefa da cultura, sua autêntica razão de ser, defendernos contra a natureza.”
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KNOW HOW Mas, nesta tarefa de dominação da natureza pela cultura, não é de se esperar que aquela seja “dominada” por esta. Pensar assim,além de um verdadeiro engano, seria mesmo uma “audácia esperar que algum dia ela (a natureza) se sujeite inteiramente ao ser humano.” Assim, os terremotos, tsunamis, tornados, furacões, maremotos, as inundações, avalanchas, as doenças incuráveis e, por fim, a morte (esse “doloroso enigma para o qual até agora não se achou e provavelmente não se achará remédio”), levantam-se todos contra a humanidade, fazendo-nos recordar “nossa fraqueza e desvalia, que pensávamos haver superado mediante o trabalho da civilização.”7 Ora, se para a humanidade em geral é difícil conviver com tais e inevitáveis vicissitudes, também o é, naturalmente, para o ser humano, considerado individualmente. Diz Freud neste contexto: “também para o indivíduo é difícil suportar a existência”, sobretudo em razão “dos golpes que recebe da natureza indomada – por ele chamados ‘destino’.” Indaga, então: “como se defende ele dos poderes superiores da natureza, do destino, que o ameaçam como todos os demais?” Esse desamparo no qual se encontra o indivíduo possui um equivalente em sua infância: “Quando pequeno, perante o pai e a mãe, que ele tinha razões para temer, sobretudo o pai, cuja proteção, porém, também estava seguro de ter, ante os perigos que então conhecia.” A situação, portanto, longe de ser nova, “tem um modelo infantil; é, na realidade, apenas a continuação daquela anterior.” Assim, igualmente, o ser humano dá às forças naturais “um caráter paterno, transforma-as em deuses, e nisso segue um modelo não apenas infantil, mas também filogenético.” Portanto, o desamparo no qual se vê enredado o ser humano fazlhe ansiar o pai (que ele, em uma incrível ambivalência de sentimentos, teme e admira) e os deuses.8 Destarte, na falta do pai, restam para os homens o acolhimento pelos deuses, que desempenharam, por sua vez, três tarefas básicas, a saber: “(1) afastar os terrores da natureza, (2) conciliar os homens com a crueldade do destino, tal como ela se evidencia na morte, sobretudo, e (3) compensá-los pelos sofrimentos e privações que lhe são impostos pela vida civilizada que partilham.” Ocorre que os deuses não dão conta das duas iniciais funções, primeiro porque “os fenômenos naturais se desenvolvem por si, conforme necessidades internas; certamente são os deuses os senhores da natureza, eles a dispuseram assim, e agora podem abandoná-la a si mesma” – salvo os “milagres”; segundo porque, “no que concerne à distribuição dos destinos, persiste a desagradável suspeita de que a perplexidade e o desamparo humanos não podem ser remediados. É nisso, antes de tudo, que os deuses fracassam.” Assim, resta aos deuses, na tarefa de amparar os seus filhos, apenas a terceira função: “compensá-los pelos sofrimentos e privações que lhe são impostos pela vida civilizada que partilham”, criando-se, então, “um acervo de concepções, nascido da necessidade de fazer suportável o desvalimento humano, e construído com o material das lembranças da infância do indivíduo e da raça humana.” Logo, conclui-se “que cada um de nós é velado por uma Providência bondosa, só aparentemente severa, que não permite que nos tornemos joguete de forças naturais poderosas e implacáveis. A própria morte não é aniquilação, retorno à
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inorgânica ausência de vida, mas sim o começo de uma nova espécie de existência que se acha no caminho para um desenvolvimento superior.” Com o tempo – e após, “naturalmente uma longa evolução” –,os “seres divinos” concentraram-se em um “ser divino único”, pondo “à mostra o pai que desde sempre se ocultara, como um núcleo, em cada figura divina. Isso foi, no fundo, um retorno aos começos históricos da ideia de Deus. Agora que Deus era único, as relações com ele podiam reaver a intimidade e intensidade dos laços infantis com o pai. Mas, se fez tanto pelo pai, esse povo também quis ser recompensado, quis ser o único filho amado, o Povo Eleito”, protegido, agora e finalmente, “do opressivo poder superior da natureza.” Então, eis o que se dá, resumindo: “quando o indivíduo em crescimento percebe que está destinado a permanecer uma criança, que nunca pode prescindir da proteção contra superiores poderes desconhecidos, empresta a esses poderes os traços da figura paterna, cria os deuses que passa a temer, que procura cativar e aos quais, no entanto, confia sua proteção.” A questão agora é estabelecer, sob a ótica da “psicologia profunda”, (1) o que são exatamente tais concepções religiosas – no seu sentido mais amplo –, e (2) o seu respectivo valor. Dessa tarefa desincumbe-se bem, a meu ver, o autor, valendo-se ele, para evitar um “monólogo”, de um oponente fictício, um interlocutor imaginário que serve para contra argumentar o próprio Freud que, de quando em vez, “cede-lhe” a palavra.9 Diz Freud, então, que a ideia religiosa trata-sede “ensinamentos, enunciados sobre fatos e condições da realidade externa (ou interna) que dizem algo que a pessoa não descobriu por si e que exigem a crença.” Eis, portanto, o que são; por outro lado, como estes sentimentos religiosos (a expressão é minha) informamnos “acerca do que é mais importante na vida, são altamente valorizadas.” Aqui reside o seu valor. Respondidas as duas perguntas, Freud volta a indagar: (1) “Em que consiste a força interna das doutrinas (ou ideias religiosas) e (2) a que devem sua eficácia, que independem da aceitação racional?” A resposta para ambas as perguntas “surge quando consideramos a gênese psíquica das ideias religiosas.” Como tais doutrinas não são frutos de qualquer comprovação empírica, tampouco se originam da experiência concreta do ser humano, conclui-se, na verdade, que são pura ilusão!, “realizações dos mais antigos, mais fortes e prementes desejos da humanidade; o segredo de sua força é a força desses desejos.” Serve a religião, portanto, para responder ao ser humano (desamparado como está, sem o pai) acerca dos “enigmas da humana ânsia de saber, como o da origem do mundo ou da relação entre o físico e o psíquico.” Todos os conflitos oriundos desde sempre (a partir do nascimento)e surgidos a partir “do complexo paterno (e nunca inteiramente superados), são tirados e levados a uma solução aceita por todos”, justamente a religião. Trata-se, portanto, ao menos do ponto de vista de sua natureza psicológica, de uma grande ilusão. Neste momento do trabalho, Freud adverte que não se trata de um erro a admissão da religião, mas, repete, de uma ilusão. São coisas diversas, pois “uma ilusão não é idêntica a um erro, tampouco é necessariamente um erro”, exemplificando com
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KNOW HOW o equívoco histórico de Aristóteles quando afirmou “que os vermes nascem da sujeira – partilhado ainda hoje pelo povo ignorante.” Já Colombo, ao contrário, não cometeu um erro ao “achar que havia descoberto um novo caminho marítimo para a Índia.” Iludiu-se, pois, neste caso, havia um componente inexistente no erro: “a participação de seu desejo.” A ilusão, necessariamente, “deriva de desejos humanos”, razão pela qual “nesse aspecto aproxima-se do delírio psiquiátrico.” Deste, porém, distancia-se pelo fato de que, enquanto no delírio há sempre uma “contradição com a realidade; a ilusão não tem de ser necessariamente falsa, isto é, irrealizável ou contrária à realidade.” Exemplificando: é uma ilusão uma menina, ainda adolescente, acreditar que um príncipe virá buscá-la, pois se trata de algo, em tese, ainda possível, realizável. Coisa completamente diferente, diz Freud, é crer “que venha o Messias e dê início a uma nova Idade do Ouro.” Como outro exemplo de ilusão que poderia se tornar realidade cita Freud o caso dos alquimistas que tinham a ilusão, derivada do desejo de possuir o metal mais nobre, de poder transformar qualquer metal em ouro. Hoje, como se sabe, e Freud já o sabia desde então, “já não se vê como impossível a transformação dos metais em ouro.”10 Destarte, há uma ideia ilusória “quando em sua motivação prevalece a realização de desejo”, dispensando, por conseguinte, qualquer comprovação. Por outro lado, nada obstante uns “poucos enigmas do mundo”, a ciência, a pesquisa científica ainda “é a única via para o conhecimento da realidade exterior.” Vê-se que Freud era um psicanalista agnóstico. Para ele, ao contrário da religião, “a ciência já nos provou, por meio de numerosos e importantes êxitos, que não é uma ilusão”, razão pela qual “tem muitos inimigos declarados (e inúmeros outros disfarçados) entre aqueles que não lhe perdoam haver debilitado a fé religiosa e ameaçar destroná-la.” Em um determinado momento do texto, aquele oponente oculto de que falei, contrapondo-se às ideias psicanalíticas de Freud, afirma que eram “inumeráveis as pessoas que tinham nas doutrinas religiosas o seu único consolo, apenas com o auxílio delas podem suportar a vida.” Após admitir que, efetivamente, “a religião prestou grande serviço à cultura humana, contribuiu muito para domar os instintos associais, embora não o bastante”, seria “duvidoso que na época do domínio inconteste das doutrinas religiosas os seres humanos fossem, em geral, mais felizes do que hoje; mais morais eles certamente não eram. Sempre souberam como banalizar os preceitos religiosos, fazendo assim malograr seus propósitos. Os sacerdotes, que deviam zelar pela obediência à religião, eram complacentes com eles.” Era simples assim: “as pessoas pecavam e depois faziam sacrifícios ou penitências, ficando livres para novamente pecar.” Evidentemente que para sujeitarem o povo à religião os sacerdotes faziam “essas grandes concessões à natureza instintual humana.” Perdoavam os pecados em nome de Deus! Freud replica ao seu interlocutor imaginário, indagando-lhe se não superestimavam “a necessidade da religião para a humanidade e se agiam sabiamente ao nela basear nossas exigências culturais”, pois “em todas as épocas, a imoralidade não encontrou menos apoio na religião do que a moralidade.”
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Além de uma ilusão, Freud vai mais além, identificando a religião como uma “neurose obsessiva universal da humanidade, originando-se, tal como a da criança, do complexo de Édipo, da relação com o pai”, fazendo uma analogia (conforme suas palavras mesmas) com a fase da neurose infantil, “ora mais, ora menos nítida, vindo do fato de a criança não poder suprimir com o trabalho intelectual racional muitas das suas exigências instintuais”, precisando reprimi-las, pois, como já o dissera em outra oportunidade, o Eu da criança é fraco. Óbvio que “a maioria dessas neuroses infantis é superada espontaneamente ao longo do crescimento” ou, mais tarde, pela terapia psicanalítica. Esta semelhança com a neurose da criança explicaria, segundo Freud, o porquê do fato “de o crente religioso estar altamente protegido de certas enfermidades neuróticas; a adoção da neurose geral o dispensa da tarefa de desenvolver uma neurose pessoal.”Conclui, por fim, que seria (ou é, digo eu) uma ilusão acreditar que se pode “obter de outras fontes aquilo que a ciência não pode nos dar”, ao menos por enquanto, óbvio... Afinal de contas, como escreveu Heinrich Heine,“o céu deixaremos para os anjos e os pardais.”11
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NOTAS 1 O texto consta do Volume 17 das Obras Completas de Sigmund Freud – “Inibição, Sintoma e Angústia, o Futuro de uma Ilusão e Outros Textos”, publicadas no Brasil pela Editora Companhia das Letras, em 2010, e traduzidas por Paulo César Lima de Souza (desde a versão original escrita em alemão). O texto, na 1ª. reimpressão da coleção, consta às fls. 232 a 301. 2 Idem, páginas 125 a 230. 3 Freud usa a palavra “civilização” para designar “a inteira soma das realizações e instituições que afastam a nossa vida daquela de nossos antepassados animais, e que servem para dois fins: a proteção do homem contra a natureza e a regulamentação dos vínculos dos homens entre si”, conforme ele próprio viria a esclarecer, mais tarde, no clássico “O Mal-Estar na Civilização”, de 1930 (inserido no Volume 18 das Obras Completas). Segundo nota do tradutor, os termos “civilização” e “cultura” podem significar a mesma coisa, segundo o contexto em que são empregadas (nota de rodapé constante das fls. 233 do Volume 17). 4 Em outras palavras: “o grau de internalização dos preceitos culturais.” 5 “Ou seja, as estimativas do que seriam as realizações mais elevadas e mais dignas de serem buscadas.” 6 Veja a nota anterior sobre o uso das palavras “civilização” e “cultura”. 7 Idem. 8 “Quem é ateu e viu milagres como eu / Sabe que os deuses sem Deus / Não cessam de brotar, nem cansam de esperar.” (Milagres do Povo, Caetano Veloso). 9 Em texto anterior, de 1926, Freud já havia utilizado esta figura imaginária, em “A Questão da Análise Leiga: Diálogo com um Interlocutor Imparcial.” 10 A propósito: https://super.abril.com.br/ciencia/os-construtores-de-atomos/, acessado em 15 de janeiro de 2018. 11 “Deutschland”, Capítulo I (citado pelo próprio Freud).
Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Salvador – UNIFACS.
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DIREITO E FICÇÃO
Extraordinário Alcilei da Silva Ramos
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EXTRAORDINÁRIO Elenco principal:Julia Roberts, Jacob Tremblay, Owen Wilson Título Original: Extraordinary Gênero: Drama Duração: 1h51min Ano de lançamento: 2017
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sse filme facilitou-me a vida, já que nem foi preciso fazer introdução sobre ele, uma vez que dispensa qualquer tipo de apresentação. Quem assistiu sabe do que estou falando. Quem ainda não assistiu, simplesmente entenderá! É muito corriqueiro ouvir de alguns adultos afirmações de que quando eram crianças, não existia bullying nas escolas. Quanto engano! O bullying sempre existiu. A diferença é que hoje esse fenômeno é tratado com seriedade e não como bobagem infantil.
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Em meio a inúmeras mensagens que o filme consegue repassar, é presumível que a gentileza seja uma de suas maiores, ousando dizer ainda, que seja a mais forte. Encharcados nesse nosso meio de “tempos modernos” e sujeitos aos imperativos de nossos pré-julgamentos, EXTRAORDINÁRIO vem para nos instruir que necessitamos ser mais gentis.
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O filme é baseado em fatos reais e fala sobre da capacidade de compreender e tolerar o próximo. Auggie, um garotinho que tem o rosto desfigurado por questões genéticas, chega a um momento decisivo na sua vida: encarar a odiosa ideia de ir à escola e encarar os novos coleguinhas que provavelmente o discriminarão. Imaginar que um garotinho, em sua tenra doçura, tenha que ter tido obrigatoriamente a maturidade de encarar os desafios da vida dessa maneira, é mesmo “extraordinário”. O ponto central do filme é o bullyng praticado em desfavor de Auggie e de forma reflexa de que forma a família, a escola e os amigos passam a enfrentá-lo. Extraordinário aborda o medo sentido pelas pessoas em certas circunstâncias (no caso do filme, o de ir à escola). A ansiedade de saber como será acolhido e as razões de possíveis rejeições são quase infinitas. Você pode ter medo por ser gordo, porque usa óculos, porque não consegue acompanhar a matéria, por ser albino, por ser negro, etc. Ok, já sabemos que o bullying não é prática legal (no seu sentido literal). Mas como isso é tratado no Brasil? Bem, no Brasil, o fenômeno bullying é manifestado diuturnamente. Não raro, nos deparamos com reportagens divulgando cenas de violência e de assédio nesse sentido. Conforme dispõe a Lei nº 13.185/2015, considera-se bullying todo ato de violência física ou psicológica, intencional e repetitivo que ocorre sem motivação evidente, praticado por indivíduo ou grupo, contra uma ou mais pessoas, com o objetivo de intimidá-lo ou agredi-la, causando dor e angústia à vítima, em uma relação de desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas. As instituições de ensino, clubes e agremiações recreativas têm o dever legal de instituir programas de combate ao bullying de acordo com citada lei. Logo, desde 06 de fevereiro de 2016, a implementação desses programas não é faculdade de seus gestores, sendo estes obrigados pela sua execução. A falta de efetivação desse programa e a sua inadequação nos estabelecimentos citados na lei, acarretam de forma inexorável a falta de diagnose e prevenção aos casos de bullying. Ao tempo em que esse programa é elaborado da forma indicada, nos termos do art. 4º da Lei, a comunidade escolar estará completamente envolvida com a problemática da intimidação sistemática e terá consequentemente maneiras de reprimir a prática e amparar as vítimas. Lendo pesquisas a respeito, o bullying só acontece pela presença de 3 elementos: a vítima, o agressor e a plateia. Os colegas que acompanham a violência sistemática
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DIREITO E FICÇÃO comumente silenciam em razão do medo de se tornar a próxima vítima, ou de ser chamado de “dedo duro”. No ambiente escolar, quando não ocorre uma efetiva ingerência contra o bullying, o meio fica eivado para violência explícita ou velada. Desta forma, todos, sem exceção, são afetados negativamente, experimentando sentimentos de terror e ansiedade. Recentemente um estudante de 14 anos disparou tiros contra os colegas, dentro do Colégio Goyases, escola particular de ensino infantil e fundamental, em Goiânia. De acordo com o Corpo de Bombeiros e Polícia Militar, dois estudantes morreram e outros quatro ficaram feridos na unidade, localizada no Conjunto Riviera, bairro de classe média. As informações preliminares colhidas pela Policia Militar apontam que se tratou de mais um caso de bullying, onde o atirador não suportou as ofensas dos demais alunos e, utilizando-se da arma dos pais, disparou tiros de forma indiscriminada1. Quando a vítima é sitiada, o alvo da fúria é incerto, pois aquele que sofreu as humilhações e a exclusão social extravasa sua “sede de justiça” contra aqueles que estão na sua frente. É certo que o bullying repercute na ordem jurídica, sendo que o envolvimento de menores em episódios de agressão presencial e virtual abarrotam as varas judiciais com pedidos de reparação de danos morais e materiais, em valores expressivos em virtude da ausência de instrução jurídica dos envolvidos no problema (pais, alunos e educadores), que desconhecem as responsabilidades que lhe são atribuídas por lei e tentam, muitas vezes, “remediar” conflitos sem a assistência profissional específica, atuando de forma displicente e inepta frente ao conflito. Para evitar maiores prejuízos, é inevitável que o bullying seja tratado de forma interdisciplinarabrangendo além dos envolvidos diretamente, os pais ou responsáveis. Vê-se, que a postura do responsável é indispensável para que a prática odiosa seja cessada. Por vezes, pais displicentes ou super protetores incentivam esse comportamento não gentil de forma involuntária. O diálogo aqui mostra-se fundamental. Enfim, em meio a inúmeras mensagens que o filme consegue repassar, é presumível que a gentileza seja uma de suas maiores, ousando dizer ainda, que seja a mais forte. Encharcados nesse nosso meio de “tempos modernos” e sujeitos aos imperativos de nossos pré-julgamentos, EXTRAORDINÁRIO vem para nos instruir que necessitamos ser mais gentis. A articulação realizada no filme é acertada e faz todo o sentido. Não mostrou tão somente que o bullyng é corrosivo e reprovável. Também desvelou que a gentileza, em toda sua simplicidade é transformadora. Esse espírito de aceitação mútua é o que aproxima o um do outro. Seja gentil! NOTA
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1 http://www.jb.com.br/sociedade-aberta/noticias/2017/10/28/bullying-e-contaminacao-do -ambiente-escolar-pela-violencia/
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ALCILEI DA SILVA RAMOS é analista jurídica da defensoria pública do Estado de Santa Catarina (DPE/SC); Advogada graduada em Direito pela Universidade Luterana do Brasil de Porto Velho - RO (ILES-ULBRA), Pós - Graduada em Direito Civil e seus instrumentos de tutela pela Rede de Ensino LFG (Universidade Anhanguera /SP); Articulista.
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ENFOQUE
Uso excessivo de algemas Eudes Quintino de Oliveira Júnior
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C
ausou certa indignação e até mesmo repúdio para uma boa parte de leitores, com muitos comentários nas redes sociais, a utilização de algemas nos pulsos e tornozelos do ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, quando encaminhado para ser submetido a exame de corpo de delito, no Instituto Médico Legal de Curitiba. A imprensa, além de filmar
ENFOQUE
e fotografar, noticiou fartamente a matéria. É comum assistir a realização de prisões de pessoas que gozam de prestígio público por terem exercido cargos relevantes, feitas com alardeamento exagerado, até mesmo com a convocação da mídia para que registre o instante solene da imposição das algemas. É a simbologia do encarceramento, que vai ao encontro da etimologia da palavra, com o significado de pulseira, instrumento utilizado para prender.1 Muitos detidos procuram até utilizar qualquer vestimenta para ocultar o aprisionamento com ferros, isto quando são atados aos pulsos. Se forem nos tornozelos, impossível. Mas, de qualquer forma, dá-se a impressão que o preso é apresentado como se fosse uma caça abatida. A respeito do tema, o art. 199 da Lei de Execução Penal (Lei nº 7210, de 11/07/84), estabelece a obrigatoriedade da normatização do emprego de algemas por decreto federal, assim como, no art. 40 do mesmo diploma, impõe a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e presos provisórios, endossado posteriormente pelo preceito constitucional previsto no art. 5º, XLIX, da CF e reiterado no art. 38 do Código Penal. O Código de Processo Penal, por sua vez, adverte no art. 284, que não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do
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Por se tratar de um ato de exceção, vez que o status libertatis é a regra, exige-se, em homenagem aos princípios da motivação judicial e da ampla defesa, que a decisão seja fundamentada e explicite os motivos pelos quais o preso deve permanecer algemado, em plena coincidência com o Decreto, sob pena da aplicação da Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 4.898/1965).
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preso. O mesmo estatuto penal, em seu art. 474, § 3º, determina que não será permitido o uso de algemas no acusado durante o período em que permanecer no plenário do júri, salvo se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos presentes. Ainda no art. 478, I, do mesmo Código, as partes não poderão, sob pena de nulidade, fazer referências ao uso de algemas como argumento de autoridade, que beneficiem ou prejudiquem o acusado. O Código de Processo Penal Militar, por seu turno, recomenda que o uso de algemas deva ser evitado, a não ser que ocorra perigo de fuga ou agressão por parte do preso (art. 234, § 1º) e, terminantemente, proíbe seu emprego nos presos com direito à prisão especial, nos termos do art. 242 do mesmo estatuto.
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Mesmo no período em que não se tinha ainda uma legislação específica sobre o uso de algemas, as jurisprudências do Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal vinham se firmando no sentido de que a utilização de algemas passa a ser legitimada para realizar a prisão, mas somente em casos em que há perigo de fuga ou reação indevida do preso. Assim está explicitado na Súmula Vinculante nº 11 do STF: “O uso de algemas só é lícito em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros”. O Decreto nº 8.858/2016, veio cobrir a lacuna legislativa e elencou as normas a respeito da regulamentação do emprego de algemas, tendo como suporte constitucional o princípio da dignidade da pessoa humana e a proibição de submissão ao tratamento degradante e desumano da pessoa presa. Assim, como que repetindo os dizeres da Súmula Vinculante 11, permite o uso de algemas nas seguintes hipóteses: a) no caso de resistência à prisão; b) quando ocorrer fundado receio de fuga do preso; c) quando ocorrer perigo à integridade física própria ou alheia, causado pelo preso ou por terceiros; d) em qualquer caso deve ser justificada e fundamentada a excepcionalidade da medida por escrito. Acrescentou, ainda, a vedação do emprego de algemas em mulheres presas em qualquer unidade do sistema penitenciário durante o trabalho de parto, no trajeto da parturiente entre a unidade prisional e a hospitalar e, após o parto, durante o período de hospitalização. É indiscutível que, se aquele a ser detido for perigoso ou apresentar periculosidade no ato, não só voltada contra o policial responsável pela diligência, como também para os particulares que, geralmente, curiosos, postam-se como fanáticos assistentes, justifica-se o uso de algemas. Não para execração pública do cidadão, mas sim para cumprimento da diligência policial e garantir a segurança necessária, incluindo aqui também a do próprio conduzido. Parece que no caso em comento, pelo menos de acordo com os vídeos existentes, não se encontravam os motivos determinantes para o uso de algemas, nem da corrente atada aos pés do preso. Mas, por se tratar de um ato de exceção, vez que o status libertatis é a regra, exige-se, em homenagem aos princípios da motivação judicial e da ampla defesa, que a decisão seja fundamentada e explicite os motivos pelos quais o preso deve permanecer algemado, em plena coincidência com o Decreto, sob pena da aplicação da Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 4.898/1965). Daí providencial e justificada a atitude dos juízes da Lava-Jato que solicitaram explicação para a conduta excepcional, junto à Polícia Federal. NOTA
arquivo pessoal
1 Algema (al-lijam) em árabe significa ferro com o qual se prende alguém pelos pulsos. Em árabe denominado como cabresto de cavalo. (in Letras e Histórias, mil palavras árabes na língua portuguesa, de Assaad Zaidan. EDUSP, 2010, p. 152).
Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado S/P, mestre em direito público, pósdoutorado em ciências da saúde, reitor da Unorp, advogado.
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VADE MECUM FORENSE
DIVULGAÇÃO
Interseção entre o direito sucessório e a administração na sociedade limitada por
Rosilene Gomes da Silva Giacomin
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A perda de um sócio quotista sem a preparação de um sucessor, acumulado com a ausência de previsão no contrato social, é o que justificou o desafio deste artigo. Criou-se um liame entre Direito Econômico, Direito Civil, Direito Processual Civil, especificadamente o Direito Societário e o Direito Sucessório, no aquinhoamento realizado na sucessão hereditária, na qual a transferência involuntária de quotas muitas vezes decorre de imposição legal e acaba repercutindo na esfera dos direitos e interesses dos demais sócios e da própria sociedade.
C
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onsidera-se, na análise deste artigo, a integração do sucessor e sua afinidade no seguimento do negócio jurídico, em paralelo com a economia, administração de empresa e contabilidade, não sendo função exclusivamente jurisdicional, mas de quem suportar o encargo da sucessão. Urge salientar preliminarmente que a função de uma sociedade é norteada por princípios fundamentais vigentes, como o de preservação da empresa. A sociedade se reveste como instituição estruturada para a produção e a circulação de bens e serviços, admitindo ou não o lucro, o que será questionado à luz de outros princípios constitucionais, em detrimento de valores éticos que tenham por escopo a valorização da dignidade da pessoa humana. A análise será realizada no âmbito do Direito Empresarial, notaTomás de Aquino damente em relação às sociedades por quotas de responsabilidade
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limitada, nas quais, não havendo no contrato social previsão de falecimento do sócio e substituição de um sucessor para integrar a sua quota social. Inicialmente, considerando a hipótese de falecimento de sócio consignada no art. 1.028 do Código Civil1, as quotas de uma sociedade (uma parcela indivisível do capital) transferem-se imediatamente a seus herdeiros por força de sucessão. E, ainda, em face da previsão legal do atual art. 1.784 do Código Civil de 20022 e do então revogado art. 1.572 do Código Civil de 1916.3 A sintonia entre esse direito sucessório é verdadeira em se tratando de abertura da sucessão, mas, voltando os olhos para o direito societário, tem-se que considerar que os bens arrecadados formam uma universalidade e somente será desfeita com a partilha. Até esse momento, os herdeiros serão considerados donos de todo o patrimônio, sem exclusão4. A sociedade limitada poderá ser administrada pelos herdeiros do sócio falecido, se estes assim o quiserem, mesmo se tratando de uma faculdade, estará implícita a continuação da sociedade limitada. Tem-se a possibilidade de que, com base no princípio da preservação da empresa e da presunção hominis ou facti, este último decorrente das regras de experiência comum, os futuros sócios herdeiros legítimos poderão participar da sociedade limitada, estabelecendo seu destino, em lugar do sócio falecido, podendo administrar a sociedade ao lado dos consócios remanescentes. Considerando tal possibilidade, os herdeiros serão integrados como sócios, poderão prosseguir com os negócios e, em comum acordo, poderão partilhar suas quotas, evitando possíveis litígios e dissolução da sociedade, saindo da posição precária de meros administradores para tornarem-se sócios quotistas. A tendência predominante dos tribunais é decidir pela continuidade da sociedade da forma mais ampla possível. Perceber esse ponto de partida é refletir sobre o desafio do herdeiro em administrar com a razão, prestando contas corretamente e mantendo uma unidade familiar. Já o direito pessoal é relativo à condição de sócio, ou seja, o status socii, considerado um conjunto complexo de direitos e obrigações, podendo estas últimas ser de ordem econômica ou social. DO SÓCIO QUOTISTA O capital social da sociedade limitada é dividido em quotas e seus sócios considerados quotistas. Mas os chamados quotistas são titulares dessa fração de valores que divide todo o capital da sociedade, com responsabilidade à força do capital. Em sua obra de Direito Processual Civil, condensada em um único volume, o processualista Daniel Assumpção trata de forma muito clara sobre a responsabilidade primária das dívidas da sociedade empresarial em relação aos bens do sócio: A responsabilidade primária [...] é naturalmente da própria sociedade e somente de forma excepcional responderão seus sócios por tais dívidas com os seus próprios patrimônios. Tal aspecto é uma das consequências da personalidade jurídica própria da sociedade, que não se confunde com a de seus sócios. [...] o sócio responde com o seu patrimônio pela satisfação da dívida da sociedade empresarial nos termos da lei, sendo possível encontrar em leis de diferentes naturezas essa responsabilidade secundária (NEVES, p. 866).
Assim, os bens deixados pelo de cujus em sua universalidade irão satisfazer as dívidas contraídas pela sociedade, enquanto estava na administração do sócio
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VADE MECUM FORENSE falecido; não comunicando, em regra geral, com o patrimônio particular dos seus sucessores. Da capacidade de ser sócio Quanto ao sócio menor de idade, não há impedimento para participar da sociedade, desde que assistidos por seus pais, tutor ou curador, ou seja, pelo seu representante legal. Divergindo de alguns juristas, Rubens Requião levanta poeira de pontos importantes. Em primeiro lugar, porque o Código Comercial vedava que os menores pertencessem à sociedade comercial. Tanto que, no art. 308, era determinado que se entre os herdeiros houvesse algum ou alguns menores, estes não poderiam ter parte nela, ainda que autorizados judicialmente, salvo sendo legitimamente emancipados. Se isso ocorre quando a sociedade dissolvida por morte de um dos sócios tiver de continuar com os herdeiros do falecido, com mais forte razão há de ocorrer o impedimento na constituição ou alteração do contrato social. Ainda neste sentido, o menor não podia ser sócio-quotista por proibição legal. O fato de se admitir, na doutrina, que os menores sejam acionistas acontece porque, ao subscrever ação e integralizá-la incontinenti, o pai ou tutor desempenha simples ato de administração dos bens do menor. Adquire apenas coisa móvel, que é a ação. Pode, inclusive, doar-lhe a ação integralizada, no ato de constituição da sociedade, tornando-o acionista. Como titular da ação, desde que integralizada, nenhuma obrigação patrimonial o menor assume. Ora, isso não acontece com a quota (REQUIÃO, p. 570). No nosso entendimento, Egberto Lacerda Teixeira apresenta o argumento decisivo contra a participação de menor, púbere ou impúbere, na sociedade por quotas. Escreve ele que há, todavia, uma circunstância que fala em desfavor do ingresso de menores nas sociedades por cotas, embora integralmente realizado o capital social. É que, na hipótese de os sócios, em maioria, votarem o aumento do capital social sem integralizá-lo imediatamente, o menor encontrar-se-ia em situação insegura, visto como ficaria, em caso de falência, responsável pela integralização das quotas não liberadas. Existindo sempre esse risco, eis que a lei brasileira, ao contrário da francesa e espanhola, por exemplo, não exige a realização imediata de todo o capital social no ato da subscrição ou do aumento. É de rigor afastar os menores das sociedades por quotas, prescrevendo a anulabilidade de sua subscrição. Risco igual existiria na hipótese de o valor atribuído à contribuição in natura de alguns do sócio não corresponder à realidade e dessa circunstância resultar prejuízo para terceiros (TEIXEIRA, p. 45). O Supremo Tribunal Federal, mesmo diante de argumentos fundamentados, publicou decisão contrária, no sentido de permitir a integração do menor na sociedade limitada, desde que as cotas estejam integralizadas e que ainda não faça parte da gerência da sociedade. Com base nessa decisão, o DNRC, à época, em Ofício-Circular n° 22, de novembro de 1976, determinou que as Juntas Comerciais aceitassem e definissem os contratos sociais nos quais figurassem menores impúberes, desde que suas cotas estivessem integralizadas e não constassem nos contratos sociais atribuições aos mesmos relativas à gerência e administrações (REQUIÃO, p. 570). Após, a Instrução Normativa n° 12 de 1986 e n° 29 de 1991 mantiveram a mesma orientação. Sem uma regra específica sobre o tema, a Instrução Normativa n° 46/96 revogou a legislação e o Código Civil em vigor, sendo que este último também 44
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suprimiu boa parte do Código Comercial vigente, não regulando a matéria em seu Capítulo IV. O art. 1.028 do Código Civil estabelece que, no caso de morte do sócio, a quota da sociedade será liquidada, salvo se o contrato dispuser diferentemente (art. 1028, I, Código Civil). FALECIMENTO DO SÓCIO A sociedade limitada é constituída pela manifestação de vontades que unem esforços para consecução de um fim comum, com a perspectiva de obter lucro com o resultado: “a liberdade contratual é compreendida como um poder-dever. O direito faculta ao indivíduo o poder de contratar, mas impõe-lhe o dever de fazê-lo de forma a cooperar com a coletividade em que está inserido” (SAMPAIO JÚNIOR, p. 89). O que sustenta essa seção é a hipótese prevista no art. 1.028 do Código Civil. Tem-se como base o princípio da preservação da empresa, garantindo aos sucessores do de cujus a apuração de haveres. De lado outro, existe a possibilidade dos próprios sócios, em vida, decidirem o destino da sociedade limitada, desde a sua constituição, estipulando causa específica em contrário ou possibilitando aos sócios remanescentes optarem pela sua dissolução. Ou mais, poderá ainda deixar a quota-parte da sociedade limitada como um legado, permitindo o ingresso do herdeiro como legatário, em lugar do falecido. Com efeito, existe a possibilidade de influência deixada pelo sócio falecido e o sucessor encontrar dificuldade no exercício de suas atividades na sociedade, seja por desvio de poder ou pela absoluta falta de affectiosocietatis com os consócios remanescentes. DA APURAÇÃO DE HAVERES Nos pactos societários, concentram-se cláusulas, definidas pela manifestação de vontade dos sócios, destinados a prevenir divergências futuras, em que o contrato social na execução do seu objeto cumpre sua função social. Por mais completa que seja sua redação, é praticamente impossível prever todas as consequências jurídicas que serão vividas pelos contraentes e fatos futuros que essa união poderá trazer. Poderá, entretanto, prever cláusulas destinadas às faltas cometidas pelos sócios ou, quando pela morte de um deles, houver previsão de qual herdeiro daria seguimento à sociedade limitada. Seria o modelo ideal se toda a sociedade em funcionamento tivesse um planejamento sucessório. Destaca-se, para tanto, que o coração deste trabalho, pulsa pelo silêncio do contrato social no que diz respeito à transferência involuntária de quotas. Aplicar a previsão legal, excluindo-se o sucessor e liquidando-se a quota-parte deixada pelo falecido, possibilita aos sócios supérstites adquirirem a quota da sociedade limitada. Questiona-se nesta seara é o valor desta quota, como será apurada, qual seria o marco inicial. Não existe dúvida no tocante à validade do pacto, mas, ao aplicar no caso concreto, dúvidas são levantadas, porque essa convenção poderá ofender preceitos do direito sucessório ou tributário quando da morte do sócio seu quinhão social, ao ser transmitido ao sucessor. O professor Hernani Estrella traz essa lição de forma exemplificada: dar-se-ia isso principalmente na sociedade entre pai e filho, na qual pelo decesso do primeiro
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VADE MECUM FORENSE e por efeito do pactuado no contrato, o último viesse a receber os contingentes do progenitor, juntamente com outros sócios, embora estranhos, com exclusão dos demais descendentes. Numa hipótese dessas, a aplicação literal do convencionado no pacto societário pode parecer infringente, seja ao princípio da intangibilidade das legítimas, seja às regras da partilha (ESTRELA, p. 109). Existem controvérsias sobre se o quinhão social apurado na forma estabelecida no contrato se deve ou não se sujeitar à nova avaliação. Tudo será apresentado no processo de inventário, geralmente ocorre nas primeiras declarações. Cumpre destacar que, no procedimento do arrolamento ou inventário, o magistrado dará vista ao Fisco, momento em que poderá alterar o valor apresentado nas primeiras declarações. No desligamento do sócio falecido e na sobrevivência da sociedade, faz-se mister apurar e liquidar seus haveres, a partir de levantamento técnico a ser promovido por perito nomeado pelo juiz. O perito irá realizar um verdadeiro balanço de todo o patrimônio da sociedade, procedendo ao inventário dos bens integrantes do ativo da sociedade, a discriminação do passivo, avaliando o preço de mercado dos valores apurados, procedendo de igual modo aos bens intangíveis. Ao Código Civil Brasileiro, no que tange à apuração de haveres, opera a disciplina da saída do sócio, nos casos de morte, com a sobrevivência da sociedade, adotando como base a liquidação da quota social em relação ao sucessor. Inclui-se na sociedade limitada a situação patrimonial da sociedade, à data da resolução, verificando-se em balanço especialmente levantado. Chega-se ao valor da quota, que será realizado tendo como base o montante efetivamente realizado e integralizado. Em caso de dissolução parcial, considera-se a apuração de haveres do sócio retirante, levando em conta o real valor de sua participação na sociedade, assemelhando-se à dissolução total. Se pudesse chegar a um consenso, mas o tema é divergente, tendo em vista que se não for estabelecido o valor com base numa realidade empresarial da sociedade ou de forma consistente, tudo isso poderá ocorrer de forma injusta, em face do locupletamento à custa de outros, ficando a quota subavaliada. Essa relação de interesses é o maior antagonismo no instituto da dissolução parcial em torno da apuração de haveres. Essa lição remete-se ao tema principal proposto neste trabalho, em que a morte é uma das causas que levam ao desligamento do sócio/sucessor. Como não ocorrerá a dissolução total da sociedade limitada, deverão ser apurados apenas os haveres do retirante. Com o contrato social omisso, sem que as partes tenham convencionado sobre a matéria, caberá ao juiz determinar por meio de procedimento adequado que a apuração de haveres ocorra, fixando no final do processo o valor da quota. Ocorrendo esta causa dissolutória, com a saída do dissente, privilegiando a preservação da sociedade, não poderá acarretar resultado patrimonial pior do que se fosse promovida a dissolução total. A apuração de haveres deverá ser efetivada buscando-se o valor real do patrimônio social para apurar o produto líquido, procedendo-se ao balanço de determinação (especial ou de liquidação), com ampla verificação física e contábil de todos os valores do ativo. Na morte do sócio a situação é diferenciada e são analisadas as disposições contratuais. Neste contexto, como se está tratando do contrato silente, a morte do sócio implicará a transferência automática de suas quotas aos sucessores, sem a dissolução imediata da sociedade. 46
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Mas estranhos (os herdeiros) – completamente estranhos – à sociedade sobreviva e aos sócios supérstites só podem pretender o quinhão em valor que lhes deixou o autor da herança (ESTRELA, p.139). Destacando-se, entretanto, com pincel fluorescente verde, que na falta de prévio ajuste, ou seja, na omissão do contrato social, será realizado levantamento patrimonial da sociedade, à data do óbito, podendo prevalecer as diretrizes que presidem a apuração dos haveres na dissolução parcial. Os haveres devidos aos sucessores são apurados com base no último balanço aprovado pelo sócio falecido, deduzida a parte não integralizada. Entende-se que, com o falecimento do sócio, só haverá ampla apuração de haveres, com efeitos contábeis e patrimoniais semelhantes a uma dissolução parcial, se depois de admitido como sócio o sucessor desejar desligar-se da sociedade limitada. RESOLUÇÃO DA SOCIEDADE EM RELAÇÃO AO SUCESSOR A resolução gerará exclusão dos dados do falecido. O contrato plurilateral realizado à época de constituição da sociedade, com arquivamento dos atos constitutivos no órgão registrário próprio, chegará à sua extinção por força de procedimentos dissolutórios, nos termos do art. 1.028 do Código Civil Brasileiro. Desse modo, pode-se analisar como a hipótese de o sucessor não ter administrado a sociedade com razão e os atributos a ela inerentes ou, em sua faculdade de escolha em integrar aos negócios deixados pelo de cujus, ele fica inerte e não aceita o ônus de administrador até a divisão dos bens, preferindo liquidar sua quota-parte, resgatando o bônus dessa transação. A transferência involuntária de quota independe do posicionamento da quota-parte deixado pelo falecido, se era majoritário ou não. Caberão ao sucessor, conforme mencionado, a sua escolha e competência para continuar os negócios. A sociedade limitada deverá atingir seu fim social. Ressalta-se que a exclusão poderá ocorrer de pleno direito se o sócio teve liquidada a sua quota por algum credor por força do processo de execução. Neste caso, mesmo que o sucessor deseje dar continuidade ao negócio jurídico, ficará engessado para prosseguir com sua intenção. Hipóteses que levam à resolução da sociedade em relação ao sócio estão previstas no art. 1.058 c/c art. 1.004 do Código Civil. Serão destacadas aqui somente as que merecem relevo neste tema. A exclusão do sócio sucessor deverá ocorrer pela via judicial com alteração no contrato social, seja por falta grave no cumprimento de sua função, por incapacidade superveniente, mediante iniciativa da maioria dos consócios ou por recusa da sucessão. O inadimplemento do falecido será transmitido ao sucessor no limite dos bens deixados pelo de cujus em sua universalidade. O procedimento da liquidação da quota ocorrerá com a redução proporcional ao pagamento efetivado, após a integralização do capital, reduzindo-se também as garantias de outros credores sociais, se houver. Com efeito, na liquidação da quota social, observam-se primeiramente os procedimentos contratuais e legais, bem como o balanço patrimonial específico e seus atributos, quando houver o reembolso de participação societária ou até as contingências dedutoras das entradas, em relação à operação de mera restituição dos valores pagos. Entende-se, para o estudo em tela, que a transferência involuntária das quotas aos herdeiros poderia seguir seu curso de forma serena, com a prévia estipulação
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VADE MECUM FORENSE no contrato social, com ulterior concordância dos demais sócios ao ingresso dos sucessores do quotista ou com o reembolso do valor relativo às quotas pertencentes ao sócio falecido. CONSIDERAÇÕES FINAIS Na verdade, o Direito Material, o Direito Processual e o posicionamento doutrinário, bem como as decisões dos tribunais referentes ao tema, serviram para elucidar as questões propostas neste artigo. A perda de um sócio quotista sem a preparação de um sucessor, acumulado com a ausência de previsão no contrato social, é o que justificou o desafio deste artigo. Criou-se um liame entre Direito Econômico, Direito Civil, Direito Processual Civil, especificadamente o Direito Societário e o Direito Sucessório, no aquinhoamento realizado na sucessão hereditária, na qual a transferência involuntária de quotas muitas vezes decorre de imposição legal e acaba repercutindo na esfera dos direitos e interesses dos demais sócios e da própria sociedade. A prática às vezes encontrada de, em lugar de liquidar a sociedade, buscar uma exegese conciliadora ao aparente conflito de interesses entre os princípios da legislação civil, possibilita a administração da sociedade limitada de forma harmônica e eficaz. Entretanto, nem sempre isso é possível. É importante que se leve em consideração que, se houver a transferência involuntária de quotas em caso de falecimento do sócio, poderá ainda haver rejeição dos demais sócios remanescentes à integração do sucessor/administrador, tornando seu desempenho precário na administração da sociedade limitada. Sem a pretensão falível de esgotar o assunto, discutiram-se as condições e limitações do sucessor, ao aceitar o múnus de administrar a quota-parte do sócio falecido. O exercício da administração é precário porque é realizado por sucessores que ainda não são definidos como sócios, tendo eles participação específica e limitação de responsabilidade. O processo sucessório ocupa relevante espaço nas discussões jurídicas e, para alguns doutrinadores, seu principal escopo e ponto crítico é a perpetuação do negócio jurídico. Deixa-se evidente que é uma faculdade a continuação da sociedade limitada com os sucessores, não assistindo aos sócios remanescentes a mesma possibilidade, que já não poderiam, diante da expressa previsão contratual ou de uma ordem judicial, impedir o ingresso do herdeiro. Com o efeito da morte, o modelo ideal seria o planejamento sucessório como manifestação de vontade dos sócios, previsto no contrato social; seu silêncio levará o magistrado analisar o caso concreto como uma forma de preservar os interesses alheios aos seus. Forma-se, então, uma análise com círculo virtuoso: ou o prosseguimento da sociedade sem a participação dos sucessores na administração ou a liquidação da quota dos herdeiros com a apuração de haveres ou o inventariante prossegue na sociedade na condição de sucessor do falecido, sem o pagamento de qualquer espécie, ou os herdeiros se negam a continuar na sociedade ou são, em última hipótese, recusados pelos demais sócios. Com efeito, todos esses conflitos e interesses serão solucionados na via judicial, no direito à dissolução parcial com a liquidação da quota-parte do de cujus, na continuação do administrador/sucessor, com perpetuidade do negócio jurídico nas empresas familiares ou na administração do herdeiro/terceiro, em função da importância econômica e social da empresa. O administrador continuará sua
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gestão de forma precária até a partilha, mas poderá ter sucesso nessa sucessão, ferindo diretamente o affectiosocietatis, mas gerando frutos, novos empregos e fortalecendo a economia. NOTAS 1 Art. 1.028. No caso de morte de sócio, liquidar-se-á sua quota, salvo: I – se o contrato dispuser diferentemente; II – se os sócios remanescentes optarem pela dissolução da sociedade; III – se, por acordo com os herdeiros, regular-se a substituição do sócio falecido. 2 LEI No 10.406, DE 10 DE JANEIRO DE 2002 CAPÍTULO I Disposições Gerais Art. 1.784. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários. 3 LEI Nº 3.071, DE 1º DE JANEIRO DE 1916. Revogada pela Lei nº 10.406, de 10.1.2002Código Civil Art. 1.572. Aberta a sucessão, o domínio e a posse da herança transmitem-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários. 4 Art. 90, CC – Constitui universalidade de fato a pluralidade de bens singulares que, pertinentes à mesma pessoa, tenham destinação unitária. Parágrafo único. Os bens que formam essa universalidade podem ser objeto de relações jurídicas próprias. 5 Art. 1.004, CC – Os sócios são obrigados, na forma e prazo previstos, às contribuições estabelecidas no contrato social, e aquele que deixar de fazê-lo, nos trinta dias seguintes ao da notificação pela sociedade, responderá perante esta pelo dano emergente da mora. Parágrafo único. Verificada a mora, poderá a maioria dos demais sócios preferir, à indenização, a exclusão do sócio remisso ou reduzir-lhe a quota ao montante já realizado, aplicando-se, em ambos os casos, o disposto no § 1o do art. 1.031. Art. 1.058, CC – Não integralizada a quota de sócio remisso, os outros sócios podem, sem prejuízo do disposto no art. 1.004 e seu parágrafo único, tomá-la para si ou transferi-la a terceiros, excluindo o primitivo titular e devolvendo-lhe o que houver pago, deduzidos os juros da mora, as prestações estabelecidas no contrato mais as despesas. REFERÊNCIAS
arquivo pessoal
Código de Processo Civil Brasileiro – http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm ESTRELA, Hernani. Apuração dos haveres de sócio. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, v. 1. NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 7. ed., volume único, São Paulo: Método, 2015. REQUIAO, Rubens. Curso de Direito Comercial1. 34. ed. rev. e atual. Por Rubens Edmundo Requião. São Paulo: Saraiva, 2015. RIZZARDO, Arnoldo. Direito das Sucessões. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, v. 1., 2015. SAMPAIO JUNIOR, Rodolpho Barreto. Da liberdade ao controle: os riscos do Novo Direito Civil Brasileiro. 1. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. SIMÃO FILHO, Adalberto. A nova sociedade limitada. São Paulo: Manole. TEIXEIRA, Egberto Lacerda. Das sociedades por quotas de responsabilidade limitada. São Paulo: QuartierLatin, 2. ed.. Rosilene Gomes da Silva Giacomin é Advogada. Pesquisadora. Professora Universitária. Coordenadora do curso de direito da Faculdade Pitágoras - Cidade Acadêmica. Mestre em Direito Empresarial, desde 2011, pela Faculdade Milton Campos. Possui mais de 17 anos de experiência na docência. Membro do Instituto de Derecho de Integraciónda Asociación Argentina de Justicia Constitucional. Como função social da profissão atua como editora-chefe da revista científica da Academia Brasileira de Direito Civil e no comitê avaliativo da Revista Síntese em Direito Empresarial da IOB.
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FICHÁRIO JURÍDICO
Responsabilidade do Flamengo diante dos atos de violência protagonizados no Maracanã por
Leonardo Sarmento
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O Estatuto do Torcedor procura enfrentar o crime organizado que participa dos eventos por meio das ditas “torcidas organizadas” responsabilizando essas pelos excessos e desordens.
A
”
violência que pôde ser vista no 2º jogo da Copa Sul-Americana, no Maracanã, entre Flamengo e Independiente da Argentina foi uma tragédia anunciada, e digase a verdade, por um dos protagonistas do espetáculo, o Clube de Regatas do Flamengo. Após ter sua torcida hostilizada na Argentina, ocasião que foram chamados de macacos e tratados sem qualquer cordialidade a partida de volta reservaria momentos de tensão que seriam exaustivamente anunciados via rede social de computadores. O CRF não se eximindo de seus deveres para com o espetáculo cumpriu o papel que lhe cabia, ao ter notícia de que haveria invasões de “torcedores” sem ingresso, imediatamente comunicou as instâncias policiais competentes, a Polícia Militar e a Guarda Municipal com expresso pedido de reforço nos seus efetivos, com o fito de se garantir a realização do espetáculo. Polícia Militar e Guarda Municipal responderam a notificação com um efetivo claramente insuficiente, vide imagens de invasões no circuito interno de câmeras do Maracanã, que se somou a um efetivo de seguranças particulares contratados pelo Flamengo no objetivo de tentar manter a ordem. Indelével que o Flamengo não pode concorrer com culpa, ser corresponsabilizado por atos perpetrados por pessoas que vestem a 50
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camisa do clube, caso contrário o ladrão de banco vestido com a camisa do Vasco faria o Vasco corresponsável pelo roubo. Assim, o Clube chamou para si a responsabilidade do evento. Para os que possuem ingresso o acesso deve ser livre, aos que não possuem devem ser impedidos, e para isso o Flamengo contratou seguranças privados e chamou à responsabilidade as forças policiais que ostentam poder de polícia para impedir a desordem, como as invasões com rompimento de obstáculos que se sucederam. Em verdade o CRF não está responsável por impedir a ação de bandidos, esta responsabilidade é do estado, da segurança pública. O CRF não está autorizado a responder à violência com mais violência, exatamente por não possuir poder de polícia. Para isso pediu expresso apoio das forças policiais para referido desiderato, sendo atendido sem a eficiência que se esperava pelo número insuficiente de policiais disponibilizados. O CRF não pode responder pelos acessos ao Maracanã, deve sim respeitar a liberdade de ir e vir sem discriminação. O papel de restringir o acesso cabe a polícia, com o objetivo de colocar ordem e impedir que os desordeiros se estabeleçam em um espaço que não está direcionado à balburdia, a barbárie. Quem tem poder para impedir os acesos de “suspeitos” às imediações do local do evento é quem possui poder de polícia. Com isso, o Flamengo quando muito poderia ser corresponsabilizado pelos ocorridos no interior do estádio em concorrência com quem detinha a incumbência de manter a ordem (estado – PM e município – Guarda Municipal). Lembramos que a responsabilidade penal deve ser individual e intransferível na medida dos dispostos na lei. De acordo com o novo artigo 41, alínea b, do Estatuto do Torcedor, quem promover tumulto, praticar ou incitar a violência, ou invadir local restrito aos competidores em eventos esportivos será punido com pena de reclusão de um a dois anos. Na mesma pena incorrerá o torcedor que cometer estes crimes em um raio de 5 km ao redor do local de realização do evento esportivo, ou durante o trajeto de ida e volta do evento esportivo, assim como quem portar, deter ou transportar no interior do estádio, e suas imediações ou no seu trajeto, quaisquer instrumentos que possam servir para a prática de violência. Neste sentido, ainda que a intenção de aumentar a segurança nos estádios seja apreciável, o jurista não pode deixar de notar a extrema amplitude e quase falta de tipificação dos crimes introduzidos, que configuram em síntese crimes de perigo abstrato. Pense em condutas como “incitar a violência num raio de 5 mil metros ao redor do estádio” ou “deter nas imediações do estádio quaisquer instrumentos que possam servir para a prática de violência”, cuja ampla interpretação poderia levar a condenação criminal de milhares de pessoas a cada domingo. Surgimento de uma definição legal do termo “torcida organizada”, que se adiciona àquela de “torcedor” já contida na versão original do Estatuto do Torcedor. Assim, a torcida organizada vem a ser definida pelo novo artigo 2 , alínea a, da Lei como “a pessoa jurídica de direito privado ou existente de fato, que se organize para o fim de torcer e apoiar entidade de prática esportiva de qualquer natureza ou modalidade”.Todavia o aspecto mais interessante e inovador da reforma é que a Lei não se limita a criar uma definição de torcida, mas chega a prever verdadeiras obrigações, sendo que em alguns casos até devendo responder por responsabilidade civil objetiva. Assim as torcidas organizadas deverão, em primeiro lugar, manter cadastro atualizado de seus associados ou membros, o qual deverá conter, pelo
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FICHÁRIO JURÍDICO menos, as seguintes informações: nome completo, fotografia, filiação, número do registro civil, número do CPF, data de nascimento, estado civil, profissão, endereço completo e escolaridade. Interessante será ver as reações das torcidas a essa novidade e até que ponto esta obrigação será respeitada, não sendo clara a sanção em caso de não respeito da disposição. Alguns artigos do Estatuto do Torcedor trazemos à colação: Art. 13. O torcedor tem direito a segurança nos locais onde são realizados os eventos esportivos antes, durante e após a realização das partidas. (Vigência) Art. 14. Sem prejuízo do disposto nos arts. 12 a 14 da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, a responsabilidade pela segurança do torcedor em evento esportivo é da entidade de prática desportiva detentora do mando de jogo e de seus dirigentes, que deverão: I – solicitar ao Poder Público competente a presença de agentes públicos de segurança, devidamente identificados, responsáveis pela segurança dos torcedores dentro e fora dos estádios e demais locais de realização de eventos esportivos; Art. 17. É direito do torcedor a implementação de planos de ação referentes a segurança, transporte e contingências que possam ocorrer durante a realização de eventos esportivos. § 1º Os planos de ação de que trata o caput serão elaborados pela entidade responsável pela organização da competição, com a participação das entidades de prática desportiva que a disputarão e dos órgãos responsáveis pela segurança pública, transporte e demais contingências que possam ocorrer, das localidades em que se realizarão as partidas da competição. (Redação dada pela Lei nº 12.299, de 2010). § 2º Planos de ação especiais poderão ser apresentados em relação a eventos esportivos com excepcional expectativa de público. Art. 18. Os estádios com capacidade superior a 10.000 (dez mil) pessoas deverão manter central técnica de informações, com infraestrutura suficiente para viabilizar o monitoramento por imagem do público presente. (Redação dada pela Lei nº 12.299, de 2010). Art. 19. As entidades responsáveis pela organização da competição, bem como seus dirigentes respondem solidariamente com as entidades de que trata o art. 15 e seus dirigentes, independentemente da existência de culpa, pelos prejuízos causados a torcedor que decorram de falhas de segurança nos estádios ou da inobservância do disposto neste capítulo. Art. 23. A entidade responsável pela organização da competição apresentará ao Ministério Público dos Estados e do Distrito Federal, previamente à sua realização, os laudos técnicos expedidos pelos órgãos e autoridades competentes pela vistoria das condições de segurança dos estádios a serem utilizados na competição. (Regulamento) § 1º Os laudos atestarão a real capacidade de público dos estádios, bem como suas condições de segurança. Art. 25. O controle e a fiscalização do acesso do público ao estádio com capacidade para mais de 10.000 (dez mil) pessoas deverão contar com meio de monitoramento por imagem das catracas, sem prejuízo do disposto no art. 18 desta Lei. (Redação dada pela Lei nº 12.299, de 2010). Art. 39-A. A torcida organizada que, em evento esportivo, promover tumulto; praticar ou incitar a violência; ou invadir local restrito aos competidores, árbitros, fiscais, dirigentes, organizadores ou jornalistas será impedida, assim como seus associados ou membros, de comparecer a eventos esportivos pelo prazo de até 3 (três) anos. (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010). Art. 39-B. A torcida organizada responde civilmente, de forma objetiva e solidária, pelos danos causados por qualquer dos seus associados ou membros no local do evento esportivo, em suas imediações ou no trajeto de ida e volta para o evento
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Art. 41-B. Promover tumulto, praticar ou incitar a violência, ou invadir local restrito aos competidores em eventos esportivos: (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010). Pena – reclusão de 1 (um) a 2 (dois) anos e multa. (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010). § 1º Incorrerá nas mesmas penas o torcedor que: (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010). I – promover tumulto, praticar ou incitar a violência num raio de 5.000 (cinco mil) metros ao redor do local de realização do evento esportivo, ou durante o trajeto de ida e volta do local da realização do evento; (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010). II – portar, deter ou transportar, no interior do estádio, em suas imediações ou no seu trajeto, em dia de realização de evento esportivo, quaisquer instrumentos que possam servir para a prática de violência. (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010). § 2º Na sentença penal condenatória, o juiz deverá converter a pena de reclusão em pena impeditiva de comparecimento às proximidades do estádio, bem como a qualquer local em que se realize evento esportivo, pelo prazo de 3 (três) meses a 3 (três) anos, de acordo com a gravidade da conduta, na hipótese de o agente ser primário, ter bons antecedentes e não ter sido punido anteriormente pela prática de condutas previstas neste artigo. (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010). § 3º A pena impeditiva de comparecimento às proximidades do estádio, bem como a qualquer local em que se realize evento esportivo, converter-se-á em privativa de liberdade quando ocorrer o descumprimento injustificado da restrição imposta. (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010). § 4º Na conversão de pena prevista no § 2º, a sentença deverá determinar, ainda, a obrigatoriedade suplementar de o agente permanecer em estabelecimento indicado pelo juiz, no período compreendido entre as 2 (duas) horas antecedentes e as 2 (duas) horas posteriores à realização de partidas de entidade de prática desportiva ou de competição determinada. (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010). § 5º Na hipótese de o representante do Ministério Público propor aplicação da pena restritiva de direito prevista no art. 76 da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, o juiz aplicará a sanção prevista no § 2º (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010).
arquivo pessoal
Fica claro que o Estatuto do Torcedor procura enfrentar o crime organizado que participa dos eventos por meio das ditas “torcidas organizadas” responsabilizando essas pelos excessos e desordens. Para isso trabalha com monitoramento de câmeras, cadastramento, exatamente para detectar os criminosos. Cumpridas todas as exigências da legislação, o clube mandante da partida não pode se corresponsável pelos atos de uma torcida tratada como pessoa jurídica de direito privado. Imperioso a identificação dos transgressores para que os desordeiros restem punidos individualmente inseridos que estão na organização que fazem parte. O Clube na figura de seus dirigentes só responde em se demonstrando negligência na segurança da condução do evento. A partir do momento que o Clube demonstra que o evento é perigoso, e a partir de dados concretos comunica às autoridades sua incapacidade de conduzi-lo sem o respaldo do poder público para lhe conferir a necessária segurança como fez o Flamengo, se exime de responsabilidade desde que cumpridas as suas obrigações e deveres, como nos parece ter acontecido com o Clube de Regatas do Flamengo em quase sua totalidade.
Leonardo Sarmento é professor constitucionalista, consultor jurídico, palestrante, parecerista, colunista de diversas revistas e portais jurídicos. Pós-graduado em Direito Público, Direito Processual Civil, Direito Empresarial e com MBA em Direito e Processo do Trabalho pela FGV.
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EXPRESSÕES LATINAS
Exceptio rei judicataevel in judicium deductae por
Vicente de Paulo Saraiva
“
Analogamente, no processo-crime, já que o réu se defende do fato criminoso que lhe é imputado e não do dispositivo legal constante da peça acusatória, é dado ao juiz corrigir o libelo (emendatiolibelli), conferindo ao delito definição jurídica, isto é, classificação do crime diversa da articulada naquela, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave (CPP, art. 383).
”
Exceção da coisa julgada ou da (já) deduzida em juízo.
O
portuna uma observação inicial, bem específica da língua latina. É que o substantivo judicium foi para o acusativo [singular], a pedido da preposição in, com a qual está formando uma locução adverbial, que identifica um adjunto adverbial de lugar (para onde), virtual. A presente regência da preposição in com acusativo, em vez do ablativo (como se poderia esperar), se deveu em razão da idéia de “movimento” ou “direção”, decorrente do ato de se “levar” o pleito até o magistrado. A expressão é a reprodução exata do que se lê em Gaio (Insts. 3, 181 e 4, 106/107), desenvolvidos seus conceitos em título inteiro do Digesto (D. 44, 2). A presença da conjunção vel, por sua vez, está indicando a duplicidade de exceções, no Direito romano: a de coisa julgada – que o demandado opunha ao autor de uma ação, posterior a uma outra, já sentenciada –, uma vez que res judicata pro veritatehabetur(a coisa julgada é tida como a verdade/como a correta); e a de não-alteração dos termos do pedido, quais os exarados na fórmula, imodificáveis após a litiscontestatio (contrato pelo qual as partes aceitavam o julgamento da lide nos termos da fórmula), ou a renovação da pretensão já fixada anteriormente noutra ação.
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arquivo pessoal
O aforismo reproduz, assim, ambas as “exceções” (exceptiones) de coisa julgada e litispendência, afora a imutabilidadeda inicial. Destarte, tanto relativamente ao Direito romano quanto ao Pátrio, a matéria tem íntima conexão com a locução bis de eademre ne sitactio (não haja ação/não é permitido [se dê] ação, por duas vezes, sobre a mesma coisa/o mesmo pedido) – tema que se desenvolverá mais especificamente no próximo artigo, assim como já se dissertou anteriormente no verbete res judicata pro veritatehabetur, matéria que ora aditaremos. Cabetão só, no momento, ressaltar que a presente exceptio rei judicataevel in judicium deductae, paralelamente à litispendência, traduz também aquela proibição de se alterar a inicial, após a citação, sem o expresso consentimento do réu e jamais após o saneamento do processo (CPC, art. 264 e parágrafo único). Na definição de Modestino (D. 42, 1, 1), Res judicatadicitur, quae finem controversiarumpronuntiationejudicisaccepit, quod velcondemnatione, velabsolutionecontingit(Diz-se coisa julgada a que pôs fim às controvérsias com o pronunciamento do juiz, o que ocorre ou pela condenação ou pela absolvição). Desta sorte, qualquer que tenha sido a decisão final, a sentença terá posto fim ao debate. A fim de que este não viesse a ser reiterado, o interesse geral e a paz da sociedade obrigavam a que não se tornassem a contestar direitos já reconhecidos judicialmente, porquanto, assim (C. 7, 52, 2), nulluseritlitium finis (nenhum fim haverá dos litígios), bastando para cada controvérsia uma única ação e um só término da coisa julgada (D. 44, 2, 6). O fundamento era a presunção (praesumptio juris et de jure), aliás – com o aval de Ulpiano – de que (D. 50, 17, 207) Res judicataproveritateaccipitur(A coisa julgada é admitida como a [própria] verdade). Repelia-se, então, a tentativa de uma nova ação, em que ocorressem a identidade do objeto (o direito), da causa de pedir e das partes (D. 44, 2, 12/14) – mediante a exceptio rei judicataevel in judicium deductae(a exceção da coisa julgada ou a levada em juízo). Analogamente, no processo-crime, já que o réu se defende do fato criminoso que lhe é imputado e não do dispositivo legal constante da peça acusatória, é dado ao juiz corrigir o libelo (emendatiolibelli), conferindo ao delito definição jurídica, isto é, classificação do crime diversa da articulada naquela, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave (CPP, art. 383). Caso o magistrado venha a reconhecer que os fatos criminosos são diversos dos descritos, mas que não importam aplicação de pena mais grave, mesmo assim terá de baixar o processo à defesa, ante a nova capitulação legal desses fatos: pois já aqui ocorre autênticamutatiolibelli (alteração do libelo [acusatório]); contudo, se a prova dos autos induzirem à condenação de pena mais grave, na hipótese acima, o juiz deverá baixar os autos ao Ministério Público, a fim de aditar a denúncia ou a queixa (na ação privada subsidiária), mediante novos termos, com as circunstâncias agravantes (mas sem a ampliação daquelas com novos fatos): o réu terá, igual e obrigatoriamente, nova vista para sua defesa (CPP, art. 384 e parágrafo único). (Estes dois últimos dispositivos não se aplicam, porém, à segunda instância: Súmula nº 453 do STF.) Preserva-se, desta maneira, tanto no cível quanto no crime, o direito de defesa, entre nós alçado a preceito constitucional (CF, art. 5º, LV).
VICENTE DE PAULO SARAIVAé subprocurador-geral da República (aposentado) e autor da obraExpressões Latinas Jurídicas e Forenses(Saraiva, 1999, p. 856.)
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DIVULGAÇÃO
PROCESSOS E PROCEDIMENTOS
Do periculum in mora inverso (reverso) à luz do CPC-2015 por
Reis Friede
“
A apreciação dos pressupostos autorizadores do provimento cautelar é facultas do magistrado, através de sua competência discricionária própria, que permite a livre apreciação de sua própria existência e, a partir daí, a operacionalização de um móvel capaz de fazer cessar.
”
A
o registrar, de forma inédita, na literatura jurídico-brasileira, – quando da ocasião do lançamento da 1ª edição da nossa obra “Aspectos Fundamentais das Medidas Liminares em Mandado de Segurança, Ação Cautelar, Ação Civil Pública e Ação Popular”, Ed. Forense Universitária/RJ, 1993, p. 106 –, a expressão periculum in mora inverso (reverso), não poderíamos imaginar, para nossa grata satisfação, como pesquisadores da Ciência Processual, que a mesma não somente viesse a se tornar, com o passar dos anos, uma designação técnica consagrada pela academia nacional, mas, particularmente, objeto das mais variadas e amplas citações jurisprudenciais e doutrinárias em todo o País. 56
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A idéia original, concebida há mais 20 anos, – numa época em que existiam poucos estudos mais aprofundados sobre o tema –, era de forjar, por imperiosa necessidade, uma concepção conceitual, com elevado rigor técnico, que traduzisse, com a almejada precisão, uma designação genérica a abranger as mais variadas (e diferentes) designações específicas (existentes à época) que buscavam nominar, naquele momento histórico de desenvolvimento do estudo da disciplina processual, o inconteste fenômeno dos efeitos inversos (ou reversos) do eventual deferimento das medidas liminares em Mandado de Segurança (art. 1º da Lei nº 191 de 1936, art. 1º da Lei nº 1.533 de 1951, art. 1º da Lei nº 12.016 de 2009), Ação Popular (art. 5º, § 4º da Lei nº 4.717 de 1965 com a redação ampliada pela Lei nº 6.513, de 1977) e na Ação Civil Pública (art. 12 da Lei nº 7.347 de 1985) ou das denominadas antecipações in limine (art. 804 do CPC de 1973) nas Ações Cautelares. Ainda que reste evidente que tal efeito também se manifeste no eventual deferimento de outras medidas liminares (em ações específicas), com idêntica previsão cautelar implícita, é de se registrar, por dever de lealdade, que nossa análise originária foi conduzida exclusivamente sobre o comportamento restritivo das medidas liminares nas mencionadas ações, o que, entretanto, em necessário reforço ao já afirmado, não exclui a possibilidade de se conceder a necessária extensão conclusiva a todas as demais ações congêneres, inclusive ao posterior advento, em 1994 (Lei nº 8.952, de 13/12/94), do instituto jurídico-processual da Tutela Antecipada. REQUISITOS PARA A CONCESSÃO DE MEDIDAS LIMINARES Muito embora, nem sempre, na prática cotidiana, a decisão final pela concessão de medidas liminares implique na plena e total observância, por parte do julgador, de específicos limites existentes para a prolação final do decisum, – ou seja, os requisitos tradicionais do periculum in mora1 e do fumus boni iuris2 –, é cediço concluir que a legislação autorizadora do provimento liminar 3,4, em nenhuma hipótese, permite o excepcional5 deferimento do instituto sem a devida comprovação de seus pessupostos vinculantes positivos, além do seu requisito negativo implícito. Em outras palavras, a existência efetiva da relevância dos motivos alegados pelo impetrante (no caso de mandado de segurança) ou pelo requerente (no caso de medida cautelar) deve ser sempre constatada em perfeita consonância com a efetiva presença do condicionante inafastável da não-produção do denominado periculum in mora inverso (a concretização de grave risco de ocorrência de dano irreparável, ou de difícil reparação, contra o impetrado ou requerido, como consequência direta da própria concessão da medida liminar deferida ao impetrante ou ao requerente). Uma vez que o deferimento da medida liminar possui caráter meramente preservatório (de exclusivo objetivo de garantia da inteireza da sentença), cuja reconhecida função social é exatamente fazer cessar, em caráter temporário, o ato impugnado, até que – em face da indiscutibilidade do direito invocado e comprovado – possa o magistrado decidir, sem incorrer em error in judicando, não pode, em nenhuma hipótese, por efeito, a concessão da medida pretendida produzir o que, há muito, passou-se a denominar grave lesão à ordem pública, compreendendo nesse conceito a chamada ordem administrativa em geral, ou seja, o normal andamento da execução do serviço público, o regular prosseguimento das obras públicas e o devido exercício das funções da administração pelas autoridades constituídas (TFR, suspensão da segurança no 4405-SP, DJU 7.12.79, p. 9.221).
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PROCESSOS E PROCEDIMENTOS Em se tratando especificamente de medidas cautelares, de procedimento sumário, operacionalizadas através de ação autônoma e de processo próprio, – mas com as características particulares da provisoriedade, instrumentabilidade e assessorabilidade (art. 796 do CPC/73 – art. 294, Parágrafo Único do CPC/15) –, a concessão da medida liminar (na qualidade de simples antecipação da medida cautelar), além de necessitar da efetiva comprovação da presença dos requisitos indispensáveis do periculum in mora, do fumus boni iuris (requisitos positivos) e da não-produção do denominado periculum in mora inverso (requisito negativo), incluindo o anterior conceito restritivo da “grave lesão à ordem pública”, encontra-se irremediavelmente condicionada à observância adicional da especial restrição imposta pelo art. 804 c/c art. 797, ambos do CPC/73, (art. 300, § 1º e 2º do CPC/15) que só permite o deferimento da antecipação cautelar (em forma de liminar), à guisa de sua própria excepcionalidade, nas comprovadas situações em que a citação do requerido possa vir a tornar a medida ineficaz, caso em que poderá o magistrado (e, nos casos de o requerido ser parte integrante da Fazenda Pública, deverá obrigatoriamente) determinar que o requerente preste caução real ou fidejussória, objetivando garantir o ressarcimento dos eventuais danos que o requerido possa vir a sofrer com o futuro julgamento pela improcedência do pedido cautelar definitivo (medida cautelar típica ou atípica). Portanto, a concessão de liminar, tanto em mandado de segurança, como na qualidade de antecipação da tutela cautelar (as denominadas antecipações in limine), é medida de absoluta excepcionalidade e, por consequência, nítida vinculação à efetiva presença de todos os pressupostos indispensáveis – o que inclui, além dos requisitos tradicionais do periculum in mora e do fumus boni iuris, – incluindo a concreta e indiscutível relevância dos motivos alegados –, em combi nação com a não-produção do denominado periculum in mora inverso (incluindo neste conceito a não-produção da chamada “grave lesão à ordem pública”), além do requisito específico para a concessão de antecipações cautelares em forma de liminar prevista no art. 804 do CPC/73 (art. 804 do CPC/15) –, sendo certo que, neste diapasão analítico, a mesma jamais pode ser deferida – ainda que mediante caução – quando ausentes quaisquer dos requisitos apontados, que se encontram expressos ou implícitos na atual legislação constitucional e infraconstitucional em vigor, independente da vontade, imposição de ordem moral, senso de justiça ou qualquer outro condicionante subjetivo que possa estar adstrito ao magistrado no momento de seu julgamento6,7. Do Periculum In Mora Sem a menor sombra de dúvida, o periculum in mora8 constitui-se no primeiro e mais importante dos requisitos indispensáveis para a concessão de medidas liminares em mandado de segurança ou como antecipação de cautela, no caso de medida cautelar em ação com idêntica designação. “(...) Indeterminado o perigo na demora não há como subsistir decisão concessiva de liminar” (ac. 3a T/TFR – 2a R.: A.I. 90.02.24586 – RJ (p/m), rel. des. Arnaldo Lima, RTRF 2a Região no 1). “Tendo-se como não configurado o pressuposto de existência de grave dano de incerta reparação, embora possam ser relevantes os fundamentos que dão base à ação, é de negar
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a medida cautelar” (ac. SP/STF, Ação Direta de Inconstitucionalidade 33-1/DF (u), rel. min. Aldir Passarinho, Adcoas BJA t (28.2.90), 126.439, p. 86).
O periculum in mora é, neste contexto, sobremaneira, a condição necessária – porém não suficiente – para o eventual deferimento da medida liminar vindicada ou mesmo para a concessão ex officio, operada através do denominado Poder Cautelar Genérico, inerente à própria função do magistrado, na qualidade de representante do Estado-Juiz. Para a obtenção da medida liminar e, consequentemente, da tutela cautelar implícita, portanto, a parte requerente obrigatoriamente deverá demonstrar fundado temor de que, enquanto aguarda a tutela definitiva, venham a faltar as circunstâncias de fato favoráveis à própria tutela (Liebman, 1968, p. 92). E isto somente pode ocorrer, conforme leciona Calvosa (1960, p. 66), quando haja efetivamente o risco de perecimento, destruição, desvio, deterioração ou qualquer tipo de alteração no estado das pessoas, bens ou provas necessários para a perfeita e eficiente atuação do provimento final de mérito. “Dois são os requisitos indispensáveis para a concessão da liminar em mandado de segurança, previstos no inciso 1o, do art. 7o, da Lei no 1.531/51: 1) a relevância do fundamento (fumus boni iuris); 2) e perigo de um prejuízo, do ato impugnado poder resultar a ineficácia da medida caso seja deferida a segurança (periculum in mora). Concorrendo ambos, o juiz, em decisão fundamentada, concederá a liminar. Isto significa que, na falta de qualquer um dos requisitos, a providência liminar deve ser negada. O professor e magistrado federal Reis Friede, lecionando sobre exame do periculum in mora que autoriza a concessão das liminares em geral, inclusive o mandado de segurança, ensina com precisão: “Para a obtenção da medida liminar e consequentemente da tutela cautelar implícita, portanto, a parte requerente obrigatoriamente deverá demonstrar fundado temor de que, enquanto aguarda a tutela definitiva, venham a faltar as circunstâncias de fato favoráveis à própria tutela. E isto somente pode ocorrer, conforme leciona Carlos Calvosa (in Sequestro Giudiziario, Novissimo Digesto Italiano, vol. XVII, p. 66), quando haja efetivamente o risco do perecimento e destruição, desvio, deterioração ou qualquer tipo de alteração no estado das pessoas, bens ou provas necessárias para a perfeita e eficiente atuação do provimento final de mérito” (in Aspectos Fundamentais das Medidas Liminares em Mandado de Segurança, Ação Cautelar, Ação Civil Pública e Ação Popular, 2a ed., Forense Universitária, 1993, p. 97). No caso, sem muito esforço percebe-se ausência da probabilidade do dano irreparável ou de difícil reparação para o deferimento da liminar” (TJMS, no julg. do MS 38438-9, DJ 8.8.94, p. 3.847, rel. des. Helvécio Chaves Martins).
A redação conceitual do instituto, como um dos pressupostos fundamentais para o deferimento da medida liminar – ou seja, fundado receio da existência de um dano jurídico (e não propriamente “fundado receio de dano ao direito de uma das partes”, como disciplina o art. 798 do CPC/73 (art. 297 do CPC/15), considerando que, enquanto não acontecer o julgamento do mérito da chamada “questão de fundo”, com a solução da lide, não se pode, ainda, falar em efetivo direito da parte que, eventualmente, pode até não ser reconhecido em decisão terminativa (sentença)) de difícil ou impossível reparação9 durante o curso da ação que contém
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PROCESSOS E PROCEDIMENTOS o pedido meritório –, refere-se sempre ao interesse processual (e jamais material ou meritório) presente na busca permanente da obtenção de uma real garantia quanto à própria efetividade da solução final (prestação das tutelas jurisdicionais cognitiva e executiva) a ser ditada pelo Poder Judiciário, inspirado, em última análise, no que Sidou (1983, p. 255) entendeu por bem denominar “instituto cardeal de assegurar matéria à sentença a ser editada”. “A medida liminar não tem por objeto o mérito da causa, mas a garantia da eficácia do julgado caso favorável ao impetrante. (...)” (ac. S. Plen./STF, MS 20900-3/DF (ag. reg.) rel. min. Rafael Mayer. JB no 163, Ed. Juruá, p. 90). (grifos nossos) “Para a concessão de medida cautelar há necessidade de se demonstrar, initio litis, a ocorrência dos requisitos essenciais que configurem o temor de dano jurídico iminente e o interesse na preservação da situação de fato, enquanto não advém a solução de mérito, o que corresponde ao fumus boni iuris (...)” (ac. unân. 6.458 da 2a Câm. do TJPR de 16.8.89, no agr. 298, rel. des. Negi Calixto, Adcoas, 1989, no 126.185) (grifos nossos). “Processual civil. Liminar deferida, inaudita altera pars, em ação cautelar, reajustando aposentadoria previdenciária em 147,06%. Ilegalidade. Segurança concedida para atribuição de efeito suspensivo a agravo de instrumento. A liminar, na hipótese, é contra legem, afrontando os arts. 797, 798 e 804 do CPC, posto que a lesão admite reparação futura, específica e plena, e o devedor é solvente. O caráter alimentar dos proventos não justifica aumento de aposentadoria através de liminares. Mandado de segurança deferido para atribuição de efeito suspensivo a agravo aviado contra a liminar” (ac. TRF da 1a R., MS 91.01.15810-4/MG (u), rel. juiz Hércules Quasímodo, DJ 13.4.92, Seção II, p. 9.098).
A apreciação da efetiva presença do periculum in mora é realizada, como ensina Liebman (apud Castro Villar, 1971, p. 62), através de apenas um único julgamento valorativo denominado probabilidade sobre possibilidade do dano ao provável direito pedido em via principal. Por efeito, o dano deve ser aferido sempre pelo juízo de probabilidade e jamais pelo simples e genérico juízo amplo de possibilidade10. O denominado receio de dano há, pois, que ser objetivamente fundado, calculado, de forma a mais precisa possível, pelo exame das causas já postas em evidência, capazes de realizar ou operar o efeito indesejado que deve ser, por consequência, afastado. A comprovação de seu fundamento, não obstante não permitir, por sua própria natureza, a certeza, deve permitir, no mínimo, a plausibilidade (justificação), sem o que o juízo restritivo de probabilidade acabaria, no exercício da prática, transmutando-se no genérico e amplo juízo de possibilidade. “Ação direta de inconstitucionalidade. Pedágio. Rodovias federais. Medida liminar. Pedágio destinado à conservação das rodovias federais. Pedido de suspensão liminar. Ausência de periculum in mora visto que não irreversível o desembolso” (A. Din. no 24-1-SP – Medida Liminar – rel. min. Francisco Rezek. Plenário, decisão unânime, in DJU, de 9.6.89, p. 10.095).
A avaliação da plausibilidade para a aferição do próprio juízo de probabilidade na apreciação da presença ou não do requisito em questão, não ensejando a certeza (prova irrefutável), evidentemente permite ao magistrado uma determinada margem de discricionariedade, mas jamais verdadeiro arbítrio que se constituiria 60
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através da utilização do referido juízo amplo da possibilidade de dano que, assim, estaria apenas subjetivamente fundado, calculado de uma forma absolutamente imprecisa11. Por outro lado, como adverte Reis, J.A. (1985, p. 26), não faria sentido que o juiz, para efeito de certificação do direito à cautela, houvesse de realizar um exame tão longo e tão refletido como o que efetua no processo principal. A proceder de tal forma, o processo cautelar perderia sua razão de ser e mais valeria à parte esperar pela decisão definitiva. A plausibilidade do dano é avaliada pelo juiz, segundo as regras do livre convencimento, de modo que não dispense a fundamentação ou motivação de seu conhecimento; mas isto dar-se-á com muito maior liberdade de ação do que na formação de certeza que se exige no processo definitivo (Theodoro Jr., 1976, p. 78). De qualquer maneira, “a decisão deve ser objetiva”, isto é, “deve atender aos fatos provados, dos quais resulte aquela plausibilidade” (Lopes da Costa, ob. cit., p. 45). É ponto tranquilo na doutrina, por outro lado, que o risco de dano deve corresponder sempre a fatos que venham desequilibrar efetivamente uma situação preestabelecida entre as partes, de modo que o perigo preexistente ou coexistente com o nascimento da pretensão realmente justifique a tutela cautelar, em forma de medida liminar12. “A ineficácia da sentença que defere o mandado de segurança não ocorre apenas quando o dano decorrente do ato impugnado seja irreparável. Para que se possa afirmar tal ineficácia, basta que a sentença que defere o mandado de segurança não tenha a aptidão de, ela própria, corrigir a ilegalidade de modo útil, vale dizer, determinando desde logo a reparação do dano” (Mandado de Segurança em Matéria Tributária, 4ª ed., São Paulo, Dialética, 2000, p. 114).
Como bem lembra Coniglio (1976, p. 79), a insolvência iminente que justifica um arresto não é a mesma que preexistia e era conhecida do credor ao tempo da constituição da dívida. O perigo de se tornar inexequível o crédito deve surgir após sua criação, como fato novo, que agrave as condições econômicas do devedor. Nessa mesma ordem de idéias, Pontes de Miranda (2000, p. 312) reafirma que as medidas cautelares supõem “superveniência dos fatos e necessidade de se afastar o óbice da antecedência ou mesmo da coexistência do perigo de dano”. Acertada, pois, é a conclusão de SILVA (1974, p. 70-71), segundo a qual “o perigo de perda do interesse, ou de graves danos posteriores ao nascimento do próprio direito, ou deve corresponder, pelo menos, a um agravamento da situação perigosa preexistente, ou, finalmente, sendo anterior à constituição da pretensão, era de tal natureza que o pretendente à segurança não poderia razoavelmente conhecer”. Do Fumus Boni Iuris Logo em seguida ao exame da indispensável presença do requisito fundamental do periculum in mora, a comprovação da efetiva existência do pressuposto do fumus boni iuris faz-se mister para a conclusão final da primeira fase do exame de viabilidade da medida liminar (em mandado de segurança, habeas corpus, ação popular, ação civil pública, dentre outras, ou como antecipação de tutela na ação cautelar) vindicada ou derivada do Poder Cautelar Genérico.
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PROCESSOS E PROCEDIMENTOS “Conforme estabelece o nosso sistema jurídico, na ação cautelar para a concessão de liminar não basta, tão-somente, a afirmação de sua necessidade formulada pelo requerente, a qual, mais das vezes, constitui uma opinião puramente subjetiva, mas, principalmente, da demonstração do requerente, da existência dos requisitos específicos da tutela cautelar, para que o juiz possa realizar a sua indispensável avaliação e se convencer ou não da necessidade de conceder a liminar requerida” (ac. unân. 1.105/88 da 1a Câm. do TJAL no agr. 5.618, rel. des. Paulo da Rocha Mendes; DJAL, de 1.9.89; Adcoas 1990, no 128.860) (grifos nossos). “Em temas de cautelar, não demonstrada satisfatoriamente a presença do fumus boni iuris e do periculum in mora, escorreito o decisum de primeiro grau que dá pela sua improcedência” (ac. unân. da 1a T. do TJMS, de 1.8.89, na apel. 263/89, rel. des. Milton Malulei).
Segundo o pensamento de Calamandrei (1945), que já tivemos a oportunidade de expor neste trabalho, o objetivo último da providência cautelar, ínsito na medida liminar (seja nas ações de rito especial que a provêem ou na ação, de rito especial sumário, cautelar), é exatamente o de antecipar os efeitos da providência definitiva, com o propósito derradeiro de prevenir o dano que, em última instância, poderá advir com a demora natural da solução final do litígio ou até mesmo em decorrência de má-fé de uma das partes. Dado a própria urgência da medida preventiva, evidentemente não é possível ao julgador o exame pleno do direito material invocado pelo interessado (mesmo porque isto é objetivo do julgamento de mérito na ação principal e não do procedimento liminar), restando, apenas, uma rápida avaliação quanto a uma “provável (não simplesmente possível) existência de um direito” – a ser verificado pelo juízo próprio de plausibilidade –, que, em última análise, será oportunamente tutelado no momento da apreciação do pedido meritório principal, ou seja, quando do julgamento da segurança no mandamus, da sentença no habeas corpus na ação popular e na ação civil pública, entre outras ações que admitem liminar, ou, ainda, no julgamento do processo principal no caso da ação cautelar. É exatamente isto, por efeito, que constitui o denominado fumus boni iuris, ou seja, “o juízo de probabilidade e verossimilhança do direito cautelar a ser acertado” (Castro Villar, 1971, p. 59). Fiel a seu entendimento de que a cautela é medida antecipatória da eficácia do provimento definitivo, ensina Calamandrei (apud Castro Villar, ob. cit., ps. 59-60) que a declaração de certeza de existência do direito é função do processo principal: “para a providência cautelar basta que, segundo um cálculo de probabilidades, possa-se prever que a providência principal declarará o direito em sentido favorável àquele que solicita a medida cautelar”. Mas este não é, contudo, o único entendimento aceito pela moderna doutrina a respeito do tema. Segundo o pensamento de vários autores que seguem os ensinamentos de Carnelutti (1958, p. 356), não se deve ver na tutela cautelar qualquer tipo de acertamento da lide, nem mesmo provisório, mas, sim, “uma verdadeira tutela ao processo”, a fim de assegurar-lhe unicamente eficácia e utilidade práticas ou, em outras palavras, uma tutela específica que busca apenas e tão-somente “evitar, no limite do possível, qualquer alteração no equilíbrio inicial das partes, que possa resultar da duração do processo” (Carnelutti, ob. cit., p. 356). Comungamos, no entanto, do ponto de vista de que a essência da verdade sobre tão complexa questão não esteja, data maxima venia, definitivamente firmada, de 62
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forma irredutível, nas posições extremadas de ambas as doutrinas sobre a matéria em epígrafe. Entendemos possuir a medida liminar, conforme anteriormente nos referimos, uma natureza jurídica tipicamente administrativo-cautelar, com conteúdo de julgamento discricionário, fundado na prudente valoração do magistrado (e não no simples arbítrio) em torno da oportunidade e da conveniência da decretação da medida, e com nítido objetivo de provisão cautelar, por excelência, garantidora, em última análise, da efetividade da sentença – sem almejar, por outro lado, tocar diretamente no seio do conflito, ainda que o faça, de forma limitada e por vias transversas –, em flagrante caráter excepcional, como antecipação parcial e provisória da própria decisão meritória (e, por consequência, não se constitui numa simples “tutela do processo”, desprovida de qualquer essência mais abrangente, como doutrina Carnelutti), mas que, ao mesmo tempo, e, em nenhuma hipótese, pode ser confundida, em sua plenitude, com o mérito do pedido principal (como, em parte, defende Calamandrei), por corresponder exatamente a um conteúdo específico e particular, inerente à própria natureza da medida liminar, de forma ímpar e, portanto, dotada do atributo de exclusividade. “O fumus boni iuris consiste na probabilidade de existência do direito invocado pelo autor da ação cautelar. Direito a ser examinado aprofundadamente em termos de certeza, apenas no processo principal já existente, ou então a ser instaurado. A existência do direito acautelado é, no processo cautelar, aferida em termos de probabilidade e, por isso, seu exame é menos aprofundado, superficial mesmo – sumaria cognitio” (do ac. unân. da 15a Câm. do TJSP, de 7.6.89, na apel. 144.007-2, rel. des. Ruy Camilo; RJTJSP 121/104) (grifos nossos). “A existência do direito acautelado é, no processo cautelar, aferida em termos de probabilidade e por isso seu exame é menos aprofundado, superficial mesmo – sumaria cognitio. Sobre o insucesso da ação principal, diga-se, em tese, que o Código admite, expressamente, a possibilidade de que alguém obtenha uma providência cautelar e, no entanto, venha depois a sucumbir no processo principal. Que mostra isso? Mostra exatamente que a concessão da providência cautelar não está condicionada à demonstração plena da existência do direito alegado pela parte. Pode acontecer que o juiz, diante dos elementos que lhe foram trazidos, suponha provável a existência desse direito, e, no entanto, mais tarde, através de investigação aprofundada que vai fazer sobre a matéria, chegue à convicção de que na realidade o suposto direito não existia. Agora, é evidente que pelo menos tem de haver elementos capazes, prima facie, de tornar razoável, aos olhos do juiz, a suposição da existência do direito – o fumus boni iuris” (ac. da 18a Câm. do TJSP, de 16.3.87, nos embs. 89.820-2, rel. des. Benini Cabral; Adcoas, 1987, no 115.982) (grifos nossos).
É exatamente sob essa ótica que o requisito do fumus boni iuris possui seu destaque, criando o verdadeiro liame subjetivo que associa o mérito do pedido principal (mérito primário) ao mérito da providência cautelar (mérito secundário), cuja absoluta coincidência – em casos flagrantemente excepcionais – pode vir, até mesmo (em situações limítrofes), a dar origem às chamadas medidas cautelares satisfativas13. O fumus boni iuris – correspondendo exatamente a um juízo específico de exame de probabilidade de efetiva existência do direito material reclamado (e não simplesmente, como deseja Campos (1974, p. 132), “simples verificação de que a parte realmente dispõe do direito de ação” (que, em essência, se constitui numa garantia constitucional que nenhuma norma infraconstitucional poderia, a priori,
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PROCESSOS E PROCEDIMENTOS restringir)) –, ao lado do periculum in mora, se constitui, portanto, no próprio e específico conteúdo de fundo (coloquial e convencionalmente chamado de “meritório”) da providência cautelar (e da ação cautelar, em especial14), não podendo ser entendido, em nenhuma hipótese, apenas como simples condição específica da ação instrumental autônoma cautelar ou de seu substrato liminar, salvo quando o juízo valorativo dirige-se única e exclusivamente para os requisitos de concessão, e não para o seu conteúdo.15,16 “Tratando-se de medida cautelar, deverá ser a pretensão objetivamente razoável, dependendo da presença dos pressupostos especiais de periculum in mora e fumus boni iuris, sem o que faltará interesse para agir, impondo-se a extinção do processo por carência de postulação” (ac. unân. da 1a Câm. do 2o TACivSP, de 1.6.88, na apel. 221.433-4, rel. juiz Quaglia Barbosa; JTACivSP 11/382) (grifos nossos). “...além das condições gerais, comuns a todas as ações – legitimidade de parte, possibilidade jurídica do pedido e interesse processual –, as medidas cautelares devem ter duas outras condições especiais, o fumus boni iuris situado no campo da possibilidade jurídica e o periculum in mora situado no campo do interesse processual. (...) considerados o periculum in mora e o fumus boni iuris como condições especiais de admissibilidade da ação cautelar, ou como o próprio mérito desta, o que mais interessa é que não será tutela jurisdicional cautelar prestada, sem que tais requisitos estejam presentes” (do ac. unân. da 14a Câm. do TJSP, de 29.12.86, na apel. 112.879-2, rel. des. Marcus Vinicius; RJTJSP 106/175) (grifos nossos).
Relevância do fundamento do pedido e possibilidade ampla de concessão ex officio da tutela cautelar em forma de liminar O direito positivo vigente explicita, de forma peremptória, o duplo fundamento da providência cautelar e, especificamente, os requisitos básicos da suspensão liminar do ato impugnado na ação mandamental, a saber: a) a relevância do fundamento do pedido ou a relevância dos motivos alegados (expressões sinônimas) e b) a irreparabilidade (ou, no mínimo, a extrema dificuldade de reparabilidade) futura do eventual dano produzido pelo ato impugnado, caso, mais tarde, fosse deferida a ordem (no julgamento da segurança vindicada), que seria, neste caso, totalmente inócua (porque extemporânea), ineficaz e inidônea para restabelecer o status quo ante (“Ao despachar a inicial, o juiz ordenará que se suspenda o ato que deu motivo ao pedido, quando houver fundamento relevante e do ato impugnado puder resultar a ineficácia da medida, caso seja finalmente deferida, sendo facultado exigir do impetrante caução, fiança ou depósito, com o objetivo de assegurar o ressarcimento à pessoa jurídica.” – Lei no 12.016, de 07.08.2009, art. 7o, inciso III). No mesmo sentido, as leis anteriores de 1936 e de 1939 punham em relevo as condições em que seria concedida a liminar: “quando se evidenciar desde logo a relevância do fundamento do pedido, decorrendo do ato impugnado lesão grave irreparável do direito do impetrante, poderá o juiz, a requerimento do mesmo impetrante, mandar preliminarmente sobrestar ou suspender o ato aludido” (Lei no 191, de 16.1.36, arts. 8º, 9º); “quando se evidenciar a relevância do fundamento do pedido e puder do ato impugnado resultar lesão grave ou irreparável do direito do requerente, o juiz mandará, desde logo, suspender o ato” (Lei no 1.608, de 18.9.39, art. 324, § 2º , que instituiu o CPC) (Cretella Jr., 1980, p. 189)17 (grifos nossos). 64
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A Lei no 1.533, de 31 de dezembro de 1951, entretanto, afastou quaisquer dúvidas a respeito, quanto à possibilidade ampla de o magistrado proceder ex officio na prestação da tutela cautelar, em forma de liminar, ao afirmar simplesmente que, “ao despachar a inicial, o juiz ordenará que se suspenda o ato que deu motivo ao pedido, quando for relevante o fundamento e do ato impugnado puder resultar a ineficácia da medida, caso seja deferida” (art. 7o, inciso II). A nova Lei no 12.016, igualmente, em seu art. 7o, inciso III, reforçou a mencionada tese jurídica. É o magistrado, portanto, quem irá, em última análise, valorar o fundamento do pedido – como bem lembra Cretella Jr. (ob. cit., p. 190) – ao apreciar o caso, em concreto, e julgar se o sobrestamento do ato impugnado é indispensável para que o deferimento extemporâneo da medida não se torne inócuo, ou ineficaz. A liminar não tem, portanto, de ser, necessariamente, objeto do pedido. Decorre da própria natureza do ato a ser desfeito. E quem decide isso é unicamente o juiz, sponte sua, dispensando a anterior necessidade inafastável de provocação pelo impetrante no mandamus. O impetrante pode, como leciona Cretella Jr., muitas vezes, nem atinar com a necessidade da liminar. O impetrante dá os fatos, assinala, ao mesmo tempo, a natureza lesiva do ato impugnado. Prova, documentalmente, o alegado. O juiz decidirá, em última análise, se o socorro é urgentíssimo ou apenas urgente18. Não tem razão, portanto, Santos (1973, p. 158), quando diz que “a suspensão liminar do ato depende de requerimento da parte a ser formulado com a inicial, ou em qualquer fase do processo”. Muito pelo contrário, a razão está, certamente, com a doutrina de Nunes (1956, p. 348), quando escreve que “a suspensão liminar está facultada ao juiz para que não se frustre o direito reclamado, quando bem fundado o pedido, considerando ser esta uma apreciação em que o juiz terá que se mover necessariamente com certa liberdade.19 Se for motivo de razoável receio que o mandado a ser ulteriormente concedido já se encontre irreparavelmente comprometido quanto ao direito reclamado – como no caso em que se desse posse ao funcionário nomeado, com preterição do impetrante –, é fato que a eventual irreparabilidade, ainda que relativa (porque menos atingido o impetrante do que o erário público que teria que suportar o ônus do pagamento dos funcionários) já seria razão suficiente para suspensão liminar”. No mesmo sentido, Sidou (1969, p. 347) esclarece que o fundamento é de ordem subjetiva e não processual. Postule ou não o queixoso a suspensão do ato lesivo, o juiz diligenciará nesse sentido, sob pena de, não o fazendo, esbarrar em casos diante dos quais sua sentença não terá razão de ser. “Será um julgamento vazio”. Por efeito conclusivo, a apreciação do fundamento relevante é facultas do magistrado, através de sua competência discricionária própria, que permite a livre apreciação de sua própria existência e, a partir daí, a sinérgica operacionalização de um móvel capaz de – em conjunto com os demais requisitos indispensáveis ao deferimento da medida liminar – fazer cessar, em caráter imediato, o ato que se supõe lesivo, inclusive ex officio e, portanto, independentemente de qualquer provocação das partes interessadas, não deixando de ter em mente, por outro lado, os objetivos específicos da medida liminar, de natureza cautelar, que não se confundem, no seu conjunto, com a questão meritória central. “(...) A cautelar visa à segurança e não ao reconhecimento do direito” (ac. unân. da 7a Câm. do TJRJ, de 21.5.85, na apel. 36.501, rel. des. Graccho Aurélio; RF 291/243).
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PROCESSOS E PROCEDIMENTOS “A medida liminar é provimento cautelar de segurança, quando sejam relevantes os fundamentos da impetração e do ato impugnado puder resultar a ineficácia da ordem judicial, se concedida a final (art. 7o, inciso II). Para a concessão da liminar devem concorrer os dois requisitos legais, ou seja, a relevância dos motivos em que se assenta o pedido na inicial e a possibilidade da ocorrência de lesão irreparável ao direito do impetrante, se vier a ser reconhecido na decisão de mérito. A medida liminar não é concedida como antecipação dos efeitos da sentença final; é procedimento acautelador do possível direito do impetrante, justificado pela iminência de dano irreversível de ordem patrimonial, funcional ou moral, se mantido o ato coator até a apreciação definitiva da causa. Por isso mesmo, não importa em prejulgamento; não afirma direitos; nem nega poderes à administração. Preserva apenas o impetrante de lesão irreparável, sustando provisoriamente os efeitos do ato impugnando” (Meirelles,1988).
Relevância do fundamento do pedido, fumus boni iuris e periculum in mora A doutrina majoritária tem entendido que os requisitos para a suspensão liminar do ato impugnado no mandamus, consoante o art. 7o, inciso III, da Lei no 12.016/09, verbis: “Art. 7o Ao despachar a inicial o juiz ordenará: III – que se suspenda o ato que deu motivo ao pedido, quando houver fundamento relevante e do ato impugnado puder resultar a ineficácia da medida, caso seja finalmente deferida, sendo facultado exigir do impetrante caução, fiança ou depósito, com o objetivo de assegurar o ressarcimento à pessoa jurídica.” (grifos nossos)
Se identificam perfeitamente com os pressupostos genéricos para a concessão da medida liminar, ou seja, o fumus boni iuris e o periculum in mora. Como se depreende claramente da norma transcrita – art. 7o, inciso III, da Lei o n 12.016/09 – a providência liminar visa a “paralisar a prática de ato lesivo até o pronunciamento definitivo do Poder Judiciário” (Temer, 1989, vol. 14/15, p. 76) ou “a incolumidade da sentença” (Sidou, 1980, nº 2, ps. 31-42) assegurando consequentemente “a possibilidade de satisfação a ser declarada em sentença, do direito do impetrante” (Nunes, 1956, p. 349) o que se constituiria visivelmente nos mesmos objetivos das medidas cautelares de modo geral (e, por efeito, seus requisitos seriam os mesmos). “O problema do relacionamento da providência cautelar com o mandado de segurança não é propriamente de compatibilidade. Que esta existe, não resta a menor dúvida, haja vista a natureza essencialmente cautelar nas liminares próprias do mandado. A liminar aí funciona como autêntica cautela inibitória atípica, de enorme importância e extensão, como imperativo mesmo de caráter constitucional da segurança, inserida, como é, no capítulo dos direitos e garantias individuais. Pode-se afirmar, pois, sem exagero, que a medida cautelar encontra no mandado de segurança o reconhecimento mais importante de sua imprescindibilidade, já que, na maioria dos casos, só através dela deixará de frustrar-se o direito subjetivo que a Constituição ampara com a ação de segurança contra os atos ilegais ou abusivos da autoridade pública” (Lima, 1986, vol. 42, p. 7).
Quanto ao fato de ter a medida liminar em mandado de segurança, pelas suas próprias características e finalidades, a mesma feição nítida de igual providência 66
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em ação cautelar – nominada ou inominada, com as vantagens e ônus decorrentes do próprio ato, praticamente, ninguém tem qualquer dúvida. A questão coloca-se exatamente em saber se o requisito da “relevância do fundamento do pedido” corresponde ou não exatamente ao fumus boni iuris – ou, até mesmo, em parte, ao periculum in mora – em qualquer medida liminar, presente indistintamente nos writs constitucionais ou mesmo na ação cautelar, na qualidade de antecipadora de tutela cautelar. Embora estejamos – possivelmente pela primeira vez neste trabalho – em posição francamente minoritária, entendemos pela doutrina segundo a qual a “relevância do fundamento do pedido”20 constitui-se em um terceiro e autônomo requisito para o deferimento da medida liminar, tanto no mandado de segurança (disposição legal expressa) como na ação popular, na ação civil pública e na ação cautelar, perfazendo – em conjunto com o quarto requisito (a não-produção do periculum in mora inverso) – a segunda fase do juízo próprio de admissibilidade da medida liminar.
Periculum in mora inverso Durante a segunda fase do exame do juízo de admissibilidade da medida cautelar, em forma de liminar ou não – ao lado do requisito da “relevância do fundamento do pedido” e, necessariamente, após a comprovação dos requisitos do periculum in mora e do fumus boni iuris (relativos à primeira fase do exame do juízo de admissibilidade da medida) –, resta o imperativo e criterioso exame do requisito consubstanciado no denominado periculum in mora inverso ou, mais especificamente, na sua “não-produção”, consistente, exatamente, no afastamento, por seu turno, da eventual concretização de grave risco de ocorrência de dano irreparável (ou de difícil reparação) contra o réu (impetrado ou requerido), como consequência direta da própria concessão da medida liminar eventualmente deferida ao autor (impetrante ou requerente). “(...) considero, na verdade, que o periculum in mora existente no mandado de segurança não é uma via de mão única. O periculum in mora é uma via de dupla mão de direção. Há que se atentar que, à medida que possa existir o perigo da demora ao direito do administrado, muitas vezes pode concorrer o periculum in mora ao direito de administração” (BENZOS, 1986, ps. 117-118). “Na concessão de liminar, pela ampla discrição com que age, deve o juiz redobrar de cautelas sopesando maduramente a gravidade e a extensão do prejuízo, alegado, que será imposto aos requeridos (...)” (ac. unân., da 1ª Câm. do TJRS, de 26.2.85, no agr. 584.044.135, rel. des. ATHOS GUSMÃO CARNEIRO; RT 598/191).
Embora não se refira nominalmente ao periculum in mora inverso, sem a menor sombra de dúvida, salta aos olhos a competente afirmação assente com a doutrina – do ex-desembargador do TJRS e ministro aposentado do STJ, ATHOS GUSMÃO CARNEIRO, a respeito do tema e que traduz, com absoluta fidelidade, a essência deste quarto e não menos importante requisito, ainda que sem a expressa alusão ao seu nomen iuris. “Vale colacionar no ensejo a norma do art. 401 do CPC de Portugal em que o juiz é aconselhado a, ocorrentes a plausibilidade do bom direito e o perigo na demora, conceder
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PROCESSOS E PROCEDIMENTOS a liminar ‘salvo se o prejuízo resultante da providência exceder o dano que com ela se quer evitar’. Em suma, por vezes a concessão da liminar poderá ser mais danosa ao réu, do que a não-concessão ao autor. Portanto, tudo aconselha o magistrado prudentemente perquirir sobre o fumus boni iuris, sobre o periculum in mora e também sobre a proporcionalidade entre o dano invocado pelo impetrante e o dano que poderá sofrer o impetrado (ou, de modo geral, o réu em ações cautelares)” (CARNEIRO, mar./jun. 1992) (grifos nossos).
No mesmo sentido, relaciona LACERDA (1998, v. III), tratando do Poder Cautelar Geral e afirmando a prudência com que deverá agir o juiz, no que tange à observação do requisito do periculum in mora inverso: “as exigências contrastantes das partes com o interesse da administração da justiça, sempre ínsito nas providências cautelares”, devem ser sempre observadas bilateralmente, eis que se encontra diretamente em jogo “o bom nome e até a seriedade da justiça”. De forma inclusive mais contundente, adverte também ARAGÃO (1990, v. 42) que “há certas liminares que trazem resultados piores que aqueles que visavam evitar”. A não-produção do denominado periculum in mora inverso, necessariamente implícito no próprio bom senso do julgador, portanto, desponta inegavelmente como um pressuposto inafastável para a decisão final pela concessão da medida liminar, – a ser sempre e obrigatoriamente verificado, de forma compulsória –, uma vez que, em nenhuma hipótese, poderia ser entendido como um procedimento lícito a modificação de uma situação de fato perigosa para uma parte – mas tranquila para outra – por uma nova que apenas invertesse a equação original, salvaguardando os interesses de uma das partes em detrimento da outra e ao elevado custo da imposição de gravames (até então inexistentes e por vezes até mesmo insuportáveis21). “Ação cautelar. Liminar. Cassação, pois que o fumus boni iuris e o periculum in mora militam, no caso, em favor da parte contrária. Se o fumus boni iuris e o periculum in mora militam em favor do requerido, dá-se provimento ao agravo para cassar-se a liminar deferida em favor dos requerentes.” (ac. 2ª T./TRF -1ª R., A.I. 91.01.06748-6/MG (u)., rel. juiz HÉRCULES QUASÍMODO, DJ 13.4.92, Seção II, p. 9.112).
Por outro lado, a ausência de um estudo mais apurado sobre a efetiva presença dos principais requisitos autorizadores para o deferimento da medida liminar vindicada (relativo ao que entendemos por bem denominar primeira fase, ou seja, periculum in mora e fumus boni iuris), além de um juízo reflexivo mais abrangente quanto à relevância do fundamento do pedido (relativo à chamada segunda fase ou fase subsequente da avaliação), pode ensejar, por parte do magistrado, uma indesejável análise superficial da questão, conduzindo-o a um eventual e leviano deferimento da medida (que sempre sustenta caráter de absoluta excepcionalidade, ou seja, em caso de dúvida, quanto à efetiva presença dos pressupostos, a não-concessão da medida liminar deve ser a regra) em virtual prejuízo do próprio instituto cautelar, com flagrante resultado de desprestígio à justiça, em termos gerais, e ao Poder Judiciário, em particular, podendo até mesmo vir a constituir-se em instrumento capaz de produzir uma excepcional e teórica situação analógica de periculum in mora inverso contra a, em princípio, intangível acepção maior do Estado-juiz22. 68
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“A concessão, indiscriminadamente transformada em verdadeira benesse, vem retirando a seriedade do denominado remédio heróico, enfraquecendo o writ como remedium iuris excepcional, em desprestígio da própria justiça enquanto instituição. E, não raras vezes, após a concessão da liminar, o mandado não é provido, mas o fato já se tornou irreversível e consumado. A concessão de liminar há, portanto, de ser precedida de criterioso estudo, só se concedendo em caso de iminente e irreparável lesão. A concessão de liminar há, portanto, de ser precedida de criterioso estudo, só se concedendo em caso de iminente e irreparável lesão. A concessão indiscriminada de medidas liminares poderá levar ao referendo de caprichos e procrastinações, às vezes irreversíveis, com desprestígio do próprio Poder Judiciário (...)” (OLIVEIRA, 1988, p. 194) (grifos nossos).
Periculum in mora inverso e grave lesão à ordem pública Não obstante ser considerada tradicional a nomenclatura grave lesão à ordem pública, consagrada pela redação do art. 4º, da Lei nº 4.338/64, verbis: “Quando, a requerimento de pessoa jurídica de direito público interessada e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e economia pública, o presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, poderá suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar e da sentença; dessa decisão caberá agravo, sem efeito suspensivo, no prazo de 10 (dez) dias, contados da publicação do ato” (grifos nossos).
É importante advertir que essa expressão não é absolutamente sinônima do termo periculum in mora inverso (na qualidade de pressuposto fundamental para a concessão da medida liminar), guardando, na verdade, em relação a este, uma íntima relação de espécie e gênero. Por efeito, o requisito da não-produção do denominado periculum in mora inverso abrange, em sua plenitude, o chamado risco de grave lesão à ordem pública (incluindo, neste último, a ordem administrativa em geral23), sem, no entanto, esgotar o instituto, uma vez que, reconhecidamente, pode também existir a hipótese em que o gravame (ou prejuízo efetivo irreparável ou de difícil reparação) derivado do eventual deferimento da medida liminar (sobretudo como antecipação de tutela cautelar na ação própria), venha a atingir apenas um particular e, por consequência, um interesse eminentemente privado. A conclusão, portanto, é no sentido de que o pressuposto genérico da não-produção do periculum in mora inverso (ou reverso) possui uma dimensão muito mais ampla que, necessariamente, transcende ao simples requisito, expresso em lei, da suspensão da medida liminar no mandamus, a exemplo de outras disposições normativas dotadas de nítida especificidade que, exatamente por esta razão, somente a qualificam como espécie do gênero maior. Das divergências perceptivas sobre o periculum in mora inverso Não obstante a mencionada consagração da expressão “periculum in mora inverso”, é importante ressaltar que muitos equívocos e uma certa incompreensão do novel requisito ainda continuam a existir no seio da nossa comunidade acadêmica. Muito provavelmente, a confusão mais comum é exatamente a de não compreender que o periculum in mora inverso é precisamente a concepção reversa do
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PROCESSOS E PROCEDIMENTOS mais importante pressuposto autorizativo para a concessão da tutela cautelar ou antecipatória, em forma de provimento liminar, ou seja, o “periculum in mora”. Neste sentido, alguns articulistas tem apontado, em evidente equívoco, que o requisito negativo consubstanciado no periculum in mora inverso se traduz pela previsão original ínsita no art. 273, § 2º, do CPC/73) (art. 300, § 3º do CPC/15) (“Não se concederá a antecipação da tutela quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado”) (CAMPOS, 2008; CHAVES, 2012; LEME, 2013), ainda que curiosamente, alguns autores aparentam, em suas respectivas dissertações, compreender a natureza intrínseca do periculum in mora inverso na qualidade de verdadeiro contraponto ao requisito básico e fundamental do “periculum in mora”. “(...) situação em que há risco para ambas as partes, devendo o magistrado, nos moldes dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, aferir a potencialidade ou intensidade desses riscos para cada lado (...)” (LEME, 2013, p. 5)
Oportuno ressaltar que o instituto da Tutela Antecipada, de forma diversa da Tutela de Segurança Cautelar, possui, – além do requisito do periculum in mora e do fumus boni iuris (ainda que com uma roupagem diversa24) –, a necessária reversibilidade dos efeitos25 do provimento antecipatório, ou, em outras palavras, o instituto da tutela antecipada além de possuir o impedimento relativo26 da não produção do denominado periculum in mora inverso, também possui, em adição, o impedimento absoluto27 quanto à reversibilidade do provimento antecipatório, não se confundindo, portanto, o primeiro, – simples contraponto do requisito básico do periculum in mora –, com o segundo, requisito expresso e específico vocacionado para as hipóteses de tutela antecipada. Em qualquer hipótese, a verdade é, acima de tudo, que o requisito negativo do periculum in mora inverso é anterior ao próprio advento do instituto da Tutela Antecipada (1994) e alude, genericamente, nas palavras de FERRAZ, ao simples fato de que “a liminar não deve ser concedida se o dano resultante do deferimento for superior ao que se deseja evitar” (FERRAZ, 1996, p. 143). “Havendo dúvidas objetivas sobre a localização efetiva da área ocupada, objeto de reintegração de posse, mais aconselha que se mantenha o status atual, afastando-se a demolição pretendida até que se ultimem as provas na ação de retomada, evitando o estabelecimento de periculum in mora inverso com a medida drástica referida” (TJSC; AI 222992 SC 2011.022299-2; Relator: Gilberto Gomes de Oliveira Julgamento; 2ª Câmara; 30/01/2012) “Restando ausente a demonstração, de plano, da prova inequívoca da verossimilhança da alegação, bem como presente o periculum in mora inverso, tendo em vista o caráter alimentar dos adicionais por serviços extraordinários devidos aos filiados ao Sindicato-réu, deve ser mantida a decisão que indeferiu o pedido de tutela antecipada.” (STJ; AgRg na AR 4076 PE 2008/0209876-0; Relatora: Ministra Maria Thereza de Assis Moura; 23/02/2011; 3ª Seção; DJe 03/03/2011) “(...) ‘O periculum in mora inverso e o princípio da proporcionalidade devem ser considerados, pois ‘há liminares que trazem resultados piores que aqueles que visam evitar’ (Egas Moniz de Aragão)’ (AI n., Des. Newton Trisotto)”. (TJSC; AG 67784 SC 2009.006778-4; Relator: Luiz Cézar Medeiros; 3ª Cam.; 12/02/2010)
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Neste prisma analítico, sintetizou bem a noção conceitual de periculum in mora inverso CARPENA quando preconiza, de forma resumida, que “periculum in mora inverso, nada mais é do que a verificação da possibilidade de deferimento da liminar causar mais dano à parte requerida do que visa evitar a requerente; (...) nenhum magistrado deferirá uma medida initio litis se averiguar que os efeitos de sua concessão poderá causar danos nefastos e deverás mais violentos do que visa evitar.” Em necessário reforço, o já citado CARNEIRO (1992) relembra, com mérita propriedade que “por vezes a concessão de liminar poderá ser mais gravosa ao réu que, do que a não concessão ao autor. Portanto, tudo aconselha ao magistrado perquirir sobre o fumus boni juris e o periculum in mora e também sobre a proporcionalidade entre o dano invocado pelo impetrante e o dano que poderá sofrer o impetrado”. Igualmente, DIAS (2005, p. 55) reconhece, – inclusive citando este autor –, que “há setores na doutrina, contudo, que apontam para a necessidade de não gerar, a concessão, um efeito mais gravoso que o que se pretende evitar com a providência cautelar”. E, continua o mencionado autor, afirmando que “essa posição se impõe, porque, em princípio, o que se busca tutelar é a eficácia da decisão de mérito, e não os interesses materiais das partes.” “O escopo último da tutela cautelar é garantir a higidez prática da decisão judicial meritória, sendo em última instância, mais uma garantia assecuratória da efetividade jurisdicional que, por assim dizer, um modo de deferimento sumário e parcial da pretensão da parte. Embora não haja expressa previsão legal acerca do tema, a doutrina tem colocado em evidência que há a necessidade de garantia do tratamento isonômico das partes também no processo civil” (DIAS, 2005, p. 55)
Em idêntico sentido, SCHAEFER MARTINS (2003, p. 77) pontua que: “O princípio da igualdade integra o princípio do devido processo legal, pois preconiza pela igualdade formal perante o Juiz que torna concreta a norma legal e pela igualdade processual no interior do processo. Este princípio realiza-se com o tratamento paritário dos litigantes no processo.”
Prossegue DIAS (2005), ainda sobre o tema, que “se de fato é assim, não há como se pensar em uma tutela cautelar que acabe por produzir um efeito lesivo mais grave que aquilo que pretende evitar ou que simplesmente transfere de uma parte a outra o ônus conservativo decorrente da acautelamento da situação litigiosa. A situação de produção de efeito de maior gravidade do aquele que se pretende acautelar ou mera transferência constitui-se em inequívoca violação da isonomia das partes, sobretudo quando se leva em consideração que no âmbito cautelar não há espaço para a proteção dos direitos alegados pelas partes. Embora o fundamento constitucional seja evidente, não se deve deixar de considerar que o próprio sistema positivo estabeleceu meios de compensação dos riscos quando a decisão cautelar contiver risco de quebra da isonomia processual. Esses meios são desdobramentos do princípio da isonomia processual e que se convencionou chamar de procedimentos de contracautela.”
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PROCESSOS E PROCEDIMENTOS É, portanto, através do instituto da contracautela que é possível, pelo menos em tese, se estabelecer um mecanismo que se, por um lado, não afasta por completo o periculum in mora inverso na qualidade de requisito impeditivo para a concessão de providências cautelares ou antecipatórias, em forma de medida liminar, ao menos minimiza seus efeitos. “Tais institutos autorizam que em determinadas hipóteses o juiz possa fixar um meio de garantia de não produção do risco, ou pelo menos, criar um meio de minimização do perigo por meio de uma salvaguarda de cunho patrimonial.” (DIAS, ob. cit.) “Antecipando alguma vezes o resultado final do processo, a medida cautelar, ao mesmo tempo em que afasta o periculum in mora, pode trazer o risco de prejuízo para a parte que deve sofrer os efeitos dessa antecipação. [...] Em tais hipóteses, como observa Calamandrei, a caução funciona como cautela da cautela ou contracautela.” (MARQUES, 2000, p. 437)
Neste sentido, o já citado DIAS (2005) afirma também que “do mesmo modo, que está assente na mais moderna doutrina que não existe discricionariedade na oferta da proteção cautelar, quando verificar o juiz que a cautela ofertada induzir a situação mais grave que a originariamente reclamada, estará obrigado a exigir a prestação de caução ou outro meio adequado. Não se trata de um requisito genérico que deve ser avaliado pelo juiz no momento da concessão da tutela cautelar, mas a inversão do risco, gerando situação mais grave que a acautelanda demanda do juiz, com a finalidade de garantir a isonomia processual, a contracautela mais adequada. Admitir-se que possa o juiz determinar com a cautela ofertada situação mais grave ou apena mero deslocamento subjetivo do risco, importaria em reconhecer a insubsistência do princípio da isonomia processual e tanto quanto isso desconfiguraria o caráter conservativo das ações cautelares. O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que as contracautelas típicas previstas no art. 804 do CPC/73 (art. 300, § 1º do CPC/15) são institutos relacionados ao processo cautelar, não se estendendo a ações especiais como, por exemplo, o Mandado de Segurança. Assim, por via de exclusão, fixou que essas medidas são pertinentes no âmbito cautelar sempre que verificados os seus pressupostos. Ainda mais especificamente quanto ao âmbito cautelar, contudo, o Superior Tribunal de Justiça assumiu posição de que estando presente o efeito mais grave decorrente da concessão da proteção cautelar ou importando ela em mero deslocamento do risco é de se exigir a contracautela, não sendo, assim, mera faculdade judicial. Assim, a contracautela é vinculante ao juízo quando evidenciada a situação de inversão do periculum in mora.” (DIAS, ob. cit., p. 55/56) “Tais institutos – as medida cautelares e as contracautelas – representam duas faces da mesma moeda; elas se complementam de tal sorte que a compreensão dos limites e alcance das medidas cautelares imbricase com a percepção das fronteiras e extensão das contracautelas”. (CAVALCANTE apud DIAS, p. 54)
Cautela e Contracautela Muito embora as normas infraconstitucionais relativas às medidas cautelares, em termos gerais, e às medidas liminares, em termos particulares, disciplinem 72
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diversas sanções para os eventuais prejuízos provocados pelo deferimento da providência cautelar – desde que promovida de forma maliciosa ou por erro grosseiro pela parte vindicante –, nem sempre a indenização prevista na lei poderá alcançar a própria irreparabilidade de determinados danos importantes impostos ao requerido/impetrado (ou mesmo a terceiros) pela própria efetivação da medida. “A concessão de liminar, inúmeras vezes, causa danos a terceiros, atingidos pelos efeitos da medida, o que empenha a obrigação de indenizar, se o impetrante agiu com culpa (A parte que, maliciosamente, ou por erro grosseiro, promover medida preventiva responderá também pelos prejuízos que causar) – CPC de 1939, art. 688, parágrafo único” (Cretella Jr., 1980, p. 193).
Nesses casos – ou ainda nas situações em que os eventuais prejuízos não são indenizáveis por ausência dos requisitos para tanto –, nem mesmo a chamada caução em garantia ou contracautela, prevista em vários dispositivos da legislação infraconstitucional, especialmente o art. 804 do CPC/73 (art. 300, § 1º do CPC/15) e exigida ou não ao sabor do prudente arbítrio do juiz, pode ser indicada como efetiva solução ao problema que, por seu turno, somente poderá ser realmente evitado através da rigorosa observância do anteriormente mencionado requisito indispensável da não-produção do periculum in mora inverso. “A contracautela não é conditio sine qua non do deferimento da medida liminar e sim providência destinada a evitar o periculum in mora resultante da concessão imediata da providência cautelar. Do contrário, acabariam neutralizados os efeitos das medidas liminares, ou se dificultaria demasiadamente sua concessão (...)” (Marques, 1976, p. 370) (grifos nossos).
“A concessão da tutela de acautelamento, em forma de provimento liminar, tanto em mandado de segurança e nas demais ações que a admitem, como na qualidade de antecipação da tutela cautelar, é medida de absoluta excepcionalidade e vinculação à presença de todos os pressupostos indispensáveis; o que inclui, – além dos requisitos tradicionais do periculum in mora e do fumus boni iuris –, a rigorosa observância quanto a não-produção do denominado periculum in mora inverso.” É evidente, entretanto, que em certas situações a caução, ou contracautela exigida pelo julgador, perfaz-se em providência suficientemente eficaz para afirmar, em última análise, o difícil e almejado equilíbrio cautelar no processo em discussão, garantindo a plena viabilidade do mesmo, no sentido da efetividade final do decisum meritório objetivado; como também é verdade que, em certos casos, o deferimento da medida liminar a uma das partes não possui o condão de impor qualquer ônus excepcional à outra parte, mantendo o desequilíbrio original que se buscava corrigir com a concessão da medida.
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PROCESSOS E PROCEDIMENTOS Por todas essas razões, é importante entendermos que a própria diversidade das situações não permite uma espécie de “regra geral” que vincule, de forma absoluta, o deferimento da medida liminar à apresentação de uma garantia ou, por outro lado, que a produção de uma contracautela necessariamente obrigue o magistrado à concessão da medida liminar vindicada.28,39,30 “Caução fidejussória ou real é condição que fica a critério do magistrado que concede a liminar, já que o art. 804 do CPC encerra norma meramente facultativa e não imperativa” (ac. unân. 5.564 da 1a Câm. do TJPR, de 10.3.87, no agr. 517/86, rel. des. Oto Luiz Sponholz; Adcoas, 1988, no 116.596) (grifos nossos). “Pelo art. 804 do CPC, a prestação de caução é ato que fica a critério do juiz (...)” (ac. unân. da 1a Câm. do TJSC, de 8.11.88, no agr. 4.724, rel. des. Protásio Leal; Jurisp. Cat. 62/204) (grifos nossos). “(...) O instituto da caução tem por finalidade evitar o risco de abusos nas medidas cautelares, cuja concessão pertence exclusivamente à discrição do juiz. Assim como a concessão de medida cautelar sem audiência da parte contrária é faculdade que a lei concede ao juiz, da mesma forma a exigência de caução, ou dispensa, para a respectiva concessão liminar, fica exclusivamente ao arbítrio do magistrado, sem que se possa ter como ofensiva ao direito do interessado uma ou outra solução escolhida pelo julgador. (...) Desde que conscientizado da existência do bom direito em favor do autor e inexistindo risco de lesão grave e de difícil reparação, pode o juiz dispensar a caução, sem que sua decisão implique ofensa, ao direito da parte contrária” (do voto do juiz Ney Paolinelli, rel. do ac. unân. da 3a Câm. do TAMG, de 25.11.86, no agr. 5.002; RJTAMG 29/73) (grifos nossos). “A providência estabelecida no art. 804 do CPC, como contracautela eventual, representa mera faculdade atribuída ao julgador, a quem se reserva, no exame de cada caso concreto, prudência e discrição na avaliação da sua necessidade. O fato de o Código estabelecer a obrigação de indenizar por parte dos que sucumbirem nas medidas cautelares quando a execução destas possa causar prejuízo aos requeridos – art. 811, do CPC – não implica, necessariamente, o dever de o juiz sempre determinar a prestação de caução pelos respectivos requerentes” (ac. unân. da 4a Câm. do 1o TACivSP, de 28.5.86, no agr. 357/84, rel. juiz José Bedran; JTACivSP 99/161) (grifos nossos).
CONCLUSÕES A concessão da tutela de acautelamento, em forma de provimento liminar, tanto em mandado de segurança e nas demais ações que a admitem, como na qualidade de antecipação da tutela cautelar, é medida de absoluta excepcionalidade e vinculação à presença de todos os pressupostos indispensáveis; o que inclui, – além dos requisitos tradicionais do periculum in mora e do fumus boni iuris –, a rigorosa observância quanto a não-produção do denominado periculum in mora inverso (além do requisito específico para a concessão de antecipações cautelares em forma de liminar prevista no art. 804 do CPC), sendo certo que a mesma jamais pode ser deferida (ainda que mediante caução) quando ausentes quaisquer dos requisitos apontados, que se encontram expressos ou implícitos na atual legislação constitucional e infraconstitucional em vigor, independente da vontade, imposição de ordem moral, senso de justiça ou qualquer outro condicionante subjetivo que possa estar adstrito ao magistrado no momento de seu julgamento. 74
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Outrossim, resta importante consignar que a apreciação dos pressupostos autorizadores do provimento cautelar é facultas do magistrado, através de sua competência discricionária própria, que permite a livre apreciação de sua própria existência e, a partir daí, a operacionalização de um móvel capaz de fazer cessar, em caráter imediato, o ato que se supõe lesivo, inclusive ex officio e, portanto, independentemente de qualquer provocação das partes interessadas, não deixando de ter em mente, por outro lado, os objetivos específicos da medida liminar, de natureza cautelar, que não se confundem, no seu conjunto, com a questão meritória central. Cumpre observar que o requisito genérico da não-produção do periculum in mora inverso (ou reverso), neste sentido, em necessário reforço argumentativo, possui uma dimensão muito mais ampla que necessariamente transcende ao simples requisito, expresso em lei, da suspensão da medida liminar no mandamus, a exemplo de outras disposições normativas dotadas de nítida especificidade que, exatamente por esta razão, somente a qualificam como espécie do gênero maior, o que importa concluir que a própria diversidade das situações não permite uma espécie de “regra geral” que vincule, de forma absoluta, o deferimento da medida liminar à apresentação de uma garantia ou, por outro lado, que a produção de uma contracautela necessariamente obrigue o magistrado à concessão da medida liminar vindicada, uma vez que não necessariamente tal possibilidade afaste, de forma derradeira, o obstáculo deste nóvel requisito negativo à concessão da medida acautelatória, em forma ou não de provimento liminar. NOTAS 1 O conceito técnico de periculum in mora pode ser traduzido pelo fundado receio da existência de um dano jurídico, de difícil ou impossível reparação, durante o curso da ação cautelar e, por extensão, da ação principal (no caso de ações cautelares típicas ou atípicas) ou durante o curso do mandado de segurança, e de outras ações que admitem o provimento liminar, aferido através do juízo próprio de probabilidade, com comprovada plausibilidade de existência de dano, justificado receio de lesão de direito e/ou existência de direito ameaçado – e nunca no genérico juízo de possibilidade (que, pela extrema amplitude, não permite a imposição do princípio da segurança e do controle mínimo dos acontecimentos). 2 Fumus Boni Juris pode ser conceituado como a probabilidade plausível (e não mera e genérica possibilidade) de exercício presente ou futuro do direito de ação com provimento de mérito favorável, considerando que pequenas incertezas e eventuais imprecisões, a respeito do direito material do autor (requerente ou impetrante), não devem assumir a força de impedir-lhe o acesso à tutela cautelar. “A tutela cautelar só é viável se a pretensão deduzida ou a ser deduzida no processo principal caracteriza-se como provável, não bastando que seja razoável e muito menos que seja simplesmente possível” (Aldo Magalhães; JTACivSP 99/267). 3 Caráter administrativo do provimento liminar De um modo geral, considera-se que o provimento liminar de conteúdo cautelar possui um inconteste caráter administrativo. De fato, embora caracterizado como providência determinada pelo órgão judicial – provimento com escopo de prevenção – em muitos casos a medida é concedida independentemente da observância formal do princípio do contraditório. Assim o é tanto no mandado de segurança e nas demais ações que expressamente admitem a liminar, como também, de modo geral, nas medidas cautelares. Diante de certas situações de urgência, e para evitar o perecimento de direitos, a lei autoriza ao juiz a concessão de liminares, sem ouvir a parte contrária. Na concessão dessas medidas inaudita altera pars, ocorre, em grande medida, o que NERY JÚNIOR denomina “limitação imanente à bilateralidade da audiência no
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PROCESSOS E PROCEDIMENTOS processo civil, e que se exterioriza, quando a natureza e finalidade do provimento jurisdicional almejado ensejarem a necessidade de concessão de medida liminar, inaudita altera pars, como é o caso do provimento cautelar, em forma ou não de liminares, em ação possessória, mandado de segurança, ação popular, ação coletiva (art. 81, parágrafo único, CDC) e ação civil pública” (NERY JÚNIOR, 1992, p. 133). 4 Liminar como “mera prevenção do direito” É importante salientar, por oportuno, que alguns autores – aparentemente confundindo o fato da inexistência de efetivo processo cautelar nos provimentos assecuratórios previstos, em forma de liminar, em algumas ações cognitivas (como, por exemplo, o habeas corpus, o mandado de segurança, a ação popular etc.), com a irrefutável natureza jurídica cautelar destes mesmos procedimentos – têm sugerido (confundindo, inclusive, os conceitos de processo e pro cedimento) a sinérgica inexistência de nítido procedimento de feição cautelar (exteriorizado por intermédio de medidas liminares) nos writs constitucionais, insinuando, de maneira visivelmente equivocada, que, nestes casos, os respectivos provimentos liminares, expressamente previstos, se constituem em “meras prevenções do próprio direito”: “A liminar no mandado de segurança, na ação popular, na declaração de inconstitucionalidade de lei, é mera prevenção do próprio direito, em nada se caracterizando com uma medida cautelar. Servem ao processo em que são proferidas, e não têm sequer procedimento cautelar, inseridas que estão no contexto da própria ação” (Castro Villar, 1988, p. 79). 5 É importante registrar que o deferimento da medida liminar é sempre excepcional, até porque está umbilicalmente ligado à sinérgica demonstração quanto à efetiva presença de seus requisitos ensejadores, em decisão fundamentada pelo magistrado. 6 Ônus probatório quanto aos requisitos da medida liminar Deve ser assinalado – evitando qualquer dúvida a respeito – que o ônus da prova quanto à efetiva presença, no caso concreto, dos requisitos autorizadores da providência cautelar (em forma ou não de liminar) é de exclusiva responsabilidade da parte requerente. Cabe à mesma, sob este prisma, portanto, a inequívoca e compulsória comprovação de que se encontram sempre presentes, na hipótese trazida à colação, todos os pressupostos que viabilizam o legítimo deferimento da medida pretendida, ou seja, os requisitos positivos (que devem sempre estar presentes): periculum in mora, fumus boni iuris (e relevância do fundamento jurídico do pedido (para quem entende se constituir o mesmo em pressuposto autônomo)) e, no caso particular de antecipação in limine de medida cautelar, a condição especial consubstanciada no art. 804 do CPC e o requisito negativo (que, ao contrário, deve sempre se encontrar ausente): não-produção do denominado periculum in mora inverso ou, em outras palavras, a grave lesão à ordem pública (incluindo, nesta classificação, a lesão à ordem administrativa etc.). Não comprovado qualquer dos pressupostos permissivos da medida vindicada, deve o julgador proceder ao imediato indeferimento da mesma, considerando, sobretudo, o caráter excepcional que sempre reveste a concessão da segurança cautelar, exteriorizado ou não através da medida liminar. A regra, por efeito conclusivo, deve ser o indeferimento da providência cautelar, notadamente quando houver razoável dúvida quanto à prova (que deve ser relativamente insofismável) de seus requisitos autorizadores. Esta é exatamente a razão segundo a qual é lícito ao juiz fundamentar sumariamente (“pela ausência de efetiva comprovação dos requisitos autorizados”) o pronunciamento judicial indeferitório da medida liminar, pois doutra forma ocorreria efetiva inversão do ônus probatório, ou seja – em lugar de a parte requerente ter de comprovar a presença de todos os requisitos autorizadores da medida liminar –, restaria ao juiz demonstrar, de forma inequívoca, a ausência de pelo menos um dos pressupostos condicionantes do deferimento da providência cautelar requerida. 7 Deve ser consignado, por oportuno, que o constante deferimento de medidas liminares, em sinérgica afronta aos mandamentos legais restritivos do emprego do instituto (pressupostos de admissibilidade da proteção cautelar), tem contribuído, sobremaneira, para o desprestígio do Poder Judiciário, conforme amplo e constante noticiário crítico a respeito do tema, com destaque especial no caso da cassação do deputado Sergio Naya:
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“Compreende-se que os advogados do deputado Sérgio Naya usem toda sorte de artifício – até desaparecer de sessões da Comissão de Justiça – para impedir ou adiar a cassação de seu mandato. São recursos de quem tem evidentes dificuldades para discutir a procedência da acusação. É desalentador, por outro lado, que essa estratégia seja beneficiada pela facilidade com que a Justiça concede liminares. O próprio ministro Ilmar Galvão, do Supremo Tribunal Federal, forneceu a prova de que não existia motivo para a medida que ele mesmo assinara quintafeira: ouvindo argumentos de parlamentares, não demorou mais de 40 minutos para redigir segunda decisão, cancelando a primeira. Fica o ministro com o mérito de polidamente reconhecer o seu lapso. Seria melhor ainda se o episódio tivesse efeito pedagógico. O de convencer juízes e ministros que liminares – capazes de trancar procedimentos judiciais, às vezes por muito tempo, sem que seja discutido o mérito do caso – não podem ser concedidas apenas porque alguém pediu, e com base unicamente nas alegações do interessado.” 8 Periculum in mora Para alguns, como Castro Villar (CASTRO VILLAR, 1988, p. 128), este perigo da mora não é um perigo genérico de dano jurídico, mas, especificamente, o perigo de dano posterior, derivante do retardamento da medida definitiva, ou, como disse Calamandrei (1945, p. 42), é a impossibilidade prática de acelerar a emanação da providência definitiva que faz surgir o interesse da emanação de uma medida provisória. É a mora desta providência definitiva, considerada em si mesma como possível causa de dano ulterior, que se trata de prevenir com uma medida cautelar, que antecipe provisoriamente os efeitos da providência definitiva. 9 Dano jurídico de difícil ou impossível reparação Para a perfeita caracterização do dano jurídico de difícil ou impossível reparação não é suficiente, apenas, a simples prova da eventual existência de um posterior dano jurídico no curso da lide, mas, além deste, a indubitável dificuldade ou mesmo impossibilidade de efetiva reparação se o mesmo vier a ocorrer: “Sem que ocorrentes os pressupostos de aparência de bom direito e de perigo da demora da prestação jurisdicional, não se defere liminarmente medida cautelar, requerida no curso da lide, quando não evidenciada a irreparabilidade do dano” (ac. unân. da 1a T. do TFR, de 10.6.88, no agr. 56.647-PR, rel. min. Dias Trindade; RTFR 165/83) (grifos nossos). “São requisitos específicos da tutela cautelar o risco objetivamente apurável, de não ser a ação principal útil ao interesse demonstrado pela parte – dano potencial – em razão do periculum in mora; e a plausibilidade do direito substancial invocado pelo pretendente à segurança, ou fumus boni iuris. Se o juiz, em face da prova, se convence da existência de fundado receio de que uma parte, antes do julgamento da lide, poderá causar ao direito da outra lesão grave e de difícil reparação, deve conceder a tutela” (Mello, 1980, p. 91). 10 Juízo de probabilidade de dano Lopes da Costa (apud Theodoro Jr., 1976, p. 77) lembra com muita propriedade que “o dano deve ser provável” e “não basta a possibilidade, a eventualidade”. E explica: “possível é tudo, na contingência das cousas criadas, sujeitas à interferência das forças naturais e da vontade dos homens. O possível abrange assim, até mesmo, o que rarissimamente acontece. Dentro dele cabem as mais abstratas e longínquas hipóteses. A probabilidade é o que, de regra, se consegue alcançar na previsão. Já não é um estado de consciência, vago, indeciso, entre afirmar e negar, indiferente. Já caminha na direção da certeza. Já para ela propende, apoiado nas regras da experiência comum ou da experiência técnica”. 11 Juízo de possibilidade de dano Não obstante o elogiável esforço da doutrina e da jurisprudência, nos últimos anos, no sentido de precisar a margem de discricionariedade dos julgados para a avaliação da presença ou não do requisito do periculum in mora, através especialmente do estabelecimento dos conceitos dos diferentes juízos de probabilidade e de possibilidade e, sobretudo, da questão da plausibilidade do fundamento invocado, uma parte extremamente minoritária e praticamente isolada, tanto na doutrina como na jurisprudência, ainda insiste na utilização da expressão genérica “possibilidade” para registrar a presença ou não de dano a que alude o periculum in mora.
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“No âmbito da cautelar cabe, apenas, ao julgador perquirir da possibilidade do dano grave consequente à ineficácia do processo principal periculum in mora e dos indícios de um possível direito fumus boni iuris a ser acautelados. Tais são as condições ou requisitos específicos da tutela cautelar” (ac. unân. da 8a Câm. do TJRJ, de 22.10.85, no agr. 9.476, rel. des. Eugênio Sigaud) (grifos nossos). 12 Deve ser assinalado, por oportuno, que o motivo determinante (objetivo finalístico) do deferimento da medida liminar em mandado de segurança (a exemplo de outras ações que admitem tal provimento administrativo-cautelar) é, sobretudo, o acautelamento quanto à possibilidade (em verdade, probabilidade-plausível ou simplesmente plausibilidade) de o provimento final (meritório) tornar-se ineficaz ou, em outras palavras, uma garantia cautelar quanto à plena inteireza da sentença, afastando, desta feita, o denominado dano processual de impossível reparação (irreparável) ou, no mínimo, de difícil reparação. Por efeito – de forma diversa do que pode parecer à primeira vista –, o dano a que alude a legislação vertente para caracterizar o principal requisito de concessão da ordem liminar, necessariamente, concerne ao chamado dano processual, ou seja dano à efetividade do provimento jurisdicional meritório que, a seu tempo, venha a reconhecer o direito autoral. Não se trata, pois, de dano à coisa ou às pessoas (hipótese excepcional presente apenas nas denominadas cautelares administrativas) e nem mesmo de dano necessariamente irreparável, bastando ser de difícil reparação posto que o dano processual de fácil reparação permitiria a plena e adequada correção no momento imediatamente subsequente à prolação do pronunciamento judicial sentencial. Por esta sorte de considerações, condenável, como bem adverte HUGO DE BRITO MACHADO (in “A Medida liminar e o Solve et Repete”, Correio Brasiliense, 14.5.2001), a decisão do TRF da 5ª R. (AI 25.660-PE, julg. 19.9.2000, Boletim de Jurisp. nº 132/2001, p. 59), que concluiu que “a cobrança de tributos não configura dano irreparável, pois é franqueada ao contribuinte a via da ação de repetição de indébito, o que torna perfeitamente possível o retorno ao status quo ante”, considerando que a exigência da lei in casu cinge-se apenas ao dano processual de difícil reparação e igualmente não à ampla possibilidade – e sim à plena e restrita plausibilidade – de completo retorno ao status quo ante, o que, em muitas situações, resta improvável pela via do ajuizamento (posterior) da ação de repetição de indébito ou de qualquer outro processo cognitivo. Portanto, como bem já decidiram o STF (ADln nº 567-DF, reI. min. ILMAR GALVÃO, julg. em 12.9.91, DJ de 4.10.91, p. 13.779; RTJ Gen 138/60) e o próprio TRF da 5ª R. (MS 48.557PE, julg. em 7.4.95), o dano processual, caracterizador do pressuposto cautelar, é todo aquele cuja reparação não pode ser determinada plenamente (em sua efetiva inteireza) pela própria sentença proferida na sede da ação principal (mandamental ou de outra natureza, conforme o caso), traduzindo a sua necessária e sinérgica efetividade jurisdicional. 13 Fumus boni iuris como elemento de ligação entre o mérito cautelar e o mérito da ação principal É evidente que não estamos aqui a sustentar que o fundamento da pretensão cautelar seja exatamente o mesmo do fundamento material alegado pela parte. Mas, ao mesmo tempo, negar, por completo, qualquer relação entre os diversos fundamentos de ambas as pretensões (a principal e a cautelar) através do fumus boni iuris (liame subjetivo que incontestavelmente as une), como deseja Liebman (1968, p. 36), amparado na doutrina de Carnelutti – ao defender na providência cautelar a existência de uma “mera ação” à base de simples interesse e não de autêntico direito subjetivo (especialmente no caso das ações cautelares) –, é permitir negar a própria existência do requisito em questão (o fumus boni iuris) nas ações cautelares, como chegou a defender Campos (1974, ps. 128-132): “Se o processo cautelar tem por fim tutelar o processo, o que se acerta no seu decorrer é a existência de ameaça ao direito da parte ao processo, isto é, ao direito de ação, que não se confunde de forma alguma com o direito subjetivo material.” 14 Equivalência da sentença na ação cautelar à medida liminar nos writs constitucionais Na verdade, a medida liminar em mandado de segurança, ação popular e ação civil pública é muito mais aproximada, em termos de equivalência à medida cautelar, ínsita na ação cautelar, do que propriamente, como supõem os menos avisados, equivalente à medida liminar prevista no art. 804 do CPC, cuja natureza jurídica é de simples antecipação da própria medida cautelar.
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Não obstante a medida liminar, nas ações de rito especial que a prevêem, não estar associada a um processo autônomo – como a medida cautelar na ação com idêntica designação – a exemplo desta última, a medida liminar nos writs também possui um conteúdo meritório próprio e específico (cujo liame subjetivo que o associa com o mérito do pedido principal é exatamente o fumus boni iuris), considerando que muito embora esteja inserida no mesmo processo e, por efeito, na mesma ação, possui, em qualquer hipótese, em seu procedimento peculiar, um relativo e elevado grau de autonomia. 15 Periculum in mora e fumus boni iuris como condições específicas da ação cautelar Em sentido contrário, no que tange especificamente às ações cautelares, temos, entretanto, as seguintes opiniões: “as cautelares sujeitam-se às condições comuns a toda ação e subordinam-se a requisitos específicos consubstanciados no fumus boni iuris e no periculum in mora, gerando carência de ação a inexistência destas condições, a serem examinados ao prudente arbítrio do juiz” (ac. unân. da 2a Câm. do TAMG, de 21.12.88, na apel. 42.409, rel. juiz Garcia Leão; RJTAMG 34 e 37/340; Adcoas, 1989, no 125.490) (grifos nossos). 16 Fumus boni iuris como condição específica e particular da ação cautelar Digna de menção, entretanto, é a posição de Campos (defendida em parte por Theodoro Júnior) e assente com Castro Villar, para quem, “ao acertar o fumus boni iuris, o juiz acerta apenas a probabilidade e verossimilhança do pedido cautelar e não do pedido de fundo” (Castro Villar, 1971, p. 61). Em suma, o requisito da ação cautelar, tradicionalmente apontado como o fumus boni iuris, deve, na verdade, corresponder não propriamente à probabilidade de existência do direito material – pois qualquer exame a respeito só é próprio da ação principal –, mas sim à verificação efetiva de que, realmente, a parte dispõe do direito de ação, direto ao processo principal a ser tutelado (Campos, 1974, p. 132). É importante mencionar, a propósito, que, para estes autores, o fumus boni iuris é mera condição específica da ação cautelar, não se constituindo em mérito da mesma, o que nos remete a uma curiosa conclusão: a ação cautelar, embora possua pressupostos processuais e condições genéricas e específicas, não possui qualquer conteúdo meritório e, portanto, talvez nem “ação possa ser considerada”. 17 É importante ressaltar que no regime de vigência da Lei n° 191, de 1936, a liminar era concedida tão-somente mediante iniciativa do impetrante (arts. 8º, 9º), considerando-se decisão ultra petita aquela que ordenasse a suspensão do ato, sem aquela solicitação da parte. O Código de Processo Civil de 1939, é interessante notar, prestigiava esse modo de considerar as coisas, ao preceituar que “o juiz não pode pronunciar-se sobre o que não constitua objeto do pedido”. 18 O exemplo do mandado de segurança se aplica, por perfeita analogia, aos demais casos de ação popular, ação civil pública e ação cautelar, esta última, inclusive, por específica disposição legal do CPC, interpretada por extensão quanto ao seu alcance. 19 Concessão ex officio da tutela cautelar em forma ou não de medida liminar pelo juiz Esta posição doutrinária, flagrantemente majoritária, segundo a qual a tutela cautelar, em forma de medida liminar ou não, pode ser concedida ex officio pelo magistrado, independentemente de provocação pelas partes, é importante lembrar, já foi por nós exaustivamente abordada no capítulo específico que trata do Poder Cautelar Geral e Genérico. 20 Fundamento jurídico do pedido e fundamento relevante Beznos (1982, vol. 31) traça um interessante paralelo entre o fundamento relevante, como requisito da liminar, e o “fundamento jurídico do pedido”, como um dos requisitos preconizados pelo art. 282 do CPC. O autor afirma que o fundamento jurídico nada mais é que uma relação de adequação lógica entre os fatos descritos e as consequências pedidas. Quanto à relevância que se pode exigir desse fundamento jurídico, Beznos entende que ela consiste apenas na viabilidade aparente (e daí a confusão com o requisito do fumus boni iuris) de que os fatos descritos possam redundar na consequência pedida no mandamus. Exigir mais do que isto seria impor um prejulgamento do mérito da segurança, para a outorga ou não da liminar. Arrematando: relevante será o fundamento possível dentro do ordenamento jurídico, capaz de levar à conclusão pedida pelo impetrante.
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PROCESSOS E PROCEDIMENTOS Por fim, alerta o ilustre articulista que, presente essa relação de adequação entre os fatos narrados e a providência pedida, deve o juiz atentar muito mais para o periculum in mora sob pena de, em muitas circunstâncias, aniquilar o direito constitucional de defesa pelo writ. 21 Escolha na imposição do gravame à parte pelo julgador O próprio princípio da imparcialidade do julgador jamais poderia licitamente permitir a “escolha” consciente da imposição de qualquer gravame a uma das partes, até porque este não é o verdadeiro objetivo do processo cautelar autônomo ou do procedimento cautelar em forma de liminar que visa exatamente a encerrar a eventual situação de risco, garantindo a certeza da decisão final e,por consequência, a efetividade da sentença. 22 Condições fundamentais para a ampla aceitação do Judiciário pela sociedade LUHMAN (apud FALCÃO, 1992, p.7) aponta três condições fundamentais para o Poder Judiciário ser aceito pela sociedade: a) produzir decisões (sentenças); b) implementar decisões; e c) solucionar ou minorar, de forma real, o conflito aparentemente resolvido na sentença. Embora a primeira condição pareça óbvia porque todos, aparentemente, vão ao Judiciário para buscar uma decisão (na realidade fática), esta condição preliminar não só não é óbvia, como ainda é de difícil operacionalização porquanto (talvez, até na maioria dos casos) os jurisdicionados não buscam no Poder Judiciário propriamente uma decisão e, sim, buscam, na maioria dos casos, evitar esta mesma decisão. O aparente paradoxo, no entanto, é resolvido pela simples observação da prática judiciária do dia-a-dia. Por exemplo, quantas pessoas, de fato, preferem recorrer à Justiça, através de medidas cautelares (com previsão liminar), para, através, de pseudogarantias de fiança bancária, deixar, – ou pelo menos adiar sine die – de recolher importante volume de tributos ao fisco, sob os mais diversos argumentos que mais tarde – ou mesmo concomitantemente em processo equivalentes – são julgados improcedentes ou, na verdade, não possuíam qualquer chance real de êxito? Quanto inquilinos, segundo o próprio exemplo de FALCÃO (ob. cit.), preferem recorrer ao Judiciário a pagar o aumento do aluguel contratado, apostando num eventual acordo com o proprietário premido pela lentidão de uma solução final (ou de uma eventual anistia fiscal, no primeiro caso)? Portanto, nem mesmo podemos afirmar que a primeira condição para o Judiciário ser aceito pela sociedade encontra-se, de forma plena e absoluta, satisfeita. 23 Ordem pública Interpretando construtivamente e com largueza a ordem pública, o então presidente do TFR e posteriormente ministro do STF, JOSÉ NERI DA SILVEIRA, explicitou que “Nesse conceito se compreende a ordem administrativa em geral, ou seja, a normal execução do serviço público, o regular andamento das obras públicas, o devido exercício das funções da administração pelas autoridades constituídas “ (TFR, Suspensão de Segurança nº 4.405 – SP, DJU de 7.12.79, p. 9.221). 24 Muitas vezes têm sido confundidos os diferentes conceitos da verossimilhança da alegação (típico requisito autorizador para a concessão de tutela antecipatória) com o tradicional fumus boni iuris (relativo ao pressuposto para o deferimento de tutela cautelar). Se é certo que ambos os institutos processuais guardam suas indiscutíveis semelhanças, é igualmente correto afirmar que não são idênticos por outro prisma, não obstante algumas vozes discordantes neste particular. “Verossimilhança nada mais é do que o velho e conhecido requisito do fumus boni iuris” (Adriano Perácio). Na verdade – através de uma arriscada simplificação –, seria razoável concluir que a verossimilhança da alegação (na qualidade de inconteste juízo de convencimento a ser procedido sobre o quadro fático apresentado pela parte) nada mais é do que um fumus boni iuris ampliado que melhor se traduz pela “semelhança ou aparência de verdade” do que propriamente pelo restrito conceito de “fumaça do bom direito”. Essencialmente, trata-se de conceito menos abrangente do que o juízo amplo de possibilidade (veja a propósito maiores detalhes em nossa obra Aspectos Fundamentais das Medidas Liminares em Mandado de Segurança, Ação Cautelar, Tutela Antecipada e Tutela Específica. 5.
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ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002), porém mais elástico do que o juízo próprio de probabilidade plausível, inerente ao requisito cautelar do fumus boni iuris. 25 Segundo lições de DINAMARCO (1995, p. 176-177), “as medidas inerentes à tutela antecipada, como já tivemos a oportunidade de consignar têm nítido e deliberado caráter satisfativo, sendo impertinentes quanto a elas as restrições que se fazem à satisfatividade em matéria cautelar. Elas incidem sobre o próprio direito e não consistem em meios colaterais de ampará-los, como se dá com as cautelares. Nem por isso o exercício dos direitos antes do seu seguro reconhecimento em sentença deve ser liberado a ponto de criar situações danosas ao adversário, cuja razão na causa ainda não ficou descartada. É difícil conciliar o caráter satisfativo da antecipação e a norma que a condiciona à reversibilidade dos efeitos do ato concessivo (art. 273, § 2º). (Fala a lei em ‘irreversibilidade do provimento antecipado’, mas não é da irreversibilidade do provimento que se cogita. A superveniência da sentença final, ou eventual reconsideração pelo juiz, ou o julgamento de algum agravo, podem reverter o provimento, mas nem sempre eliminarão do mundo dos fatos e das relações entre as pessoas os efeitos já produzidos). Some-se ainda a necessidade de preservar os efeitos da sentença que virá a final, a qual ficará prejudicada quando não for possível restabelecer a situação primitiva. Uma cautela contra a irreversibilidade reside na aplicação de regras inerentes à execução provisória das sentenças. O § 3º do art. 273 manda aplicá-las para impedir a alienação de bens do réu e para condicionar à prévia caução idônea o levantamento de dinheiro. Dita a reversão à situação anterior em caso de desfazimento do título executivo, aplicando-se também essa regra à execução antecipada. Mas, ao remeter-se somente aos incisos II e III do art. 588 do Código de Processo Civil, aquele § 3º exclui a exigência de caução para dar início à execução provisória. De todo o disposto no § 3º resulta, pois, que a execução provisória das decisões antecipatórias com caráter condenatório far-se-á sem prévia caução mas não chegará à expropriação de bens penhorados e, propiciando embora o levantamento de dinheiro, condiciona-o a caução. (Nesses casos, estando assim satisfatoriamente garantida a reversibilidade, inexiste males a temer. A lei deixou de fora qualquer disposição sobre a responsabilidade civil do exequente, mas resulta das normas gerais de direito privado que, se prejuízos houver, por eles responderá quem se valeu da tutela antecipada e depois se positivou que não tinha direito). Cautelas análogas o juiz adotará em relação a qualquer outro direito cujo gozo autorizar por antecipação. Determinando-se a entrega de bem móvel, exigirá caução idônea que assegure a devolução. Se for entregue bem imóvel o risco é menor. O cumprimento das obrigações de não fazer poderá ser exigido desde logo quando a atividade vetada é contínua e assim for puramente pecuniário o possível prejuízo (exige-se caução, se for o caso). Sendo necessário conciliar o caráter satisfativo da tutela antecipada com o veto a possíveis efeitos irreversíveis da decisão que as concede, cabe ao juiz em cada caso impor as medidas assecuratórias que sejam capazes de resguardar adequadamente a esfera de direitos do réu (cauções, etc.).” 26 Necessário contraponto ao requisito do periculum in mora originário e, portanto, necessariamente adstrito aos efeitos colaterais que o mesmo possa vir a produzir. 27 Impedimento autônomo que alude à necessária reversibilidade da antecipação dos efeitos jurídicos de natureza meritória (direito material). 28 É oportuno registrar o fato de que o condicionamento compulsório da liminar à caução prévia existe no direito alemão (§§ 921 e 936 do ZPO) e no argentino (art. 199 do CPC federal). 29 É importante frisar que embora o Código de 1939 não cogitasse da caução como contracautela, a jurisprudência, durante sua vigência, passou a exigi-la, principalmente como condição de deferimento liminar da medida inominada da sustação do protesto cambial. Como se lê em acórdão da 5ª Câmara do 1º Tribunal de Alçada Cível de São Paulo, datado de 16.5.73, “o abuso dos pedidos de sustação, como meio de ganhar tempo para cobrir fundos bancários, insuficientes, prolongando a mora sem sanção, fez com que os magistrados passassem a exigir o depósito prévio da quantia objetivada, como meio de cortar os excessos” (RT, 456/122). 30 Conforme salienta Lacerda (ob. cit., ps. 345-346), caução constitui meio genérico de garantia. O Código usa a expressão “caução real ou fidejussória”, já empregada pelo Código Civil nos
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PROCESSOS E PROCEDIMENTOS arts. 419 e 729, para abranger as duas espécies destacadas pela doutrina. Como exemplos de caução real, citam-se a hipoteca, o penhor, a anticrese e o depósito de títulos de crédito, equiparável a penhor pelos arts. 789 e segs. do Código Civil, bem como o de outros títulos e valores mercantis. Consideram-se também cauções reais os depósitos judiciais em garantia, feitos em dinheiro ou em outros bens móveis ou imóveis, embora não formalizados em penhor ou hipoteca. As cauções fidejussórias possuem natureza pessoal. Seu exemplo típico é a fiança, mas nelas incluem-se igualmente outros negócios jurídicos de garantia, como a cessão ou promessa de cessão condicional de créditos ou direitos de outra natureza. Qualquer destas modalidades serve à contracautela, apesar de serem mais comuns e usuais a fiança e o depósito em dinheiro. A jurisprudência tem admitido, também, o depósito de mercadorias e o penhor (RT, 500/112 e 114). Na caução do art. 804 deparamos com a interessante figura de cautela enxertada em cautela, por exigência de ofício do juiz (art. 797), sem audiência do requerido, de cujo interesse cuidase. Não se confunde essa medida com as cauções do art. 799 e dos arts. 826 e segs. As primeiras resultam de providência inominada, não prevista em lei material, ao passo que as últimas constituem projeção processual das cauções prescritas ou autorizadas no direito material ou no contrato, como instrumentos de garantia em face de relações principais litigiosas. Por isso, bem andou o congresso de magistrados realizado em agosto de 1974 no Rio de Janeiro, quando concluiu que a caução do art. 804, porque prestada direta e imediatamente por ordem judicial, sem citação do réu, nada tem a ver com o procedimento cautelar de caução tratado pelos arts. 826 a 838. Referências NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. São Paulo: Ed. Rev. dos Trib., 1992. CASTRO VILLAR, Willard de. Ação Cautelar Inominada. 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1988. ______. Medidas Cautelares. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1971. CALAMANDREI, Piero. Introducción al estudio sistemático de las providencias cautelares. Buenos Aires: Editorial Bibliográfica Argentina, 1945. LIEBMAN, Enrico Tullio. Manuale di Diritto Processuale Civile. Milano: Giuffrè, 1968. Carlos Calvosa. Sequestro Giudiziari. In: Novissimo Digesto Italiano, vol. XVII. Torino: UTET, 1960. Sidou, J.M. Othon. Habeas corpus, mandado de segurança, mandado de injunção, habeas data, ação popular: as garantias ativas dos direitos coletivos. 2a ed., Rio de Janeiro: Forense, 1983. ______. Medida Liminar em Mandado de Segurança. Revista da Procuradoria do Estado do Ceará, Fortaleza: nº 2, 1980. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Licitação. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1980 LIEBMAN, Enrico Tulio, apud CASTRO VILLAR, Willard de. Medidas Cautelares. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1971. LOPES DA COSTA, apud THEODORO JR., Humberto. Processo Cautelar. São Paulo: LEUD, 1976. REIS, José Alberto dos. A Figura do Processo Cautelar. Porto Alegre: Ajuris, 1985. THEODORO JR., Humberto. Processo Cautelar. São Paulo: LEUD, 1976. CONIGLIO, Antônio. apud THEODORO JR., Humberto. Processo Cautelar. São Paulo: LEUD, 1976. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil, vol. III. São Paulo; ed. Forense, 2000. SILVA, Ovídio A. Baptista da. As ações cautelares e o novo processo civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1974. CARNELUTTI, Francesco. Direito e Processo. Napoli: Morano, 1958. CAMPOS. Ronaldo Cunha. Estudos de direito processual. Uberaba: Rio Grande Artes Gráficas, 1974 CRETELLA JR., José. Comentários às Leis do Mandado de Segurança. São Paulo: Saraiva, 1980. SANTOS, Ulderico Pires dos. O mandado de segurança na doutrina e jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 1973 NUNES, José de Castro. Do mandado de segurança e de outros meios de defesa contra atos do poder público. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1956
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arquivo pessoal
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REIS FRIEDE é Desembargador Federal Vice-Presidente do TRF2 e ex-membro do Ministério Público, professor adjunto da Escola de Direito da UFRJ, professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), professor de Direito Constitucional da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) e ex-professor adjunto da UNIRIO, possuindo, entre outros títulos, o de mestre em Direito do Estado pela Universidade Gama Filho (UGF) e mestre e doutor em Direito Público (UFRJ).
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Paulo Honório de Castro Júnior
Majoração inválida da CFEM
A
Lei nº 13.540, resultado da conversão da MP 789, foi publicada em 19.12.17, consolidando um novo marco para a incidência da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais - CFEM. O objetivo deste breve texto é apontaros vícios da nova Lei,ao majorar a base de incidência do royalty. A CFEM incide sobre o resultado da atividade de mineração, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal no RE 228.800/DF, “entendido o resultado não como o lucro do explorador, mas como aquilo que resulta da exploração”. O Ministro Relator Sepúlveda Pertence deduziu um paralelo entre a CFEM e a Participação do Superficiário, prevista no art. 176, § 2º, da Constituição Federal, que consiste em o royaltyincidir sobre o resultado da lavra. A lógica é simples: sendo a CFEM a contrapartidada exploração de um bem da União (minério), a sua incidência se dá apenas sobre o que resulta da atividademineral. Os arts. 1º, da Lei 7.990/1989 e 14, inciso I, do Decreto 01/1991 também deixam claro que é o aproveitamento econômicode minério a materialidade a ser mensurada pela base de cálculo da CFEM. Os dois principais momentos para a configuração da hipótese de incidência da exação (antes e depois da Lei 13.540/2017) são (i) a venda de minério e (ii) o seu consumo, que significa a sua transformação em outra espécie de produto. Caso o fato gerador se amolde ao critério saída por venda, a consequência é a utilização da receitabruta como primeiro elemento para calcular a CFEM, seguida de deduções. Por outro lado, sendo o consumo, a base de cálculo até a MP 789, convertida na Lei nº 13.540/2017, erao custo de produção. 84
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A inconstitucionalidade objeto deste artigo reside exatamente neste ponto: a Lei nº 13.540/2017 ampliou a base de cálculo da CFEM na vendae no consumode minério. Na venda, passa-se a adotar a receita bruta, deduzidos apenas os tributos incidentes, sendo vedada a dedução das despesas com frete e seguro. Além disso, toda e qualquer exportação – e não apenas aquelas destinadas a vinculadas e a paraísos fiscais–, sujeita-se agora a teste pelo PECEX ou valor de referência, sendo estas as bases mínimas nas exportações. No consumo, a exação será calculada sobre um pretensopreço corrente ou ovalor de referênciado bem mineral, e não mais o custo de produção. O valor de referência foi regulamentado pelo Decreto nº 9.252, de 28.12.17. A vedação integral à dedução do frete e do seguro faz com que a CFEM incida sobre as grandezas que revelam aproveitamento econômico de minério (custo de produção mais margem de lucro), somadas a despesas com transporte e seguro. Isso não foi autorizado pelo STF, no RE 228.800/DF. Prova do exposto é o seguinte trecho do voto do Ministro Sepúlveda Pertence: “tendo a obrigação [...] a natureza de participação no resultado da exploração, nada mais coerentedo que consistir o seu montante numa fraçãodo faturamento.” Fica claro que a CFEM deve ser mensurada conforme as grandezas que representam aproveitamento econômico de minério. Por isso, não se admite que todo o faturamento seja gravado pela exação, mas tão somente a fração representativa da materialidade do royalty, qual seja, custo de produção mais margem de lucro. É imperativo constitucional que se expurgue da receita bruta as despesas com frete, seguro e tributos incidentes sobre a venda, de forma a se alcançar apenas o aproveitamento econômico de minério: custo mais margem. Não se trata de um favor fiscal, e sim de cumprir o que determina a Constituição Federal. Considerando que a Lei nº13.540/2017 impediu qualquer dedução de frete e seguro, resta caracterizada a inconstitucionalidade. Por outro lado, e sob os mesmos fundamentos, há inconstitucionalidade na cobrança da CFEM, no consumo, sobre base de cálculo diferente do custo de produção. O custo é a única grandeza evidenciada pelo minerador que transforma o minério em outra espécie de produto. É a exata medida do resultado da atividade de mineração, representativa do aproveitamento econômico de minério. Pretender que uma grandeza não realizada (preço corrente ou valor de referência) seja utilizada como base no consumo é cobrar a CFEM sobre aproveitamento econômico inexistente, já que não realizado. Pela mesma lógica, deve-se questionar que, em todas as exportações, a CFEM tenha como base mínima o PECEX ou o valor de referência. Isso apenas seria válido se restrito a operações com vinculadas e paraísos fiscais, enquanto regras antielisivas específicas. Mas pretender implementar tais basesa qualquer exportação, inclusive aquelas já praticadas em livre mercado, implica desnaturar o instituto e majorar ilicitamente a CFEM. Esperamos que o Poder Judiciário apresente uma resposta contundente às inconstitucionalidades ora apresentadas, para que se preserve a estrutura constitucional deste importantíssimo instrumento de participação do Estado na atividade de mineração. Paulo Honório de Castro Júnior é sócio do William Freire Advogados Associados e Presidente do Instituto Mineiro de Direito Tributário – IMDT.
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ANIMAIS
BIOÉTICA E DIREITO Tereza Rodrigues Vieira Camilo Henrique Silva Coordenadores
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Os artigos compilados nesta obra retratam algumas das infindáveis discussões acerca da relação entre os seres humanos e os animais, enfrentando os principais desafios bioéticos e jurídicos oriundos dessa delicada convivência. Instiga o leitor a realizar reflexões acerca de temas polêmicos e que necessitam de uma análise mais acurada para que o Poder Judiciário tenha subsídios no julgamento de litígios que versem sobre os temas abordados.
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