Brasil Distópico (Catálogo, 2017, Ponte Produções, CAIXA Cultural Rio de Janeiro)

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) ALMEIDA, Rodrigo; MOURA, Luís Fernando (Orgs.). Brasil Distópico (Rio de Janeiro: Ponte Produções, 2017). Com textos de Alfredo Suppia, André Antônio Barbosa, Cláudia Mesquita, Cristina Amaral e Ewerton Belico. Catálogo da mostra Brasil Distópico realizada na Caixa Cultural Rio de Janeiro entre os dias 15 e 27 de agosto de 2017. ISBN 978-85-912753-2-8 1. Cinema brasileiro. 2. Distopia. 3. Ficção científica. 4. Memória. 5. Mostra de filmes


A CAIXA é uma empresa pública brasileira que prima pelo respeito à diversidade, e mantém comitês internos atuantes para promover entre os seus empregados campanhas, programas e ações voltados para disseminar ideias, conhecimentos e atitudes de respeito e tolerância à diversidade de gênero, raça, orientação sexual e todas as demais diferenças que caracterizam a sociedade. A CAIXA também é uma das principais patrocinadoras da cultura brasileira, e destina, anualmente, mais de R$ 80 milhões de seu orçamento para patrocínio a projetos nas suas unidades da CAIXA Cultural além de outros espaços, com ênfase para exposições, peças de teatro, espetáculos de dança, shows, cinema, festivais de teatro e dança e artesanato brasileiro. Os projetos patrocinados são selecionados via edital público, uma opção da CAIXA para tornar mais democrática e acessível a participação de produtores e artistas de todo o país. A mostra de cinema Brasil Distópico dedica-se a apresentar e discutir imagens e figuras de distopia no cinema brasileiro. De maneira inédita, a mostra recupera um conjunto de filmes nacionais de diversas épocas e tradições, aproximando-os de uma frutífera safra contemporânea que, na última década, vem se servindo de formas da ficção científica. Ao patrocinar mais esta mostra para o público carioca, a CAIXA reafirma sua política cultural de estimular a discussão e a disseminação de ideias, promover a pluralidade de pensamento, mantendo viva sua vocação de democratizar o acesso à produção artística contemporânea. CAIXA ECONÔMICA FEDERAL


Sumário Apresentação 8 17

O fim do mudo como conhecemos  Rodrigo Almeida Em torno do Brasil e seus duplos, um ensaio  Luís Fernando Moura Textos

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Nas veredas do tempo e a contrapelo da história: por um cinema brasileiro de ficção científica  Alfredo Suppia

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A véspera do fim do mundo: fragmentos distópicos, patologias do poder  Ewerton Belico

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Sumário


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Distopia queer  André Antônio

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O avesso do futuro: memória, distopia e condição precária em Branco sai, preto fica  Cláudia Mesquita

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A propósito de Serras da desordem  Cristina Amaral

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Longas-metragens

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Curtas-metragens

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Atividades

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Curadores, autores e convidados

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Créditos

Brasil Distópico


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Arquivo pessoal


Apresentação

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O fim do mundo como conhecemos Rodrigo Almeida

I

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Não me arriscaria ao infeliz trabalho de traduzir os significados de cada um deles, mas posso dizer que a mostra Brasil Distópico cultivou sua gênese nos sonhos apocalípticos que me acompanharam durante dois anos, noite após noite, entre 2014 e 2016. Decerto, dois anos são muitas horas de sono, são muitas naves alienígenas chegando, muitas guerras estourando, muitos monstros humanos e inumanos, epidemias, contaminações, mutações, regimes totalitários, surtos coletivos, entradas em realidades alternativas, uma tormenta de meteoros, desastres naturais de todos os tipos. Aprendi que diante do fim do mundo, para angariar sua sobrevivência, o indivíduo é capaz de tudo. Menos como causa ou consequência, os sonhos me pareciam sintomas de uma instabilidade epocal, de uma crise que nasceu primeiro como narrativa midiática para logo ser instituída como uma experiência cotidiana. Uma crise que por vezes me parecia cognitiva num mundo em que a ficção e a imagem passaram a direcionar as formas de olhar, consumir e absorver a realidade; em que o caos e a exceção são incorporados com naturalidade em meio aos impactos de um progresso insistentemente segregador e de uma urbanização cada vez mais desumanizada. A conjuntura macro estava afetando o que havia de mais íntimo na minha imaginação, os sonhos, lançando-me violentamente numa deriva existencial, salvaguardada por certo hedonismo criativo

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diante de discursos disjuntivos de resistência e da falta de perspectiva no horizonte político. Pensei no que sonharam os alemães durante a ascensão do Nazismo. Pensei se os africanos, arrancados de suas moradas, conseguiam sonhar dentro de um navio negreiro. Pensei nos sonhos enclausurados diariamente dentro de uma prisão. A sensação era de observar ao longe, não necessariamente implicado, uma paisagem distópica em iminente formação, baseada na disseminação da injustiça social e na partilha generalizada do medo – do medo da violência, do estado policial, do extremismo religioso, do diferente, do “outro” – a favor de uma sociedade determinada pelo controle, pela repressão, pela corrupção e pelos excessos midiáticos. O futuro se mostrava, depois das jornadas de junho de 2013, como uma contínua desestruturação do regime democrático no país. Uma montanha encantada, fixa e imponente começara pouco a pouco a desmoronar até não sobrar mais nada. O mais estranho, no entanto, é que apesar do bruxismo, não posso exatamente dizer que os sonhos me perturbavam. Seguramente não eram pesadelos. Havia um clima de aventura, diversão e alguns dos passeios noturnos chegavam a ser, entre a formação de gangues queer e lutas pessoais contra Godzillas, tão cômicos quanto a Regina Casé no filme Areias escaldantes (1985), de Francisco de Paula, cuja impagável personagem nos ensina como para alguns ainda é possível sentir prazer e festejar o fim do mundo. Afinal, estamos falando do fim do mundo de quem e/ou para quem? O caso é que via repetidamente o mundo acabar todas as noites, pestes se espalharem entre políticos, zumbis invadirem a minha casa, mas enquanto personagem de tais narrativas oníricas, eu sempre sobrevivia. É como se tivesse aprendido todas as técnicas através de um punhado de referências colhidas no cinema, na televisão, na literatura, nos quadrinhos e até nos videogames, influências cuja mise-en-scène estava impregnada nos detalhes e na atmosfera dos sonhos. Aparentemente carregava comigo, através de pequenos contos que havia devorado na adolescência e das imagens da ficção científica, as armas para lidar com o fim do mundo. Brasil Distópico

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E, para ser sincero, eu nasci para ver o fim do mundo. Desde pequeno, admirado com o que considerava os grandes momentos da história e desencantado com a inércia de meu próprio tempo, sinto que estou aqui para testemunhá-lo. Mas a distopia não é o fim do mundo, não o fim de qualquer mundo, mas o fim de um mundo como conhecemos, como nos acostumamos a conceber, atravessado pela interpenetração das formas de representação nas formas de vida, pela desorientação das memórias coletivas, por novas patologias da solidão e pela reconfiguração estética de nosso mundo sensível. Nos últimos anos, de fato, para além das paisagens distópicas que se espalham e se dilatam, estamos lidando com uma sensibilidade distópica entre os indivíduos, algo entre a melancolia, a paralisia, o temor e a descrença. Como a sensação provocada pela imagem do jovem negro de quinze anos em cima de um ônibus no centro do Recife, chorando, com uma garrafinha de cola nas mãos, ameaçando se matar e com a arma de um policial apontada para sua cabeça; como o caso da criança atingida por uma bala perdida no útero de sua mãe em Duque de Caxias, que não resistiu aos ferimentos e perdeu sua vida apenas um mês depois de nascer.

II Enquanto parte integrante de uma geração em trânsito na completa mudança de paradigma do analógico para o digital, encurralada entre disputas narrativas pelo imaginário coletivo, filha de uma sociedade de consumo inserida num tempo acelerado “em que o próprio tempo se torna objeto de consumo”1, meu fascínio pela fantasia e em especial pela ficção científica, assim como outras crianças e jovens, nasceu porque ambos os gêneros funcionavam como um refúgio para certo tédio desenvolvido pelo mundo material que eu habitava. Os filmes, séries, livros, revistas,   HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. p. 160.

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jogos e novelas eram a maneira que eu encontrava de entrar em jornadas inesperadas, rompendo com os limites impostos pelas leis da ciência que demarcavam a realidade, desfazendo medidas e parâmetros, inventando artefatos tecnológicos, levando-me a pontos inimagináveis do universo, de mundos paralelos, com elementos mitológicos mesclados a visões futuristas, transformando o meu cotidiano num espaço imantado de beleza e de impossível. Digamos que é assim, por meio de sucessivas escapadas imaginárias, pelo prazer de não ser apenas um e nunca permanecer o mesmo, que nasce um bom nerd. Nesse sentido, graças ao fato dos sucessivos sonhos apocalípticos se passarem no território brasileiro – um terremoto no sertão, um tsunami no Recife, a instalação de uma teocracia no Rio de Janeiro – não demorei muito para me dar conta de que, apesar do interesse de anos pela ficção científica, todas as minhas referências estéticas provinham de obras internacionais, a maioria esmagadora do hemisfério norte. THX 1138, Blade Runner, Arquivo X, Star Wars, Guerra dos mundos, Aelita, O dia em que a Terra parou, Akira, Ghost in the shell, Fahrenheit 451, 2001 – Uma odisseia no espaço, Solaris, Alien, O exterminador do futuro, Wall-E, X-Men — Days of future past, De volta para o futuro, Neuromancer, Tropas estelares, Chrono Trigger, O eternauta... me via capaz de reunir vários títulos de diferentes linguagens num minuto sem qualquer menção nacional. Desconfiado com minha própria ignorância, sondei alguns amigos e notei que o desconhecimento era generalizado, mesmo entre pesquisadores acadêmicos, ao ponto de alguns defenderem sarcasticamente a inexistência de uma ficção científica no Brasil, menos ainda de uma ficção científica brasileira. A prova final ocorreu na recusa de autores que investigam o tema para colaborarem com textos para o catálogo, alegando não terem intimidade ou repertório para se deterem em análises dos filmes do gênero produzidos no país. Foi nesse contexto que dei início a pesquisa que desembocaria na proposta da mostra Brasil Distópico, em que assino a curadoria Brasil Distópico

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dos filmes ao lado de Luís Fernando Moura. De certa maneira, partimos do gosto amargo e da desilusão política que estamos experimentando coletivamente no país para resgatar filmes nacionais que imaginaram futuros sombrios em diferentes épocas e contextos, com o desejo de aproximá-los de nossa própria realidade sensível, assim como de propostas cinematográficas cujo presente se revela como um horizonte desolador e permeado por opressões. Dentro da ficção científica nacional, fomos um pouco mais a fundo e tentamos nos focar especificamente no subgênero da distopia, isto é, do exato contrário da utopia, dos prognósticos de uma civilização que teria dado errado, constrangida por meios sofisticados de vigilância e controle. Narrativas que tanto alinham suas proposições aos ecos pessimistas de livros como Nós, de Yevgeny Zamyatin, 1984, de George Orwell e Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, como revelam e problematizam os desencantos de sua própria época. A mostra antes de tudo partia do desejo primeiro de atuar numa lacuna. É notável que o interesse pela ficção científica, em particular pela distopia, vem crescendo associado ao sucesso de séries como Westworld e Black mirror, e também pela constatação de que, como disse numa palestra o pai do movimento cyberpunk, William Gibson, “o futuro já chegou, só não está uniformemente distribuído”. São crimes transmitidos ao vivo, pesquisas avançadas com inteligência artificial, engenharia genética, implantação de chips, monitoramento 24 horas, dispositivos eletrônicos facilitando a conversão de desejo em consumo, softwares capazes de gravar e imitar perfeitamente a voz humana, algoritmos adivinhando ou determinando nossos desejos, crise migratória, ameaça nuclear, javalis radioativos em Fukushima, sondas investigando a atmosfera de planetas distantes, ataques hackers coordenados em grandes proporções, seres humanos com membros biônicos, animais clonados, fazendas de likes, mercado de notícias falsas, soldados transmitindo missões por câmeras instaladas em seus capacetes. A nossa desconfiança reside no dilema de que O fim do mundo como conhecemos


os avanços tecnológicos trouxeram inegáveis ganhos, mas não repararam históricas injustiças, se não as agravaram. A distopia, portanto, revela pessimismos de um incontornável futuro já presente, que não só chegou como se assentou e não tem a face gloriosa que prometia e que esperávamos.

III Já no final da adolescência, percebi que mesmo se as narrativas se passassem daqui a dois ou duzentos anos, mesmo adentrando uma galáxia muito, muito distante, a distopia era o caminho da ficção científica que melhor manifestava alegorias e parábolas do presente, apontando, por vezes, os riscos extremados de nossa dependência tecnológica, da defesa irrestrita de uma racionalidade objetiva e da própria alienação coletiva provocada pelos meios de comunicação de massa. No caso do Brasil, os filmes são marcados por projetos futuristas que abdicam ou simplesmente não podem contar com uma tecnologia de ponta para reconstruir os espaços urbanos numa pegada high-tech, apostando justamente no contrário, na pouca diferença entre a visibilidade distante e os dias de hoje, ou mesmo partindo da ideia de ruínas para estabelecer esse futuro que encontra ressonâncias num passado destruído ou abandonado. É o caso, entre outros, do inédito X-Manas (2017), de Clarissa Ribeiro, A seita (2015), de André Antônio; Branco sai, preto fica (2014), de Adirley Queirós, Recife frio (2009), de Kleber Mendonça Filho; O quinto poder (1962), de Alberto Pieralisi, Brasil ano 2000 (1969), de Walter Lima Jr. e Quem é Beta? (1972), de Nelson Pereira dos Santos. Todos constroem a sua narrativa a partir de imagens não forjadas, mas apenas organizadas dentro de uma coerência indicadora de um presente. Do real se extrai a ficção e os filmes cimentam os seus mundos, acentuando sempre em justa medida a tonalidade crítica, aqui aplicada ao contraste social, ao artifício e ao queer, ao preconceito

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racial, sexual e de gênero, ao desequilíbrio urbano das grandes cidades, à paranoia instaurada durante a Guerra Fria, aos desejos fascistas, ao conflito político que se estabelece dentro de um núcleo familiar. As sociedades distópicas tendem a incorporar com efeitos extremos as tensões de formas atuais de governo, da luta por igualdade transformada no desejo por padronização, de empresas serem responsáveis pelos rumos da organização social, dos políticos estarem despudoradamente a serviço de interesses privados; processos que carregam consequências para além de si mesmos, alimentando forças de exclusão que impulsionam o colapso de espaços comuns. O que nos espera no futuro é indecidível e indecifrável, mas não cessamos de imaginar, de fabular, de projetar para além de nosso próprio tempo um olhar da ficção: o futuro passa a ser visto como um território mental e material, baseado em artefatos, imagens e crenças. Só assim constatamos que “usamos uma espécie de processo contraditório para imaginar as diferentes figuras das diferentes épocas: precisamos da liberdade de nossa faculdade de simular, de viver outras vidas além da nossa”2. Um ótimo caminho para descobrir o significado da palavra “empatia”. Tanto o passado como o futuro são narrativas que estão em disputa através do campo da representação artística, afinal “nós precisamos de imagens do amanhã, porque só tendo imagens claras e vitais das muitas alternativas, boas e ruins, de onde se pode ir, teremos qualquer controle sobre a maneira como chegaremos lá”3. Portanto, a ficção científica é um exercício antes de tudo de imaginação, muitas vezes gerando prognósticos que se confirmam anos ou séculos depois, na mesma medida que se mostram completamente equivocados.   VALERY, Paul. “Discurso sobre a História”. In: Variedades. São Paulo: Iluminuras, 2007. pp. 113-4.

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DELANY, Samuel. Selected letters. Nova York: Small Press Distribution, 2000. p. 65. Tradução do autor.

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Como ressaltou J. K. Rowling num discurso ironicamente direcionado aos formandos de uma turma de graduação de Harvard, temos que considerar a importância do fracasso em nossas vidas e imaginar fracassados futuros, menos como um gesto pessimista, e mais como uma maneira de nos vermos implicados num fracasso coletivo já em curso. Por isso, decidimos incluir na programação filmes que não podem ser classificados exatamente como ficções científicas distópicas, mas que definitivamente trazem a distopia para o presente, como Serras da desordem, de Andrea Tonacci. Se o fim do mundo na imaginação coletiva, desde as profecias disseminadas em meados do século XV, é o tempo a ser sempre adiado e nunca vivido, o tempo que se teme, mas jamais se chega, não podemos esquecer que, para minorias das mais diversas, para índios, negros, mulheres, LGBTIQs e imigrantes, o fim do mundo é uma experiência perene de vida. Longe dos sonhos, no mundo real, tais grupos são os verdadeiros sobreviventes. Esperamos com a mostra Brasil Distópico e com o efetivo resgate de uma cinematografia esquecida ou subterrânea que mais e mais pessoas atentem para isso.

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Arquivo pessoal

Em torno do Brasil e seus duplos, um ensaio


Em torno do Brasil e seus duplos, um ensaio Luís Fernando Moura

O percurso que trilhamos na mostra Brasil Distópico tem várias passagens e veredas, mas lança em seu percurso conceitual algumas ideias centrais à maneira como imaginamos que filmes brasileiros, sob a chave da figuração distópica, poderiam ser vistos hoje. Em primeiro lugar, estamos conscientes de que programar estes filmes em conjunto não poderia ser uma iniciativa imune a certa indisciplina com os predicados historiográficos que organizam a produção brasileira. Estamos, afinal, manuseando um escopo de obras tradicionalmente associadas a contextos históricos, temáticos e de modos de produção por vezes radicalmente díspares, senão opacas a um gesto comparativo. Exibições, por exemplo, de uma história de amor burguês como é Amor e desamor (1966), de Gerson Tavares, ou de uma ficção incrustada in loco no tempo presente, como Serras da desordem (2006), de Andrea Tonacci, são alguns dos casos em que isso vai saltar aos olhos com mais gravidade – mas há outros: vejamos, por exemplo, os flashes piscando em show de Roberto Carlos, festa de classe média ipsis litteris no curta-metragem de Guto Parente, Flash happy society (2009) – e, de cena, nada mais. Em vez das bases para uma historiografia qualquer de estilos ou tendências que conformariam um gênero, propomos um desenho de curadoria que, como tal, se situa ele mesmo no campo do ensaio. Longe de pretender esgotar uma filmografia qualquer, sua feição final é primeiramente resultado condicional de uma reunião de filmes possível: foi necessário encontrar cópias de exibição para Brasil Distópico

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títulos que, muitas vezes, estão acessíveis apenas em versões derivadas dos lançamentos home video ou televisivos, isto quando não são mantidos em mídia danificada, à espera de restauração, por vezes exclusivamente em negativos – seus rolos para projeção já ruíram – ou nem isso: estão virtualmente perdidos. Aos poucos, o garimpo de filmes às vezes tão difíceis de exibir adequadamente – mesmo encontrar imagens fotográficas das obras para este catálogo demandou persistência e engajamento de parceiros – nos fez perceber que esta é também uma mostra sobre a complicada preservação de nossos arquivos e, por isso mesmo, de especial calafrio na descoberta de nossa rica história de filmes. É, sob certo ponto de vista, uma mostra dedicada à natureza, tanto conceitual quanto material, dos documentos, e agradecemos às instituições de acervo aqui envolvidas. 18

Segundo, à margem do cânone (mas não sem acessá-lo e se relacionar com ele), este ensaio busca nos caminhos do cinema brasileiro algumas rotas derivadas, mas pouco sistematizadas, de ingresso sensível em nossa cinematografia, aproximando obras arquivadas incontestes ao exemplo de Brasil ano 2000 (1969), de Walter Lima Jr., ou O jardim das espumas (1970), de Luiz Rosemberg Filho, de produções recentes de forte impacto nos circuitos da crítica, mas também de outras de forte traço contra-hegemônico, pouco assimilado sequer por parte de nossos festivais mais inventivos – como X-Manas (2017), de Clarissa Ribeiro, ou Ayiè 3016 (2016), do coletivo Translesbixa. De alguma forma, nestes atravessamentos entre passado e presente, entre referência e contrarreferência, fomenta-se a pedagogia de uma “contrainformação cinefílica”1, mediante associações às quais afinal confiamos uma chance de redimensionar o espectro de alcance dos filmes como experiência e discurso. Ao final, esta programação de   BRENEZ, Nicole. For an insubordinate (or rebellious) history of cinema. In: Framework: The Journal of Cinema and Media, Detroit, v.5, n.1-2, 2009, p. 197. Tradução do autor.

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16 longas-metragens e 21 curtas-metragens é não mais do que um relance – detido e cuidadoso, mas parcial – que convida o público a deixar-se permear por uma genealogia fluida e porosa.

Pontos de partida Um mergulho mais detido à circunscrição de uma gênese para a ficção científica no cinema brasileiro talvez devesse, por exemplo, elencar as ficções de Roberto Farias com Roberto Carlos, quem sabe exemplares ligados ao nosso cinema popular de grandes estúdios, como Os cosmonautas (1962), de Victor Lima, ou uma série de Os Trapalhões futuristas, além de peçaschave de grandes autores que enfrentaram, frontalmente, o sci-fi como gênero, vide Amor voraz (1984), de Walter Hugo Khouri. Neste sentido, o texto do pesquisador Alfredo Suppia, dedicado a prolífica pesquisa sobre o tema, fará preciosa contribuição às conversas deste catálogo. A nós é certo, a figuração da ficção científica não vai deixar de ser um empreendimento fundante em grande parcela do conjunto de filmes reunidos, mas se a noção da distopia se ressalta como figura central a este percurso é – ao passo que emerge como incontornável sensibilidade histórica – por endereçar ponto de desvio e especial enigma na pesquisa estética de certa cinefília brasileira, para além de gêneros ou modos industriais de fazer. Lembremos, não passou despercebido nos debates dos últimos anos que diversos diretores então creditados por virem alimentando a espessura propositiva das formas do documentário – aqui, por exemplo, Adirley Queirós, Marcelo Pedroso, Gabriel Mascaro e Andrea Tonacci – tenham vivido pontos de inflexão criativa para um trabalho mais enfático com a ficção. E, dados ao menos os trabalhos destes quatro reunidos na programação (respectivamente, Branco sai, preto fica, 2014, Brasil S/A, 2014, As aventuras de Paulo Bruscky, 2010, e Serras da desordem, 2006), é notável que a ficção surge como alternativa para codificar um Brasil Distópico

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estado de coisas diante do qual o documentário como arsenal de procedimentos parecia encontrar fecundos impedimentos. Se afinal o verbete comum da ficção científica não lança todas as perguntas certas, pode-se dizer que muitas vezes estaremos tratando de filmes feitos num vislumbre de desencanto histórico que sucumbe ao artifício como caminho espontâneo, se não compulsório, e eventualmente desembocará num extravasamento da história vivida como ambiente dos mundos figurados.

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Não é à toa então que um ponto de partida possível para este percurso curatorial está no cinema dos últimos anos, particularmente em filmes que geraram fortuna crítica em festivais, de onde colhemos uma interrogação para buscar rastros no passado. Distopias no cinema brasileiro? Se formos procurar a origem da questão, poderemos pensar no filme de Adirley Queirós como peça central, uma vez que se atravessa por políticas de cinema das mais pungentes aos debates da cinefilia – e não gratuitamente é um título hoje dos mais estimados pela academia brasileira. Se por um lado Branco sai, preto fica reconstitui certa tradição realista de cinema militante, alinhado a esquerdas clássicas – um curta anterior seu como Dias de greve (2009) ecoa inevitavelmente o ABC da greve (1990) de Leon Hirszman –, ao mesmo tempo imbrica, com densidade particular, uma política da partilha (processos de realização divididos com sujeitos à margem das narrativas hegemônicas) e uma resolução pelo artifício como procedimento (imaginação futurista, distópica) – e texto de Cláudia Mesquita, que publicamos aqui, avançará na elucidação destes ricos atravessamentos. O grau de alcance de Branco sai, preto fica num pensamento sobre o estado das formas do cinema brasileiro parece ter o poder de relativa infiltração genealógica, desdobrando-se em versões outras como negativo a se revelar em filmes contemporâneos mas também em filmes do passado (sem, no entanto, encontrar um genitor direto).

Em torno do Brasil e seus duplos, um ensaio


Duplos da capital, duplos de país Talvez seja já a imaginação de Brasília como um destino nacional – aqui, testemunhado como fracasso democrático marcado pela tragédia do território – um forte motor para o impacto da experiência dessas imagens, seja porque quem sabe não estivéssemos acostumados a ver Brasília virada de ponta-cabeça, mirada de Ceilândia, ou porque a própria capital, como paisagem arquitetônica, é o monumento de uma experiência de futuro já em curso – futuro que, no filme, para nosso espanto já deixou de ser (sendo que o que Branco sai, preto fica fará, então, é algo como imaginar um futuro do presente para um futuro do passado). Próximo a ele, é como uma contra-pista que uma obra como Amor e desamor resplandece na programação, talvez endereçando uma primeira passagem da imaginação brasileira em elaboração no filme de Adirley para um desdobramento dela num duplo de si mesma: similar a ela e a francos caracteres de seu oposto. Uma vez mais espantados, testemunhamos afinal que o filme de Gerson Tavares amargurava, já em 1966, um desencanto agudo diante do sonho brasiliense. Como num contrário absoluto do filme ancorado em Ceilândia, neste outro a mitologia brasiliense é revolvida do seu ponto mais privilegiado, através do telescópio do homem branco burguês rico, que pode afinal regular livremente as distâncias de sua passagem pelo território. Do auge de seu frescor histórico, a modernidade de Brasília vai no entanto, já aqui, traduzir-se em statament de concreto para a falência do delírio. Naquela paisagem, brave new world, o sujeito já era compelido a encontrar a dobra fantasmática da ruína, como um dândi cujo prazer está em gozar o mundo esvaziado de sentido histórico. De um lado, teríamos nas imagens recentes uma Brasília depois da história, encontrando em seu testamento um agora inevitável gatilho para o desmonte. Do outro, o princípio da imagem, e a tiracolo a premonição sem dado e sem crença, desdobrada em usufruto do decadentismo.

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Talvez como encarnação de um projeto brasileiro, pós-1964 ou pós2013, tanto a Brasília de Adirley quanto a Brasília de Tavares carregarão o estigma de paraísos falseados por força maior, um oásis ao avesso. Diante das permeações deste duplo, dois curtas-metragens preciosos esquadriam-na: primeiro, Brasília, capital do século (1959), do próprio Tavares, numa visionária anti-sinfonia que encontra nas imagens de construção da capital, no seu tempo mesmo, os indícios predestinados de um devaneio desenvolvimentista; segundo, Vacancy (1998), do alemão Matthias Müller, delicado ensaio em 16mm que tem em imagens amadoras da inauguração de Brasília poroso material para um abismo poético dedicado à natureza das utopias2. Nestas duas versificações da história, se tratará de imaginar ora um país que não terá êxito em se tornar o que deveria ser, ora um país que já o é como tal a contragosto do que vinham propondo os projetos coletivos. De lançar afinal um par de miradas fascinadas pelo infortúnio que não deixarão de inundar a programação com uma variedade evidente de registros, modos e humores. É como se os filmes da mostra pudessem aqui reconfigurar, com as peças múltiplas do cinema, a fruição de uma engrenagem mística entre Brasil premeditado e Brasil testemunhado, e o Nordeste de Brasil S/A talvez seja, num panorama contemporâneo, caso mais luminoso de dedicação a recriar, diretamente, esta imaginação teleológica de Brasil. A proposta ficcional de Pedroso é afinal uma posta em perspectiva alegórica da transformação histórica – do suposto arcaico em pretenso moderno, de um indesejado e superável passado em alarmado e frutífero futuro. Mas, sendo um claro – e fundamental – produto da crítica aos anos recentes de expansão econômica brasileira, em verdade o filme encontra, na missão espacial do cortador de cana, clara figura irônica para um nunca chegar a ser, vigente e duradouro.   Gostaria de aproveitar para prestar especial agradecimento ao crítico e programador Marcus Mello, que nos levou tanto a descobrir Gerson Tavares quanto Matthias Müller.

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Em torno do Brasil e seus duplos, um ensaio


Recursos afins à ironia não serão incomuns, e ressurgirão como comentário social aqui e acolá, vide o marcante Recife frio (2009), de Kleber Mendonça Filho, pequeno parecer sociológico sobre a emancipação das cidades pelo progresso, ou mesmo Flash happy society e ainda Pacífico (2010), de Jonathas de Andrade, um dos filmes que vão aqui expandir o imaginário fílmico de um território brasileiro para uma geopolítica do continente. A ironia retornará no acesso a outros tempos históricos, impulsionado pela forja de formas e nomes outros para a limitrofia de uma imaginação de país, como no exemplo de Luiz Rosemberg Filho e sua cosmologia pujante para uma situação brasileira cravada entre pobreza e riqueza, controle e barbárie, disciplina e liberdade. O jardim das espumas talvez seja um outro início de tudo, um laboratório ao seu modo originário – em permanente gestação – de contraformas para uma modernidade brasileira, e Brasil S/A uma contraproposta, uma maneira contemporânea de tirar a prova em discurso direto. Neste percurso de trás para frente, pontos de parada reacendem a permeação do duplo, onde se vê um tornar-se Brasil assombrado por ícones da Guerra Fria, na iminência ou no efeito imediato do golpe militar, marcado ora pela reposição de todos os termos do relato histórico – lançar em cena, com zero orçamento e um desbunde espiritual de modos, um samurai agonizante a vagar por uma São Paulo suja sob comando de líder fascista, em Hitler Terceiro Mundo (1968, José Agrippino de Paula) –, ora pela suposição de um Brasil onde, apesar de todos os males, poderíamos nos reencontrar em nossa própria representação, mas às avessas – tornar-se índio nas profundezas de um país devastado pela Terceira Guerra Mundial, em Brasil ano 2000 –, ora pelo assombro da influência estrangeira e das suas maldições perante o curso da nossa soberania – no raro O quinto poder (1962, Alberto Pieralisi), desmontar um esquema de transmissão de mensagens subliminares instalado por potência ocidental, em cristalino sci-fi em terra carioca. A travessia entre o que desvincula um Brasil de Brasil Distópico

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outro será mais ou menos pujante, e texto do crítico Ewerton Belico neste catálogo cerca com vigor os casos profundamente violentos de José Agrippino de Paula e Luiz Rosemberg Filho, que parecem levar o sintoma da duplicação a algumas das últimas consequências já filmadas: no limite, o discurso não mais sustentará a crítica e os efeitos do trauma da distância só poderão assumir as formas “patológicas” de um território doente, tão extemporâneo quanto inerente, para gozar e agonizar.

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Não esqueçamos Quem é Beta? (1972, Nelson Pereira dos Santos), aliás, onde poderemos encontrar outros aportes entre as buscas do Cinema Novo e a imaginação distópica, ou Parada 88, o limite de alerta (1977, José de Anchieta), no qual o recurso à ficção científica abre particular visada de uma ecodistopia. Não esqueçamos desvios de lastro e horizonte postos em marcha por visionamentos que recompõem o Nordeste brasileiro em imageria futurista, vide A noite do espantalho (1974, Sérgio Ricardo) ou Abrigo nuclear (1981, Roberto Pires). Não esqueçamos o Brasil mais adocicado da abertura política, que surgirá simpático ao reerguimento de um significante nacional, em casos que se dedicam aos malogros enraizados no oásis pós-moderno enquanto anseiam por inventar outras vias de experiência. Neste sentido será importante destacar, particularmente, a redescoberta dos dois longas-metragens de ficção de Francisco de Paula, Areias escaldantes (1985) e Oceano Atlantis (1993), no qual a visão de um Rio devastado endereça à imagem um típico “e agora?” tão derivado das experiências de retomada democrática quanto do reacomodamento sensível de um Brasil midiatizado e espetacular, podendo tantos brasis ser. De todo modo, havia filme mesmo depois da Embrafilme.

Outras revoluções, novas perambulações De volta ao ponto de partida, o duplo Brasil, entre as duas Brasílias, Adirley e Tavares, desdobra-se enfim em uma pista outra

Em torno do Brasil e seus duplos, um ensaio


para percorrer dois caminhos conscientes que privilegiamos num mapeamento propositivo da imaginação distópica contemporânea, e que se dialogam com a espinha dorsal de uma historiografia ou de um estado da crítica, em muito parecem empreender pesquisas desviantes dos cinemas mais laureados nos últimos anos. O primeiro deles, tal como nas semeações na Ceilândia, diz respeito a uma reivindicação das ferramentas de representação por grupos periféricos que, assim como em Branco sai, preto fica, instauram o artifício futurista, distópico, para reclamar territorialidades ou territórios, contratos de presença e sensibilidades identitárias (ou contraidentitárias). Tanto X-Manas quanto Ayiè 3016, mas também Kbela (2016, Yasmin Thayná), Antes da encanteria (2016, Gabriela Pessoa, Lívia de Paiva, Elena Meirelles, Jorge Polo e Paulo Victor Soares), Hiperselva (2014, Helena Lessa, Jorge Polo, Lucas Andrade e Pedro Lessa) ou Janaína Overdrive (2016, Mozart Freire) provêm de contextos de produção jovem que, nascida num fluxo entre sensibilidades universitárias, queer, negras e clubber, constituem espaços figurativos de interseção entre a experiência vivida das dissidências e a proposição de negociações não normativas, incabíveis num regime hegemônico de produção da história ou da cinefilia. Na contraface, temos filmes aos quais resta o diletantismo, o percorrimento e a vagabundagem. Não será difícil encontrar, em A seita (2015, André Antônio) ou em Batguano (2014, Tavinho Teixeira), parentescos com Amor e desamor, em mistérios a serem contados na história secreta das imagens. Não tarde, aliás, o dândi ressurgirá também nas epopeias mínimas da produtora Distruktur, da qual escolhemos dois curtas-metragens e um média-metragem onde as paisagens reais são reencantadas em lugares quaisquer, muitas vezes inóspitos, para a apreensão do espírito e de seu movimento. À exceção do caso destes últimos, cujo interesse repousa na investigação deslumbrante de um desencarne dos espaços e de um encarne das imagens, numa abordagem da ficção científica mais íntima ao cânone experimental, estaremos Brasil Distópico

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lidando com variado conjunto de filmes que, em comum, parecem condicionar as plurissignificações (inclusive temporais) do espaço, seja cênico ou histórico, à potência de acontecimento que emana de um corpo desviante, uma vez que vem habitar, com seus modos errados, a imaginação do presente. Às vezes, acessarão as máculas da opressão sistêmica e recorrerão à via dos manifestos, outras fruirão o desejo de sobrevivência nos desencantos – mas, no limite, articularão, aos seus modos próprios mas não pouco relacionáveis, imaginação distópica e a emergência de uma enérgica imageria queer no cinema brasileiro, mediante modos mais ou menos afins ao da “distopia queer” descrita por André Antônio em texto que aqui publicamos.

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Finalmente, vamos a Serras da desordem – e, não à toa, reservamo-lo para o final da grade de programação, tal qual um resquício antes da interrupção, um resto para uma nova abertura. Não seria razoável ponderar a falência de uma história brasileira sem procurar, nos filmes, testemunho justo da nossa mais duradoura distopia. Esta obra-prima de Tonacci vem como figura singular numa elaboração madura da diáspora indígena, seja como épico amargo de uma população, seja de um continente – e a saga do índio Carapiru, como alegoria incontornável de um êxodo que, anos depois, não deixa esquecer a imagem do incêndio. A convocação de Tonacci acessa também, subterraneamente, porta de fundos de sua obra – em larga medida próxima ao indigenismo –, de onde encontra uma cinefilia da invenção que, se aqui nos atravessa sobretudo por meio dos filmes de Rosemberg e de Agrippino, pontua a gênese criativa de sua filmografia – vide Bang bang (1971). É com felicidade então que o pomos lado a lado de Karioka, curta de Takumã Kuikuro (2014) que traz já vestígios de uma virada na história das imagens brasileiras, na qual índios se apossaram das câmeras, tornando-se realizadores então capazes de mirar, eles mesmos, com ferramentas afins às do espetáculo maior, as distopias de nosso fraturado território: aqui, num leve ensaio

Em torno do Brasil e seus duplos, um ensaio


sobre o Rio de Janeiro como destino ambíguo. Estamos contentes, por fim, de ter entre nós um texto da montadora Cristina Amaral, também companheira de vida de Tonacci, que num pequeno e bonito gesto memorialístico retoma o processo de gestação de Serras da desordem, registrando neste catálogo alguns bastidores das serras e das dobras. Assim como esta mostra, esta publicação se dedica a ser não mais que uma reunião de possíveis, fragmentos de um princípio.

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Arquivo pessoal

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Textos

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Nas veredas do tempo e a contrapelo da história: por um cinema brasileiro de ficção científica1 Alfredo Suppia

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Cinema de ficção científica no Brasil: que bicho é esse? Foi com esse título que escrevi, há pouco mais de dez anos, um primeiro panorama do cinema brasileiro de ficção científica. Tentava percorrer uma filmografia que, por vários motivos, permanecia até então subterrânea em nossa historiografia clássica do cinema. O texto, publicado no livro Cinema de Bordas2, fez um primeiro inventário de filmes por vezes completamente ignorados, ou associados a outros gêneros cinematográficos mais reconhecidos pela historiografia – o filme policial, a pornochanchada, a comédia e assim por diante. Naquela época eu cursava o doutorado em Multimeios na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sob supervisão do professor José Mário Ortiz Ramos, arguto observador da cultura de massa e, em especial, do cinema brasileiro. Minha tese de doutorado, com o título “Limite de Alerta! Ficção científica em atmosfera   Este texto conta com fragmentos originalmente publicados no capítulo “Sob o signo de varginha: aparições da ficção científica no cinema brasileiro” (In: SUPPIA, Alfredo (Org.). Cartografias para a ficção científica mundial: cinema e literatura. São Paulo: Alameda, 2015, pp. 265-298) e na tese de doutorado “Limite de alerta! Ficção científica em atmosfera rarefeita: uma introdução ao estudo da FC no cinema brasileiro e em algumas cinematografias off- Hollywood”. Campinas, SP: [s.n.], 2007 (orientação do Prof. Dr. José Mário Ortiz Ramos).

1

SUPPIA, Alfredo. “Cinema de ficção científica no Brasil: que bicho é esse?”. In: LYRA, Bernadette; SANTANA, Gelson (Orgs.). Cinema de bordas. São Paulo: A Lápis, 2006, pp. 16-41.

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rarefeita: uma introdução ao estudo da FC no cinema brasileiro e em algumas cinematografias off-Hollywood”, foi defendida em agosto de 2007, e depois publicada no formato livro pela editora Devir, com o título Atmosfera rarefeita: a ficção científica no cinema brasileiro3. O longo título pretendia a um só tempo homenagear um filme-chave no contexto da pesquisa – Parada 88, o limite de alerta (1978), de José de Anchieta –, introduzir e contextualizar o principal problema – a escassez e/ou invisibilidade do objeto de estudo – e finalmente delimitar o território de investigação – o cinema brasileiro em cotejo com algumas outras cinematografias nacionais. Tanto em meus primeiros inventários quanto em minha tese, tendi a seguir uma linha cronológica inspirada numa série de livros e enciclopédias sobre ficção científica ou cinema de ficção científica, a maioria de autores de língua inglesa, e que divide a historiografia do gênero em décadas ou períodos – com todos os problemas, adversidades e controvérsias que tal método implica. Nessa perspectiva, a ficção científica no cinema brasileiro começava a dar sinais mais claros de sua presença a partir do final da década de 1940. Uma aventura aos 40, do dramaturgo e comediante carioca Silveira Sampaio, é dos primeiros filmes nos quais podemos reconhecer pelo menos um elemento de ficção científica: uma televisão interativa do futuro. Comédia emoldurada pela especulação futurista, o filme foi lançado em 1947, mas sua fábula se passa no dia 31 de julho de 1975, quando o professor Carlos de Miranda completa 70 anos e é homenageado por programa de TV que leva ao ar sua biografia. Os anos 1960 foram um período de afirmação para o cinema de ficção científica mundial e, guardadas as devidas proporções, no Brasil não me parece ter sido muito diferente. 1962 pode ser  Idem. Atmosfera rarefeita: a ficção científica no cinema brasileiro. São Paulo: Devir, 2013.

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tido como um ano-chave para o cinema de ficção científica brasileiro, com o surgimento de dois filmes em particular: O quinto poder e Os cosmonautas, respectivos representantes de duas vertentes básicas no panorama brasileiro do gênero: a “sério-dramática” e a “lúdico-carnavalesca”4 – com visível pender da balança para esta última.

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O quinto poder, da Pedregal Filmes, dirigido por Alberto Pieralisi e com roteiro de Carlos Pedregal, talvez seja um dos primeiros filmes brasileiros de ficção científica genuína (ou talvez, melhor dizendo, “sério-dramática”), sobre intriga internacional em torno da ameaça da tecnologia subliminar. Aqui, agentes estrangeiros infiltrados no Brasil planejam dominar a população do país por meio de mensagens subliminares veiculadas por conexões clandestinas às antenas de rádio e TV. Os vilões iniciam a irradiação dos sinais subliminares, os brasileiros se tornam violentos e passam a clamar por uma revolução. Visto hoje, o filme parece sinistramente premonitório do golpe militar de 1964. Numa sequência memorável, anterior aos filmes de 007, o bondinho do Pão-de-Açúcar já é palco de um conflito internacional. Com possível inspiração em Hitchcock, Welles e Lang, o desfecho do filme será no Corcovado, com cenas magníficas do Cristo Redentor. Nessa exploração do cartão-postal da cidade como cenário de uma aventura de ficção científica, o filme de Pieralisi assemelha-se a Paris qui dort (1923), de René Clair, que apresenta a Torre Eiffel em cenas-chave. A propósito, O quinto poder opera numa vertente explorada com maestria   Ismail Xavier usa o termo “sério-dramático” em Alegorias do subdesenvolvimento (XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento: Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema Marginal. São Paulo: Brasiliense, 1993) e outras obras. A categoria me parece adequada no momento, na falta de outra ainda mais precisa. A contraposição que Xavier faz entre uma narrativa de natureza “sério-dramática” e outra “lúdico-carnavalesca” (p. 227) também pode ser útil para uma melhor distinção entre filmes brasileiros de ficção científica mais “empenhados” (“sériodramáticos”) e filmes com viés mais paródico (“lúdico-carnavalescos”).

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por Fritz Lang: o filme de espionagem ou intriga internacional pontuado por referências à tecnologia. Na comédia de ficção científica Os cosmonautas, produzida pela Herbert Richers, um cientista brasileiro sonha levar conterrâneos astronautas à Lua. Com argumento e direção de Victor Lima, essa chanchada tardia foi lançada pouco depois da crise dos mísseis de Cuba, coincidência que realçou seu discurso pacifista – na esteira de O dia em que a Terra parou (The day the Earth stood still, 1951), de Robert Wise. Segundo Phil Hardy5, os anos 1960 são a década em que o cinema de ficção científica se torna respeitável e, talvez o mais importante, se internacionaliza, atraindo o interesse de cineastas-autores e se oferecendo como terreno de variadas experimentações. Nesse mesmo período, no Brasil, o cinema de ficção científica inicialmente dá mostras de um desenvolvimento promissor, porém termina a década aparentemente sufocado por preconceitos, carências infraestruturais, coerções de ordem artística ou ideológica e um possível fracasso em cumprir propostas programáticas que extrapolavam o exercício de um gênero. Destacam-se, no início da década, filmes como O quinto poder e Os cosmonautas, “cabeças de ponte” de duas vertentes que poderiam ter sido melhor exploradas no cinema brasileiro. No final dos anos 1960, a ficção científica é manuseada pelo Cinema Novo e dá demonstrações mais visíveis de seu potencial alegórico e de crítica social e política, gênero capaz de transmitir “mensagens cifradas” em época de ampla repressão e censura. A partir de então, cineastas visitam a FC nos anos 1970 e 80 como “código” propício a sua expressão artística e política. Tal estratégia – o recurso à ficção científica como um gênero 5   Ver HARDY, Phil (ed.). The Overlook Film Encyclopedia: Science Fiction. Nova York: Overlook, 1995.

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“instrumental” – de certa maneira reedita, guardadas as devidas proporções, movimento análogo no cinema americano dos anos 1950 e 1960. Segundo Thomas D. Clareson, durante o macarthismo, a ficção científica era a única forma literária que poderia criticar as políticas de governo, pois os políticos ou não liam o gênero ou não podiam entender suas estórias6.

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Em 1978 surge um dos primeiros casos (senão o primeiro em longa- metragem) de ecodistopia no cinema brasileiro: Parada 88, o limite de alerta, dirigido por José de Anchieta, introduz de forma mais contundente a temática ambientalista, ao mesmo tempo em que propõe uma crítica ácida à conjuntura social e política do Brasil à época. A trama de Parada 88 se passa em dezembro de 1999, seis anos após uma fábrica explodir espalhando no ar toneladas de substância tóxica. O vazamento persiste e a população é obrigada a viver trafegando por túneis plásticos que interligam os prédios da cidade, além de pagar pelo ar respirável. O filme apresenta um dos raros ciborgues do cinema brasileiro, talvez o único com intenções não claramente cômicas. Trata-se do protagonista, que após ser resgatado da zona contaminada recebe pulmões biônicos. Melancólico e taciturno, Parada 88 lembra filmes como Laranja mecânica (1971), de Stanley Kubrick, ou A boy and his dog (1975), de L. Q. Jones, ao mesmo tempo em que parece prenunciar títulos como Mad Max (1979), de George Miller, e até mesmo Blade Runner: o caçador de androides (1982), de Ridley Scott. O filme de José de Anchieta é praticamente todo imerso na escuridão, no hermetismo dos túneis e construções. A grande maioria das tomadas é noturna. Os únicos planos ao ar livre e à luz do dia são o da fachada do prédio do Departamento de Controle de Gases e o plano final, em que o protagonista e sua família estão viajando. Profundamente pessimista, Parada 88 parece antever 6   Ver CLARESON, Thomas D., ed. SF: The other side of realism. Bowling Green: Bowling Green University Press, 1971. p. 22.

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algo do cyberpunk – ou, se preferir, tupinipunk7 – que se desenvolveria depois, nos anos 1980. Em síntese, nos anos 1970 poderíamos observar uma certa recorrência à iconografia da ficção científica em filmes de caráter experimental, num período de arrefecimento do Cinema Novo. Cineastas ligados ao movimento que teve seu ápice nos anos 1960 reinvestem em projetos de caráter moderno/experimental – os casos de Paulo Bastos Martins (O anunciador: o homem das tormentas, 1970) e Nelson Pereira dos Santos (Quem é Beta?, 1973) –, pontuados por elementos da ficção científica. Os anos 1980 deram continuidade ao cinema de ficção científica de orientação ambientalista (como em Abrigo nuclear, longa de 1981 dirigido por Roberto Pires), paródias nos mais diversos gêneros (pornochanchadas, filmes d’Os Trapalhões, filmes infantojuvenis, o “terrir” de Ivan Cardoso) e a um cinema de autor de cunho fantástico (filmes de Walter Hugo Khouri como, por exemplo, Amor voraz, de 1984). Tentativas mais comercialmente audaciosas de sustentação de um cinema fantástico ou de ficção científica foram realizadas no período, porém não renderam frutos consistentes. Vale a pena lembrar que, perto do fim da década, o cinema brasileiro passaria por uma severa crise de seu modelo de produção, com o declínio da Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme). A ficção científica no cinema nacional sofre, no final dos anos 1980 e início da década seguinte, dos mesmos   “Tupinipunk” é o termo cunhado pelo escritor e pesquisador Roberto de Sousa Causo para designar certo tipo de cyberpunk brasileiro, manifesto em livros como Silicone XXI (1985), de Alfredo Sirkis, Santa Clara Poltergeist (1991), de Fausto Fawcett, Piratas siderais (1994), de Guilherme Kujawski, e Favelost (2012), de Fawcett. Ver CAUSO, Roberto de Sousa. “Tupinipunk – cyberpunk brasileiro”. In: Papêra Uirandê Especial #1: Tupinipunk. São Paulo: edição do autor, 1996, pp. 5-11; Idem. Ficção Científica, fantasia e horror no Brasil – 1875 a 1950. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003; Idem. “O estado da arte: ficção científica tupinipunk”. Papêra Uirandê Especial # 9: Tupinipunk no Século XXI. São Paulo: edição do autor, 2015, pp. 11-14.

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males que assolam o cinema brasileiro como um todo. Mas o gênero continua lutando por sua sobrevivência numa atmosfera extremamente rarefeita. No início da década de 1990, o cinema brasileiro enfrenta novo declínio severo de produção. Mesmo assim, a FC insiste em sobreviver. Rodado entre 1989 e 1993 e jamais lançado comercialmente, Oceano Atlantis, de Francisco de Paula, é outra ecodistopia que desta vez apresenta um Rio de Janeiro inundado pelo oceano, e no qual as favelas se tornaram as únicas regiões habitáveis. A fábula pós-apocalíptica tem como protagonista um mergulhador que, em busca de comida, acaba encontrando descendentes da civilização atlante.

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Ficção científica e comédia continuam unindo suas forças em O efeito ilha, filme de 1994 escrito e dirigido por Luiz Alberto Pereira, o Gal. O efeito ilha é sobre técnico de TV vítima de estranho fenômeno: depois de um acidente, sua imagem ocupa todos os canais de TV, 24h por dia, numa espécie de reality show intermitente. O efeito ilha critica a indústria da televisão e sua relação com a audiência, trabalhando o tradicional mito do roubo da alma por dispositivos de reprodução da imagem. Nesse aspecto, lembra outro filme de 1994, o tcheco Akumulator 1, de Jan Sverak. Os anos 1990 também são momento de importante experimentação com o cinema digital no Brasil. Iniciada em 1992 e lançada em 1996, a animação infantil Cassiopéia, de Clóvis Vieira, tornou-se o primeiro longa digital brasileiro. O filme narra a aventura de salvamento do pacífico planeta Atenéia, que está tendo a energia de seu sol drenada por nave alienígena inimiga. Com um histórico de produção atribulada, Cassiopéia acabou eclipsado pelo sucesso internacional de Toy story (1995), de John Lasseter, animação da Pixar/Disney vencedora do Oscar. Os anos 2000 não apresentam filmes brasileiro de ficção científica em longa-metragem dignos de nota por sua originalidade e

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ousadia, porém marcam um interesse renascente pelo gênero, sobretudo por parte de cineastas estreantes ou veteranos de “espírito jovem”. O aporte de tecnologias digitais mais ágeis e acessíveis aproxima o cinema de ficção científica do horizonte dos (novos) cineastas brasileiros, algo verificável de forma mais evidente em especial no âmbito dos curta-metragens. No mesmo período, coproduções viabilizam filmes em longa-metragem com roteiros mais ambiciosos e acabamento mais “polido”. Destacase a retomada de interesse e investimento em “filmes espíritas”, gênero que demonstra certa afinidade com a ficção científica e que promete desenvolvimentos nos anos subsequentes – casos dos longas Nosso lar (2010), de Wagner de Assis, ou Área Q (2012), filme dirigido por Gérson Sanginitto que abriu o 2º Festival de Cinema Transcendental em Brasília. Em linhas gerais e extremamente simplificadas, sujeitas a todos os problemas que uma abordagem década-a-década pode implicar, os parágrafos acima resumem grosseiramente o percurso filmográfico que trilhei em minha pesquisa de doutorado, numa tentativa de inventariar as principais ocorrências ou manifestações da ficção científica no cinema brasileiro do século XX e começo do XXI. Cerca de dez anos após a conclusão dessa pesquisa de doutorado, continuo envolvido com o cinema de ficção científica no Brasil e no exterior, atento às suas transformações e ainda em busca de muitas respostas. As perguntas, no entanto, não cessam de se multiplicar. E talvez agora, com o devido tempo decorrido e eventual distanciamento, haja uma nova oportunidade de revisitar algumas de minhas primeiras questões, bem como alguns de meus primeiros problemas no percurso de investigação desse bicho complicado que ora chamamos de “ficção científica no cinema brasileiro”. A maneira com que se diz é por vezes tão ou mais importante do que o que é dito. Por que “ficção científica no cinema brasileiro” e não “cinema brasileiro de ficção científica”? Primeiro porque, Brasil Distópico

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cedendo a pressões do meio acadêmico, embutidas na própria historiografia clássica do cinema brasileiro, e receando dispor de um escasso objeto de estudo, supus que investigar a ocorrência de um gênero numa cinematografia nacional parecia mais prudente do que sugerir os contornos de um cinema nacional de gênero. Por outro lado, insistir num “cinema brasileiro de ficção científica” talvez fosse de encontro a uma preocupação norteadora de meu projeto, e que desde então só teria tomado mais corpo no conjunto de minhas pesquisas: o fato de que a ficção científica me parece muito mais um macrogênero trans/multimídia e universal, no sentido de que opera muito além de fronteiras e discursos nacionais ou nacionalizantes. Em termos práticos, minha opção por investigar a ficção científica no cinema brasileiro não gerou resultados muito diversos do que se eu tivesse insistido em favor de um cinema brasileiro de ficção científica. Na realidade, tal opção me poupou de problemas que de fato eu pretendia evitar – como pôr o “adesivo” brasileiro a um gênero que, a meu ver, sempre foi e continua sendo universal. A metáfora da atmosfera rarefeita procura não apenas contextualizar o objeto mas também referenciar um dos raros textos fundadores dos estudos de ficção científica no Brasil, de autoria do crítico e escritor Fausto Cunha. A Ficção Científica no Brasil: um planeta quase desabitado8 serviu de ponto de partida e parâmetro de comparação em meus primeiros inventários críticos da ficção científica no cinema brasileiro. De um planeta quase desabitado a uma atmosfera rarefeita, não precisei ir muito longe. Muito embora eu continue acreditando na validade de ambas as metáforas, devo confessar que minha pesquisa de doutorado me revelou algo que costumo repetir ainda hoje, sempre que sou confrontado com a seguinte pergunta: “cinema brasileiro de ficção científica? Mas existe algum filme?”. Continuo repetindo que, embora haja muito   CUNHA, Fausto. “A FC no Brasil: um planeta quase desabitado”. In: ALLEN, L. David. No mundo da ficção científica. São Paulo: Summus, 1976.

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menos filmes do que eu gostaria (“atmosfera rarefeita”), eles são muito mais numerosos do que eu esperava e muito mais frequentes do que se imagina. Os filmes brasileiros de ficção científica são como “espectros” ou “radiações eletromagnéticas” que só conseguimos visualizar com o auxílio de alguns “instrumentos especiais”. Quais seriam esses “instrumentos especiais”? Em resumo, adianto que seriam (1) boa vontade na investigação, (2) desconfiança em relação aos cânones e (3) flexibilidade na abordagem dos gêneros cinematográficos e na história do cinema brasileiro, em sintonia com as pesquisas internacionais mais modernas e atuais. Enquanto em Hollywood a ficção científica é empreitada de grandes estúdios, sendo praticamente sinônimo de efeitos especiais9, no Brasil a produção do gênero ainda é vista com muitas ressalvas. A justificativa mais comum para a irregularidade da ficção científica no cinema brasileiro baseia-se na falta de dinheiro, uma vez que o gênero demandaria cenários elaborados e efeitos especiais. Para Adam Roberts, ficção científica no cinema é sinônimo de efeitos especiais. Mas será mesmo que o gênero depende tanto assim de efeitos e, como consequência, fazer cinema de ficção científica custaria muito mais caro do que outros gêneros? E os filmes que prescindem de efeitos especiais sofisticados, explorando outro veio de criatividade? Segundo o escritor Gerson Lodi-Ribeiro, o fraco desenvolvimento do cinema de FC no Brasil “talvez se dê em função da persistência de uma noção equivocada de que são necessários efeitos especiais grandiosos para se contar uma boa história de ficção científica. Noção equivocada típica de quem tem pouca intimidade com o gênero”10. Não haveria então outro fator, além do econômico, capaz de desestimular nossa produção de ficção científica em   ROBERTS, Adam. Science fiction. London: Routledge, 2000. pp. 152-3.

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Gerson Lodi-Ribeiro, entrevista por e-mail concedida a este autor em 04/03/2006.

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qualquer mídia? E por que a ficção científica no cinema brasileiro manifesta-se num espectro via de regra inacessível a “olho nu”? Essas perguntas visitaram minhas pesquisas entre 2003 e 2007, a me visitam ainda hoje. Continuo apenas testando algumas hipóteses, as quais me proponho a passar em revista logo a seguir. Continuo achando válida uma primeira hipótese, proposta por Mary Elizabeth “Libby” Ginway em seu mais robusto trabalho de investigação da literatura brasileira de ficção científica. Segundo Ginway, “[a] ficção científica brasileira também sofre da idéia de que um país do Terceiro Mundo não poderia autenticamente produzir tal gênero, e das atitudes culturais elitistas que prevalecem no Brasil”11. A autora prossegue afirmando que (...) a ficção científica brasileira, eu creio, tem sofrido duplamente, primeiro por suas associações com “arte baixa” e ficção popular, e segundo, por ser um gênero imaginativo em um país que dá um alto valor ao realismo literário. (...) Por essas razões, a ficção científica poderia ser considerada “inautêntica”, ou seja, não representativa da cultura brasileira. Como um gênero que cresceu a partir das sociedades industrializadas, talvez ele seja melhor visto como o que Roberto Schwarz chamou de “idéias fora do lugar”, i.e., um exemplo da importação de modelos literários estrangeiros ao Brasil.

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O mesmo que Ginway diagnostica no panorama literário brasileiro pode ser verificado no cinema. Os preconceitos e obstáculos que se apresentam à ficção científica na literatura nacional multiplicam de tamanho no âmbito do cinema brasileiro. Não só pelo fato de o cinema ser uma arte mais onerosa e coletiva, mas também por ser terreno de disputa ainda mais evidente com o domínio estrangeiro.   GINWAY, M. Elizabeth. Ficção científica brasileira: mitos culturais e nacionalidade no país do futuro. São Paulo: Devir, 2005. p. 27.

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Ginway resgata oportunamente o conceito de “idéias fora do lugar” de Roberto Schwarz, autor que, na companhia de Darcy Ribeiro12, também pode ser útil a um exame mais detido dos entraves ao desenvolvimento da ficção científica na cultura brasileira em sentido mais amplo. Schwarz propõe o conceito de “ideias fora de lugar” ao abordar a literatura brasileira no contraditório contexto sócio-econômico nacional do final do século XIX. A escravidão desempenha um papel importante nessa relação de amor e ódio com os valores ocidentais ou o legado cultural europeu. O ensaio de Schwarz começa com uma análise do seguinte argumento: Toda Ciência tem seus princípios, de que deriva o seu sistema. Um dos princípios da Economia Política é o trabalho livre. Ora, no Brasil domina o fato “impolítico e abominável” da escravidão. Este argumento – resumo de um panfleto liberal, contemporâneo de Machado de Assis – põe fora o Brasil do sistema da ciência.13

De certa maneira, tal “quadro psicológico” parece persistir em alguns setores até hoje – ainda que reprimido, entrincheirado ou mesmo criptografado. Nesse sentido, não surpreende que a ficção científica no cinema brasileiro seja tão geralmente encarada como um “alienígena intruso” em nosso planeta cinematográfico ou atmosfera cultural, por vezes reagindo ficcionalmente à ciência e à tecnologia, hipotéticas ou utópicas, de forma um tanto quanto xenofóbica – lembremos de filmes como O quinto poder (1962), de Aberto Pieralisi, Roberto Carlos em ritmo de aventura (1968), de Roberto Farias, ou ainda O homem que comprou o mundo (1968), de Eduardo Coutinho.   Ver RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2006; RIBEIRO, Darcy. Utopia Brasil. São Paulo: Hedra, 2008. 12

SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Editora 34, 2000. p. 11.

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Darcy Ribeiro, por sua vez, nos lembra que uma das principais marcas distintivas que singularizam os brasileiros é a extraordinária homogeneização cultural, fruto da brutalidade de nosso processo de formação histórica, realizado sob as pressões da escravidão14. O antropólogo observa também que O povo brasileiro, produzido por essa mó da estratificação escravista, se vê imerso numa cultura intrinsecamente espúria. Tamanhamente que atribui ao negro e ao pobre a culpa de sua própria ignorância e miséria; cega que se faz para a evidência de que, aqui, o inferior, o ruim, não é o povo ignorante, mas a elite, rica, educada, refinada, que sempre organizou a produção e a vida social em seu próprio benefício, indiferente ao destino do povo. (...) Nada melhorou para o povo trabalhador quando ingressamos na civilização industrial, pela via da atualização histórica, regida pelas empresas multinacionais.15

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Darcy Ribeiro ressalta que tal “modernização” baseia-se numa “(...) industrialização reflexa, que não é capaz de gerar a transformação social do país, o que faz perpetuar o subdesenvolvimento e acentuar nossa dependência externa”16. Suspeita-se, portanto, e sem surpresa, que tamanha controvérsia entre arcaísmo e modernização tenha impacto sobre a cultura do país em sentido mais amplo. Ainda segundo o antropólogo, A resistência às forças inovadoras da Revolução Industrial e a causa fundamental de sua lentidão não se encontram, portanto, no povo ou no caráter arcaico de sua cultura, mas na resistência das classes dominantes. Particularmente nos seus interesses e privilégios, fundados numa ordenação estrutural arcaica e num modo infeliz de arti  RIBEIRO, Darcy. (2008). op. cit. pp. 24-5.

14

Ibidem. p. 31.

15

Ibidem. pp. 31-2.

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culação com a economia mundial, que atuam como um fator de atraso, mas são defendidos com todas as suas forças contra qualquer mudança.17

Guardadas as devidas proporções, essa “vontade de inércia” já se apresenta, em si mesma, como fator obstacular a um gênero discursivo de orientação utópica (a ficção científica) – o qual, conforme observa István Csicsery-Ronay, Jr., guarda pontos de contato com o marxismo justamente em sua vocação utópica e de crítica da realidade social.18 Segundo Zuenir Ventura, “[o] Brasil é um país onde o surrealismo não vingou como movimento artístico, mas como maneira de ser”19. Guardadas as devidas proporções, o mesmo poderia ser dito sobre a ficção científica brasileira em sentido lato, mas sobretudo em sua dimensão cinematográfica ou audiovisual. O “país do futuro” já seria per se uma ficção científica – haja vista sua história e, entre outros aspectos, sua capital Brasília. Não à toa Terry Gilliam teria dado o nome de Brazil – o filme (1985) à sua distopia futurista. A propósito, convém circunstanciar a ideia do Brasil como “país do futuro”, epíteto cuja origem remete ao livro de Stefan Zweig. Em prefácio à edição de 2013 da obra em questão, Alberto Dines explica que Até hoje não se sabe exatamente o que Zweig pretendia dizer com esse sugestivo e enigmático jogo de palavras (um país ou o país, do futuro ou de futuro?). A idéia não foi dele,   Idem (2006). op cit. p. 228.

17

Ver CSICSERY-RONAY, Jr., István Csicsery-Ronay. “Marxist Theory and Science Fiction”. In: JAMES, E.; MENDLESOHN, F. (Eds.). The Cambridge companion to Science Fiction. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, pp. 113-24.

18

Ver VENTURA, Zuenir. “Fora de ordem e de lugar”. Blog do Noblat. 13/03/2013. Disponível em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/ posts/2013/03/13/fora-de-ordem-de-lugar-por-zuenir-ventura-489272.asp. Acessado em 03/07/2013.

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mas de James Stern (aliás, Andrew St. James), o tradutor para o inglês do original alemão, que o pescou em francês na epígrafe da obra.20

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É fato que o futuro entrevisto por Zweig no Brasil baseava-se muito mais no fascínio perante uma hipotética “democracia racial” do que qualquer estado de avanço industrial, científico ou tecnológico stricto sensu. Em outras palavras, Zweig exaltou em seu livro uma tecnologia social a seu ver única no mundo, uma sociedade virtualmente sem conflitos e tensões raciais e/ ou religiosas, quadro muito diferente do europeu. Zweig assim se refere ao sucesso do “experimento ‘Brasil’, com sua negação completa e consciente (sic) de qualquer diferença de cor e de raça (...)”21. É a partir dessa constatação que o escritor descreve, sobre sua experiência vivendo no Brasil, “(...) aquela sensação de viver dentro do porvir, do futuro, desfrutando mais conscientemente da segurança da paz e do bom ambiente acolhedor” 22.Os avanços tecnológicos, científicos e/ou industriais seriam sobrevalorizados em seu tempo, na opinião de Zweig, e eles não teriam sido capazes de evitar o caos na Europa. O verdadeiro futuro deveria ser buscado na convivência pacífica entre os povos, a exemplo do “experimento Brasil”23. Desnecessário dizer o quanto de fábula e imaginação constitui a substância do mito de “país do futuro” propugnado por Zweig. Seria então o fato de o Brasil ser um país de modernização lacunar, com produção em ciência, tecnologia e inovação (CT&I) ainda aquém de seu pleno potencial, outro fator obstacular ao desenvolvimento da ficção científica em variadas mídias?   DINES in ZWEIG: Stephan. Brasil, um país do futuro. Porto Alegre: L&PM, 2013. p. 7. Grifos no original.

20

Ibidem. p. 20.

21

Ibidem. p. 15.

22

Ibidem. p. 20.

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Poderíamos encontrar nos problemas do sistema educacional do país e, por consequência, do ensino de ciências, alguma explicação para a invisibilidade ou timidez da ficção científica nacional? Segundo Francisco Alberto Skorupa, “é controverso o papel que desempenha o desenvolvimento científico-tecnológico na produção de ficção científica”. Por um lado, Skorupa aponta que existem fortes evidências de uma relação entre desenvolvimento científico-tecnológico e produção de ficção científica24, sobretudo a partir da Revolução Industrial e da explosão científica nos séculos XIX e XX. Sobressaem os casos dos EUA, ex-URSS, Reino Unido, França, Japão e Alemanha e, em menor escala, Austrália, Canadá e Itália, como exemplos da proximidade entre o desenvolvimento científico e a ficção científica25. Por outro lado, Skorupa observa que tal argumento pode se revelar enganador ante um exame mais detido e aprofundado, uma vez que, embora a tecnologia tenha nacionalidade e até proprietário(s), “a imaginação livre não é nacionalista”, ela extrapola fronteiras e pode ser inspirada por estímulos estrangeiros. Segundo Skorupa, entretanto, “não se pode ignorar que um ambiente cultural que valorize a pesquisa e a educação científica esteja direcionando ou educando a percepção e a sensibilidade individual para uma ideia de progresso técnico-científico” 26. Cerca de dez anos depois, todas essas perguntas continuam sem respostas satisfatórias, muito menos definitivas. Em resumo, e à guisa de simplificação, os entraves ao maior desenvolvimento e visibilidade do cinema brasileiro de ficção científica são certamente variados, mas nenhum deles isoladamente fornece uma explicação satisfatória para o cenário. Uma boa metáfora   SKORUPA, Francisco Alberto. Viagem às letras do futuro — extratos de bordo da ficção científica brasileira: 1947-1975. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2002. p. 93.

24

Ibidem. p. 93.

25

Ibidem. p. 316.

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para o cinema nacional do gênero talvez seja a de uma espaçonave obsoleta e com excesso de peso. Essa carga excedente se compõe de itens tão diversos como velhos preconceitos artísticos, carência de políticas públicas mais longevas e consistentes com foco sobre o desenvolvimento científico e tecnológico, problemas na percepção pública da ciência e da tecnologia, ausência de uma “cultura da invenção”, baixa auto-estima, valorização excessiva do realismo em detrimento de outros estilos ou estéticas, elitismo cultural, deficiências no sistema educacional, vícios e precariedades dos mercados editorial e audiovisual brasileiros, entre otras cositas más.

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Não obstante, de 2007 até hoje o panorama da ficção científica no cinema e audiovisual brasileiro mudou significativamente – e continua mudando. Por exemplo, tentativas de seriado no Brasil, como a web-série Stufana (2010), produto do Projeto TelaTeatro, com apoio da Fundação Joaquim Nabuco e Massangana Multimídia, ou o piloto de 3% (2010), dirigido por Daina Giannecchini, Dani Libardi e Jotagá Crema, rodado com câmeras Red One e apoio do programa FICTV/Mais Cultura, foram projetos nacionais que procuraram explorar a veia aberta por sucessos estrangeiros como Arquivo X ou Lost. 3% se tornou um caso de sucesso. O canal Netflix comprou a ideia e exibiu a primeira temporada da série em novembro de 2016. Tratou-se da primeira produção brasileira original da Netflix e a segunda produzida na América Latina. Com uma estética próxima do que venho chamando de “basurapunk” (um cyberpunk latino-americano em que o lixo fornece a matéria-prima para a tecnologia e as mobilizações anti-establishment), 3% também pode ser ilustrativo de um cinema de ficção científica lo-fi (ou lo-fi sci-fi, que segundo consta no site lofiscifi.com, significaria “[f]ilmes que têm mais especulação do que efeitos espetaculares. Mais focados em grandes idéias do que em grandes orçamentos” 27). De acordo com 27   No original: “Movies that have more speculation than spectacular effects. More focused on big ideas than big budgets”

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matéria de Amauri Terto publicada no Huffpost, 3% é “a série de língua não-inglesa mais assistida dos EUA” 28. Vale a pena lembrar ainda que, em 2013, um filme brasileiro de ficção científica ganhou um prêmio mundial importantíssimo, o de Melhor Filme no Festival de Annecy, na França. Trata-se de Uma história de amor e fúria, dirigido por Luiz Bolognesi, animação em longa-metragem que estreou em abril de 2013 e revisita a história do Brasil ao longo de aproximadamente 600 anos, sob o ponto de vista de um índio tupinambá, personagem imortal que atravessa os séculos à procura das reencarnações de sua mulher amada, enquanto luta em defesa do povo oprimido. Dentre os cineastas em maior evidência atualmente, tanto em termos de mercado ou de crítica, não são poucos os que já se aventuraram ou continuam se aventurando no território da ficção científica. Lembremos de Jorge Furtado, de Barbosa (1988), Kleber Mendonça Filho, de Recife frio (2010), e de Adirley Queirós, de Branco sai, preto fica (2014). O sucesso de uma série como 3% ou de filmes como Branco sai, preto fica é ilustrativo e sintomático de ao menos dois aspectos: (1) a desmistificação da ficção científica enquanto gênero inacessível a produções independentes ou de baixo orçamento, favorecida pela popularização de novas tecnologias, e (2) o reencontro, por parte de uma nova geração de cineastas, da ficção científica enquanto “modo de representação” ou “regime de decifração” da agenda contemporânea, seus principais dilemas e ansiedades. Branco sai, preto fica merece algumas linhas em especial. Trata-se de uma ficção especulativa que discute a cidadania e os direitos civis sob a alça de mira do estado. Vencedor do Festival de Brasília de 2014,   TERTO, Amauri. “Primeira série brasileira da Netflix, ‘3%’ virou um baita sucesso nos EUA”. Huffpost. 17/03/2017. Disponível em http://www. huffpostbrasil.com/2017/03/17/primeira-serie-brasileira-da-netflix-3-virou-umbaita-sucess_a_21901598/. Acessado em 13/07/2017.

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esse longa-metragem recorre ao artifício da viagem no tempo para tratar de um fato real ocorrido em 1986, quando policiais invadiram o Quarentão, baile de black music organizado em Ceilândia, para agredir violentamente os jovens frequentadores do evento. O título do filme remete à ordem de um dos policiais agressores.

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As reiteradas referências ou metáforas relativas à música e à sonoridade, ao canto e à voz da periferia, afirmadas publicamente pelo diretor Adirley Queirós29 e francamente identificáveis em Branco sai, preto fica, remetem ainda mais intensamente o filme à categoria lo-fi sci-fi. Branco sai, preto fica poderia ser reivindicado assim como representativo de um cinema brasileiro de ficção científica lo-fi, na medida em que se apresenta como uma produção de orçamento modesto e extração realista, que prescinde de efeitos visuais sofisticados e que faz menção explícita a um “paradigma analógico”, a um contexto low-tech de reapropriação e ressignificação dos resíduos industriais ou do lixo tecnológico, aludindo a um futuro igualmente low-tech e ruinoso em sua “programação visual”. A exemplo de outros filmes comumente associados ao lo-fi sci-fi – tais como Pi (1998), de Darren Aronofsky, Take shelter (2011), de Jeff Nichols, Love (2011), de Will Eubank, Sound of my voice (2011), de Zal Batmanglij, Another Earth (2011), de Mike Cahill, ou Upstream color (2013), de Shane Carruth – Branco sai, preto fica opera uma “sensação de maravilhoso” (sense of wonder) baseada em desafios intelectuais que não raro dialogam de forma intrigante com o mundo histórico contemporâneo. Ao retomar o tropos da viagem no tempo como “regime de leitura” da história do Brasil, uma história particularmente negligenciada,   Ver SUPPIA, Alfredo; GOMES, Paula. “Por um cinema infiltrado: entrevista com Adirley Queirós e Maurílio Martins a propósito de Branco sai, preto fica (2014). Doc On-Line n.18 (09/2015) Interatividade e documentário. Disponível em http://www.doc.ubi.pt/18/entrevista_2.pdf. Acessado em 13/07/2017; REIS, Cláudio; MENA, Maurício Campos; IMANISHI, Raquel. Entrevista com Adirley Queirós. Negativo, v.1, n.1, pp.16-70, set. 2013.

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rejeitada ou escondida, Branco sai, preto fica parece recuperar um elo perdido, um passado invisível em meio a milhares de microhistórias varridas para debaixo do tapete de História com “h” maiúsculo. Do mesmo modo, o final do filme apresenta um futuro virtualmente inacessível: aquele no qual a elite brasileira finalmente paga o preço de seu histórico secular de abuso e opressão. Não surpreende que esse desfecho não possa ser visto em cenas live action: o ajuste de contas final em Branco sai, preto fica só é acessível por meio de desenhos à mão livre, de autoria de um homem do povo que foi vítima da violência do estado. Ao partir de um evento histórico reprimido ou “abafado”, e chegar a um futuro especulativo, Branco sai, preto fica tensiona limites da representação audiovisual e reencontra o caminho do gênero ficção científica enquanto “regime de discussão” do passado, presente e futuro – a exemplo do que cineastas brasileiros já fizeram no período da ditadura militar, quando a ficção científica fornecia uma semântica e uma sintaxe favoráveis ao escape da censura e acirramento da crítica ao governo ditatorial, em filmes como Brasil ano 2000 (1969), de Walter Lima Jr., Manhã cinzenta (1969)29, de Olney São Paulo, Parada 88, o limite de alerta (1978), de José de Anchieta, ou ainda Abrigo nuclear (1981), de Roberto Pires. Branco sai, preto fica é também um filme premonitório, na medida em que versa sobre a longa história de pilhagem dos brasileiros – por brasileiros. Três anos após a estreia do filme de Adirley Queirós, um pirata ocupa o Palácio da Alvorada no Brasil, o congresso brasileiro é governado por piratas e ladrões e o estado policial mantém o povo sob controle. Todos os dias, no Brasil, milhões de moradores das periferias perdem seus sonhos, seus direitos, seus braços e pernas, suas vidas. Por meio de uma tênue “criptografia”, favorecida pela ficção científica, Branco sai, preto fica previu nosso futuro próximo, um tempo de julgamentos   Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=b6X65a16nxA. Acessado em 03/07/2017.

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obscuros e controversos, sectarismo, conservadorismo, violência e negação por atacado dos direitos civis mais elementares. Na esteira da tradição literária distópica de autores como Karel Capek (R.U.R., 1921), Yevgeny Zamyatin (Nós, 1924), Aldous Huxley (Brave New World, 1932), George Orwell (1984, 1948) e Ignácio de Loyola Brandão (Não verás país nenhum, 1981), arrisco dizer que a ficção científica permanece, ainda hoje, como locus privilegiado de representação do atual estado de caos brasileiro – um caos recidivo, circular.

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À guisa de conclusão, porém sem qualquer compromisso de encontrar respostas, gostaria de buscar em Paulo Emílio Salles Gomes uma “chave de leitura” para a ficção científica no cinema brasileiro – ou para o cinema brasileiro de ficção científica, como se queira. Trata-se da seguinte passagem: Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa sensação de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro. O filme brasileiro participa do mecanismo e o altera através de nossa incompetência criativa em copiar. O fenômeno cinematográfico no Brasil testemunha e delineia muita vicissitude nacional.30

O pensamento de Paulo Emílio sempre me foi útil nas tentativas de investigação de um fenômeno tão “rarefeito” quanto a ficção científica no cinema brasileiro – rarefeito muitas vezes não por sua própria consistência ou materialidade, mas pela maneira com que é colocado em perspectiva por filtros acadêmicos tradicionais. A ficção científica é um macrogênero universal, um gênero dentro do campo mais amplo da ficção especulativa. Sua matéria-prima é   GOMES, Paulo Emílio Salles. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. São Paulo: Paz e Terra, 1986. p. 88.

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o exótico, o exógeno, o inusitado, o diferente, tudo aquilo que coloca em xeque fronteiras e definições. Embora John Baxter já tenha reivindicado o cinema de ficção científica como manifestação cultural essencialmente americana31, a insistência em “nacionalizar” a ficção científica, reclamar sua “patente” ou copyright, me parece absolutamente equivocada e contraditória em relação à própria natureza universalizante do gênero, sua vocação especulativa ou experimental intrínseca. Atender à reivindicação de que “cinema de ficção científica é coisa de americano” nada mais é do que acatar acriticamente a mais controversa e reacionária “divisão internacional da cultura”, uma partilha que vem a reboque da divisão internacional do trabalho e das riquezas. Dizer que não existe ficção científica no “terceiro mundo” ou fora dos países ditos desenvolvidos, devido ao fato de que faltaria a países não-ocidentais a devida infra-estrutura científica e tecnológica, é uma tomada de posição política. Igualmente, defender que cinema de ficção científica são efeitos especiais significa, em última análise, tomar como exemplo uma parcela específica de um macrogênero presente em praticamente todas as cinematografias do mundo – refiro-me à parcela do cinema de tipo blockbuster norte-americano. Nesse sentido, vincular peremptoriamente cinema de ficção científica a efeitos visuais sofisticados ou industriais, sem qualquer ponderação e atenção à história mundial do gênero, significa interditar às cinematografias externas a Hollywood o acesso a um modo de representação e regime de discussão universais. Compreende-$e o que $e encontra por trá$ di$$o. Não apenas a ficção científica é reivindicada como patrimônio de superpotências, o cinema também o é – não à toa, uma das premiações mais populares do mundo distingue   No original: “Most countries have attempted sf, some have succeeded to an extent, but the form remains agressively American, an expression of a national impulse that, like the Western, lies too deep under the American skin ever to be revealed by any but a native son” (BAXTER, John. Science Fiction in the cinema. Nova York: A.S. Barnes & Co./Londres: A. Zwemmer Ltd, 1970. p. 208).

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o “melhor filme estrangeiro” do “melhor filme”. Parafraseando novamente Paulo Emílio, não surpreende que o “ocupante” venda (ou distribua de graça) esse raciocínio. O problema é quando o “ocupado” reproduz tal ideologia acriticamente.

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Mas felizmente, e talvez pela primeira vez em muito tempo, essa bandeira do “ocupante”, reproduzida pelo “ocupado”, realmente esteja dando sinais de fadiga. O cinema brasileiro de ficção científica insistiu em sobreviver numa atmosfera rarefeita, e agora já não é tão fácil negar sua existência. São brasileiros produzindo ficção científica no cinema e na televisão, na literatura e quadrinhos, no teatro, na web e nos videogames, à revelia do obscurantismo do mercado interno de bens culturais. Trabalhos acadêmicos sobre esse macrogênero também têm se acumulado ao longo dos anos, numa demonstração de que mesmo a velha e retrógrada academia brasileira tem se aberto paulatinamente à multiplicidade de textos que caracterizam o fenômeno ficção científica no Brasil contemporâneo. Nas veredas do tempo, e a contrapelo da história.

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Acervo da Cinemateca do MAM

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A véspera do fim do mundo: fragmentos distópicos, patologias do poder Ewerton Belico

Não, eu era uma das que olhava acima, imaginando como as coisas poderiam ser em regiões mais altas, onde as janelas recebiam um ar melhor, e onde as portas frontais levavam às áreas públicas e comunitárias, e mais baixo, baixo, ao som do tráfego, o cheiro dos detergentes e das plantas vivas... a rua. Não eram os cubículos construídos pelo município, com os muros rabiscados de pichações, as calçadas manchadas de urina, as paredes da entrada fedendo a excrementos: não eram as ruas verticais dos pobres, foram construídos com dinheiro privado, e eram maciços, pesados, e foram construídos amplamente sobre solo valioso – um solo desde sempre valioso Doris Lessing, The Memoirs of a Survivor

1 Psycho–motorische Geräuschaktion (Aktion 39)1 é uma ação para a câmera encenada sob a guia de Otto Mühl (1967), composta de sete pequenos blocos atomizados, quase todos com pouco mais de um minuto. Quatro homens, de calções, em plano frontal, sentados em um banco. Cada um deles agita, à frente da virilha, uma pequena garrafa, primeiramente em gestos lentos – o movimento quase nunca ultrapassa alguns poucos centímetros –,   Há vários filmes vinculados ao Acionismo de Viena (dentre os quais o registro de algumas ações de Otto Mühl) disponíveis em http://www.ubu.com/film/ vienna_actionists.html. São trabalhos muitas vezes feitos com acesso mínimo a recursos técnicos (embora frequentemente muito ousados em sua montagem) e quase sempre em 8mm.

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e progressivamente mais frenéticos e desajeitados, as feições convulsionadas, até que o jorro se lança a partir de cada uma das garrafas, os corpos caem no chão, uns sobre os outros, molhados pelo conteúdo das garrafas, e por tinta, pó, pigmento que cai do extracampo. Há algo como o rito de uma retomada perversa da infância, a descoberta do desejo se confunde com uma turbulenta ameaça de violência, se desconhecem as fronteiras do corpo do outro. O movimento espasmódico é interrompido por um segundo movimento, denominado passacaglia em ré: a referência musical desvenda algo da estrutura dessa ação, na qual as variações sobre o mesmo tema são substituídas por um princípio de deformação que se impõe sobre a repetição mecanizada dos mesmos gestos e que deriva em espasmos, confundindo excesso e inapetência, força e dissolução do controle corporal, os corpos tendendo sempre ao engatinhar, ao arrastar, à mistura com outros corpos, com o chão, com matérias aquosas e pastosas que abundam. A infância – não apenas um imaginário infantil reposto como cena, mas também uma infância do cinema, o gracejo grosseiro e violento da primeira comédia física – refluem como pesadelo. As ações encenadas por Mühl e Kren compõem uma espécie de mosaico de frestas invisíveis do panóptico filmado por Wiseman, onde a domesticação dos gestos, a constituição de si pela disciplina das técnicas corporais diversas simultaneamente falha e é reafirmada: a ausência de um poder visível não revela algum “eu” autêntico, um desejo liberado, mas grotescas ficções de poder, estilhaços de sujeitos em uma mimese sem fim de ritos de submissão.

2 Em Sodoma, dirigido por Mühl e Kurt Kren em 1970, vemos pequenos fragmentos de ação que se repetem de modo circular: homens e mulheres sodomizados, individualmente ou em grupo, em um pântano, uma casa, nas bordas da cidade; um encontro amoroso fortuito que se converte em espancamento, submissão e animalização do outro; um grupo de homens nus que amarram e amordaçam uma mulher em cima de uma mesa, em preparação A véspera do fim do mundo: fragmentos distópicos, patologias do poder


para uma espécie de penetração escultórica de sua vagina, tomada por um acúmulo de feixes de bastões e cobertos por tinta e matéria orgânica; planos fechados de um pênis que se converte em parte de um cesto de restos, se misturando às vísceras de um peixe (em referência a Aktion 2, de Rudolf Schwarzkogler e Hans Cibulka, 1965); um homem nu que toma café e lê jornal, em um apartamento, servido por uma mulher nua que engatinha, transformada na mesa de uma sala, enquanto se introduz uma mangueira em seu ânus. Esses fragmentos de ação, que apontam para pequenos e esquemáticos roteiros de experiências, como a desvendar uma estrutura essencial de opressão que se oculta no encontro amoroso e conjugal, culminam em um banho de fezes e líquido fecal no qual se banham homens nus ao redor dessa mulher que tem seu ânus devassado por uma mangueira. “Para os burgueses, os operários comunistas são tão feios e sujos como partes sexuais e peludas, ou partes baixas: e cedo ou tarde vai haver uma escandalosa erupção, durante a qual vão rolar cabeças de burguês, nobres e destituídas de sexo”2. Bastaria então o recurso à fecalidade, à matéria em decomposição, à glossolalia que transforma a articulação linguística em um emaranhado sonoro povoado por risadas, murmúrios e gemidos, ao desarranjo paratático no corpo e na ação para trazer à tona as relações humanas reprimidas pela superfície da estrutura capitalista3? A trajetória em obra e vida de Otto Mühl parece apontar para o contrário, para a ausência de uma utopia afirmativa, para uma deformação radical do laço social no mundo moderno. Mesmo o abandono da arte em busca de uma práxis comunitária, de conteúdos vividos como irracionais, porque reprimidos, parece conduzir Mühl a uma paródia perversa de dominação totalitária: Otto Mühl, duas décadas depois de fundar uma comunidade anticapitalista, é preso acusado do estupro sistemático de mulheres e crianças.   BATAILLE, Georges. O ânus solar. Lisboa: Hiena, 1985. p. 16.

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FLICKINGER, Hans-Georg. Marx e Hegel: o porão de uma filosofia social. Porto Alegre: L&PM, 1986. p. 14.

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“Pio XII prosseguia dizendo que o único caminho verdadeiro é virar a lata de pedras, vira a lata de pedras, diz Pio XII; o barulho produzido pelas pedras é história. Prosseguiu César dizendo que o século XX pretende movimentar muito a lata de pedras; mas somente isso: agitar mais rapidamente que os outros séculos”4. Lugar público, de José Agrippino de Paula, é um emaranhado de tramas e vidas paralelas, rascunhadas em blocos quase independentes e intercambiáveis: os parágrafos se sucedem, em tamanhos e tons variados, do quase-aforismo ao fluxo de consciência, em uma dinâmica combinatória que prescinde da sucessão como ordem – nem causalidade, nem passagem do tempo. O “barulho das pedras” aporta abruptamente, sem explicação prévia ou consequência – o golpe de 64, os confrontos nas ruas, a atmosfera geral de opressão e paranoia aparecem como relatos brutos em meio a uma profusão de rascunhos. Tratar-se-á sempre do mesmo lugar público, em uma espécie de cartografia psíquica da cidade por onde rondam espectros da história: Pio XII, Napoleão, Cícero, Dario, os “amigos” do narrador, não passam de significantes móveis, nomes que, para além da alusão derrisória à grande história não guardam em si substancialidade alguma, todos os seus traços e trajetórias sãointercambiáveis, nada há que nos permita afirmar que é a mesma personagem em mais uma peripécia. São pouco mais do que rabiscos, cujos traços físicos e psicológicos mínimos permanecem nebulosos e cujas ações são apresentadas de modo sumamente esquemático. O mesmo caráter rapsódico e cambiante se repete na configuração das múltiplas personagens femininas com as quais ocorrem os encontros amorosos do narrador. Seus nomes apontam para nada além de variações em série: Lili, Lena, Lila, Lisa e Nina. Mas mesmo quando há traços gerais que indicam uma recorrência há sempre novos elementos a

PAULA, José Agrippino de. Lugar público. São Paulo: Editora Papagaio, 2004. p. 81. 4

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embaralhar essa percepção de unicidade. São suportes vazios, aparições ocas, cuja única essência é justamente não possuírem essência alguma. Esses personagens nada modelares, proteiformes, são tão transitórios quanto os espaços e acontecimentos, topoï atomizados, votados à dissolução, em uma passagem infinda que se materializa narrativamente em feixes de percursos que nunca acabam. Há trânsito, passagem, e a fatuidade de errantes tentados pelo suicídio, desesperados por companhia e por solidão. A serialização descontínua de Lugar público implica em uma espacialização do tempo do qual decorre uma impossibilidade de constituição de si, e mesmo o sujeito-narrador é descontínuo, efeito de múltiplas introjeções e incorporações, de modo que o ponto de vista se segmenta sem que se autonomizem distintas vozes: por vezes fala um “eu” , por vezes se fala de um “ele”, e testemunhamos mesmo a dramatização de um diálogo entre um ele e um ele mesmo5. Uma profusão de duplos, falsos “eu”, que se embatem em busca de descobrir a natureza da ligação que os une sem que se alcance qualquer resposta. Lugar público parece-me criado em um universo espiritual no qual também emergiu outro trabalho significativo feito em tempos sombrios: as performances para câmera (8mm) e fotografia realizadas por Ion Grigorescu. Realizadas em um contexto de extremo isolamento, o trabalho de Grigorescu (penso aqui sobretudo no filme Boxing, 1977) multiplica as imagens do artista, quase sempre confinado em seu quarto, como a sugerir a fratura do “eu” em um contexto autoritário no qual se multiplicam segredos e mentiras.

4 “Na origem é uma coleção incoerente de desejos – esse é o verdadeiro sentido da expressão corpo fragmentado – e a primeira síntese do ego  Sobre Lugar público, ver VASCONCELOS, Maurício Salles. “José Agrippino de Paula”. In: Sibila, 31/03/2010. Disponível em: http://sibila.com.br/critica/ jose-agrippino-de-paula/3504. Acessado em 01/08/2017.

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é alter ego, é alienada. O sujeito humano desejante se constitui em torno de um centro que não é senão o outro que fornece sua unidade, e a primeira abordagem que tem do objeto é o objeto enquanto objeto de desejo do outro6”. Se considerarmos que a linguagem efetua um pacto, uma troca e uma distribuição primevas – o acordo que ordena o desejo em uma partilha fundamental entre o meu e o seu, o eu e outro – as ruas em que se espraia o Lugar público consubstanciam a figura de uma paranoia estruturante: nem subjetividade nem alteridade, mas apenas as múltiplas máscaras de um terceiro generalizado, o outro que é um “eu” mas que somente enxerga ou escuta em si a forma de sua própria anulação, os múltiplos fantasmas da submissão. Na fragmentação que multiplica seres fantasmáticos por todo Lugar público, na indiferença e alienação nas quais “eu” se converte em “ele”, pois não há outro possível, talvez se anteveja a forma da experiência estética possível da dominação generalizada: fora da gaiola de aço só restaria parataxe, desmembramento, destituição de si, fim do sujeito e da linguagem. E a própria matéria da opressão irrompe sintomaticamente como um real que quebra o jogo de espelhos, material documental bruto que interrompe periodicamente a deambulação, revelando sua contraface de horror e morte.

5 “Eu e John Wayne continuamos batendo os pés no corredor e entramos no depósito de barbas. Eu chamei o funcionário encarregado das barbas, que estava dormindo sentado à mesa. O funcionário acordou assustado e pedi o mostruário das barbas. Eu e John Wayne percorremos o mostruário e escolhemos a barba 453 do século X antes de Cristo. O funcionário correu entre as estantes onde estavam dependuradas as barbas e trouxe a barba número 453. Eu coloquei a barba em John Wayne e pedi que ele se afastasse para olhar melhor o   LACAN, Jacques. El seminario 3. Las psicosis. Barcelona: Paidós, 1986. p. 61.

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espelho”7. Como um artista pop, José Agrippino de Paula vê o cinema em PanAmérica como um manancial de ícones do cinema hollywoodiano. São artefatos midiáticos, desprovidos de subjetividade, sem profundidade: DiMaggio, Marilyn, Wayne são figuras robotizadas, que circulam de um cenário aleatório a outro como parte de uma grande narrativa que ultrapassa o próprio romance, a epopeia dos destinos de um delírio coletivo8. Os atores se transformam em protagonistas de uma espécie de cinema mental, um desfile alucinatório, um jogo de espelhos, no qual se encena a filmagem da narrativa fundacional da destinação coletiva no ocidente, a Bíblia. Um épico dentro de outro, em abismo, que se converte em um delírio tirânico, fruto de um autor que não podemos de fato determinar. Relata-se o cinema como fenômeno econômico, no qual a destruição e a morte (de equipamentos, de cenários, de figurantes) põem em cena uma contabilidade macabra: o que importa é que a tomada que “valeu”, e em meio aos restos ainda fumegantes o produtor adentra o estúdio, abraça o diretor e o chama para almoçar. O mar de gelatina verde, a nuvem de chamas artificiais, as estrelas dependuradas no ar por cabos de aço: tudo isso irmana o espetáculo grandioso e a produção em sua feição econômica e autonomizada, o imaginário e o material emergindo simultaneamente no mesmo gesto ficcional. A narração da filmagem multiplica os pontos de vista, em velocidades variáveis, ao modo de uma edição paralela, em uma substituição da causalidade pela justaposição, já praticada   PAULA, José Agrippino de. PanAmérica: epopéia. São Paulo: Editora Papagaio, 2001. p. 19.

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Ver BEAUVAIS, Yann. “Du cinéma selon José Agrippino de Paula”. In: La Furia Umana, mar./abr. 2010. Disponível em: http://www.lafuriaumana.it/ index.php?option=com_content&view=category&id=51:la-furia-umana-nd-4springtime-2010&Itemid=61&layout=default. Acessado em 01/08/2017; HOISEL, Evelina. Supercaos: estilhaços da Cultura em PanAmérica e Nações Unidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.

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anteriormente em espetáculos e happenings concebidos por José Agrippino de Paula em parceria com Maria Esther Stockler e o grupo Sonda: Tarzan do III Mundo, Planeta dos Macacos e Rito do amor selvagem 9.

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PanAmérica é ainda um cartum psico-sexual-latinoamericanista, figuração farsesca da nossa questão meridional e do combate antiimperialista: Joe DiMaggio é um gigante [em uma composição que deve tanto à Odisseia quanto aos filmes de Simbad], encarnação da potência norte-americana, dotado de um pênis de dois metros, que destrói um estádio de beisebol aos pontapés em uma explosão de fúria. A sua aparição faz irromper em PanAmérica uma outra América: evoca-se um golpe de estado, tumultos entre camponeses, operários, soldados e revolucionários, marines desembarcam, comunistas tomam o poder para serem logo na sequência executados pelos mesmos marines. Mas, assim como em Lugar público, a lógica que vigora é reversível, e não propriamente uma reviravolta de trajetória para esse “eu” esvaziado que narra um acúmulo de acontecimentos. “Eu desci do ônibus e a multidão gritava com ódio agitando os braços para o porta-aviões Lyndon Johnson, que atracava no cais. O porta-aviões levava uma multidão de fuzileiros navais norte-americanos em silêncio. Os milhões de capacetes imóveis cobriam toda a pista do porta-aviões. A imensa quilha de ferro se aproximava lentamente do cais enquanto a multidão que se encontrava no cais gritava furiosamente contra a aproximação do porta-aviões. Eu gritei espremido na multidão irada. O porta-aviões, que transportava o batalhão de marines, atracou no cais, e a multidão se dispersou em pânico. Eu balancei os pés na longa mesa de mármore do frigorífico e olhei para as altas e volumosas cabeças dos comunistas que tinham sido   Acerca desses espetáculos, ver MADAZZIO, Irlainy. O vôo das borboletas: a obra cênica de José Agrippino de Paula e Maria Esther Stockler. São Paulo: ECA/USP, 2006. [Dissertação de mestrado]

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enforcadas depois da invasão dos marines. De capacete de aço, farda e metralhadora eu montava guarda no frigorífico sentado na laje de mármore e meus pés estavam soltos no ar”10. Insinua-se uma conversão: o narrador se alinha aos rebeldes durante o desembarque. Se identifica com a multidão e grita contra a chegada dos marines. Caso a troca de lado se confirmasse narrativamente, teríamos o tempo do relato em um mesmo compasso que o tempo interior do narrador, a empatia do estrangeiro que se torna povo acompanharia o movimento do levante contra a invasão militar. Mas com a vertiginosa reaparição do protagonista como sentinela de uma morgue de execuções, completamente injustificada em termos dramáticos, o que ocorre é a reafirmação de um mecanismo de justaposições: em PanAmérica, não há uma lógica consequencial ordenando a sucessão de ações. Se a Odisseia é o épico da constituição do sujeito enquanto consciência de si, PanAmérica é a epopeia do regresso ao não pensado e ao corpo dilacerado11.

7 “Camp é uma visão do mundo em termos de estilo – mas um estilo peculiar. É a predileção pelo exagerado, por aquilo que está ‘fora’, por coisas que são o que não são. O melhor exemplo está na Art Nouveau, o estilo Camp mais típico e mais plenamente desenvolvido. Os objetos Art Nouveau tipicamente transformam uma coisa em outra coisa: elementos para iluminação na forma de plantas florescentes, a sala de estar que em realidade é uma gruta. Um exemplo a ser destacado: as entradas do metrô de Paris projetadas por Hector Guimard, no fim da década de 1890, com ramos de orquídeas em ferro fundido12”.   PAULA, José Agrippino. (2001). op. cit. pp. 102-3.

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Sobre essa questão, ver MORAES, Felipe Augusto. A arte-soma de José Agrippino de Paula. São Paulo: FFLCH/USP, 2011. [Dissertação de mestrado]

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SONTAG, Susan. “Notes on camp”. In: Against interpretation and other essays. Londres: Penguin Classics, 2009. p. 217.

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Hold me while I’m naked (1966), de George Kuchar, transforma a pobreza e a escassez de meios em matéria para realização de um épico em miniatura, uma homenagem ao grande melodrama hollywoodiano em uma redução que acentua seus traços, tal como seria a maquete de um navio em uma garrafa, ou uma ferrovia de brinquedo. Autobiografia ficcional, narra-se a história de um fracasso contínuo, de uma impossibilidade: a de constituir um estilo elevado adequado à matéria nobre com que um diretor independente (encenado pelo próprio George Kuchar) pretende alcançar o mérito artístico. Povoado de quinquilharias kitsch, estourando em cores saturadas, expondo o drama do seu criador em meio ao figurino estilisticamente indefinido, Hold me while I’m naked trai um “espírito de extravagância”, uma cornucópia sonora e visual na qual o original e a cópia, o natural e o artificioso são postos em planos de equivalência – e talvez os momentos mais tocantes de verdadeiro engajamento subjetivo surjam na única incursão na natureza, através da qual o diretor tem um encontro de ternura e identificação com um pássaro de enfeite, ou nos carinhos trocados pelo galã e a boneca inflável. Hold me while I’m naked realiza duas operações reversas e complementares: cobre de irrealidade seu modelo, a verossimilhança dramática do grande melodrama dos anos 1940 e 1950, apontando o desejo, as motivações sexuais pedestres que permaneciam em denegação (por exemplo, no cinema de um dos modelos devorados por George Kuchar, Douglas Sirk) e, de modo complementar, traveste de realismo o mundo hiperartificioso da dupla representação que se põe em cena: é somente no clichê mais saturado que a solidão e o desejo doravante poderão ser ditos.

8 “Hitler Terceiro Mundo (1968) é um filme de colagem e de improviso. Tanto uma quanto outra se concebem segundo uma

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noção formulada por José Agrippino de Paula quando diretor do grupo de teatro Sonda – a mixagem: “o processo de trabalho do SONDA poderia ser chamado de mixagem (...) os vários componentes heterogêneos: cenários, elementos de cena, texto, som, podem correr paralelamente em linhas independentes formando montagens simultâneas de significado que resultam na arte-soma (...) o objetivo criativo nasce livremente e contém em si todas as manifestações que historicamente estão integradas em nós: o show, a dança, o teatro, o circo, o happening, o cinema, os rituais, nas suas formas mais arcaicas, primitivas e contemporâneas50”. Blocos de cenas se sucedem em uma lógica que é sobretudo da contradição e do enfrentamento, reforçadas pela banda sonora ou reforçando-a. Essa última é como um análogo material dos procedimentos que perfazem a poética do filme: creditada a um genérico e inexistente José Maurício Nunes, espelha contribuições diversas que resultaram em uma matéria sonora diversa, prenhe de procedimentos não apenas heteróclitos como frequentemente em franca contradição entre si. Cochichos, ruídos, sobreposições diversas, inversão do magnético de áudio se misturam a canções pop e comentários em off também oscilantes, variando da paródia cínica ao recorte de discursos políticos vários, sussurros que insinuam a violência política e a tortura, passando pelo fluxo de consciência e por aproximações da poesia sonora. Há algo como uma justaposição entre som e imagem no horizonte do provável, uma aleatoriedade controlada, por meio da qual o(s) narrador(es) aponta(m) para acontecimentos outros do que aqueles que estão na imagem, em uma pluralidade temporal pautada pela simultaneidade. Poderíamos comparar ao efeito gerado por uma multidão de divindades que oscilam, pulando de cavalo em cavalo, em discursos sempre interrompidos, mudanças súbitas de perspectiva e corpos

PAULA, José Agrippino de. “Rito do amor selvagem: programa da peça”. In: Arte em revista, n.5, Centro de Estudos de Arte Contemporânea de São Paulo, mai. 1981. p. 97.

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tornados forças que irrompem e se vão, sobre os quais não se tem controle nem necessariamente compreensão adequada. Esse efeito-sujeito integra o compósito tendente ao informalismo que compõe a face final de Hitler Terceiro Mundo: uma rapsódia de situações de poder, usualmente encenadas em performances de forte caráter físico e marcadas pela intervenção do extraordinário no espaço urbano. São claramente ações desprovidas de teleologia, improvisadas, retomando a lógica criativa dos happenings concebidos à mesma época por José Agrippino e Maria Esther, e que espelha o processo criativo também improvisado, pobre e nas margens da legalidade que marcam a filmagem de Hitler Terceiro Mundo: pouco mais de um ano de filmagem, em dias e horários de folga, equipe mínima (técnica limitada quase que ao fotógrafo Jorge Bodanzky14), atores emprestados do grupo dirigido por José Agrippino e Maria Esther, restos de negativo empregados como matéria sensível, estrutura de produção que não ia além de cenários reaproveitados (de outros trabalhos de José Agrippino e de Maria Esther, mas também de O Balcão, de Jean Genet, que Victor Garcia dirigia para a companhia de Ruth Escobar e cujo registro vinha sendo feito por Jorge Bodanzky) e de uma Kombi de produção. Parte das ações – e de seu dispositivo cênico – emerge do primeiro trabalho coletivo realizado pelo grupo SONDA, Tarzan Terceiro Mundo, redigido em parte por José Agrippino e Maria Esther, ainda no influxo do trabalho em performance que ela havia realizado em Nova York (estudando com Martha Graham) e no Brasil (coreografando cenas de O rei da vela, dirigida por José Celso Martinez Corrêa, e Poder negro, dirigida por Fernando Peixoto, ambas para o Teatro Oficina). As ações em espaço público que compõem o filme, em espelhamento com a pobreza de sua condições materiais, são quase que atentados poéticos, tomadas clandestinas das ruas, focos desestabilizadores que se valem dos signos da cultura de massas como pretexto para 14   Sobre isso, ver o relato feito por Jorge Bodanzky em MATTOS, Carlos Alberto. Jorge Bodanzky: o homem com a câmera. São Paulo: Imprensa Oficial, 2006.

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contornar a face policialesca da ditadura. É, nesse sentido, exemplar o emprego da polícia como parte da encenação de Hitler Terceiro Mundo, empregada para prender O Coisa. Mas há ainda o enorme samurai que improvisa e desafia o público com sua espada, como em uma paródia grotesca da exposição pública de símbolos belicistas pela ditadura. Mesmo com a enorme cota de liberdade concretizada por essas ações improvisadas em espaço público militarizado pela presença da ditadura, é imprescindível lembrar que toda esperança respira mal em Hitler Terceiro Mundo: o samurai que performa para uma plateia de transeuntes, em uma duplicação da representação, e ameaça suicídio diante da impossibilidade de por fim à proliferação de duplos nas várias telas televisivas, é o mesmo que joga legumes para as crianças de uma favela, como animais em um zoológico, antes de amontoá-las em uma Kombi em um simulacro de sequestro, em mais uma duplicação, com a qual se projeta no clichê da cultura de massas – o samurai – os impulsos de extermínio reais que povoam a periferia urbana. Hitler Terceiro Mundo é um filme sem primeira pessoa, como se não fosse possível integrar sujeitos às ações, em uma combinatória quase infinita na qual esses signos esvaziados, que mal chegam a constituir personagens, poderiam ser o suporte de quaisquer ações possíveis, abandonando a própria ideia de consistência dramática. Essa fratura subjetiva se espelha na incompletude dos espaços urbanos de uma São Paulo periférica e pós-colonial, onde o novo se funde na paisagem imediatamente à ruína, como o edifício modernista que ladeia o rio transformado em esgoto a céu aberto. O próprio desenvolvimento da cidade multiplica suas zonas periféricas, seus terrenos baldios, os lixões e várzeas abandonadas e reocupadas, em uma possível cosmologia varzeana que José Agrippino partilha com Ozualdo Candeias15.

15   Ver MACHADO JR., Rubens L. Ribeiro. “Uma São Paulo de revestrés: sobre a cosmologia varzeana de Candeias”. In: Significação, UTP, v.28, pp. 111-31, 2007.

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“Compreendemos melhor, desde já, por que o nacional-socialismo não representou simplesmente, como disse Benjamin, uma ‘estetização da política’ (ao qual bastaria responder, ao modo de Brecht, com uma ‘politização da arte’, no que um totalitarismo é também bem capaz de se transformar), mas uma fusão da política e da arte, a produção do político como obra de arte (...) A característica do nazismo (e sob mais de um ponto de vista do fascismo italiano) é de ter proposto seu próprio movimento, sua própria ideologia, e seu próprio estado como a realização efetiva de um mito, ou como um mito vivo. Como diz Rosenberg: Odin morreu, mas de um outro modo, enquanto essência da alma germânica, Odin ressuscita diante de nossos olhos”16. O jardim das espumas (1970), de Luiz Rosemberg Filho, partilha com Hitler Terceiro Mundo um horizonte espiritual: a possibilidade de um fascismo latino-americano, não apenas enquanto um continuum histórico – referências reais partilhadas que teriam sido concretamente retomadas em práticas políticas e escolhas ideológicas –, mas sob a forma de uma mitologia – uma decifração e uma resposta comuns ao enigma identitário –, emoções e conceitos que formariam uma mesma figuração histórica17. O que implica na determinação de uma configuração alegórica de base, formativa para as “regras do jogo” do universo distópico que se constitui em O jardim das espumas. Uma abordagem mais banal seria a compreensão desse universo como uma espécie de dizer indireto: uma espécie de representação didática do terror das ditaduras latino-americanas em seu papel de controle social e de   LACOUE-LABARTHE, Phillipe; NANCY, Jean-Luc. Le mythe nazi. Paris: Éditions de L’Aube, 2005. pp. 49-50. Tradução do autor.

16

Sobre isso, ver SOARES JR., Luiz. “O jardim das espumas: uma máquina de guerra”. In: À pala de Walsh. 30/12/2014. Disponível em: http://www. apaladewalsh.com/2014/12/o-jardim-das-espumas-uma-maquina-de-guerra/. Acessado em 01/08/2017; FERREIRA, Jairo. Cinema de Invenção. São Paulo: Max Limonad, 1986.

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preservação do pacto de nossas elites locais com o imperialismo norte-americano. Para tal bastaria religar os fios da dispersão performática à narrativa mínima, rarefeita: um representante dos países ricos é sequestrado por um grupo guerrilheiro, e percebe que seus planos de acordos comerciais são irrealizáveis naquele continente infértil (San Vicente) quando do seu resgate e da prisão e tortura de seus algozes. Mas o caos aparente se sustenta por uma estrutura que não é meramente a de uma trama dispersiva, um panfleto que não se assumiria como tal: há uma ritualística generalizada, um cerimonial universalizado que simultaneamente decorre e instaura uma corrupção generalizada de todas as relações, de toda a linguagem, de modo que o horizonte último de tudo que se fala ou se faz em O jardim das espumas é a tortura. Pouco antes de O jardim das espumas, se almejou, na ressaca e como resposta ao golpe, trazer a fala política para o centro mesmo da cena – Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, O bravo guerreiro (1968), de Gustavo Dahl, O desafio (1965), de Paulo César Saraceni, são formas de figurar essas exumações da derrota, uma psicopolítica da conspiração e do segredo – dessa linguagem do poder somente restaram comandos esvaziados, serialidade estilhaçada, alogicidade pseudodemonstrativa cuja lógica é ainda mais irretorquível por mimetizar como enlouquecimento a tentativa de ordenar o mundo. Se entre o que homens e mulheres falam e fazem há um hiato, O jardim das espumas materializa a pretensão psicótica de subsumir o mundo na linguagem, numa logorreia infinita, que se expande dos agentes do poder ao bando marginal e se multiplica no comentário em off incessante que atravessa o filme. A banda sonora invulgar realizada por Luiz Rosemberg parece materializar a transformação do fascismo num sopro que atravessa o mundo, um murmúrio generalizado, que passa por todos os corpos e todas as bocas que podem ser, e serão, em algum momento suportes do mesmo. Esse murmúrio assume a forma de um comando que se diz de vários modos, mas sempre diz o mesmo, o mesmo desejo de morte, de

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morrer e ser morto. A única realidade é aquela criada por esse discurso que funde “emoções revolucionárias com conceitos reacionários”. Em O jardim das espumas se passa imediatamente dos salões do poder para os terrenos baldios e lixões, como se a usina infernal do poder se revelasse de modo imediato, e a opressão marcasse os corpos em sua constituição mais fina. Nesse mundo sem sujeito, a única subjetividade que resta é uma espécie de patologia do poder.

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Distopia queer André Antônio

Realizar A seita (2015) foi, em grande parte, retornar às paisagens que fizeram parte da minha infância até mais ou menos os 10 anos de idade. Eu morava no bairro de São José, uma região central, porém decadente do Recife. Havia, bem próximo, algumas ruas comerciais, mas havia também muitas partes desertas, principalmente nos arredores de antigas fábricas abandonadas que faziam parte de um passado industrial recifense que eu desconhecia. Eu lembro que, ainda criança, esses lugares-fantasma exerciam uma espécie de fascínio em mim. Eu tinha um certo prazer quando tinha a chance de passar por eles. Minha imaginação ficava atiçada, como se aqueles estilos arquitetônicos estranhos, aquelas rachaduras e pinturas descascadas guardassem um mistério que, quem sabe um dia, eu poderia desvendar. A aura desses lugares vez ou outra retornava em sonhos. Em A seita, eu queria preservar essa aura. O protagonista vaga por esses lugares como quem passeia por locais que não vê há muito tempo. Não se tratava de fazer uma “denúncia” pelo fato daqueles lugares estarem abandonados. Tratava-se antes de usufruir aqueles lugares justamente por seu caráter de ruína, cercando-se de uma ficção distópica onde o que prevalece é um certo sentimento de fim. Haveria essa espécie de gosto perverso pela decadência e pela distopia uma conexão com a sexualidade e a estética queer? Nestas páginas, resgato uma certa discussão da teoria queer relacionada ao que se chamou a sua “virada negativa”, para esboçar algumas reflexões sobre o queer e suas relações com o distópico. Brasil Distópico

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Queer incômodo

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Sempre que se recorre à palavra “queer”, parece difícil não sentir algo da energia incômoda que se vincula à sua história. Trata-se de um significante tradicionalmente relacionado àquilo que é estranho, ruidoso e inconveniente muito antes de ser o designador de uma sexualidade diferente da padrão. Apenas muito recentemente, na esteira das políticas LGBT pós-Stonewall, é que a palavra foi “adotada” pelos integrantes das lutas identitárias por igualdade social, numa estratégia que lhe é recorrente: trazer para um campo semântico “positivo” um termo que surgiu com a função de designar uma negatividade. Assim, do mesmo modo que, no Brasil, o termo “bicha” – usado como xingamento contra toda uma geração de garotos efeminados – é adotado com orgulho por essas mesmas crianças agora adultas e seguras da sua identidade sexual, a palavra “queer” – apesar da sua carga sombria inerente – tem estampado, em muitas partes do mundo, cartazes coloridos de festas, nomes de mostras de cinema, teatro e performance, entrevistas com artistas e estilistas independentes, etc. No entanto, o fantasma da negatividade parece por vezes retornar, de maneira mais frequente que a desejada, para incomodar essa edificante narrativa de conquista dos direitos e de transformação do sofrimento passado em alegria presente. Ele parece continuar assombrando, por exemplo, na superficialidade insistente, anônima, vulgar e promíscua (uso esses termos como forma de descrever e não de julgar) dos ambientes virtuais e aplicativos de pegação gay masculina1; ou, justamente, em obras como A seita – fascinadas por uma sensação de vazio inconsequente, portadoras   Não posso deixar de lembrar o protesto exasperado do inspetor no filme francês L’inconnu du lac (2013), de Alain Guiraudie, o qual investiga assassinatos em uma área de pegação masculina. O policial confessa a um dos investigados que acha muito estranho o “jeito deles de amar”, jeito que implica não se importar em saber o nome da pessoa com a qual se fez sexo, frequentemente, inclusive, jamais tendo contato com aquela pessoa novamente, depois do ato.

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de um estranho e desesperançoso gozo. Pois há aqueles que não querem transformar a dor em alegria. Há aqueles que sentem um prazer inaudito, precisamente, na dor. Eles existem, e estão próximos, nas margens e cantos escuros, com olhos cintilantes e viscosos de vampiros. Quem fica do lado dos perversos, dos doentes, daqueles que, por um lado, incomodam tudo que é “padrão” mas ao mesmo tempo, por outro, também incomodam as lutas esperançosas dos LGBTs que afirmam que “somos todos iguais”? A palavra “queer” ainda parece aglutinar aqueles que, com um riso sarcástico, afirmam: não somos iguais nem jamais seremos.

Virada negativa Com efeito, nos debates acadêmicos recentes da teoria queer, é possível identificar, em meio aos escritos esperançosos sobre o potencial emancipatório da cultura LGBTQ, um notável interesse pela negatividade. Talvez sua face mais visível ou aglutinadora – já referenciada como uma espécie de “virada negativa”2 dentro da teoria queer, tal sua aparente incontornabilidade – seja a pesquisa do americano Lee Edelman, que resultou em seu livro No future: queer theory and death drive3. Aí, Edelman propõe, ao invés da transferência habitual do queer para o campo positivo e progressista da luta política, um retorno à negatividade original do termo como o locus da sua especificidade e de seu interesse. A discussão de Edelman – que tento expor breve e resumidamente a seguir – desenvolve-se a partir e através da teoria lacaniana. Toda ordem simbólica, toda episteme, é um sistema de significantes. Há aqueles que desejam a reprodução e a manutenção dessa ordem – os quais via de regra são denominados, no campo   Ver DE LAURETIS, Teresa. “Queer texts, bad habits, and the issue of a future”. In: GLQ: A Journal of Lesbian and Gay Studies, 17, 2-3, 2011.

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EDELMAN, Lee. No future: queer theory and the death drive. Durham, N.C.: Duke University Press, 2004.

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da política, de “conservadores”. Nenhuma ordem é mantida sem violência com relação ao que é eminentemente estranho, alheio ou perturbador ao seu funcionamento sistemático e à sua reprodução. Mas, antes de tudo, não é possível existir sistema simbólico sem que ele pressuponha, necessariamente, aquilo que lhe seria incômodo, destrutivo ou aberrante. Toda ordem, no mesmo movimento que se produz, produz também sua parte maldita, seu âmbito negativo. Pois toda ordem é um encadeamento relativamente sistematizado de significantes, e significantes, se por um lado ensejam significados – isto é, a parte luminosa e positiva de toda potencialidade epistêmica – por outro também são, meramente, significantes: marcas, rastros ou sinais completamente arbitrários e que revelam, portanto, a dimensão opaca e anódina da imanência das coisas. Toda cadeia de significantes existe para dar sentido – mas não pode haver sentido sem um outro que lhe é tão estranho, opaco e misterioso a ponto da ameaça de (auto)destruição. No mesmo movimento que nossa ordem produz um casal heterossexual saudável, que vai ter como função ou sentido a reprodução sistemática da ordem, ela também, inescapavelmente, vai produzir aqueles que vão desviar as funções, que vão, de maneira perversa, fazer estranhos e inconsequentes usos daquilo que fora criado inicialmente para o “bem” e para o “certo”. Nenhuma ordem existe sem que ela traga consigo seu outro: suas rachaduras, seus excessos inexplicáveis, seus ruídos, aquela brecha que escorrega para o seu vazio, para o girar anódino e aterrador de sua máquina. “Queer” é um dos nomes utilizados pela ordem quando ela se confronta com seus incômodos e suas brechas. Por um lado, o queer atrapalha o funcionamento reprodutivo da ordem simbólica por ser uma espécie de portal para uma outridade impensável nessa ordem; mas por outro, é, desde sempre, uma criação da própria ordem, num movimento desta de tentar classificar, etiquetar e separar aquilo que possa lhe corroer. É um significante – uma palavra: “queer” – criado pela e em relação à episteme. Distopia queer


O queer incomoda, mas nunca está “fora” da ordem simbólica, da maquinaria para cuja insensatez ele próprio aponta. Ao se valer de um significante como o “queer”, a ordem nomeia aquilo que é perigoso à sua possibilidade de reprodução. O que no campo político se chama “os conservadores” se propõe exatamente a atacar estâncias como o queer: por exemplo, sendo contra o aborto, ou contra a promiscuidade sexual (isto é, experimentações eróticas sem as funções pré-definidas de procriação, sem contratos como os do casamento ou que simplesmente extrapolem os genitais como zona erógena), contra, enfim, tudo que possa atrapalhar as lubrificadas e brilhantes engrenagens da máquina do sentido que regula a vida. Edelman chama esse desejo de reprimir e esmagar estâncias como as designadas pelo termo “queer” de futurismo reprodutivo. No discurso fantasioso que rege esse desejo, a ideia de futuro sempre está no comando. Se fazemos isto, é para assegurar um “futuro melhor” para nossas crianças. Todo ato de violência contra o queer é performado pela segurança de um “futuro melhor”, uma fantasia que nunca vai de fato se concretizar e que tem como função apenas assegurar a reprodução, a manutenção da ordem. Porém, segundo Edelman, se os “conservadores” querem reprimir tudo o que é “queer” pelo bem do futuro e da reprodução da ordem, os “progressistas” desejam ampliar a ordem, de modo que esta possa “aceitar” e incorporar os queers e todas as diferenças: “somos todos iguais”. Ao mudar o foco da violência repressiva para a ampliação inclusiva, as lutas progressistas, com seu afeto de esperança utópica, continuam, porém, com a fantasia do “futuro melhor para nossas crianças”. Ao acreditar que aquilo que de mais bizarro e diferente é na verdade algo que apenas precisa ser “aceito” na utopia de uma melhora ou ampliação da ordem simbólica, os progressistas são ainda regidos pelo futurismo reprodutivo. Eles continuam do lado da ordem, do funcionamento da máquina (mesmo que de uma Brasil Distópico

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máquina supostamente maior e “melhorada”). Sua crença no significado é tal que eles creem que a luz positiva da razão, com seu toque de Midas, é capaz de transformar qualquer dimensão perturbadora de outridade em algo de positivo e incluso na ordem. Por mais diferentes que suas estratégias e reivindicações políticas possam ser, os conservadores e progressistas compartilham o mesmo desejo: o da reprodução do sentido em prol de um futuro fantasioso. Eles estão, ambos, do lado da luz e da alegria produtiva – do lado da utopia – contra a escuridão insensata (que um quer combater e o outro quer “incluir”). O queer, em ambos os casos, continua sendo o significante utilizado para apontar aquilo que atrapalha o progresso linear em direção ao futuro; aquilo que apenas atrasa (se não for nem reprimido nem incorporado) a reprodução da episteme. 78

A pesquisa de Lee Edelman – enquanto “virada negativa” da teoria queer – é sobre o queer que, inseparável da ordem simbólica, não se deixa capturar por seu desejo fantasioso de um futurismo reprodutivo, isto é, não luta pela própria “inclusão”, pela positivação de sua essência negativa. É sobre o queer que, pelo contrário, assume o seu lugar enquanto queer – enquanto figura de negatividade relacionada a uma ordem epistêmica específica. Enquanto figura negativa, enquanto porta para a outridade impensável pelo sistema, enquanto força opaca, estranha e ruidosa, o queer não é regido pelo desejo (aquele que efetiva as ações políticas quer dos conservadores, quer dos progressistas), mas pelo impulso – mais especificamente o impulso de morte. Alheio à luta pela vida, a temporalidade queer não é o futurismo sublimador, mas o agora hedonista: o queer não deseja um futuro melhor para as crianças; ele é uma criança que só sabe aproveitar o presente, e seu presente é um playground em ruínas. Desalinhado com relação à edificação, à esperança e à moral, a principal dimensão afetiva do queer é o gozo (jouissance) – mesmo que o gozo (auto)destrutivo: um gozo distópico.

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Sexualidade como algo mais do que apenas sexo O que seria um cinema queer, na esteira do pensamento lacaniano de Edelman, isto é, na esteira do queer enquanto figura de negatividade, enquanto o locus significante que, justamente, aponta para a fissura e para a opacidade da ordem simbólica, para a arbitrariedade do seu funcionamento e para o caráter sempre falho de suas significações? Tentando trazer a discussão psicanalítica de Edelman para o campo da estética e para, precisamente, a discussão de produtos artísticos específicos, Teresa De Lauretis4 buscou definir o que seria um texto queer. Uma primeira e mais óbvia dimensão de um texto queer seria, é claro, sua dificuldade, isto é, seu caráter de alheamento com relação ao funcionamento pleno do sistema de significados da episteme. Do mesmo modo que o queer é estranho, ruidoso e incômodo, assim o seriam as obras queer. Mas, não teriam uma tal dimensão de dificuldade todas as obras chamadas, em outro contexto de discussão teórica, “modernistas” – todas as obras “de vanguarda” que experimentam com o sistema significante, distorcendo-o, expandindo-o, forçando-o a lugares inesperados, suspendendo, em suma, seu funcionamento habitual? No campo específico do cinema, estaríamos falando sobretudo daqueles filmes esteticamente desafiadores e inovadores: o “cinema moderno”. Porém, no mesmo movimento de quebrar com o funcionamento habitual – “sensório-motor”, que seja – do mundo sensível, esses filmes são geralmente vistos como portadores de uma centelha preciosa, chamada muitas vezes de “verdade”, que revela esperançosamente as possibilidades de um futuro outro, melhor. Mesmo, portanto, quebrando a temporalidade linear, de começo-meio-fim do cinema clássico, uma teleologia humanista essencial ainda habita a estética desse   Ver DE LAURETIS. op. cit.

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cinema, um voltar-se para o futuro, para as vidências do cristal do tempo5: uma utopia. Um paralelo com o que Edelman fala sobre os conservadores e progressistas aqui poderia ser útil: por mais expansivo e difícil que o cinema “modernista” seja, ele está do lado do desejo e não do impulso. É um cinema que não é conservador mas de modo algum é, por isso, um cinema queer – pois ele se configura através do futurismo reprodutivo de uma sensibilidade humanista e esperançosa. Além da dificuldade, então, é preciso de uma especificação e de uma precisão maior para definir o que seria uma arte queer: Posso chamar provisoriamente de “queer” um texto ficcional – seja ele literário ou audiovisual – que não só trabalhe contra a narratividade, contra a pressão genérica de toda a narrativa em direção ao fechamento e o cumprimento do significado, mas que também interrompa a referencialidade da linguagem e a referencialidade das imagens, o que Pier Paolo Pasolini, falando sobre o cinema, chamou “a linguagem da realidade” (...) Eis uma especificação necessária: um texto queer carrega a inscrição da sexualidade como algo mais do que apenas sexo (...) a sexualidade como enigma sem solução e trauma sem resolução – sexualidade como um excesso incontrolável de afeto que pode encontrar expressão textual apenas em uma linguagem figurativa, oracular, em imagens híbridas e conceitos elaborados.6

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A dificuldade própria às obras queers, assim, estaria ligada não a um desejo de esgarçar a ordem simbólica, a episteme contemporânea, em busca da fagulha redentora, em busca da revelação que pode nos dar esperança com relação ao futuro – mas sim a um impulso cujo tempo é um agora hedonista. Para a sexualidade queer, não basta embaralhar a narrativa linear cinematográfica clássica e   Ver DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2007.

5

DE LAURETIS. op. cit. pp. 244-45. Tradução do autor.

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no entanto continuar direcionando o afeto das imagens para o futuro. O afeto queer não pode ser “direcionado” – ele é um excesso ruidoso, incômodo, improdutivo. A opacidade do cinema queer, sua figuralidade desconcertante, seus hibridismos imagéticos, dizem respeito a um gozo sem função, um gozo que muitas vezes atrapalha e corrói o esperançoso progresso de outras lógicas estéticas – quer a lógica conservadora, quer a lógica mais sofisticada que busca a expansão e a melhoria de uma episteme por ora injusta e incompleta. Essa especificação tem uma consequência importante, a saber: uma obra de arte queer não pode ter como traço definidor, portanto, a temática LGBT. Esses filmes são “queer” não só porque exploram práticas sexuais e de gênero fora da heterossexualidade normativa e do sistema de gênero dicotômico. Eles são queer – de fato, mais do que apenas estranhos – porque perturbam as noções correntes de história e política, enquanto vão contra paradigmas convencionais de cinema.7

Muito da “virada negativa” da teoria queer estaria buscando, de fato, “a expansão do queer para além de quadros restritos que privilegiam a identidade sexual e os atos sexuais”8. E, nas obras de arte, eu diria, posicionar-se de modo parecido ao de Susan Sontag frente ao que ela chamou de imaginação pornográfica: isto é, enxergar nas obras “a originalidade, o rigor, a autenticidade e o poder dessa consciência perturbada em si, encarnada em uma obra”9 e não exigir, dos artistas, qualquer espécie de distância “sã” ou utópica dessa assustadora “consciência perturbada”.   LEUNG, Helen Hok-Sze. “New Queer Cinema and Third Cinema”. Em: AARON, Michele (Ed.). New Queer Cinema: a critical reader. New Brunswick: Rutgers UP, 2004. p. 166. Tradução do autor.

7

PUAR, Jasbir. Terrorist assemblages: homonationalism in queer times. Durham: Duke UP, 2007. p. 10. Tradução do autor.

8

SONTAG, Susan. “The pornographic imagination”. In: BATAILLE, Georges. Story of the Eye. London: Pinguin, 2001. p. 94. Tradução do autor.

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É possível filmar sujeitos queers, sujeitos que incomodam, de várias formas. É possível, certamente, enquadrá-los em uma ficção que determine seu locus de doença a ser combatida em prol de “um futuro melhor e mais saudável para nossas crianças”. É possível também, sem dúvida, colocá-los em cena enquanto revelação esperançosa de um porvir mais livre, em uma obra ela própria formalmente mais livre. Mas há ainda outra forma do queer se fazer esteticamente presente: enquanto um impulso sexual que estruture, com seu excesso afetivo ruidoso, a própria forma do filme. O sexo muito mais que apenas um “tema” do filme; a sexualidade queer como o próprio impulso destrutivo por trás do funcionamento de sua encenação e de suas imagens em busca não de uma sublimação espiritual na fantasia de um mundo melhor e com mais significado – mas de um gozo (jouissance) sem sentido, despudoradamente hedonista e amoralmente improdutivo. Dizer que um filme é queer porque ele tematicamente problematiza questões de gênero é trazer o queer para a dimensão da ordem simbólica e do significado. De Lauretis distingue, com efeito, os termos “gênero” e “sexualidade”, o primeiro referente à dimensão do ego e o segundo à do inconsciente. As obras queers estruturariamse por excessos afetivos e configurações formais advindas da sexualidade e não vinculados meramente ao tema do gênero: precisamos de uma concepção da sexualidade que vá além dos equívocos nebulosos do gênero, bem como das preocupações médicas com a funcionalidade reprodutiva (...) Ao contrário da sexualidade, o gênero é uma mensagem enviada e recebida no nível consciente ou pré-consciente (...) o gênero pertence ao ego, não ao inconsciente.10

O exemplo de filme queer fornecido por De Lauretis não possui como motivo central, de fato, uma “questão LGBT”: trata-se de Crash (1999), de David Cronenberg. Para De Lauretis, mais do que   DE LAURETIS. op. cit. pp. 248-51. Tradução do autor.

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“falar” sobre o estranho fetiche daquele grupo bizarro que reencena acidentes automobilísticos do passado envolvendo celebridades, Crash urde – através de sua fotografia ultra nítida e ultra iluminada, que deixa o mundo como que “chapado”, através da recorrência de superfícies refletoras e metálicas preenchendo os quadros, através do ritmo repetitivo, obsessivo e regular, como numa masturbação desapressada – uma diegese heterotópica11, um mundo outro, assustadoramente estranho e autodestrutivo, da ordem do inconsciente e alheio ao funcionamento da ordem simbólica. Via de regra, o “sexo” no cinema presentifica-se através de uma rápida cena que “indica” que os personagens fizeram sexo. A cena pode ser mais ou menos “erótica”, com mais ou menos nudez12, e pode ressoar mais ou menos na trama narrativa que envolve os personagens – mas qualquer que seja o caso, ela está protegida pelo significado, pela ordem simbólica. Num filme queer, pelo contrário – na esteira da discussão que tenho tentado até agora recuperar e construir aqui –, o sexo como que se espraia por toda a cadeia de significantes da obra, corroendo sua pretensão teleológica a um significado mais amplo (quer ele esteja no futuro virtual de uma sofisticada e esperançosa obra modernista, quer na linearidade narrativa de um filme mainstream), expondo o outro presente em qualquer sistema significante, seu lado inócuo, insensato, vazio, distópico. Essa exposição ocorre porque a cadeia de significantes, que antes estava dançando ao passo da significação, movimenta-se agora com o impulso destrutivo do gozo (jouissance), isto é, o aspecto determinante da sexualidade, e não do gênero.   Ibidem. p. 248.

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E via de regra, o sexo que é sugerido em tais cenas é fiel a certa ideia do senso comum de uma funcionalidade centrada nos órgãos genitais. Há, claro, brilhantes exceções a essa regra, como a (considerada) “longa” cena de sexo em Don’t look now (1973), de Nicolas Roeg. 12

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Distopia como regra geral Em A seita não há cenas de sexo. Lembro de, ainda na época do trabalho no roteiro, comentar com Chico Lacerda, montador e assistente de direção do filme, que eu queria captar aquela sensação algo melancólica de um vazio pós-punheta ou pós-sexo. No filme, sempre se está após o ato – quando é hora de, com um suspiro, procurar outra coisa com a qual preencher a mente – ou então na iminência do sexo. É como se o filme espelhasse aquela temporalidade infernal que frequentemente experimentamos nos sonhos, quando somos incapazes de pôr as mãos nos nossos objetos de desejo, ou quando já estamos muito depois deles, e eles se esvaem como uma memória irrecuperável. 84

Seria essa temporalidade construída no e pelo filme o espraiamento audiovisual de uma sexualidade queer – para além da mera representação, propriamente, de cenas de sexo – que, angustiadamente, nunca se satisfaz e, quando não está tentando pôr as mãos em um objeto de desejo inalcançável, está a lamentar um outro objeto que se perdeu para sempre? Não poderíamos estar mais longe da sexualidade “saudável”, quer com fins reprodutivos, quer com outros fins nobres. Estamos do lado de um afeto diferente: obsessivo, vampiresco, “doente”... queer. E talvez o dado mais importante de tudo isso é que o filme não almeja escapar dessa situação, superá-la. Antes, encontra-se fascinado por ela: quer investigá-la, aprofundar-se nela, vê-la e senti-la mais de perto, através da feitura de um filme. Um motivo menos nobre para fazer cinema? A seita se passa num futuro próximo, o ano de 2040, num contexto onde os ricos abandonaram a terra e foram viver em colônias espaciais. Mas esse ponto de partida ficcional é apenas a parte mais externa – um diálogo lúdico com o gênero de ficção científica – da distopia presente no filme. Em um olhar que, jamais alcançando seu objeto de desejo, só na ruína consegue

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encontrar uma morada, só em ironias camp consegue produzir seus enunciados, e só nas repetições consegue achar seu arco narrativo, há uma distopia de outra natureza. Não apenas relativa a um gênero da cultura de massa ou ao contexto de uma trama, mas uma distopia afetiva, estética, sensorial: uma distopia queer. Me parece que a noção de distopia, então, pode apresentar conexões fortes com o domínio do queer. O distópico, normalmente, dá medo, pois é aquilo que ameaça se estabelecer depois de algum “fim”: fim de alguma era, fim da humanidade, fim de uma forma determinada com que nossas sociedades são organizadas, fim de algo ao qual já nos sentimos seguros e habituados. É aquilo que acontece porque fracassamos em lutar pelo “futuro das nossas crianças”. A mistura aterradora entre humano e máquina é um tema recorrente das ficções distópicas: é a possibilidade do fim definitivo de qualquer empatia ou solidariedade para com nossos iguais. Enquanto os desejos utópicos reúnem forças e apelam para uma última lufada de humanização, o impulso distópico sente um fascínio pelo abismo, e se joga no labirinto infinito das arriscadas possibilidades inumadas. Ora, o queer – a afetação robótica de um carão blasé fashion, o sexo anônimo e arriscado, o artifício da maquiagem, a inconsequência da superfície, a indeterminação andrógina – sempre esteve do lado do androide, do humano misturado à máquina, e experimentando suas possibilidades. Muitos temem a distopia, assim como muitos temem as práticas, as atitudes e as estéticas queer. Nos anos 1960 – uma época obcecada por ficções científicas, fins do mundo e naves alienígenas – Andy Warhol criava uma arte fria, repetitiva, maquínica, brilhante e colorida. Enquanto muitos dos seus contemporâneos defendiam ou uma recusa completa ao mundo consumista da TV ou uma adesão às suas novas formas de controle, em seus diários ele confessa que apenas se sentia atraído pelo tédio da aleatoriedade televisiva, no qual poderia ficar mergulhado por horas, como um corpo num devir de máquina. A

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arte queer parece continuar essa tradição, mantendo-se negativa. Talvez isso tenha sua face mais visível justamente em obras que dialogam com a imaginação distópica.

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Há, com efeito, filmes onde a distopia é apenas uma desculpa narrativa para se investigar a possibilidade utópica, a esperança do renascimento. Mas há filmes onde o distópico, onde o negativo, onde o queer são a própria condição de relacionar-se afetivamente com o mundo. Assim, enquanto uns estão tentando achar formas de se livrar das situações e contextos distópicos, outros – os queers –, talvez de maneira algo menos ingênua e menos romântica, estão explorando formas de existir completamente imbricadas com a distopia. Se há alguém tão marginal à ordem simbólica a ponto de saber de modo claro que o estado de exceção distópico e sombrio é, na verdade, a regra geral (e não algo que ameaça chegar um dia, caso fracassemos) este alguém é o queer. O queer anda pelas ruas de uma cidade contemporânea como uma top model robótica desfila num show cujo tema é o futuro sombrio numa metrópole labiríntica e pós-humana.

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O avesso do futuro: memória, distopia e condição precária em Branco sai, preto fica Cláudia Mesquita

A encenação de presentes incertos e a especulação de “futuros” têm se tornado veículo, no cinema brasileiro recente, para figurações distópicas em que a experiência em grandes cidades brasileiras recebe tons sombrios, por vezes pós-apocalípticos. O isolamento espacial, social e político marcam os modos como alguns personagens aparecem em cena, maquinando revoltas, vinganças, intrusões, sem horizonte utópico. Na filmografia de Adirley Queirós e em outros trabalhos recentes (lançados a partir do ano de 2010), testemunhos e outros traços documentais convivem com desvios pela ficção, incluídos diálogos com gêneros industriais. Resultam dramaturgias realistas híbridas, empenhadas em figurar aspectos precários da experiência social em grandes cidades brasileiras, como a segregação espacial, a falência da vida em comum e a obsolescência precoce de pessoas e territórios.1   Agradeço a Ewerton Belico pela conversa em torno de Branco sai, preto fica, que me permitiu a atenção para algumas dessas características. O contato com as pesquisas de Tatiana Hora (UFMG) e Vitor Zan (Universidade de Paris 3), doutorandos que preparam, com suas teses, diferentes abordagens da filmografia de Adirley Queirós, também tem sido fundamental. Assim como a leitura das dissertações de Felippe Mussel (MUSSEL, Felippe. A cidade inimiga: o projeto de Brasília e o cinema de Adirley Queirós (dissertação). UFF, Programa de Pós Graduação em Comunicação Social, 2016) e Hannah Serrat (SERRAT, Hannah. O canto de um povo de um lugar: a palavra e o espaço no cinema de Adirley Queirós (dissertação). UFMG, Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social, 2016). Esse artigo é debitário de todos esses diálogos.

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Esta emergência da distopia como “ferramenta de análise radical” do presente2, bem como do caráter injusto de nossa formação social, já se fazia sentir, de maneira irônica e bem humorada, no premiado Recife frio (2010), curta de Kleber Mendonça Filho. O letreiro inicial (“daqui a alguns anos”) sinalizava o híbrido de falso documentário e filme de ficção científica, no qual a especulação de um futuro misteriosamente frio (em uma das cidades mais quentes do Brasil), acessado pelo espectador através de uma falsa reportagem de TV, alcançava ao menos dois efeitos: expor as contradições sociais e aporias urbanas de uma Recife bem presente; ironizar códigos e convenções da forma documental trivializada na televisão.

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Mesmo que muito diferentes entre si, longas mais recentes – como Branco sai, preto fica (2014), de Adirley Queirós, Batguano (2014), de Tavinho Teixeira e Medo do escuro (2015), de Ivo Lopes Araújo – também apresentam construções temporais intrincadas, nas quais o “presente” oscila entre uma atualidade reconhecível e um futuro especulado, e o passado comparece sob a forma de ruínas e memórias traumáticas, objetos técnicos obsoletos e despojos presentes nos espaços urbanos postos em cena (não-lugares de memória marcados mais pelo apagamento, pela obsolescência precoce, pela sobreposição desordenada de camadas temporais, do que por uma conservação refletida e programada do passado). Entre um passado que não passa e um futuro já presente, os espaços de grandes cidades brasileiras são trabalhados de modo a expor danos, precarização, exclusões. Entendemos que, se a confiança moderna no futuro está na base das utopias literárias e políticas, as narrativas distópicas dão forma ao assombro com o presente, buscando indicar “catástrofes   Ver HILÁRIO, Leomir C. “Teoria crítica e literatura: a distopia como ferramenta de análise radical da modernidade”. In: Anuário de Literatura, Florianópolis, v.18, n.2, 2013.

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que se perfilam no horizonte”3. Instigadas pela presença da distopia como forma de figuração e análise da nossa experiência social e histórica, propomos uma aproximação à filmografia de Adirley Queirós, cineasta de Ceilândia, cidade satélite criada em 1971 para abrigar milhares de moradores de favelas removidos de Brasília. Em seus filmes, especulações de futuro e outros desvios pela ficção aparecem como resposta crítica a uma história bem precisa: o planejamento, construção e paradoxal ocupação e expansão da capital brasileira, inaugurada em 1960. Contrariando a estética do apagamento, a ruptura com o passado e a proposta descontextualizante do projeto modernista de Brasília4, o cinema de Queirós se volta para a recuperação do passado recente, segundo o ponto de vista de quem habita a periferia (da cidade e da história). No entanto, no lugar de documentários históricos tradicionais, operam-se surpreendentes desvios pela ficção, que ora se torna abrigo de testemunhos e imagens de arquivo, ora abre espaço para reinvenções do presente e especulações distópicas. Em seus dois primeiros longas – A cidade é uma só? (2012) e Branco sai, preto fica (2014), filme que iremos privilegiar em nossa análise –, a apropriação inventiva de rememorações, imagens de arquivo e elementos de gêneros industriais permite não apenas confrontar a história oficial (a partir da periferia), como elaborar a atualidade de Ceilândia e as segregações que marcam a experiência cotidiana de quem vive no entorno da capital federal. Em conferência já célebre, de 1997, Pierre Bourdieu anunciava que “a precariedade hoje está em toda parte”5. O sociólogo   LOWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. SP: Boitempo Editorial, 2005. p. 32.

3

Ver HOLSTON, James. A cidade modernista: uma crítica de Brasília e sua utopia. SP: Cia. das Letras, 1993.

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Ver BOURDIEU, Pierre. “La précarité est aujourd’hui partout”. In: Contre-feux, Ed. Liber Raisons d’agir, Grenoble, dez.1997.

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se referia a um “estado geral e permanente de insegurança”, fruto do desemprego e da precarização do trabalho em escala mundial. Na experiência subjetiva, ao tornar o porvir incerto, a precariedade interditaria “o mínimo de crença e esperança no futuro que é preciso ter para se revoltar, sobretudo coletivamente, contra o presente”. Ela teria, portanto, efeitos anti-utópicos. Algo próximo ao que François Hartog (2013) indica como um dos traços definidores do “presentismo”, regime de historicidade no qual o “presente se impõe como único horizonte”6, sobretudo quando vivenciado pelos socialmente desfavorecidos: “a permanência do transitório, um presente em plena desaceleração, sem passado – senão de um modo complicado (mais ainda para os imigrantes, os exilados, os deslocados) e sem futuro real tampouco (...). O presentismo pode ser, assim, um horizonte (...) fechado em uma sobrevivência diária e um presente estagnante”7. Parece-nos que é justamente tal incapacidade de se projetar no futuro, marca da condição precária e periférica, que o cinema de Adirley Queirós desafia. Pois, não sem ironia, sua filmografia se permite confrontar o projeto utópico e futurista que norteou a construção de Brasília com “armas” que lhe são bem conhecidas: a ficção e a especulação de mundos. Entretanto, interessa-lhe mirar a atualidade de Ceilândia, cidade satélite que não constava do planejamento original da “cidade do futuro”. Para tanto, ao invés de apenas se ater ao “presentismo” que limita o horizonte precário dos moradores da periferia, Adirley recupera a história recente e   HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. p. 19.

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Ibidem. pp. 14-5. Ao contrário do regime antigo, caracterizado pela ascendência do “antes” sobre o presente, o regime de historicidade moderno teria sido marcado pela ruptura com o passado, pela abertura do futuro e pela crença no progresso. Já o “presentismo”, neologismo criado por Hartog para caracterizar, em contraste com o “futurismo” moderno, a crise contemporânea do tempo, seria vivido como um “presente onipresente”: o presente se impõe e há dificuldade para projetar e enxergar além.

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se autoriza as potências da ficção. No lugar da utopia moderna, então, entram em cena fabulações distópicas que se insurgem contra a condição precária, induzida e reforçada pelo Estado8, mas carregam suas marcas.

*** Para abordar um acontecimento real passado, sucedido em Ceilândia (DF), Branco sai, preto fica faz um desvio pela ficção científica, que se torna abrigo de rememorações e espaço para invenção deliberada de um futuro coletivo. Do ano 2070, aterrissa na atualidade de Brasília o agente Dimas Cravalanças, viajante no tempo incumbido de colher evidências de crimes cometidos pelo Estado brasileiro contra populações negras e periféricas. No centro de sua investigação, um episódio real: o fechamento violento, pela polícia, do baile black Quarentão, em Ceilândia, numa noite em 1986. Os atores Marquim do Tropa e Shokito, ex-frequentadores do baile, emprestam seus corpos e memórias aos protagonistas Marquim e Sartana, que no filme ruminam suas perdas e gestam um plano terrorista de ação (a ficção lhes permitindo elaborar uma resposta simbólica coerente com a enormidade do problema histórico em questão). Passagem entre um futuro ficcional utópico, tratado com ironia, no qual a recuperação das histórias dos moradores das periferias estaria respaldada pelas instituições (e a dívida do Estado brasileiro para com os pobres seria literalmente paga), e um passado real traumático, em que – ao contrário – os pobres tiveram   Em seu livro Quadros de guerra (2015), a filósofa Judith Butler nos diz que, embora a precariedade seja uma característica de todas as vidas, a “condição precária” designaria uma condição politicamente induzida, “na qual certas populações sofrem com redes sociais e econômicas de apoio deficientes e ficam expostas de forma diferenciada às violações, à violência e à morte”. BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. p. 46.

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sua presença na cidade mutilada pelo próprio Estado, situa-se o tempo dominante na narrativa: o “presente” de Ceilândia. Entre aspas: a atualidade já aparece especulada pela ficção, que distorce algumas características da ordem social e urbana de Brasília, de modo a tornar mais nítido o desenho distópico. Gostaríamos de examinar o que essa especulação aporta para uma abordagem crítica do presente de Ceilândia, incluída a intricada construção temporal de Branco sai, preto fica.

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Nossa hipótese é de que o episódio em questão (a repressão policial a um baile, ferindo e mutilando jovens negros) é tomado pela elaboração fílmica como paradigma da opressão continuada às populações periféricas em Brasília, expostas à “maximização da precariedade” e “à violência arbitrária do Estado”9. Nesse sentido, a encenação se empenha em figurar o presente, na contramão da promessa utópica, como terra arrasada: “um amontoado de ruínas de uma ficção anterior, aquela da utopia fracassada de Brasília”, segundo Mussel10. Mutilados pela violência de Estado, os corpos dos protagonistas, de mobilidade comprometida, são a própria encarnação da “condição precária”. Trata-se de torná-los agentes, via ficção, de uma irônica redistribuição da violência.11 Sofisticada filme a filme, a circulação entre passado, presente e futuro é um dos traços marcantes da filmografia de Adirley Queirós. Gostaríamos de tomá-la como operação de resistência ao confinamento “presentista” dos pobres em Brasília. Em Branco sai, preto fica, as camadas temporais se sobrepõem, muitas vezes no interior   Ibidem. p. 46.

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MUSSEL, Philippe. op cit. p. 89.

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Em sua vingança, os protagonistas reúnem elementos e atributos periféricos, extraindo força da precariedade e do improviso, como tematizado por Vitor Zan em sua pesquisa: montam uma “bomba sonora” composta da mixagem de rap, música brega, clamores populares de rua, entre outros sons de Ceilândia. Lançada contra o Plano Piloto, a “bomba” devolve ao centro a experiência dos pobres, dele extirpada.

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de uma mesma cena, de um mesmo “tempo” narrativo – o presente dos personagens é figurado como abrigo de ruínas e de memórias difíceis, inserido em um porvir coletivo que a ficção especula. Esmiuçar a complexidade do tempo narrativo no filme é reconhecer o seu débito com a ficção científica – especialmente com filmes que põem em cena “cidades do futuro”, como é o caso de Blade Runner (1982), de Ridley Scott, inspiração confessa de Queirós12. Nele, a cidade imaginada adquire status de protagonista, sua arquitetura tendo papel fundamental na produção de sentidos. Branco sai, preto fica também é um filme de minuciosa construção cênica, e que enquadra Brasília de um modo muito significativo, a começar por manter o Plano Piloto extracampo. Mas sua Ceilândia está ambientada no “presente”, alvo explícito da especulação ficcional. Encarnado em cena por Dimas Cravalanças, o futuro (ano 2070) fornece uma espécie de ponto de vista narrativo: “Antiga Ceilândia, Distrito Federal” é o letreiro que abre o filme. Não vai sem ironia a escolha desse ponto de vista: apelar para o futuro para abordar o passado e o presente de Brasília, dita “cidade do futuro”. Mas a recusa do presente como horizonte exclusivo (marca da precarização, segundo Bourdieu) não se converte aqui em afirmação utópica; antes, em forma potente de abordagem crítica da mesma condição precária, por uma via distópica. Falar em distopia é assumir que a especulação futurista em Branco sai, preto fica se coloca como “aviso de incêndio”13, figuração que explicita tendências sinistras da atualidade. É o que se nota na multiplicação de dispositivos que separam o Plano Piloto das cidades satélites, a segregação institucionalizada: exige-se um   Ver, para uma discussão das “cidades do futuro” na FC, a dissertação de mestrado de Alfredo Suppia: SUPPIA, Alfredo. A metrópole replicante – de Metropolis a Blade Runner (Dissertação). Unicamp, Programa de Pós Graduação em Multimeios, 2002.

12

Ver LOWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. SP: Boitempo Editorial, 2005.

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“passaporte de acesso” ao Plano Piloto e a “polícia do bem estar social” emite toda noite um toque de recolher no Distrito Federal. Em seu diálogo com a ficção científica, o filme sugere assim a efetivação distópica de um modelo sócio-político de segregação e controle das periferias. Sitiados os pobres em seus guetos, vemos que a utopia passada (que moveu a construção de Brasília) é reservada para uns poucos segmentos da sociedade, se muitos. A encenação trabalha no sentido de complexificar tal dramaturgia: nas imagens, Ceilândia é figurada menos como o cumprimento do “bom lugar” utópico do que como cenário arruinado, anoitecido, em estado de melancolia.

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Mas se o diálogo com a ficção científica municia o cinema de Adirley em seu enfrentamento da história de Ceilândia, o gênero não sai ileso dessa inventiva apropriação: a encenação de uma memória coletiva singulariza Branco sai, preto fica. Afinal, são rastros documentais, corpos mutilados, traumas reais e testemunhos de sobreviventes que estão na origem da ficção. Não se trata da criação de um espaço ou de um tempo imaginários que guardem uma relação especular com o mundo histórico contemporâneo (como se daria na construção alegórica). Aqui a ficção científica é, paradoxalmente, espaço de elaboração “documentária”: o enlace entre rememoração do passado e especulação de futuro assume no filme inúmeros arranjos. A figuração da atualidade não incorpora apenas a especulação distópica de um futuro já presente, mas parece abrigada à sombra de um passado que não passa. Assim nos aproximamos da temporalidade adensada que o filme constrói, bastante distinta do dinamismo e da urgência da montagem paralela em A cidade é uma só? Em Branco sai, preto fica, o tempo escorre, nas antípodas do ritmo da modernidade (ainda crente na possibilidade de se acelerar a história). É notável a duração de cada plano, em toda a primeira parte do filme, em que a câmera fixa valoriza a ausência de ação, os afazeres miúdos, a mobilidade difícil dos personagens Marquim e Sartana, associando-as (na O avesso do futuro: memória, distopia e condição precária em Branco sai, preto fica


banda sonora) às rememorações do ataque que sofreram – o filme trabalhando, pelas escolhas de encenação, a difícil elaboração do que foi vivido. Depois saberemos, essa temporalidade é também a de uma espécie de gestação (da ação, que só será desenvolvida, selando parcerias entre os protagonistas, até então solitários, na segunda parte do filme). Os modos de apresentação de Marquim e Sartana sugerem um recuo, o recolhimento da vida na cidade, vista do alto ou distanciada. Predominam filmagens em interiores – opção coerente com a difícil mobilidade dos personagens. Em oposição ao planejamento calculado dos espaços (traço do modernismo na arquitetura de Brasília), predominam em suas casas as marcas do improviso: “repletas de gambiarras, suas arquiteturas se constroem como uma forma de extensão de seus corpos mutilados”14. Quando aparece nas andanças de Cravalanças, Ceilândia é composta de espaços baldios, ermos, semi-abandonados, o âmbito público da vida na cidade aproximado de um pós-desastre. Trabalhando a duração nesses espaços bricolados, a construção fílmica do tempo faz pensar na temporalidade melancólica: um tempo descentrado, que “não se escoa” bem, não se dirige “de um passado para uma finalidade”, nas formulações de Julia Kristeva em Sol negro15. É como se toda a Ceilândia estivesse “pausada” (para que algo seja elaborado e gestado). Tais ruminações se dão numa cidade sitiada e marcada (na cenografia, nos objetos de cena) por bricolagens e ruínas. Alguma coisa não passa, permanece, se deteriora e sobrevive sem finalidade clara – o presente é tempo de obsolescência. Gostaria de sugerir então que o gênero (a ficção científica) também é desviado pelo cinema de Queirós. Sobretudo porque Branco sai, preto fica se apropria de seus códigos para elaborar a memória   MUSSEL, Philippe. op cit. p. 87.

14

KRISTEVA, Julia. Sol negro: depressão e melancolia. Rio de Janeiro: Rocco, 1989. p. 61.

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coletiva de um grupo periférico no Brasil, fraturando a autonomia da ficção com marcas documentárias. Além disso, proliferam efeitos auto-irônicos, que distanciam ainda mais a utopia. A atuação de Dilmar Durães como viajante no tempo, por exemplo, tem algo de cômico e derrisório. Ao opor engenhocas mambembes (sua nave espacial é um velho container de obra de construção) à crença no progresso e na máquina depositadas na criação de Brasília, afirma-se uma espécie de “anti-futuro”, mas também de “anti-ficção científica”, marcados por precariedade, restos e obsolescência. Já Sartana, com sua obsessão por próteses, sugere, como Queirós tem afirmado, a figura de um ciborgue, ou talvez de um anti-ciborgue: fazendo coro ao maquinário obsoleto que vemos no filme, esses homens mutilados estão atrelados a artefatos que sinalizam o que perderam. Nossa hipótese é de que os elementos que constituem o novum (ponto estratégico da especulação ficcional nos relatos de ficção científica16) estão em Branco sai, preto fica associados ao passado (quando não são feitos justamente de restos reciclados). Contrariamente ao prescrito na utopia da “cidade do futuro” (que apaga a história), aqui o passado histórico tem forte ascendência sobre a ficção. Por outro lado, radicalizando a chave distópica, o filme é grave e melancólico. Reconsiderada a história, na contramão do futurismo, subverte-se a prática historiográfica “oficial”, o que remete à concepção de história de Walter Benjamin17: no filme, a repressão   Na definição de Darko Survin, “a ficção científica se distingue pela dominância narrativa ou hegemonia de um novum (novidade, inovação) ficcional, validado pela lógica cognitiva” (In: SUPPIA, Alfredo. Limite de alerta! Ficção cientifica em atmosfera rarefeita: uma introdução ao estudo da FC no cinema brasileiro e em algumas cinematografias off-Hollywood (Tese). Unicamp, Programa de Pós Graduação em Multimeios, 2007. p. 419). O novum seria, assim, “qualquer aparelho, engenhoca, técnica, fenômeno, localidade espaço-temporal, agente(s) ou personagem(ns) que venha(m) a introduzir algo novo ou desconhecido no ambiente empírico tanto do autor quanto do leitor implícito” (Ibidem. p. 419), promovendo uma descontinuidade entre a diegese e o mundo conhecido.

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Ver LOWY, Michael. op. cit.

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O avesso do futuro: memória, distopia e condição precária em Branco sai, preto fica


ao Quarentão, episódio “menor”, que não consta dos livros didáticos, e que aparece no filme tal como memorizado por dois sobreviventes, se torna “maior”, central, definidor – não apenas da atualidade dramática, inteiramente contaminada por esta perda, como do futuro coletivo (ou melhor, do “não-futuro”) que a ficção reserva para Brasília e seus moradores. Mantendo o Plano Piloto extracampo18, Branco sai, preto fica afirma um ponto de vista sobre a história. Como vimos, Ceilândia é enquadrada a partir do isolamento dos protagonistas em cena. Sobre imagens de vivências solitárias atuais, são trabalhados relatos memorialísticos de Marquim e Sartana. Essa escolha de montagem reforça a sugestão de uma contaminação: entre a mutilação sofrida por eles (na noite de fechamento do Quarentão) e a maneira como a cidade é figurada. O trauma real parece estar no nascedouro dessa figuração, sendo matriz, inclusive, de uma peculiar temporalidade. Todo o presente está envolvido por uma atmosfera de perda e degradação – de experiência individual, elas são alçadas a características que figuram a experiência histórica de toda uma coletividade. Na segunda metade do filme, os protagonistas passam juntos à ação, executando o plano terrorista de Marquim: a eclosão de uma “bomba sonora”, que apaga Brasília, paradigma do apagamento. Antes de acionar a bomba, Marquim queima as provas, incendiando papéis e vinis ocultos em um sofá, em uma imagem anti-nostálgica memorável (estampada no cartaz do filme). Ao explodir, em um só movimento, as rememorações nostálgicas e as especulações de futuro, Branco sai, preto fica prefere a ação imprevisível e improvável no presente.

18   Quando os monumentos de Brasília, patrimônio histórico da humanidade, comparecem, nos desenhos de Shokito, ao final do filme, já estão sendo destruídos pela “bomba sonora” de Marquim e Sartana.

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*** Em sua figuração de Ceilândia, Branco sai, preto fica trabalha as marcas da experiência traumática sofrida por alguns sujeitos como se esse episódio circunscrito, a repressão policial contra um baile black na periferia, pudesse ser tomado como continuação e emblema de um acontecimento mais abrangente: o expurgo dos pobres que está na origem da cidade satélite, atualizado cotidianamente pelo Estado e pelo poder econômico em Brasília.

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Sim, não houve o futuro que o projeto modernista da nova capital prometia. Mais do que isso, o passado não passa, o presente é feito de difíceis sobrevivências e vestígios. Notável como a ficção vem reverberar, em Branco sai, preto fica, a permanência do passado: histórico de segregações e precarizações que não impedem, entretanto, a agência, inventividade e potência dos protagonistas no presente (redistribuindo simbolicamente, com armas e contraversões periféricas, a violência). Certamente, os dois primeiros longas de Queirós tocam na ferida aberta de uma utopia civilizatória, moderna, progressista, confiante no futuro – associada, no Brasil dos anos 1950 e 1960 e da ditadura militar (1964–1985), a um projeto político desenvolvimentista. Importa, então, expor o seu avesso. Em Branco sai, preto fica, a “cidade do futuro” é a Ceilândia arruinada e distópica. Mas não se trata de fixar os moradores da periferia em um presentismo sem horizontes, marca da condição precária. Tampouco, de se ater às formas documentárias tradicionais. Os desvios ficcionais permitem, nos dois filmes, repor a potência de agir dos protagonistas pobres, reabrindo, via dramaturgia e encenação, o futuro de suas histórias amputadas. A ficção traz outras potências: a reversão do sentido de símbolos e narrativas oficiais (subversivamente apropriados, em A cidade é uma só?); o deboche com o ponto de vista “do futuro”; a distopia como ferramenta crítica de elaboração da condição

O avesso do futuro: memória, distopia e condição precária em Branco sai, preto fica


precária no tempo. O que significa dizer que, na filmografia de Queirós, a crítica ao Estado, indutor de precariedade, não se dissocia das marcas da mesma precarização. Como nos poemas de Guantánamo ou nos raps de Ceilândia, seus filmes, “atos críticos de resistência, interpretações insurgentes, atos incendiários”, parecem viver “através da violência à qual se opõem”19.

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BUTLER, Judith. op. cit. p. 97.

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Andrea FiĂşza/Arquivo pessoal

A propĂłsito de Serras da desordem


A propósito de Serras da desordem Cristina Amaral

Andrea sempre professou um cinema norteado pela integridade, pela busca, pelo rigor. Numa noite, estávamos sentados na sala de seu apartamento, em Higienópolis, São Paulo – talvez em 1995 ou início de 1996 – conversando com um amigo, Eliot, que frequentemente aparecia por lá para uma visita. Docemente, Eliot perguntou a Andrea se ele teria algum projeto em vista, tentando, como sempre, ajudálo a pensar em possibilidades e perspectivas. Foi quando Andrea nos falou, pela primeira vez, sobre a história de Carapiru. E mais, disse que seria a única história que lhe interessaria filmar naquele momento. A história era espantosa, quase inacreditável. Andrea encostou o seu coração no coração de outro homem que, por acaso, era um índio. E com ele compartilhou suas dores, suas angústias, sua sinceridade, sua pureza de sentimentos, seu amor pela humanidade, sua indignação diante do indecente e desumano genocídio promovido ou ignorado pelo Estado brasileiro contra sua população indígena, numa agressão cega e violenta contra o meio ambiente. Um mundo homicida, suicida. E em meio a tudo isso, a dor de um pai separado de seu filho pequeno. Em minha lembrança dessa noite de verão, ficou muito claro, para nós três, que esse filme tinha que ser feito.

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Alguns meses depois, a partir da notícia da abertura de um edital para produção aqui em São Paulo, Andrea foi a Brasília para conversar com Sydney Possuelo, amigo indigenista, criador do Departamento de Índios Isolados na FUNAI. Defensor intransigente da causa indígena, Sydney era um dos personagens principais desta história, e a havia contado a Andrea há tempos atrás. Andrea foi até ele em busca de aprofundar os detalhes da história. Após dias, retornou a São Paulo com um punhado de anotações. Ficamos cerca de um mês trancados no apartamento, ele no quarto escrevendo, e eu fazendo o plano de produção. Uma jovem, contratada para formatar o roteiro, nos acompanhava. Passávamos dias inteiros trabalhando no escritório. 104

Os editais brasileiros de 1996 recusaram essa história: “Ah, não! Mais uma história de índio!” Novamente, Eliot veio com a informação sobre um festival de cinema na Suíça, onde havia uma competição paralela para roteiros. Gabriel Parfait, um amigo artista plástico, nos fez a tradução do roteiro para o francês. O roteiro foi premiado em 3º lugar no Prix International de L’ecriture. Aqui no Brasil, o projeto continuava “batendo na trave”. Nesse meio tempo, abrimos um escritório que serviria para o trabalho de preparação e produção de projetos para ele, e para o meu trabalho de montagem. Mudamos depois para uma casa, que abrigaria também nossos espaços de trabalho. Em 2000, Carlão Reichenbach, sempre amigo próximo, avisounos da abertura das inscrições para a Bolsa Vitae, cujo prêmio lhe havia possibilitado escrever os roteiros de seu projeto “ABC Clube Democrático”. Foi um começo de abertura de caminhos. A propósito de Serras da desordem


Com os recursos dessa bolsa, Andrea pegou o carro e, com o amigo e produtor Sérgio Kera, foi inicialmente a Brasília e, de lá, ao Maranhão – percorrendo, na ordem inversa, os caminhos que Carapiru havia feito vinte anos atrás. Música no rádio e muita estrada, uma longa viagem de aventuras e histórias engraçadíssimas, que só o Kera sabe contar. No trajeto, descobriu que Carapiru havia deixado uma marca profunda no coração de um pequeno povoado na Bahia. As pessoas se emocionavam ao falar dele. Ali, Andrea entendeu que nenhum ator poderia trazer à tona aquela natureza de sentimento. Seguiu rumo ao Maranhão. Chegando à aldeia, mais uma vez, e mais do que nunca, o cuidado e a delicadeza no encontro com o outro. Andrea voltou para São Paulo com várias horas de entrevistas gravadas, e com a autorização de Carapiru para ter a sua história filmada. Voltou ainda uma vez para São Luiz, para conferir a tradução das falas de Carapiru. Percebeu que ele não dava a menor importância para o fato de ter andado sozinho por 10 anos, do Maranhão até o sul da Bahia. Mais uma versão do roteiro, linda, mas que geraria um projeto caro. Luiz Rosemberg Filho, outro amigo muito querido, estava hospedado em casa, agora na Água Branca, e eu os presenciei tendo uma conversa muito afetuosa e séria a esse respeito. Andrea começou a pensar em outras formas de se fazer o filme – até transformá-lo em um documentário – mas nenhuma das opções pensadas o satisfazia. Até que em um dia, em 2001, Carlão Reichenbach nos sugere a inscrição do roteiro num edital de baixo orçamento (BO), onde o projeto é finalmente selecionado. A partir da realidade desse orçamento, e porque queria na tela o sentimento que viu naqueles

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olhares, Andrea resolve que irá filmar com as próprias pessoas que viveram a história na vida real. Mais uma versão do roteiro, alterado em função disso. Retorna ao Maranhão e pergunta a Carapiru se aceitaria voltar aos lugares onde esteve e se concordaria em ser filmado, reencontrar as pessoas. Ele diz que sim, desde que Andrea o levasse de volta para a aldeia depois de tudo. Acordo fechado. Acompanhei as filmagens daqui de São Paulo, à distância, fazendo a base de produção, ao mesmo tempo em que montava o Garotas do ABC (2003), do Carlão Reichenbach. Falava à noite com Andrea por telefone – muitos problemas, muitos atropelos.

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Filmagem interrompida. Alguns problemas a resolver, como onde processar o material filmado em preto e branco, pois os laboratórios brasileiros já não tinham mais condições de fazêlo. Ficamos com esse material no escritório do Andrea durante mais de um mês, com o ar condicionado ligado durante 24 horas, enquanto não surgia uma solução só encontrada com o investimento de se processá-lo em Buenos Aires, Argentina, através dos laboratórios Cinecolor. O resultado, muito bonito, foi um sopro de ânimo em meio a tantos transtornos. O retorno às filmagens teve que ser adiado mais uma vez: Carapiru contraiu tuberculose. Além da preocupação com sua saúde, tínhamos que aguardar os seis meses de seu tratamento até sua recuperação. Finalmente, superada a questão, nova partida rumo à aldeia, com a equipe alterada e reduzida, com profissionais dispostos, atentos, delicados e respeitosos com as pessoas com quem iriam conviver durante mais de um mês. No regresso, ao buscá-los no aeroporto, encontro-os diferentes, sérios, compenetrados, silenciosos, voltando, não de uma filmagem, mas de uma experiência de vida, séria e profunda, que os marcara para sempre. Nós, que vivemos no asfalto, não temos noção da vida, não temos noção de uma relação cósmica, mais

A propósito de Serras da desordem


ampla e integra com a natureza, com o mundo em que vivemos, enfim. Não atentamos para as consequências de nossos gestos no dia a dia. E eles vivenciaram tudo isso. Deparo-me com 140 horas de material para trabalhar, comprimida entre o tempo exigido pelo edital, e um tempo outro, que eu precisei apreender, que era o tempo do índio. Esse tempo não tinha nada a ver com o tempo diegético do cinema do qual eu tive que me desprender para montar o filme. E nesse processo, Andrea foi fundamental – não me dizendo como era, mas me apontando quando não era – até eu entender por mim mesma, sozinha, através da convivência diária com aquelas imagens. E aqui uma das chaves de um processo de trabalho onde a busca é constante, onde o processo da descoberta substitui a explicação. Não há regra prescrita, não tem fórmula. Não dá para se chamar de “trabalho”, é no que se transforma a sua vida. Foram dois anos de montagem – um de preparação e prémontagem e um de montagem e finalização. Foi intenso e incessante – só a extrema exaustão física me obrigava a parar de vez em quando, mas não havia tempo para pausas programadas, tínhamos um tsunami às nossas costas. Um homeopata, um médico chinês, acupuntura e tuiná me mantiveram em pé e em equilíbrio. Ao mesmo tempo, era um aprendizado humano impossível de se verbalizar. Eu mergulhei naquelas imagens e me senti debaixo d’água buscando deixar o corpo ser levado com a respiração necessária para se atravessar o trajeto até se poder voltar à tona. E não poderia ser de outra maneira para se chegar à essência daquelas imagens de uma forma profunda. Como em todos os filmes que fiz com Andrea, era a vida totalmente dedicada a isso: o cinema igual à vida. Intenso, apaixonado, íntegro,

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exigente. À beira do abismo. É o som além do fôlego do trompete de Miles Davis. Você não sai a mesma pessoa depois disso. Serras da desordem é um filme onde o entendimento se faz independente da palavra, onde as fronteiras das definições e dos cânones do cinema se confundem, se borram, e perdem a importância, e onde o esfacelamento e a perda das raízes de um país, criminosamente e sistematicamente provocados, são sintetizados em imagens dolorosas. Depois de Serras da desordem, nunca mais o cinema brasileiro poderá tratar o índio da mesma forma que o tratava antes. O respeito humano e o respeito a uma cultura que foi massacrada e apagada da história do Brasil estão para sempre impostos à nossa produção de imagens. 108

Tenho plena convicção de que o resultado do meu trabalho é muito maior do que eu, e só posso ser muito grata a essa convivência, a esse aprendizado.

com agradecimentos a Joel Yamaji, pela revisão e melhoria do texto. São Paulo, 30 de julho de 2017

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Acervo da Cinemateca do MAM


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A noite do espantalho Sérgio Ricardo  1974 | RJ | 91’ | 16mm | 14 anos

Filmado nos arredores de Nova Jerusalém, o maior teatro ao ar livre do mundo, no agreste pernambucano, A noite do espantalho antecipa, guardadas as devidas proporções, uma atmosfera road movie somente vista muitos anos depois na saga Mad Max, recebendo aqui ainda forte influência da ludicidade dos universos de Alejandro Jodorowsky. Com uma trajetória entre a direção de filmes e a produção de trilhas

sonoras, Sérgio Ricardo aposta de forma pioneira no gênero musical para unir a psicodelia ao simbolismo regional, num não tão inusitado encontro pós-apocalíptico entre o movimento armorial e as tendências contraculturais do udigrudi (representado aqui fortemente pela figura de Alceu Valença, protagonista da película). A história se passa num contexto de miséria completa, onde um arrogante coronel quer expulsar uma

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20 de agosto (domingo), às 14h  |  22 de agosto (terça-feira), às 19h

pobre família de sua propriedade. Tal premissa, no entanto, não dá conta do fato de que o filme materializa também o encontro do cineasta paulista com a região Nordeste. Ele próprio explica: “depois de ter feito o primeiro cordel, no Sul, sem conhecer o Nordeste, fui conhecer os locais e ao executar as músicas, apareceram imagens e descobertas que vieram ilustrar o filme. Foi assim que tive contato com aquela cultura, levan-

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do já um trabalho que tinha feito. Vendo a realidade em confronto com aquela outra realidade que eu tinha feito. E das duas realidades em confronto, misturadas, saiu A noite do espantalho”.


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A seita André Antônio  2015 | PE | 70’ | digital | 16 anos

Entediado, um jovem dândi, filho remanescente de uma das diversas famílias ricas que abandonaram a Terra e emigraram para as colônias espaciais, decide retornar ao Recife em 2040. Ali ele encontra uma cidade quase vazia, onde passa a viver num palacete decorado à sua sensibilidade: o camp e o kitsch dão o tom com suas cortinas vermelhas, paredes cor-de-rosa e bibelôs decorativos, em um

universo particular imaginado com elogio à frivolidade. Numa de suas diversas andanças por esses estranhos cenários, seja por devaneio ou por cruising em busca de sexo, ele descobre sinais do que parece ser uma seita secreta e passa a seguir seus passos, cada vez mais entorpecido pelo mistério que fissura o tédio de seu mundinho. Entre o ócio no quarto e a perambulação, a paisagem do Recife do presente,

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25 de agosto (sexta-feira) às 17h20

marcada pelos rastros da ruína e da gentrificação, é retomada por um fascínio onírico com as formas, texturas, cores e tempos de suas ruas, adquirindo conotação ora de um futuro, ora de uma superfície de planeta estrangeiro que André Antônio cartografa com consciência moderna de cinema enquanto especula uma inteligência queer das relações sensíveis. Primeiro longa-metragem produzido pelo coleti-

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vo Surto & Deslumbramento, A seita é também exemplar de uma abordagem arrojada do queer nas imagens contemporâneas do cinema brasileiro.


Arquivo pessoal 116

Abrigo nuclear Roberto Pires  1981 | BA | 84’ | digital | 16 anos

Caso peculiar de uma ecodistopia que investiga os efeitos nocivos do esquecimento social e da ausência de história sobre a consciência dos indivíduos e a capacidade de revolta popular, o filme também é uma clara crítica aos riscos do programa nuclear brasileiro iniciado anos antes e que resultou na abertura da usina de Angra 1 em 1985. Num futuro não muito distante em que é proibido o acesso a qualquer informação sobre o passado, os indivíduos dei-

xaram a superfície para fugir da poluição radioativa que atingiu o meio ambiente, passando a viver num abrigo nuclear subterrâneo, controlado pela intransigente e rígida comandante Avo. Nesse contexto, um grupo de rebeldes se organiza em segredo para tentar desvendar o mistério da falta de memória coletiva e arrumar uma forma de voltar a viver na superfície (como logo descobrem que faziam as gerações anteriores). Longa da mostra que melhor se

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16 de agosto (quarta-feira), às 14h45 | 25 de agosto (sexta-feira), às 19h15

aproxima visualmente de distopias internacionais, encarnando o clima de 1984 e lembrando em vários aspectos THX 1138 (1971), de George Lucas, Abrigo nuclear nos convida a um passeio por cenários compostos por corredores intermináveis, com indivíduos usando uniformes brancos padronizados, num ambiente de salas com equipamentos eletrônicos com incontáveis botões coloridos.

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Amor e desamor Gerson Tavares  1966 |  RJ  | 77’ | digital | 14 anos

Um homem e uma mulher se encontram em meio aos edifícios da recém-inaugurada Brasília. Em busca de uma aventura amorosa, encastelam-se na residência do arquiteto, onde vivem um drama intimista assaltado por fantasmas intelectuais, morais e eróticos. Neste impressionante primeiro longa-metragem brasileiro de ficção filmado na capital federal, a paisagem brasiliense ganha o tônus de um anti-cartão

postal. A solidão dos personagens não só é muitas vezes remetida à própria cidade como seio de desencanto e amargura como as paisagens áridas do cerrado ainda semi-virgem, redesenhadas pelos contornos futuristas da engenharia modernista, são alvo do fascínio da decupagem emocional do filme. A trilha sonora de Rogério Duprat, aliada a um jogo soturno de montagem e enquadramento com as distâncias – se-

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15 de agosto (terça-feira), às 19h  |  27 de agosto (domingo), às 14h20

jam psicológicas, sejam espaciais – termina por realçar nas visões da jovem cidade a sensação persistente de que ela é, em seu presente mesmo, o cenário artificial de uma ficção científica, no qual se vive ora a experiência mesma da impostação do monumento, ora a metáfora para uma subjetividade burguesa moderna em crise. Amor e desamor passou anos à espera de restauração, que veio afinal em 2015.

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Arquivo pessoal 120

Areias escaldantes Francisco de Paula  1985 |  RJ  | 100’ | 35mm | 16 anos

Se tomarmos a década de 1980 como o momento no Brasil em que a rebeldia se converteu oficialmente em moda midiática, encontrando sua legitimação também na produção artística, fica mais simples compreendermos o frescor de Areias escaldantes, fruto de uma juventude que articulou tão intensamente cinema e rock no período (o longa conta com participação de Lobão e dos membros do Titãs). A figuração distópica encontra aqui o gênero da

farsa, o fim do mundo se mostra como uma experiência divertida, puxada por um elenco engraçadíssimo, como Diogo Vilela, Luiz Fernando Guimarães e especialmente Regina Casé. Na província fictícia de Kali, um grupo de jovens terroristas executa roubos, sequestros e assassinatos sob as ordens da misteriosa “Entidade” e são perseguidos pela pomposa e ineficiente Polícia Especial. Como bem definiu a Crítica Andrea Ormond, o filme é um “desfile de

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17 de agosto (quinta-feira), às 18h45 | 23 de agosto (quarta-feira), às 15h45

cousas, gentes, tiques e subtextos que o tempo ajudou a explicar. Não encontramos nada de Var Palmares, AI-5 e outros fetiches que o cinema brasileiro ainda remexe com furor uterino. Areias escaldantes joga no time do pastiche, curtição de pós-adolescente, contando com o ingrediente futurista, típico do neon realismo paulistano, mas que é logo salpicado pelo clima do balneário”.

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Batguano Tavinho Teixeira  2014  | PB | 74’ | digital | 18 anos

Ambientado num futuro não muito distante, quando a humanidade se aproxima do extermínio por causa de uma febre surgida das fezes de morcegos, Batguano acompanha as aventuras e desventuras dos assumidamente gays e envelhecidos Batman e Robin (que usam os uniformes clássicos do seriado da década de 1960 criado por William Dozier). Entre saídas ocasionais em busca de michês, cenas musicais, lem-

branças melancólicas do passado glorioso, a dupla / casal expande as possibilidades de um cenário apocalíptico de terceiro mundo, com sotaque paraibano, através da aposta no artifício e na subversão de códigos conhecidos da Cultura Pop. Os passeios de carro, por exemplo, são filmados com o veículo parado e um telão ao fundo mostrando imagens de estrada, mas diferente dos filmes clássicos que procuravam escon-

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18 de agosto (sexta-feira), às 19h

der esse recurso cinematográfico, Tavinho Teixeira decide por revelar todas as técnicas empreendidas. Aliás, enquanto crônica decadentista de dois heróis falidos e esquecidos que gostam de beber whisky, o filme nos parece uma sucessão de revelações de sua própria estrutura ao mesmo tempo em que esquadrinha com bastante bom humor os paradoxos e temores da velhice. Mesmo diante do inevitável fim do mun-

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do, eles estão juntos: Batman está ali para Robin, Robin está ali para Batman. A esperança e ternura também são sentimentos que sobrevivem.


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Branco sai, preto fica Adirley Queirós  2014  |  DF  |  95’ | digital | 12 anos

O prólogo talvez mais incontornável do cinema brasileiro contemporâneo reanima o horror da truculenta ação policial que assolou um baile de black music na Brasília de 1986. Os brancos estavam dispensados por ordem oficial. Os negros eram intimados a permanecer no salão para o baculejo e para o alvejamento que deixou o DJ Marquim da Tropa em carreira de rodas e amputou uma perna ao artesão

Chockito. Enquanto os personagens reviram a memória nos tempos desérticos de uma distópica Ceilândia, cidade-satélite, o mensageiro Dimas Cravalanças vem de 2073 para revelar o destino do apartheid racial e social instaurado pelo sonho burguês do Plano Piloto, enquanto é posta em prática uma ação subversiva contra o sistema vigente. Dedicado ao encontro entre a fábula con-

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16 de agosto (quarta-feira), às 16h30

tra-histórica e a vida das populações trabalhadoras e negras da periferia da capital federal desde os seus filmes anteriores, aqui Adirley Queirós se aproxima mais uma vez deste grupo de pessoas – tanto personagens quanto companheiros de luta – para nos entregar uma forma de passagem entre documentário contemporâneo e ficção científica sem precedentes diretos no cinema brasileiro.

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Os registros da rememoração, do documento e do cyberpunk se reúnem numa gambiarra com vigor tão militante quanto visionário.


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Brasil ano 2000 Walter Lima Jr.  1969 | RJ | 95’ | 35mm | 14 anos

Numa virada alegórica do Cinema Novo, Walter Lima Jr. imagina aqui o distante ano de 2000, quando o Brasil finalmente tomaria um lugar na corrida espacial – mas o lançamento do foguete brasileiro é um entretido deboche do progresso em um filme atravessado por arquétipos do Brasil pós-golpe militar. Brasil ano 2000 acompanha família de retirantes que, após a temida Terceira Guerra Mundial,

vai em direção às profundezas do país – do sul ao norte, numa inversão dos fluxos –, sobreviventes de um pós-apocalipse à brasileira. Chegando na pequena cidade de Me Esqueci, local da base espacial, são intimados a se passarem por indígenas para serem expostos como atração a lideranças militares e ganharem o direito de permanência como funcionários em propriedade privada cabulosa. A emergente

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17 de agosto (quinta-feira), às 16h50  |  26 de agosto (sábado), às 19h

invenção tropicalista, enquanto instala no filme o imaginário de uma cultura brasileira em proliferação – dando aos traços da ficção científica formas da tradição sob incontornável trilha sonora de Rogério Duprat –, abre curiosa passagem solar a um imaginário de cinema popular brasileiro: apesar dos imbróglios, as aventuras dos personagens são pontuadas por números lúdicos, que parecem

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creditar e festejar as possibilidades da cultura. Picotado e remontado pela censura militar, o filme foi restaurado em sua concepção original a partir de negativos preservados intactos.


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Brasil S/A Marcelo Pedroso  2014  | PE | 62’ | digital | 10 anos

Edilson, cortador de cana-de-açúcar na Zona da Mata pernambucana, vai embarcar numa missão espacial. Brasil S/A marca com a contundência de poucos a notável e não distante busca das formas documentárias no cinema brasileiro pelos artifícios da ficção como território do cinema político, fazendo aqui um protoépico de traços híbridos e discurso crítico claro e direto. O percurso do personagem, do tra-

balho rural pesado ao lançamento do foguete, se por si só já busca uma figura forte – e não pouco irônica – de emancipação dos históricos oprimidos, é entrecortado por entreatos e esquetes nos quais são atacadas a predação das cidades pelo capital, os valores da vida burguesa, a pregação neopentecostal e o mito nacionalista, que é figurado como farsa do progresso numa visão análoga mas inversa ao slogan humanista

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26 de agosto (sábado), às 17h30

em 2001 – Uma odisseia no espaço. Tão recente, o filme de Marcelo Pedroso também já soa como documento de um discurso do presente agora obsoleto nas páginas de jornal e nas campanhas políticas: aquele que tinha no boom econômico e no desenvolvimentismo industrial a leitura midiática de uma decolagem neoliberal do Brasil e, em especial, do Nordeste brasileiro, e com a qual este filme se digladia.

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Hitler Terceiro Mundo José Agrippino de Paula  1968 | SP | 71’ | 16mm | 14 anos

A caricatura de um infame ditador assombra a São Paulo do AI-5. O cenário é uma cidade moderna sem tempo certo tomada por lixo e barulho. Num tribunal, os oficiais ostentam perucas vitorianas e saudações a suásticas. Os soldados cultuam super heróis. Está em curso o ridículo plano de um golpe. Nesta alegoria de invenção que afeta o cinema em todos os seus modos, José Agrippino de Paula se ali-

menta do imaginário do presente político para fazê-lo explodir por todos os lados, numa experiência vertiginosa de fragmentos do grotesco. Os anti-heróis deste teatro marginal, um monstro feito de pedra e um samurai ultraperformático, encarnação antológica de Jô Soares, estão predestinados também à perambulação decadente por um mundo em cacos morais, no qual a experiência do absurdo

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20 de agosto (domingo), às 19h15  |  25 de agosto (sexta-feira), às 15h50

ressalta uma impossibilidade de comentar o estado das coisas senão pela via da irracionalidade. Único longa-metragem finalizado em 35mm pelo escritor Agrippino de Paula, Hitler Terceiro Mundo é uma peça maldita de zero orçamento que catalisa como poucas, em todas as entranhas da imagem, a esquisita sensação de que a distopia é uma paisagem do presente e sua forma de operar não se tra-

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duz em uma gramática. É, pelo contrário, feita de um profundo enigma e da intensa experiência que ele instaura.


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O jardim das espumas Luiz Rosemberg Filho  1970 | RJ | 108’ | digital | 18 anos

De um lado, o planeta dito “pobre”, onde os nativos vivem em integração com a natureza. Do outro, as lideranças do planeta rico, que chegam para levar a cabo a expansão de um projeto de poder econômico na galáxia. Esta alegoria política, só aparentemente simples, é apenas uma primeira pista para acessar este intrincado artefato do cinema de invenção, marcado pela atmosfera da ditadura militar, pelo clima

de Guerra Fria e pela libertação antropofágica que pontuou as artes brasileiras dos anos 1970. O jardim das espumas é atravessado por fortes figuras para uma sensibilidade do subdesenvolvimento, e não esqueceremos a visão dos habitantes do planeta invadido – cuja cosmologia opera uma passagem singular entre imaginário primitivo, fruição tecnológica e experiência da contracultura – e da violência

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entre os corpos em conflito, que os registros de encenação e aborompe o fluxo narrativo para canha todas as imagens com o espraiar a visceralidade da bar- fulgor de uma dura obra-prima. bárie. O afiado discurso crítico tem realce não só nos diálogos – que a todo tempo convocam contexto – mas em escolhas enfáticas de cena e montagem – seja a ambientação de sequências em repulsivas pilhas de lixo ou a incorporação de material de arquivo de guerra numa forma-pensamento que não distingue

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Acervo da Cinemateca do MAM 134

O quinto poder Alberto Pieralisi  1962 | DF | 99’ | 16mm | 16 anos

Grupo de alemães monta sombrio sistema de transmissão de mensagens subliminares via antenas de rádio e televisão no Rio de Janeiro, proliferando ordens de incitação à revolução que geram caos civil. Neste vertiginoso thriller, peça única na cinematografia nacional, o italiano Pieralisi filma a tentativa de um jornalista brasileiro de desmantelar o esquema enquanto se envolve em virtuosa perseguição no car-

tão postal. O texto político, substrato importante do roteiro do espanhol Carlos Pedregal, lembra as tramas estadunidenses que canalizaram os símbolos da Guerra Fria, mas enfatiza traços fortes de sci-fi situacionista, em que o espetáculo capitalista encarna o veículo do mal, como em Eles vivem, de John Carpenter. As figuras ideológicas no entanto são ambíguas, já que tanto podem evocar a intensificação da influ-

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ência das potências ocidentais no Terceiro Mundo quanto o crescente temor de setores conservadores diante do avanço socialista, que atingiu seu ápice justo durante o governo João Goulart. Perdido durante 40 anos após ter seus negativos destruídos, o filme pôde ser restaurado graças a cópia que circulou em Berlim à época do seu lançamento, sendo reintroduzido a um público admirado no Festival de Brasília de 2006.

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Oceano Atlantis Francisco de Paula  1993 | RJ | 80’ | 35mm | 16 anos

Em um Rio de Janeiro depois da catástrofe, apenas os morros ficaram imunes a um dilúvio que deixou o asfalto submerso. Enquanto a Marinha raciona provisões e alguns se sacrificam para não passar fome, um mergulhador vai ao fundo do mar e lá encontra vistosa civilização submersa. Esta ecodistopia poética veio a público após o fim da Embrafilme e foi poucas vezes vista desde a sua estreia na Mostra de São Paulo em 1993. Francisco de Paula

faz aqui um retrato sem correlatos claros do Rio de Janeiro da inflação econômica, se servindo do imaginário fluminense para criar um álbum de figuras da pobreza e do nacionalismo, em exercício de midiatização de um Brasil que descobria narrativas para a democracia e modos de comentar a si mesmo com o espetáculo que aprendeu a fazer. O filme é marcado por sensibilidade particular para enquadrar – Dib Lufti e Pedro Farkas dividem rigorosa

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fotografia – e por franca delícia do star system brasileiro – impossível esquecer Dercy Gonçalves e Antônio Abujamra jogando xadrez no fundo do mar. Oceano Atlantis – também conhecido por A revolta de Oceano Atlantis –, fustiga a beleza do discurso em uma paisagem carioca radicalmente anacrônica, visionada com eloquente cenografia distópica para uma Atlântida tupiniquim.

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Acervo da Cinemateca do MAM 138

Parada 88, o limite de alerta José de Anchieta  1977 | SP | 115’ | 16mm | livre

Tal qual Abrigo Nuclear, a produção do final da década de 1970 também é uma espécie de comentário crítico sobre o início do programa nuclear brasileiro, imaginando em sua narrativa um desastre ambiental de grandes proporções em 1994. No entanto, se o filme de Roberto Pires possui um clima abertamente esperançoso sobre a possibilidade de reverter uma situação de calamidade provocada pelo ser

humano, aqui temos um tom mais sombrio e pessimista desse mesmo contexto. Acompanhamos o cotidiano e os traumas de uma família que vive em túneis de plástico construídos entre as casas e o comércio, cinco anos depois que um acidente numa indústria química tornou o ar da cidade de Parada 88 irrespirável. O oxigênio logo virou um bem de consumo, num sistema em que todos são obrigados a pagar cotas

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para respirar. Caso as cotas não sejam pagas, o ar é cortado na residência pelos empregados do ar, uma espécie de fusão entre policiais e agiotas. Realizado no início da abertura política do país, o filme traz um emaranhado de opressões que se consolida como uma jornada de vingança, fazendo a produção ser vista como uma metáfora do período histórico, numa mescla confusa de desejos, dúvidas e incertezas.

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Acervo da Cinemateca do MAM 140

Quem é Beta? Nelson Pereira dos Santos 1972 | RJ, BRA/FRA | 92’ | 35mm | 12 anos

Inspirado no conto O último artilheiro, presente no livro O 3º planeta, de autoria de Levy Menezes, esse pouco conhecido filme do mestre Nelson Pereira dos Santos se passa num futuro indefinido em que a sociedade luta para se reerguer após sofrer um colapso generalizado. Os últimos sobreviventes estão divididos em dois grupos: um que vive vagando pelo mundo sem rumo como zumbis e outro que busca com todas as

forças novas razões para viver e para reconstruir, ainda que primitivamente, sua sociedade. Em meio a isso, um casal começa uma nova vida em um abrigo, atirando nos contaminados que se aproximam, mas o relacionamento é perturbado pela chegada de uma mulher e pela posterior entrada numa comunidade alternativa mística. Aliando a ficção científica ao experimentalismo, usando da própria realidade

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como fonte visual para construir sua atmosfera, a coprodução franco-brasileira traça uma parábola filosófica do próprio cinema através do “materializador de memórias”, invenção que se assemelha a uma câmera que projeta como imagens lembranças perdidas no passado. Um aparelho que desloca o tempo no tempo, mas que não possui sentido sem a participação do olho humano.

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Sérgio Kera/Arquivo pessoal 142

Serras da desordem Andrea Tonacci  2006 | SP | 135’ | 35mm | 16 anos

Com Serras da desordem, o percurso criativo de Andrea Tonacci parece ter encontrado um arco sem par no olhar do cinema brasileiro para o Brasil. Se Tonacci foi um cineasta de invenção e, ao mesmo tempo, um realizador em muito dedicado a fazer filmes com sujeitos de origem indígena, aqui estas duas pesquisas só aparentemente distintas adquirem a evidência de uma aliança, de uma gênese comum, cujo efeito primeiro é

uma desconcertante experiência de deslocamento no relato histórico e no acesso ao tempo-espaço, mediante uma transição cosmológica que, ao final, desponta como capacidade de visionamento e limitrofia do cinema. Tonacci recria a história de Carapiru, índio sobrevivente de massacre que, em 1978, dizimou seu grupo familiar, abandonando-o à sorte de uma perambulação pelo Brasil central até ser enfim capturado. É

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o próprio Carapiru que, décadas depois, reencena seu próprio papel, tanto como vestígio vivente de suas trajetórias individual e coletiva quanto como agente de ficção que irá reelaborar os pontos de vista, fílmicos e históricos, em jogo. Modos híbridos de cena e montagem parecem poder compor, com o impacto de uma obra-prima definitiva, o código de uma sensibilidade histórica que se toma pelas dinâmicas de

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mundo do outro e, introjetando no presente a distância de uma distopia em curso, sabe não poder buscar conciliação nas narrativas nem nas formas.


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Antes da encanteria Gabriela Pessoa, Lívia de Paiva, Elena Meirelles, Jorge Polo e Paulo Victor Soares  2016 | CE | 21’ | digital | 16 anos

A parábola sobre dois irmãos caboclos que perambulam no sertão do Icó, no Ceará, enquanto experimentam chás enigmáticos “atrás de lombras gordas”, nos induz aos poucos a um labirinto antropofágico. As paisagens rurais e urbanas do interior sertanejo e a evocação de ancestralidades encontram a sensibilidade universitária e a expressão demiúrgica de corpos queer para criar uma mitologia própria aos delírios dos personagens. Iconografia pop convive aqui com inventiva especulação de formas. 20 de agosto (domingo), às 15h50 23 de agosto (quarta-feira), às 17h45

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As aventuras de Paulo Bruscky Gabriel Mascaro  2010 | PE | 20’ | digital | 10 anos

O avatar de Paulo Bruscky, artista visual e da performance, ingressa na saudosa plataforma Second Life e bate um papo à beira do mar com o avatar de Gabriel Mascaro, ex-documentarista da vida real que agora só faz filmes machinima. Mascaro entrevista Bruscky e filma seus passeios subaquáticos, encontros eróticos e alçadas de voo, enquanto o entrevistado se diverte em sessão de Tai Chi Chuan intergaláctico. O cinema-dispositivo acha aqui uma deslumbrante modulação ficcional, num exercício fino de ironia diante dos estados da técnica, das artes e da experiência. 22 de agosto (terça-feira), às 17h45

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Aiyè 3016 Cine Translesbixa  2016 | PE | 4’ | digital | 16 anos

A ficção científica se apresenta aqui como uma articulação do presente, feita por bichas pretas e periféricas, sem acesso aos recursos de produção de cinema, mas que, com seus corpos, suas performances e suas montações, estão densamente implicadas nas tramas da cultura visual contemporânea. Em 2016, as falésias de Cabo Branco desmoronam pela força das ondas gigantes. A ‘Parahyba’ vai desabar. O planeta vai desabar. Três entidades se reúnem e partem para AIYÈ, um plano ancestral invisível a fim de derrubar o século XXX da supremacia branca. 25 de agosto (sexta-feira), às 17h20

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Brasília, capital do século Gerson Tavares  1959 | DF | 11’ | digital | livre

A construção do sonho Brasília é despistada em arquivos históricos, que revelam o esqueleto da cidade do futuro, da capital do amanhã, construída pelos “candangos”, operários do presente vindos de todos os cantos do país. A narração poética-descritiva contrasta com a trilha sonora espacial; a fala explicita o contexto enquanto os ruídos apontam os horizontes enigmáticos por trás das escolhas e curvas do plano urbanístico de Lúcio Costa e da orientação arquitetônica de Oscar Niemeyer. O que será do futuro destes prédios, avenidas e monumentos ainda vazios e desocupados? 26 de agosto (sábado), às 17h30

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Cat effekt Melissa Dullius e Gustavo Jahn  2013 | RUS/ALE/BRA | 40’ | digital | 16 anos

Nesta caminhada pelas ruas de Moscou, a personagem-viajante é menos sujeito de ação que uma porta de acesso espiritual às formas da cidade. Ela circula por calçadas, por descampados cobertos de neve e por vagões de metrô enquanto tem breves encontros em apartamentos e esquinas. Aos poucos, somos nós próprios flaneurs de locações habitadas por profusos significantes, mas com menos significados que abismos. Testemunhos da materialidade da bobina 16mm sobre a vocação fantasmática do cinema têm na figura do gato, fetiche, a pista de um novo enigma. 15 de agosto (terça-feira), às 17h15

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Éternau Gustavo Jahn  2006 | RS | 21’ | digital | 16 anos |

Na primeira de suas criações conjuntas em filme – que viria a originar a produtora Distruktur – o casal gaúcho Melissa Dullius e Gustavo Jahn (aqui, diretor) integra um grupo de arqueólogos que embarca em mar aberto em busca de riquezas, causando sismo tanto geográfico quanto metafísico. Marca dos filmes da dupla, esta super colorida empreitada em 16mm atinge a percepção do tempo narrado e aqui serve de princípio para um rico raciocínio de encenação, em que a vistosa proliferação de colagens evoca visões de passado e futuro. O registro cênico transita desde citações do cinema de invenção brasileiro até a espectatorialidade de filmes instalativos. 15 de agosto (terça-feira), às 17h15

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Eyes without a face no Recife Sosha  2012 | PE | 5’ | digital | 16 anos

Sob o som de um clássico da música pop, o olho andrógino caminha pelas paisagens de uma Recife abandonada, rearranjando os elementos de uma visibilidade clichê a fim de criar uma atmosfera alienígena. Tudo já conhecido se mostra como novo. Caso exemplar da prolífica produção audiovisual de Sosha, em que o artifício direciona as bases de um cinema de guerrilha, o vídeo transforma os riscos que cercam a equipe técnica, os personagens e a própria realização em soluções artisticamente inventivas, poéticas e transgressoras. 24 de agosto (quinta-feira), às 15h35

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Flash happy society Guto Parente  2009 | CE | 8’ | digital | livre

À época chamado pelo crítico Luiz Soares Júnior de “terror estruturalista”, Flash happy society tem princípio cinematográfico tão simples quanto já antológico no curta-metragem brasileiro contemporâneo. Os planos gerais de uma festa numerosa em que os participantes, no escuro, acionam massivamente suas câmeras com flash tanto foram tidos como evidência crítica da espetacularização da vida da classe média brasileira quanto, dada a maneira fantasmática de apresentar essas imagens, puderam inscrever, com o peso imagético de uma fantasia assombrosa, a experiência coletiva do presente. 24 de agosto (quinta-feira), às 15h35

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Hiperselva Helena Lessa, Jorge Polo, Lucas Andrade e Pedro Lessa  2014 | RJ | 09’ | digital | 10 anos

Uma nave alienígena faz contato com a Terra, prometendo eliminar a doença, a pobreza e o medo com projetos monumentais. Três amigos que ocupam uma casa abandonada parecem alheios a isso. Pelo desejo de verem a lua numa área restrita da cidade, eles desorganizam pequenos elementos da ordem num cenário distópico, marcado por propagandas azuis gigantes, usando de seus superpoderes quando preciso. Crônica hedonista do coletivo osso osso nascida a partir da tragédia anunciada pelas ruínas das obras para a Copa do Mundo de 2014 e para as Olimpíadas de 2016 no Rio de Janeiro. 20 de agosto (domingo), às 15h50 22 de agosto (terça- feira), às 17h45

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Janaína Overdrive Mozart Freire  2016 | CE | 19’ | digital | 16 anos

Chamado carinhosamente de “Blade Runner cearense” após causar alvoroço em festivais, acompanhamos aqui a saga de uma transciborgue em busca de sobrevivência longe do controle biotecnopolítico de uma corporação. Janaína luta contra tudo e todos para escapar da realidade em busca de um paraíso virtual, mas precisa atravessar diferentes cenários de um universo cyberpunk construído a partir da precariedade e claramente inspirado por autores como William Gibson. Entre conexões piratas, gambiarras e a constante necessidade de atualização, a proposta serve de porta de entrada para discutir a obsolescência programada não mais de equipamentos eletrônicos, mas de corpos, desejos e afetos. 22 de agosto (terça-feira), às 17h45

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Kbela Yasmin Thayná  2015 | RJ | 22’ | digital | livre

A partir de um olhar sensível sobre a experiência do racismo vivido cotidianamente por mulheres negras, a descoberta de uma força ancestral que emerge de seus cabelos crespos e transcende o embranquecimento é mostrada por meio de uma linguagem experimental de forte apelo visual. Tal qual a jornada de Sankofa, um pássaro africano que projeta sua cabeça para trás, mas continua a andar para frente, o afrofuturismo do filme surge como um gesto de aprendizado: não esquecer todos os tipos de abuso físico, espiritual e mental sofridos durante séculos para reforçar o exercício subjetivo de autorrepresentação e empoderamento. 16 de agosto (quarta-feira), às 16h30 20 de agosto (domingo), às 15h50

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Karioka Takumã Kuikuro  2014 | MT | 19’ | digital | livre

Nesta bem-vinda inversão etnográfica, os olhos do asfalto se veem na viagem do realizador Takumã Kuikuro e sua família à cidade mais engraçada que maravilhosa. O Rio de Janeiro é destino leve para estes índios brasileiros que, vindos de aldeia no Alto-Xingu, Mato Grosso, vão lá morar por um tempo, mas para seus parentes, que têm televisão em casa, trata-se de uma perigosa distopia telejornalística. Permanecem, claro, apreensivos. Conquista do cinema contemporâneo poder abrir, de dentro, pequenas erosões na imageria do homem branco. 27 de agosto (domingo), às 16h10

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Os anos 3000 eram feitos de lixo ou (quando a dignidade da raça humana se afogou no chorume estático da arte da hipocrisia) Cleyton Xavier, Clara Chroma,Ana All, Luana Rosa, Eduardo Sa Cin e Ana Elisa Alves  2016 | RJ | 14’ | digital | 14 anos

Depois de se libertarem da escravidão humana, ciborgues marginalizados encontram no crime uma forma de sobrevivência e contestação ao governo anarcocrente apocalíptico do Rio de Janeiro. Os ciborgues são taxados de terroristas, numa incrível miscelânea de referências audiovisuais, da videoarte aos jogos de videogame, das colagens aos vídeos caseiros mais toscos. Sagaz crítica ao establishment do mundo das artes, o curta expõe irônica e ludicamente suas mais fortes contradições. 20 de agosto (domingo), às 15h50 24 de agosto (quinta- feira), às 15h35

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Pacífico Jonathas de Andrade  2010 | PE | 12’ | digital | livre

Um grande terremoto na Cordilheira dos Andes separa o Chile da América do Sul, transformando o país numa ilha sem rumo e devolvendo à Bolívia seu acesso ao litoral do Oceano Pacífico – acesso perdido numa guerra há mais de cem anos. Se o terremoto é tomado como metáfora para as instabilidades políticas e sociais que assolam sistematicamente a região há décadas, é na articulação de diferentes linguagens, registros e eventos passados que o artista desloca a história a fim de imaginar uma idiossincrática espécie de futuro distópico. 24 de agosto (quinta-feira), às 15h35

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Quarto de espera Bruno Carboni e Davi Pretto  2009 | RS | 12’ | digital |14 anos

Um jovem usando uma máscara de gás transita em uma cidade cinzenta, povoada por figuras sem rumo, um executivo, um bêbado, um músico, um faxineiro. Não sabemos se ele está preso nesse mundo vazio, se a máscara é o que possibilita sua vida ou se é sua particular prisão. Aliás, todos os personagens parecem aprisionados em cápsulas, em mundos isolados do próprio mundo, cujas tentativas de diálogo nunca se efetivam enquanto tal. Mais uma crônica sobre uma realidade limitada pela incomunicabilidade, cujas potências de conexão resvalam em espaços embrutecidos de isolamento. 22 de agosto (terça-feira), às 17h45

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Recife frio Kleber Mendonça Filho  2009 | PE | 25’ | digital | livre

Jornalista argentino faz teledocumentário sobre misterioso incidente climático nos trópicos. O inexplicável frio na capital pernambucana é material de criação fantástica e metáfora em uma ficção científica com modos de filme-catástrofe sobre as profundas diferenças de classe, as perversas ressonâncias coloniais e os efeitos nefastos do capitalismo sobre as cidades do Nordeste brasileiro. Este fundamental curta-metragem é também uma crônica de costumes locais e um rico exercício de linguagem que se serve de formas tão diversas quanto as do telejornal, do cinema de gênero e da ciranda de roda. 24 de agosto (quinta-feira), às 15h35

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Solon Clarissa Campolina  2016 | MG | 16’ | digital | livre

Uma criatura surge nesta bela fábula silenciosa sobre a gênese e a natureza da vida. Clarissa Campolina põe em cena um corpo de aspecto humanoide e feminino que, emerso da terra, se confunde com a matéria do mundo, ao passo que a superfície devastada é por sua vez revigorada por jatos de tinta, por metamorfoses da luz e pelas inundações da presença. Pequeníssimo épico alien encapsulado em deslumbrante pílula experimental, alcança leituras na ciência, na poesia e nas políticas. 23 de agosto (quarta-feira), às 17h45

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Triangulum Melissa Dullius e Gustavo Jahn  2008 | EGI/ALE/BRA | 22’ | digital | 16 anos

Diante de enigmática figura feminina, três transeuntes são misteriosamente transportados de cidade europeia qualquer para o coração de uma metrópole oriental. Triangulum embarca neste passeio em tapete voador como uma suspensão meditabunda no tempo e no espaço. Filmado entre Berlim e Cairo, acessa as paisagens como um entre a ser atravessado pela lapidação emocional do trânsito e pela experiência de amor ao cinema como artesanato e artefato. Como se estivesse em simultâneo no mundo, na cinefilia e em lugar algum, só pode, como disse Rodrigo de Oliveira em crítica, ser apreciado “do alto”. 15 de agosto (terça-feira), às 17h15

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Vacancy Matthias Müller  1998 | ALE | 15 min | 16mm | livre

Em visita a impressionantes arquivos pessoais da inauguração de Brasília, Matthias Müller desdobra o registro encantado com o nascimento da paisagem histórica em meditação emocional sobre um pós-apocalipse. A natureza das utopias intriga o narrador taciturno, enquanto as imagens tão virgens quanto áridas da cidade-monumento, deslocadas pelos tempos da montagem e pelo tratamento de cor em 16mm, adquirem teor anacrônico, se não parecem ter sido enviadas pelo correio de um futuro triste. Ensaio sobre a intensidade dos documentos e da fantasmagoria cinematográfica. 15 de agosto (terça-feira), às 19h 27 de agosto (domingo), às 14h20

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X-Manas Clarissa Ribeiro  2017 | PE | 18’ | digital | 16 anos

Recife, 2054. A população da cidade se divide em dois grandes estratos. No alto, a esterilidade e apatia dos moradores de grandes prédios e donos de empreendimentos comerciais. No submundo, bichas bandidas, travestis, sapatonas boladas e todos os corpos marginalizados perante a cisheteronorma. Performando suas identidades e indo contra todo tipo de opressão, xs dissidentes sexuais se reúnem e armam um plano. Provocador experimento audiovisual do coletivo carioca Anarca Filmes em parceria com artistas queer da capital pernambucana. 18 de agosto (sexta-feira), às 19h 20 de agosto (domingo), às 15h50

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Zigurate Carlos Eduardo Nogueira   2009 | SP | 19’ | digital | 18 anos

Acima das nuvens, próximo dos céus, longe da terra. Uma alegoria cínica e escatológica da sociedade de castas e da incomunicabilidade. Se nos últimos anos, houve uma notável produção nacional sobre o processo de urbanização nas grandes cidades, de uma estranha tendência das pessoas se isolarem em suas torres de marfim como uma marca de status social, aqui vemos o tema ser tratado de maneira irônica e mordaz. Como entender o desejo dos que quanto mais ricos ficam mais vontade têm de se separar dos demais? 23 de agosto (quarta-feira), às 17h45

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Atividades Minicurso

A ficção científica no cinema brasileiro 17, 18 e 19 de agosto, de quinta-feira a sábado  |  14h30

Alfredo Suppia (professor e pesquisador - Unicamp) Ministradas durante três dias, as aulas irão traçar um panorama do gênero na produção audiovisual nacional, em diálogo com outras linguagens. Debate 1

Sensibilidades distópicas no presente 20 de agosto, domingo  |  17h30

Clara Chroma, Clarissa Ribeiro, Gabriela Pessoa, Helena Lessa, Yasmin Thayná (realizadoras). Mediação: Rodrigo Almeida. A mesa discute o caráter distópico das políticas do presente em diálogo com recente fortalecimento do futurismo e da ficção científica em nosso imaginário e sua figuração nos filmes contemporâneos. Debate 2

Paisagens distópicas no cinema brasileiro 24 de agosto, quinta-feira  |  19h

André Antônio (realizador e pesquisador), Ewerton Belico (crítico, professor e curador) e Francisco de Paula (realizador e artista visual). Mediação: Luís Fernando Moura. A mesa discute as características estilísticas e os modos de produção das paisagens distópicas no cinema nacional, apontando passagens entre obras contemporâneas e antigas.

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Curadores, autores e convidados 171

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Curadores Rodrigo Almeida é pesquisador, curador, escritor e cineasta. Doutorando em Comunicação na UFPE, com passagem pela Universitat de Barcelona, Rodrigo é diretor dos curtas Casa Forte (2013) e Como era gostoso meu cafuçu (2015); é curador do Janela Internacional de Cinema do Recife (2009-atual), da Mostra Canavial de Cinema (2014), assim como da Antologia do Cinema Pernambucano (2012-2014). Foi o criador do Cineclube Dissenso (2008-2014) e atualmente integra o coletivo de produção audiovisual Surto & Deslumbramento. É autor do livro O cinema e seu testamento (2016), do e-book Rasgos culturais: consumo cinéfilo e o prazer da raridade (2011) e organizador da coletânea de artigos Cinema e memória (2013). 172

Luís Fernando Moura é curador, programador e pesquisador de cinema. É coordenador de programação da Janela Internacional de Cinema do Recife e foi curador do Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte. Jornalista com textos publicados no Jornal do Commercio e no Diario de Pernambuco e em revistas como Continente, Tercer Film e La Fuga. Graduado em Comunicação Social pela UFPE, é mestre e doutorando em Comunicação Social pela UFMG, onde desenvolve pesquisa em torno de políticas do cinema contemporâneo e animalidades.

Autores e convidados Alfredo Suppia é autor dos livros “A Metrópole Replicante: Construindo um Diálogo entre Metropolis e Blade Runner” e “Atmosfera Rarefeita: A Ficção Científica no Cinema Brasileiro”. É mestre e doutor em Multimeios no Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde atualmente é coordenador da pós-graduação. Tem experiência nas áreas de Artes e Comunicação, com ênfase em Cinema e Audiovisual e é membro da Science Fiction Research Association (SFRA). Curadores, autores e convidados


André Antônio é mestre em comunicação pela UFPE e doutor em comunicação pela UFRJ, onde pesquisou as relações entre cinema contemporâneo, estética do artifício e sexualidade queer. É um dos fundadores do coletivo Surto & Deslumbramento (deslumbramento.com), com o qual dirigiu seu primeiro longa, A seita (2015). Atua junto ao curso de Cinema da UFPE como professor substituto. Clara Chroma é estudante de Cinema e Audiovisual na UFF. Vinda de São Paulo para o Rio de Janeiro, participa junto com companheiros da construção do coletivo Festival de Chorume e pesquisa o audiovisual experimental mais horroroso e deplorável na face da Terra, em ações de terrorismo poético e arte-sabotagem contra as hegemonias da arte e da indústria cultural. Clarissa Ribeiro é filmmaker e montadora, formada em audiovisual pela Escola de Comunicação da UFRJ. Em 2013 dirigiu e montou o curta-metragem Choque, recebendo prêmio de melhor contribuição à linguagem cinematográfica no Festival Internacional de Cinema de Arquivo. Desde então atuou como montadora e diretora de fotografia em diversos filmes selecionados e premiados em vários festivais pelo Brasil. Em 2015 foi co-criadora do coletivo Anarca Filmes, uma produtora audiovisual independente e experimental, que tem como proposta principal o empoderamento de corpos e sexualidades dissidentes. Atualmente recém-finalizou seu mais novo curta, X-Manas. É produtora do Isoporzinho das Sapatão, evento voltado para a ocupação de espaços públicos por mulheres lésbicas e bissexuais. Cláudia Mesquita é professora do curso de Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG, onde integra o grupo de pesquisa Poéticas da Experiência. Pesquisadora do cinema, fez mestrado e doutorado na Escola de Comunicações e Artes da USP. Publicou, com Consuelo Lins, o livro Filmar o Real – sobre o documentário brasileiro contemporâneo (Jorge Zahar) e organizou, com Maria Campaña Ramia, El otro cine de Eduardo Coutinho (Cinememória), publicado no Equador. Brasil Distópico

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Cristina Amaral é montadora formada em cinema pela Escola de Comunicação e Artes da USP. O primeiro trabalho profissional de montagem foi o curta-metragem Nós de valor, nós de fato (1985), de Denoy de Oliveira. Trabalhou com vários diretores do cinema paulista e foi premiada em vários festivais. A partir do filme Alma corsária, estabeleceu longa parceria com o diretor Carlos Reichenbach, para quem montou cinco longas (Dois córregos, Bens confiscados, Garotas do ABC e Falsa loura) e vários curtas. Montou vários filmes de Andrea Tonacci, entre eles Jouez encore, Óculos para ver pensamentos, Bienal Brasil século XX, Biblioteca Nacional, Para ver TV tem que ficar ligado, Benzedeiras de Minas, Serras da desordem e Já visto, jamais visto.

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Ewerton Belico é curador, professor, roteirista e diretor. Preside a Associação Filmes de Quintal, que promove o forumdoc.bh – Festival do Filme Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte – do qual é um dos coordenadores e curadores. Foi curador do Fronteira – Festival do Filme Documentário e Experimental de Goiânia e do Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte. Foi co-roteirista do longa-metragem Subybaya, dirigido por Leo Pyrata, e co-roteirista e co-diretor do longa-metragem Baixo Centro, escrito e dirigido com Samuel Marotta, atualmente em finalização. Francisco de Paula iniciou como cineasta no contexto do cinema da Boca do Lixo, tendo sido assistente de direção de filmes de Ozualdo Candeias e Cacá Diegues. Estudou na Escola Internacional de Cinema e TV de San Antonio de los Baños, em Cuba. Produziu e dirigiu 13 filmes independentes, sendo dez curtas-metragens e os longas-metragens Areias escaldantes (1985), Oceano Atlantis (1993) e Helena Meirelles – a dama da viola (2004). Atualmente trabalha em seu próximo longa, Santo Antônio. Gabriela Pessoa é natural de Belo Horizonte. Mudou-se para o Rio de Janeiro para cursar Cinema e Audiovisual na UFF, onde está quase finalizando a graduação. Em 2016, durante uma mobilidade acadêmica para o Ceará, realizou em coletivo o curtaCuradores, autores e convidados


metragem Antes da encanteria, já exibido em diversos festivais do país. Atualmente trabalha como estagiária no setor de áudio e vídeo da Academia Brasileira de Letras. Helena Lessa é realizadora, ilustradora e designer do Rio de Janeiro, formada pela UFF no curso de Cinema e Audiovisual. Parte do bonde OSSO OSSO, co-dirigiu os curtas Roques de quarto (2017), Hiperselva (2014) e Duas cartas (2013) e o longa-metragem Buraco negro (2017), atualmente em processo de finalização. Yasmin Thayná é cineasta, diretora e fundadora da Afroflix, curadora da Flupp (Festa Literária das Periferias) e pesquisadora de audiovisual no ITS-Rio (Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro). Dirigiu recentemente os curtas Kbela, o filme (2015), uma experiência sobre ser mulher e tornar-se negra, Batalhas (2016), sobre a primeira vez que teve um espetáculo de funk no Teatro Municipal do Rio de Janeiro e a série Afrotranscendence.

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Realização Ponte Produções Curadoria, programação e produção editorial Luís Fernando Moura Rodrigo Almeida Coordenação de produção Dora Amorim Thaís Vidal Produção local e de cópias Lellye Lima 176

Imagem da capa Juliana Lapa Projeto gráfico Matheus Ferreira Pesquisa Luís Fernando Moura Rodrigo Almeida Yuri Lins

Revisão de textos Luís Fernando Moura Rodrigo Almeida Assistência de produção Yuri Lins Revisão de cópias analógicas Caroline Nascimento Autoração de cópias digitais Juca Díaz Assessoria de imprensa Mais e Melhores Produções Artísticas Mídias sociais Rosa de Ouro Comunicação Registro fotográfico e videográfico Tiago Calazans Vinheta Paulo Victor Soares Pedro Lessa

Créditos


Monitoria Júlia Couto Rober Correia Colaboração na pesquisa Rober Correia Colaboração na revisão Paulo Faltay

Agradecimentos André Antônio Barbara Rangel Bernard Belisário Carla Italiano Chico Lacerda Cláudia Mesquita Dayanne Naêssa Flávia Rosa Borges Flora Pimentel Francisco de Paula Gustavo Spolidoro Hernani Heffner Jota Mombaça Julia Machado Kleber Mendonça Filho Lygia Santos Marcus Mello Paulo Faltay Rafael de Luna Ramiro Azevedo Sérgio Allisson Veloso Will Domingos Arquivo Nacional Cinemateca Brasileira Cinemateca do MAM CTAv - Centro Técnico Audiovisual

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