C r i s t i an i s m o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i s m o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i s m o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i s m o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i s m o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i s m o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i s m o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i s m o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u 4 C r i s t i a n i s m o e C u l t u ra C r i st ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ul2ra C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i s m o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo VOL. e C ult ura168 C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i s m o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i s m o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i s m o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i s m o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i s m o e C u l t u ra C r i st ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u Santa Maria C r i s t i an i s m o São e C u l t uNuno ra C r i st iade nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i s m o e C u l t u ra C r i st ia nis mo António e C ult Vaz ura Pinto C r is SIt ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i s m o D. e C uNuno l t u ra C r i stÁlvares ia nis mo e C Pereira ult ura C r is t ia- nis e C ult ura C rvitória ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u A mo primeira C r i s t i a n i s m o A va n ç o s e c u m énicosr ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism Jaime Nogueira Pinto e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist i a n i s m o e C u l t u ra C r i s t i a n i s m Crise Global - Quatro Notas e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura Francisco C r is t ia nisSarsfield Cabral mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st“Casamento i a n i sm o e C ult ura Chomossexual”? r is t ia nis mo e C ult ura C r is- tIIianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nis mo e C Pedro ult uraVazC rPatto is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i stJerónimo i a n i sm o e C ultNadal ura C r is t iana nis moCompanhia e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura- IIC r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism de Jesus e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo C ult uraSJC r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism Ferdinande Azevedo, e C u l t u ra C r i stH. i a nHelder i sm o e C ult–uraA CFaca r is t ia nisnão mo e CCorta ult ura C rois tFogo ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nisJoão mo eAmadeu Carvalho C ult ura C r is t ianismo da Silva e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism naC rVida e C u l t u ra C r i stOi a Hospital n i sm o e C ult ura is t ia nisdo mo eHomem C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism Joaquim e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nismo ePinto Machado C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism O Valor de um Título e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e CFrancisco ult ura C rPerestrello is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i stOrdens i a n i sm o e CeultCongregações ura C r is t ia nis mo e C ult- ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism Congresso e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ultLuís Machado ura C r is t ianismo de Abreue C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism 2009 e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r Abril ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i st i a n i sm o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism
Revista publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902
Brotéria
Abril 2009 Série Mensal Assinatura para 2009: Portugal 47,00 - (IVA incluído); U. Europeia 90,00 -; Outros países 95,00 Número avulso: 5,50 - (IVA incluído) Números atrasados (+3 anos): preço actual NIB: 0007 0101 00461660002 25
ISSN 0870-7618 Dep贸sito Legal 54960 / 92 Tiragem: 1100 exs.
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Director Conselho de Direcção Conselho de Redacção
Recensão e Crítica
António Vaz Pinto SJ Manuel Morujão SJ Domingos Terra SJ Alfredo Dinis SJ António Júlio Trigueiros SJ Daniel Serrão Domingos Terra SJ Emília Nadal Francisco Sarsfield Cabral Henrique Leitão Isabel Horta Correia João Norton SJ Mário Garcia SJ Miguel Monteiro Francisco Pires Lopes SJ Isidro Ribeiro da Silva SJ
Bibliotecário
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Secretariado
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Design Gráfico Propriedade
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Direcção, Administração, Assinaturas e Distribuição
R. Maestro António Taborda, 14 1249-094 Lisboa Tel. 21 396 16 60 - Fax 21 395 66 29 E-mail: broteria@gmail.com NIB: 0007 0101 00461660002 25
Composição e impressão
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ÍNDICE ! '
António Vaz Pinto, SI
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Jaime Nogueira Pinto
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Francisco Sarsfield Cabral
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Pedro Vaz Patto
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Ferdinand Azevedo, SJ
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Nuno Álvares Pereira - São Nuno de Santa Maria D. Nuno Álvares Pereira - A primeira vitória Crise Global - Quatro Notas «Casamento homossexual»? Salvar o Casamento - II Jerónimo Nadal, SJ: A sua importância na cultura apostólica da Companhia de Jesus - II João Amadeu Carvalho da Silva
Contributos para a Leitura de A Faca não Corta o Fogo de Herberto Helder
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Joaquim Pinto Machado
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Francisco Perestrello
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O Hospital na Vida do Homem Cinema O Valor de um Título Luís Machado de Abreu
Ordens e Congregações Religiosas em Portugal Congresso Internacional
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Recensões
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Obras recebidas na redacção
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Editorial Nuno Álvares Pereira São Nuno de Santa Maria
António Vaz Pinto, SI
A
26 de Abril de 2009, em Roma, quando estas páginas já estiverem impressas, será canonizado - oficialmente reconhecido como santo D. Nuno Álvares Pereira, até agora chamado entre nós como «Beato Nuno» (de Santa Maria) ou «Santo Condestável». Ao lado de um número considerável de «beatos», muitos dos quais mártires, o número de santos portugueses, oficialmente reconhecidos, é escasso, motivo sobrado para despertar a atenção sobre este novo «santo», agora canonizado. Mas não é esta a razão principal do nosso interesse: viveu num período conturbado da nossa história; ocupou, com grande sucesso, o mais alto cargo militar (condestável); esteve presente nas decisivas cortes de Coimbra que legitimaram as pretensões ao trono de D. João, Mestre de Aviz; casou a sua única filha com o filho mais velho do rei D. João I (embora «filho natural»), dando origem à Casa de Bragança; foi engrandecido em honras e património pelo Rei, de um modo que não teve paralelo; assistiu ainda à conquista de Ceuta, em 1415, considerada então como gloriosa Cruzada; finalmente, foi-se desfazendo das suas honras e bens, tendo entrado e vivido os últimos anos da sua vida, pobre e humilde, no Convento do Carmo, que ele próprio tinha fundado. Um «santo», à excepção do próprio Jesus Cristo e de Sua mãe Maria, não nasce santo: faz-se, vai-se fazendo, em resposta concreta de uma liberdade humana situada no espaço e no tempo, isto é, nas suas condições históricas; à graça de Deus. De alta e velha nobreza, pelo seu nascimento, Nuno Álvares era também filho «natural» de um frade e neto do arcebispo de Braga e vários dos seus irmãos tomaram par319
tido por Castela, por fidelidade feudal a D. Beatriz, filha única e herdeira de D. Fernando, rei de Portugal. Nuno Álvares optou por outra fidelidade, mais arriscada e moderna, a fidelidade a Portugal e à sua independência, convencido talvez pelos argumentos de João das Regras, tanto mais que o alinhamento de Castela pelo Papa de Avignon, em detrimento do Papa de Roma, era considerado como cismático e herético A fidelidade de D. Nuno a Deus, à Igreja e a Portugal, concretizada no seu símbolo vivo, D. João, mestre de Aviz e mais tarde Rei, apesar de alguns desentendimentos com o monarca, jamais voltou atrás Foi ao longo de todo este tempo que as virtudes cristãs de Nuno Álvares se foram consolidando e crescendo: a fortaleza, a piedade, a castidade (depois da prematura morte de sua mulher) a temperança e também o progressivo despojamento. Quando, por fim, entra no Carmelo de Lisboa, onde vive os últimos anos da sua vida como simples irmão leigo, dedicado à oração e aos pobres para quem pedia esmola, o percurso da sua vida está no ocaso, mas a sua ascensão interior vai no seu auge O respeito pelos adversários, o ideal da «cavalaria», a prática vivida da «guerra justa», a disciplina da sua vida e da vida dos seus companheiros, foram-no trabalhando durante décadas, até chegar à plena maturidade cristã Não admira que o seu culto popular tenha começado em simultâneo com a sua morte e que através de um «sinal» (devidamente estudado e comprovado como extraordinário) Deus tenha querido confirmar a sua santidade O mais importante é o exemplo da sua vida, as virtudes que praticou. Homem do seu tempo, aberto aos valores de então, fiel às suas causas, honesto e sóbrio, não se deixando sufocar pela riqueza, pelo poder e pelo sucesso, São Nuno Álvares é o necessário exemplo, hoje, aqui e agora, numa situação de crise colectiva e de valores, de que o serviço ao bem comum, generoso e honesto, é possível. Nota Quero agradecer vivamente ao meu amigo Jaime Nogueira Pinto a autorização para publicar neste número da Brotéria o artigo «D. Nuno Álvares Pereira A primeira vitória», que constituirá um dos capítulos do livro sobre S. Nuno Álvares que está, neste momento, a ultimar.
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D. Nuno Álvares Pereira
A primeira vitória 1
Jaime Nogueira Pinto *
O Fronteiro d entre Tejo e Guadiana No princípio de 1384, a situação político-militar começa a desenhar-se claramente: há uma bipolarização muito rápida entre o partido do Mestre de Avis, o partido português, o da independência de Portugal, e o partido de D. João de Castela, o partido castelhano, o da submissão do reino lusitano ao vizinho. Estrategicamente, em termos de espaço, os portugueses dominam Lisboa e Porto, mais um núcleo de cidades e vilas alentejanas, onde a população, a arraia miúda, às vezes comandada ou apoiada por alguns cavaleiros, escudeiros e burgueses, toma pela força ou pela astúcia os castelos e os lugares. O Norte, acima do Douro, é uma mancha de controlo castelhano. Os invasores ocupam ainda alguns castelos fronteiriços e povoações chave à volta da capital. D. João de Castela estava em Santarém e enquanto esperava a esquadra que lhe iria permitir fechar o cerco, tinha já mandado vir tropas frescas para começar a sitiar Lisboa. Identificada como a cabeça da revolução, Lisboa, o local de residência do Mestre de Avis e do seu conselho e o principal porto e centro económico do país, é o centro vital inimigo que o monarca castelhano quer aniquilar ou neutralizar de vez. Quanto ao Mestre e aos seus companheiros, aguardavam encerrados na cidade, bem conscientes da superioridade militar dos castelhanos, em número de soldados e experiência de manobra. Tão cedo não lhes conviria dar-lhes combate em campo aberto.
1 Este artigo corresponde a um dos capítulos do livro sobre S. Nuno Álvares Pereira, da autoria de Jaime Nogueira Pinto e que em breve será publicado (N. da R.).
* Professor Universitário e escritor.
Brotéria 168 (2009) 321-339
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Entretanto, chegara-lhes notícia de que D. João de Castela enviara uma força de cinco mil homens, entre cavaleiros, besteiros e peões, para entrar pelo Alentejo e reconquistar e castigar as praças e as populações que ali tinham tomado voz pelo Mestre de Avis. A chefiar esta força vinham vários senhores, como o Mestre de Alcântara, Pero González de Sevilla, o Conde de Niebla, Martinho Anes de Barbuda, e outros. A estratégia fazia todo o sentido: o Alentejo abria o caminho, a leste, para Lisboa e a punição teria também funções dissuasoras para outras povoações. D. João de Avis sabe que se trata de uma prova de força e que tem que demonstrar aos partidários que cuida deles, que os defende, e que quer e pode protegê-los. E nomeia Nun Álvares fronteiro de Entre Tejo e Guadiana, com plenos poderes, em termos de recrutamento de tropas e de mobilização de recursos para seu abastecimento. Ao Fronteiro caberia também fazer confiscos e doações em nome do Mestre, isto é, distribuir pelos partidários os bens confiscados aos inimigos. O futuro Condestável tornava-se, assim, uma espécie de comissário régio, representando livremente o poder de Lisboa. E ao seu tio Rui Pereira caberiam idênticas funções e poderes no Norte do país. Nun Álvares tinha agora, finalmente, um comando de responsabilidade. E como bom comandante, trata, antes do mais, de «agarrar» os homens: umas escassas dezenas de cavaleiros e escudeiros que o Mestre lhe dera para companheiros, «verdadeiros Portugueses e parte deles da sua criação». Começara o jovem comandante por lhes explicar as razões do combate e os objectivos da missão. Passara depois a eleger os responsáveis: para alferes ou portador da bandeira, escolhe Diogo Gil, e distribui outros cargos, não se esquecendo de nomear capelão e pregador, até porque tinha por hábito e devoção ouvir missa duas vezes ao dia: se para os chefes eram maiores os privilégios, dizia, também o teriam de ser as obrigações. Seguidamente, numa espécie de irmandade militar, pede aos companheiros que, entre eles, escolham os representantes ao seu conselho de comando. Basta pensar na orga322
nização militar medieval, rigidamente baseada na hierarquia social e de nascimento e com uma distância abissal entre chefes e subordinados, para medir a inovação e a singularidade do sistema instaurado pelo jovem fronteiro d entre Tejo e Guadiana.
A bandeira Nun Álvares manda então desenhar o estandarte: uma bandeira branca com uma grande cruz encarnada. Esta cruz, que no estandarte do Fronteiro divide o espaço em quatro, é a cruz de S. Jorge, o santo que Ricardo Coração de Leão instituíra como padroeiro das Cruzadas por o ter como paradigma da cavalaria medieval; séculos depois, em 1330, Eduardo III colocaria também sob a sua protecção a Ordem da Jarreteira. Já desde o século XII que S. Jorge era venerado em terras de Portugal, por via dos cruzados ingleses, mas só em 1387, com o casamento de D. João I com D. Filipa de Lencastre e também por influência da bandeira de Nun Álvares, o santo cavaleiro ascenderia a padroeiro de Portugal e o castelo de Lisboa, o castelo dos Mouros, passaria também a adoptar o seu nome. A cruz de S. Jorge, que paralelamente à bandeira armorial de Portugal funcionara como espécie de segundo símbolo nacional, só seria substituída pela cruz da Ordem de Cristo a partir do reinado de D. Manuel I. Por isso, aqui, na bandeira de Nun Álvares, a cruz, sendo a de Cristo, é sobretudo a cruz «nacional» do santo guerreiro. E não deixa também de evocar uma outra: a cruz encarnada em fundo branco das armas do fictício Galaaz, o mais puro dos cavaleiros do Graal. Era então esta a cruz que unia e dividia em quatro quadros a bandeira do futuro Condestável. Nos quartos superiores, à esquerda, estava Cristo crucificado, velado por Maria e João; e à direita, a Virgem com o menino. Nos quartos inferiores, viam-se dois santos cavaleiros ajoelhados S. Jorge, por Portugal, e S. Tiago, por Castela. Nos cantos do estandarte figuravam ainda pequenos escudos com a cruz dos Pereiras. 323
O facto de S. Jorge e S. Tiago se encontrarem de joelhos e de elmo deposto a rezar pela paz, remete-nos para o conceito de «guerra justa», estabelecido por Santo Agostinho e desenvolvido por S. Tomás de Aquino: a guerra só seria justa se, reagindo defensivamente a um mal maior e em nome do bem comum, se fizesse de olhos postos na paz e no restabelecimento da ordem. Tal excluía os conflitos desencadeados por cobiça, mero desejo de vingança ou com o manifesto intuito de prejudicar ou violentar um outro povo. Eram também inaceitáveis os actos de crueldade e toda a violência que excedesse a dureza indispensável para dissuadir o inimigo de continuar a praticar o mal. A única paz que a guerra justa poderia e deveria quebrar era a paz má (Pax mala), aquela que Cristo não viera trazer à terra. Assim, nesta simbologia, professava Nun Álvares a fé profunda e activa em Cristo, a devoção a Maria, Mãe de Deus e suprema Dama dos santos cavaleiros, a defesa da pátria e do bem comum como ética e missão dos bellatores, a guerra justa como promoção da boa paz, e o culto da terra e da família que o tinham visto nascer.
A força tranquila Nuno é um chefe, e bem depressa se verá que é. Primeiro, chefe de bando, comandante daquele grupo alegre de voluntários que partia em defesa da pátria ameaçada. Tem vinte e três anos e os seus são da mesma geração; também o Mestre de Avis o grande chefe tem apenas vinte e cinco. São desta criação os que combatem na primeira linha e que partem com Nun Álvares à aventura. É com eles que Portugal recomeça. O Fronteiro saíra de Lisboa, passara por Setúbal e fora para Montemor, onde levara o dia a parlamentar com os notáveis locais para consolidar a sua lealdade à causa do Mestre. E dali dirigira-se a Évora onde a arraia-miúda tomara a cidade e matara a pobre da abadessa de S. Bento. Mas se era grande o entusiasmo revolucionário e social, foi escasso o contributo militar, que se ficou por umas poucas dezenas de 324
lanças. E Nun Álvares sai depois para Estremoz onde reúne toda a sua companhia, aliás modesta: mil peões e cerca de trezentos cavaleiros, entre os que trouxera de Lisboa e recrutas. Os homens bons locais viam estes números pequenos e inquietavam-se: os castelhanos, e alguns dos senhores portugueses que andavam com eles, estavam por perto, eram muitos mais e contavam com nomes ilustres, capitães e combatentes de fama. Comentava-se também que, estando seu irmão Pedro e outros familiares com Castela, poderia o jovem fronteiro arranjar-se com eles a qualquer momento, sem nunca chegar a enfrentá-los a sério. Apesar de «anojado» com semelhantes receios, mas sempre com resposta pronta e certeira, retorquia-lhes graciosamente e sem sanha o Fronteiro do Guadiana «que, para defender a terra de Portugal, lutaria contra seu próprio Pai e que se os inimigos eram muitos e bons, mais glória haveria em com eles lutar e vencê-los». Iria ser sempre assim: um chefe em permanente contacto com os subordinados, alegre, aberto, directo, irmão e despido das galas protocolares, que argumentava com os seus e com os outros, que apelava sem pudor ao sacrifício e à grandeza, às vezes no limite. Apontava-lhes o caminho mais difícil, o da escolha de Aquiles, porque uma vida curta e heróica valeria sempre mais que uma vida longa e sem honra. Mas em Nun Álvares, em lugar do estoicismo ou da fúria gloriosa dos heróis pagãos, havia a religiosidade, a mística e a fé inabalável e também heróica do cristão. Era a encarnação do cavaleiro da Távola Redonda convertido, um Galaaz português, mas cheio de alegria e de humor, com aquele espírito que deveria ser o do jovem David, confiado na protecção do Altíssimo ao defrontar o gigante Golias. Foi com esse espírito que repeliu mais uma tentativa de aliciamento vinda do irmão Pedro e trazida por Rui Gonçalves, quando portugueses e castelhanos caminhavam para o encontro militar. O assédio era, de resto, permanente. Mas, tal como Galaaz repelira as mulheres e outras tentações deste mundo, ele repelia a sedução do dinheiro e da fama, mesmo que refor325
çada pelos conselhos da família. A sua espada, a espada mágica, a sua Excalibur que o alfageme corrigira em Santarém e que daria origem à peça de Almeida Garrett, pertencia a Portugal e ao Mestre de Avis. Não tinha preço nem estava à venda, e vendida ou desviada da sua missão sagrada, perderia o encanto.
A guerra medieval As sociedades humanas sobretudo nos primeiros passos da sua formação revelam-se, em termos de valores, mitos, tabus e instituições, pelo modo como fazem a guerra. E, por sua vez, o modo de fazer a guerra reflecte o espírito e a forma da sociedade. Porque a guerra é uma empresa extrema e uma prova agónica, de sobrevivência, que obriga sempre as sociedades a nela concentrarem os seus melhores recursos intelectuais e materiais. Para além desta componente cultural, há uma outra a técnico-material que define bem, até pelos limites que estabelece, o modo de fazer a guerra. Um dos flagrantes da época medieval é esta continuidade tecnológica, de longa duração, que vem da Antiguidade e vai durar até à invenção e generalização da pólvora nas armas individuais e na artilharia. Quanto às armas individuais, para combate próximo, havia as lanças, os picos, as espadas, as adagas, os machados e as maças de armas, de diversas formas e dimensões. Como para matar ou ferir à distância havia as fundas, os arcos e as bestas que lançavam pedras, dardos, setas e flechas. Ou, no plano defensivo, os escudos, as cotas de malha, as armaduras e as protecções em aço ou couro para as diversas partes do corpo dos combatentes. Pelo menos para os mais ricos e graduados. As armas estudadas e descritas pela Poliocértica (a ciência que estuda os cercos) vinham de tempos muito recuados. As armas colectivas, as armas pesadas, eram todas elas milenárias, sobretudo as utilizadas nos cercos de fortalezas e cidades amuralhadas ou para bombardear essas cidades, ou aquelas como a «tartaruga» dos romanos que serviam de protecção na aproximação às suas portas ou ameias. 326
Assim, se pudéssemos ver o cerco de Tiro por Alexandre Magno, no século IV a.C., o cerco de Jerusalém por Tito, no século I da nossa era, o cerco de Lisboa, por Afonso Henriques e os Cruzados, em 1147, e o cerco de Lisboa por Henrique II de Castela, em 1373, não iríamos achar grandes diferenças, em termos de armamento e equipamento dos sitiantes ou dos defensores. Na guerra em campo aberto, havia também uma continuidade ditada pela continuidade de armas, embora, com a acumulação dos desafios enfrentados e das experiências vividas, as formas de comando e de controlo tenham sofrido alterações. As batalhas antigas tinham consagrado, a partir dos modelos grego, macedónio e romano, uma concepção de manobra que se fora aperfeiçoando no terreno. Esta guerra antiga, em terra, adoptara a centralidade e o protagonismo das forças de infantaria em ordem unida. Graças ao treino conjunto e à disciplina imposta pelos graduados, a ordem unida da falange grega e macedónica e da legião romana tinha sido, por largos séculos, a arma táctica mais poderosa ou decisiva a rainha das batalhas. A chegada de bárbaros montados e mais tarde dos cavaleiros árabes ou islamizados, mudara este paradigma, com a queda do Império Romano do Ocidente. Mas no ano 732 da nossa era, reaparecia uma força de infantaria pesada, constituída por agricultores livres, enquadrados por cavaleiros nobres, que parara a expansão do Crescente entre Tours e Poitiers. Os cavaleiros ligeiros islâmicos tinham sido quebrados pela dureza disciplinada das lanças, machados e escudos dos francos de Carlos Martel uma muralha de ferro em movimento, de cujo interior choviam setas e virotes sobre a cavalaria ligeira de Abd-al-Rahman. A ascensão dos cavaleiros fixou-se com a fragmentação do Império Carolíngio, nos alvores da Europa feudal. A batalha medieval emblemática, entre os séculos X e XIII, vivia do choque dos cavaleiros, de duas hostes de cavalaria pesada, de cavalos grandes, montados por guerreiros cobertos de protecções de ferro. Tinha-se passado da simples e maleável cota 327
de malha às pesadas armaduras articuladas. Os cavaleiros, perfilados, atacavam em formação com os bacinetes, de viseiras descidas e lanças em riste. Era uma vaga pesadíssima, mas também rapidíssima quando lançada a galope, que se media e enfrentava, transformando-se depois a batalha numa série de duelos ou combates singulares. Ora esta representação recordada nas iluminuras e pinturas medievais e recriada pelos românticos só até certo momento corresponde à realidade. A sociedade de ordens medieval fizera dos defensores, dos cavaleiros, os seus pilares materiais. A Cavalaria ética e estética dos romances de Bretanha, uma cavalaria de guerreiros singulares, dava lugar a um ramo militar, a uma «arma», estrategicamente central e definidora da sorte das batalhas. Hastings (1066), a batalha com que os normandos conquistaram a Inglaterra, e Bouvines (1214), a batalha em que Filipe Augusto de França derrotara as tropas coligadas de Otão IV e os grandes feudais da Flandres e de Lorena, eram disso exemplo.
A revolução militar do século XIV O século XIV traz uma revolução militar que acompanha a evolução social. À estrutura feudal da Baixa Idade Média com a fragmentação do poder na sociedade senhorial, o alto papel político-social da nobreza e as tradições e armas privilegiadas da Cavalaria , sucede uma nova conjuntura que acompanha a centralização do poder e a formação dos Estados soberanos na Europa, ao lado do progresso económico e social das cidades. Em 1302, há várias cidades flamengas que se revoltam. Filipe o Belo manda contra elas uma força de cavaleiros comandada por Robert d Artois. O combate dá-se em Courtrai. Os flamengos, em grande parte peonagem, enquadrados por alguns nobres locais, organizam-se num terreno escolhido, onde escavam armadilhas e fossos com água. Nesses terrenos, os cavaleiros desmontam e formam a pé, e com as suas longas lanças constituem uma muralha de ferro, bem cerrada, ao modo da falange antiga e da infantaria pesada franca. 328
São homens livres agricultores e burgueses que lutam pelas suas liberdades. Os senhores da cavalaria pesada francesa acham um insulto a ousadia daqueles desprezíveis e rústicos plebeus que os enfrentam a pé. Depois das primeiras trocas de flechas pelos besteiros, a infantaria francesa avança contra os flamengos, seguida pela cavalaria, que deveria decidir o combate. Os infantes são repelidos pelo muro das lanças e quando os cavaleiros atacam, à desfilada, dá-se a reviravolta: os fossos atrapalham os cavalos na marcha, e muitos caem aí; os flamengos mantêm-se com as lanças eriçadas, qual porco-espinho teimoso e ondulante; e o resto dos infantes flamengos, munidos de goedendags (cacetes de madeira, com um espigão de aço na ponta), massacra os caídos. Foi uma carnificina, e o próprio Robert d Artois morreu em combate, com outros quinhentos nobres cavaleiros franceses, cujos escudos de armas e insígnias ficaram pendurados na igreja de Courtrai.
A experiência inglesa Quando iniciou a guerra dos Cem Anos, Eduardo III contava já com a experiência das guerras escocesas, em que, como na Flandres, homens de armas desmontados e apoiados por archeiros tinham batido forças de cavalaria numericamente superiores. A 26 de Agosto de 1346, no coração do Verão, depois de uma cavalgada em que os ingleses fazem grandes razias, Eduardo III encontra-se com as tropas do rei de França, Filipe VI, na batalha de Crecy. Eduardo escolhe, desta vez, uma posição mais alta, que fecha e fortifica com a carriagem e volta a desmontar os seus cavaleiros (cerca de mil e setecentos). O rei comanda o centro, na segunda linha, tendo, à direita, a divisão do príncipe de Gales e, à esquerda, a de William de Bohun, Conde de Northampton. No total, entre cavaleiros, archeiros e homens de armas, conta com quinze mil, para alguns vinte mil homens. Os archeiros tomam, como sempre, os flancos das divisões da infantaria e dos cavaleiros apeados. 329
Os franceses eram bem mais numerosos, talvez doze mil cavaleiros e homens de armas, mais seis mil archeiros e uma enorme leva de camponeses armados, que podiam chegar aos quarenta mil. O comando e hierarquia da hoste francesa seguia rigorosamente a linha da hierarquia social, contando pouco o traquejo militar. O Rei, o Condestável de França, o Duque de Alençon, irmão do Rei, o duque de Lorena e outros grandes senhores chefiavam, com base no estatuto e independentemente da experiência. Os franceses mostraram-se, desde logo, impetuosos, arrogantes e indisciplinados. Uma vez que vinham em marchas forçadas para a posição inglesa teriam caminhado trinta quilómetros nesse dia , seria de bom senso que acampassem e esperassem pela manhã seguinte para dar batalha. O chão estava empapado pela chuva da véspera e Eduardo mandara abrir armadilhas (covas de lobo) e fossos nas imediações do seu campo, protegido por trincheiras. O rei Filipe VI ordena aos besteiros genoveses que avancem primeiro, para, com os seus disparos, «amaciarem» as fileiras inglesas, abrindo caminho para a carga da cavalaria pesada, considerada decisiva, com os grandes senhores franceses ansiosos por castigar a ousadia dos invasores. Mas, no assalto à colina, os besteiros genoveses, que tinham marchado mais de seis léguas para a batalha, avançam e disparam as bestas a 250 metros das linhas do Príncipe Negro. Sem grande sucesso. Bem ao contrário, estavam no moroso trabalho de recarregar as bestas, quando os archeiros ingleses disparam os arcos longos e, em poucos minutos, cerca de 25.000 flechas caiem sobre os genoveses. No momento em que estes recuam, desprotegidos, o duque de Alençon carrega com os cavaleiros colina acima. Segundo Froissart, o próprio rei Filipe de França, vendo os genoveses em fuga desordenada, berrara para os seus: «Matai toda esta canalha que sem razão nos tapa o caminho!». E foi assim derrubando e matando os seus próprios besteiros em fuga que os cavaleiros franceses subiram a colina, para, na cumeada, se chocarem com os ingleses do 330
príncipe de Gales. Nos duzentos e cinquenta metros finais, a galope, a força do duque d Alençon deve ter recebido cerca de dezoito mil flechas disparadas pelos archeiros. As flechas derrubavam os cavalos e os cavalos derrubavam os cavaleiros, que corriam depois desorientados, aumentando a confusão. Quase tão bravos quanto obtusos, os cavaleiros franceses, depois de matarem os genoveses, continuaram com cargas sucessivas e inúteis colina acima (cerca de dezasseis, segundo Froissart), apanhando em cheio com as setas e dardos dos ingleses. Pelas dez horas da noite, já escuro, foi a vez da peonagem camponesa tentar a sorte. Recebidos do mesmo modo pelas flechas, não insistiram tanto quanto os cavaleiros. Mais espertos e mais medrosos que os senhores, dispersaram nas trevas da noite. A outra batalha famosa e decisiva desta primeira fase da Guerra dos Cem Anos foi Poitiers, dez anos depois de Crécy. Mais uma vez, temos a força inglesa em rápida cavalgada e pilhagem pelo Sudoeste da França. É o Príncipe Negro quem comanda as operações. O rei de França, João o Bom, reunira um forte exército para o perseguir e castigar pelo atrevimento. Na fase descendente da invasão, depois de grandes pilhagens, o Príncipe Negro dispõe-se a esperar pelos perseguidores junto a uma floresta, perto de Poitiers. Como sempre, monta o acampamento próximo de um curso de água, o rio Moisson, para que homens e cavalos bebam. Também como sempre, a força dos ingleses e dos seus aliados gascões prepara cuidadosamente o terreno, com trincheiras, covas de lobo, armadilhas e posições de tiro para os archeiros e arrumação e coordenação das alas. Os ingleses seriam entre sete ou oito mil e os franceses quatro ou cinco vezes mais, mas os homens do príncipe Negro tinham escolhido muito bem o terreno. Um conselheiro do rei João o Bom Sir Eustace de Ribencourt conclui, depois de examinar a vantagem da posição, que esta só deixa um caminho aos atacantes. E aconselha o monarca a fazer o assalto com toda a tropa desmontada, à excepção de um pequeno número de cavaleiros, que ficaria 331
de reserva. O conselho de desmontar, tinha a ver com a experiência das derrotas recentes: já se vira que cavaleiros e cavalos eram mais vulneráveis às setas que homens de armas a pé. No domingo de manhã, com os exércitos organizados frente a frente, o cardeal Talleyrand de Périgord, emissário do Papa, tenta uma trégua e a paz. A trégua é aceite mas as negociações para a paz fracassaram, já que o rei de França exige que, além da devolução do saque, lhe sejam entregues o príncipe de Gales com mais cem cavaleiros. A batalha começa na manhã do dia seguinte. Os franceses lançam o ataque com a cavalaria, a fim de dispersar os temíveis archeiros ingleses e abrir caminho às colunas de homens de armas desmontados, mas sem sucesso. E porque era longo o caminho a percorrer o ataque da infantaria chega também com atraso. Em poucos minutos, cinquenta mil flechas caiem sobre os franceses. Os assaltos às posições inglesas mostram-se, mais uma vez, infrutíferos: os anglo-saxões sabiam combinar com mestria os archeiros e a linha de infantaria com lanças. Quando a confusão aumenta, o Príncipe Negro ordena um ataque frontal, enquanto parte da cavalaria ligeira, comandada pelo Captal de Buch Jean de Grailly, circunda a coluna francesa e vem cair sobre ela de flanco. Na confusão final, o rei João o Bom e o Delfim são feitos prisioneiros.
«Morrer pela pátria» Esta excursão pela História militar do século XIV e pela revolução na forma de combater é essencial para entender a nossa guerra da Independência, já que Nun Álvares vai aplicar em Portugal, com saber, audácia e sentido de adaptação, as experiências militares europeias. E o êxito vai ficar também a dever-se ao facto de, entre nós, se verificarem alguns dos pressupostos político-sociais destas guerras entre outras gentes. Como os burgueses e os camponeses flamengos ou os montanheses suíços enfrentaram as tropas do rei de França ou as dos Habsburgos, em defesa das suas liberdades, da sua terra e 332
das suas famílias, assim também os portugueses, em 1383-85, defenderiam liberdade, terra e família, entendendo que terra pátria e casa própria estavam intimamente ligadas. A argumentação de que, em 1383, estaríamos ainda no terreno de realidades pré-nacionais, não atende à simbiose progressiva das razões de lealdade e vassalagem e das razões de ordem social, económica e de classe, com a formação acelerada, em tempo de risco eminente, de uma consciência nacional portuguesa. Numa época em que ainda existia culturalmente embora cortada pelo Cisma do Ocidente uma Respublica Christiana na Europa, onde as casas reais e senhoriais se internacionalizavam e as princesas levavam como dote os reinos, o surgimento da causa nacional na crise dos finais do século XIV pode parecer surpreendente. Mas é deste fenómeno que falam todos os autores coevos. O factor nacional estava a corporizar-se e a emergir, neste tempo de declínio da Idade Média. A guerra anglo-francesa criara, progressivamente, nos dois povos, valores identitários e tribais, que, para além das questões dinásticas e da legalidade jurídica, levariam ao aparecimento dessa amizade e inimizade próprias da relação política. E os legistas e letrados das faculdades de direito de Itália e de França ressuscitavam o direito romano imperial, enquanto sentimentos como o «dulcis et decorum est pro patria mori» se tornavam comuns e ganhavam valor político e sacramental por toda a Europa. Nun Álvares, João das Regras e o Mestre de Avis foram os portadores desse espírito. Passado o Rubicão da quebra da legalidade, em nome da nova legitimidade, Nun Álvares e os seus companheiros tinham que vencer ou morrer. O dilema trágico ajudara à decisão e o salus populi, a «salvação da República» dos Antigos, servia de justificação. Eram estes os sentimentos que cresciam e se arraigavam em Nun Álvares desde a sua primeira cavalgada de Santarém aos treze anos para observar os castelhanos. Sofrera nessa primeira vez ao ver os estranhos que ali pisavam sem licença e impunemente terras de Portugal e, ainda mais, ao observar a indiferença com que os portugueses a tal se resignavam, por 333
acomodação ou servilismo, querendo só poupar a vida e a fazenda, mascarando com razões tácticas o medo ao castelhano. Desde então, sabia cada vez melhor o que queria e sobretudo o que não queria. Queria ser português e não queria ser mandado por estranhos. Por isso, naqueles primeiros dias de Abril de 1384, cavalgava solto, à frente dos seus, pela planície do Alto Alentejo, de Estremoz a Fronteira. Prontificara-se a discutir com os homens honrados das terras alentejanas para os virar para a causa portuguesa; e a argumentar com os companheiros mais tíbios que queriam, naquelas vésperas, abandonar o combate, ou com os próprios familiares que o convidavam a desertar. E se os tratava a todos com afecto e paciência, também lhes fazia ver onde estava o bem e o mal. Como Galaaz, queria um Graal que o convocava para o serviço de Deus e dos seus, para a defesa da terra e para a lealdade ao Rei. Por esta ordem, mas ao mesmo tempo.
Atoleiros a batalha pé em terra Era por isso que ali estava agora, nos Atoleiros, na charneca alentejana, a sul de Fronteira. Seguindo os ensinamentos da revolução militar europeia, apeou os trezentos cavaleiros que levava, estudou com cautela o terreno, arrumou a carriagem e formou o pessoal em linha da frente, linha de retaguarda e alas direita e esquerda, de modo a enfrentar nas melhores posições e condições os castelhanos. Os guerreiros mais seguros enquadravam a peonagem menos experiente e o jovem comandante dera instruções aos oficiais para que se os peões recuassem, com medo, os obrigassem a manter a posição mesmo que tivessem que matar alguns. Depois, arengou aos homens as suas recomendações. Que se encomendassem a Deus e à Virgem pois que era justa a guerra que iriam travar. Apesar da batalha ser entre cristãos, estava ali em jogo a defesa da própria terra contra a agressão de estranhos e, além disso, não o disse Nun Álvares mas todos o sabiam não sendo os castelhanos pagãos, eram cismáticos, porque partidários do anti-papa Clemente. E mais afirmou o Fronteiro que se lembrassem os que ali iam com334
bater que, servindo o rei de Portugal e lutando contra a submissão ao rei de Castela, defendiam as próprias casas e os próprios bens. Deveriam então preparar-se para persistir nesse serviço, que tanto poderia durar uma hora como um dia. Em seguida, ajoelhou e rezou perante a cruz do estandarte. E com ele, comovidos, o fizeram todos. No fim, já de pé e voltado para os companheiros, concluiu: «Amigos, nenhum duvide de mim; e todos aqueles que me ajudarem, Deus seja aquele que vos ajuda; e se eu aqui morrer por vossas culpas e míngua, Deus seja aquele que vos demande minha morte». Era o homem de fé, o cavaleiro cristão, a rezar e a comandar; o chefe carismático, estabelecendo com os seus um pacto de sangue de que Deus era o garante. Mas era também o chefe do bando de irmãos, marcando as regras de cumplicidade da tribo. Os que ali estavam sabiam-se a pequena hoste dos puros, dos eleitos, dos combatentes, contra a imensidão dos adversários. Como Gedeão, Sansão ou os Macabeus contra os inimigos de Israel. Com Deus nada teriam a temer. Nem sequer os castelhanos que chegavam em força. Com a confiança sempre relativa que nos merecem os cálculos da época, o número dos inimigos seria umas três ou quatro vezes o milhar e meio de portugueses. E talvez por isso os castelhanos, depois de terem pensado em «pelejar pé em terra» com base nas prudentes lições do século, optaram por resolver as coisas depressa, com uma carga de cavalaria pesada. E lá partiram à desfilada os orgulhosos senhores o Mestre de Alcântara, Pero Gonzalez de Sevilha, Rui Gonçalves (o que trouxera a Nun Álvares a mensagem mediadora do irmão Pedro), o Conde de Niebla e o Almirante Tovar de lanças em riste, como senhores varrendo os servos revoltados. Logo chocaram contra a linha das lanças e picos dos chamorros (como chamavam aos portugueses por terem os cabelos curtos) e receberam as setas e os virotes dos archeiros da primeira linha. Segundo Lopes, fora tudo muito rápido: no primeiro assalto, ficariam quarenta mortos no terreno e nos demais, outros tantos, «até setenta e sete». Entre os portugueses, «nenhum morto nem ferido». 335
Era o dia 6 de Abril de 1384, quarta-feira de Cinzas. Alguns dos grandes senhores castelhanos morreram ali, outros ficaram feridos, outros escaparam ou retiraram para as povoações mais próximas com voz por Castela. O cronista, conhecedor da problemática da guerra na Europa e consciente da novidade do fronteiro do Alentejo assim conclui: «Onde aqui notai, que este Nun Álvares foi o primeiro que da memória dos homens até este tempo pôs batalha pé terra em Portugal e a venceu». E não tardou o futuro Condestável a fazer a exploração do sucesso na região, trazendo para o Mestre Arronches e Alegrete, graças à cumplicidade das populações. Na mesma altura, uma expedição portuguesa em cavalgada cruzou o Guadiana, entrou por Castela e trouxe como saque mil e quatrocentas vacas e setecentos novilhos, mais éguas e potros pequenos. Depois, Gil Fernandes saiu de Elvas com meio milhar de homens, a cavalo e a pé, e foi também em razia a Castela, voltando com prisioneiros e gado. No regresso, desbaratou uma força de castelhanos que era o dobro da sua. A notícia da vitória dos Atoleiros e destes êxitos sucessivos chegara à Lisboa cercada pelos castelhanos e causara grande alegria entre os sitiados. Com estas vitórias, esfumava-se o risco de uma invasão pelo Leste, pelo Alentejo, que viesse reforçar os sitiantes e fechar Lisboa e subia o moral dos lisboetas, que, em terra e no Tejo, se iam aguentando e combatendo com audácia e sacrifício. D. João de Avis, era um chefe carismático e presente, político e guerreiro, sempre acompanhando tudo e todos. Entretanto, o povo ia também sendo contemplado com visões do além, as «maravilhas» que Fernão Lopes regista na sua Crónica e que incluíam «uma procissão de espectros perto da Capela dos Mártires» e «uma chuva de cera, em Montemor-o-Velho». E logo se organizavam procissões para agradecer tais sucessos e milagres. Aos presságios do céu, juntavam-se ainda pequenos mas utilíssimos «milagres» terrenos como o vento contrário que varava umas naus castelhanas, fazendo com que toda a sua preciosa carga desse à costa em zona controlada pelos portugueses. 336
O Mestre que tinha sentido de manobra e sabia ler os mapas resolvera enviar ao Porto Rui Pereira, numas galés, para que voltasse com todos os reforços e todo o abastecimento que conseguisse recolher e organizar no Norte. A via marítima era, nesses tempos, o mais rápido meio de transporte norte-sul. Enquanto Nun Álvares consolidava posições no Alentejo, os castelhanos iam reunindo novas tropas para o combater. Pedro Ruiz Sarmiento juntara-se a Pedro Álvares e os dois conseguiram agrupar uma força de cerca de 12.000 homens. Mas Atoleiros e as notícias favoráveis à causa nacional fizeram com que Nun Álvares facilmente angariasse uns seis mil homens, entre cavaleiros, archeiros e peões. E se nos Atoleiros tinham sido quatro para um, a proporção era agora de dois para um. O «mito Nun Álvares» começara a ganhar forma e força. Por isso, em vez de lhe darem luta no terreno, os inimigos passariam a aliciá-lo com subterfúgios. Sarmiento chegara mesmo a desafiá-lo para um combate singular, mas Nun Álvares oferecera-lhe a batalha como única alternativa. Deixara de ser o adolescente das justas e dos torneios: a crise e a guerra eram coisas sérias, e o que estava em jogo não eram já os seus brios ou orgulhos, mas o destino do Reino e do povo.
Como o segundo cavaleiro salvou Lisboa Tinham chegado, entretanto, os reforços do Porto: eram mais de trinta naus e galés e a esquadra castelhana formara paralelamente à praia do Restelo para lhes impedir a entrada em Lisboa. O Mestre acertara com João Ramalho uma espécie de Álvaro Pais nortenho, mercador e político, que conseguira alcançar Lisboa num batel que mal a esquadra portuguesa avançasse, os de Lisboa atacassem, em manobra combinada. E assim fora: embora Rui Pereira, tio de Nun Álvares, tivesse morrido no combate, as naus do Porto conseguiriam passar o bloqueio e, naqueles meados de Julho, Lisboa acabaria por ser reabastecida. 337
Nun Álvares também se aproximara da capital e estava na outra margem. Seguro o Alentejo, viera até Palmela e dali mandara acender fogos para que de Lisboa o vissem e se animassem. À falta de grandes máquinas de assédio no arraial castelhano, o cerco passara-se entre as tentativas de assalto, sempre repelidas, e a esperança dos sitiantes de vencer a cidade pela fome. Nas margens do rio sucediam-se os combates, devido às surtidas dos defensores. A fome era o pior dos flagelos e para a combater não chegavam os artifícios, o engenho ou sequer o estoicismo dos portugueses. Fazia-se pão de quase tudo, de malvas a raízes, mas por detrás dos cinco quilómetros de perímetro das muralhas fernandinas estavam cerca de quarenta mil bocas. Foi então que, em princípios de Agosto, chegou, para defrontar a Fome que acometia os sitiados, o outro dos cavaleiros apocalípticos: a Peste. Não era nova nem desconhecida nestas paragens, a Peste que agora atacava os sitiantes. Já em 1373, no cerco do tempo de D. Fernando, viera pilhar o arraial castelhano. Nos cercos, dadas as condições de baixíssima salubridade e de promiscuidade dos acampamentos, bastava um foco para logo se alastrar o mal. O Antigo Testamento, na História de Israel e de Judá, está cheio destas histórias em que «o anjo do Senhor» um anjo negro, exterminador e implacável chega para libertar o povo eleito das hostes cruéis de Assírios ou Caldeus. Em Lisboa repetia-se o milagre. A peste bubónica chegara: dores de cabeça, náuseas, vómitos, hemorragias, delírios. Depressa os atingidos morriam, como que de podridão. Começara em Julho, subira em Agosto e, tendo dizimado os soldados, atingia agora os chefes. E aqui, como nos Livros Santos, também não chegava aos sitiados. Com uma lista de vítimas ilustres Sarmiento, Cabeza-de-Vaca, Alvarez de Toledo, Nuñéz de Lara, González de Mejia, todos cadáveres , com dois mil mortos e a um ritmo de duzentos homens a adoecer por dia, o próprio D. João de Castela, temendo pela vida, decide levantar o cerco. Era o dia 3 de Setembro de 1384 e, antes de partirem, os castelhanos queimaram os arraiais. 338
Mas a esquadra, intocada pelo flagelo, permanecia. Nun Álvares, ao saber da retirada, quisera vir logo para Lisboa. No final de Setembro, decidiu-se e, com outro ardil muito seu, cruzou o Tejo no Montijo e veio num pequeno batel para a capital, com trombetas atroando os ares, no momento da passagem entre os navios castelhanos. Conta Lopes, que Vasco Martins de Outeiro, escudeiro de Nun Álvares, viera a correr ter com o seu senhor, que estava para embarcar, pedindo-lhe que não fosse, pois sonhara que indo ele, Vasco Outeiro, com o seu amo no dito batel, os castelhanos da esquadra os tinham abordado e capturado. Nun Álvares, bem-humorado, respondera-lhe que, para que o sonho se não cumprisse, que ficasse ele, Vasco Outeiro, em terra, e o deixasse partir sozinho para Lisboa. E assim fez Nun Álvares, iludindo as naus inimigas. Chegado à capital, foi primeiro ouvir missa a S. Domingos; depois, foi ter com o Mestre «à chaque Seigneur, son honneur».
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Crise Global
Quatro Notas
Francisco Sarsfield Cabral *
1. A presente crise financeira e económica é angustiante, porque causa muita miséria e muito sofrimento. Mas é também fascinante do ponto de vista intelectual, pois veio pôr em causa antigas convicções tomadas como certezas adquiridas. É uma crise verdadeiramente global. Ela começou nos Estados Unidos, com excessos na concessão de crédito, mas todos os continentes, todos os países foram atingidos e com uma fulgurante rapidez. Portugal não foi muito afectado pela Grande Depressão dos anos 30 do século passado era um país fechado, agrícola, pouco desenvolvido Agora, até África, o continente que parecia ter ficado fora da globalização, sofre os efeitos da contracção económica resultante da crise financeira. Irá a globalização retroceder? Já aconteceu na primeira metade do séc. XX, a partir da I Guerra Mundial. É uma possibilidade, se prevalecerem as tendências proteccionistas. Na reunião do G 20 em Washington, no mês de Novembro passado, produziram-se declarações de rejeição de medidas proteccionistas. No entanto, 17 dos países que subscreveram tais declarações (incluindo os Estados Unidos) tomaram depois medidas desse tipo, embora de reduzido impacto Por isso havia algum cepticismo quanto à reunião seguinte do G 20, em Londres, no passado dia 2 de Abril. Ora aí prevaleceu a lição do desastre que foi a Grande Depressão, desastre muito agravado pelo proteccionismo: não só a reunião logrou um consenso em relação a vários pontos (ao contrário do que acontecera com o falhanço da Conferência Internacio* Jornalista.
Brotéria 168 (2009) 341-344
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nal realizada também em Londres, mas em 1933), como houve o cuidado de credibilizar as declarações anti-proteccionistas com medidas concretas de apoio ao comércio internacional. Embora as trocas comerciais entre países estejam agora em forte queda no mundo, tal fica a dever-se a quebras na procura e não a sérios obstáculos proteccionistas. Esperemos que os governos resistam às tentações populistas da falsa solução do proteccionismo.
2. Esta retracção económica severa provoca um paradoxo para os decisores das políticas económicas. Uma das raízes da presente crise foi o excesso e a irresponsabilidade com que muito crédito foi dado a quem o não poderia pagar. Os americanos viviam acima dos seus recursos o seu défice externo andava pelos 10 por cento do PIB (uma proporção semelhante à portuguesa ). O consumo subia imparavelmente nos EUA, graças ao crédito fácil e barato, a poupança das famílias quase desceu a zero, o Estado federal passou a ter défice e tudo isso era coberto por dinheiro estrangeiro, sobretudo chinês. Dir-se-ia, então, que importa travar o consumo dos americanos (e o nosso), para aumentar a poupança e reduzir o défice externo. A médio e longo prazo, com certeza que sim. Mas agora não: neste momento de retracção da procura há que a estimular. Por isso os governos aumentam despesas e baixam impostos. Por isso os políticos exortam as pessoas a consumirem já, dando-lhes facilidades (para a compra de automóveis na Alemanha, por exemplo). Se o consumo afundar, a recessão agrava-se. Vivemos, assim, a situação paradoxal de aquilo que é saudável a longo prazo se revelar mortífero no imediato. Algo que provoca compreensível confusão em muita gente. 3. O iminente colapso do sistema financeiro mundial e a brutal quebra no consumo e no investimento privados levaram a uma entrada em força dos Estados na actividade financeira e económica. Os Estados Unidos, ainda com a administração republicana de Bush, não hesitaram em fazê-lo foi o plano 342
Paulson, o primeiro de uma série. Em maior ou menor grau, praticamente em toda a parte o Estado tomou as rédeas da actividade económica. A crise denunciou a ilusão de que os mercados funcionam eficientemente sozinhos, auto-regulando-se. Após duas ou três décadas durante as quais prevaleceu a ideia de quanto menos Estado, melhor, agora são os empresários os primeiros a reclamar a intervenção estatal. Em Portugal esta redobrada dependência do Estado terá consequências negativas, pois reforçará a tradicional fraqueza da iniciativa privada nacional face aos poderes públicos. Depois do pseudo-corporativismo salazarista e das nacionalizações do PREC, temos hoje a crise a travar a autonomia da empresa privada. Mas a intervenção estatal é neste momento indispensável, dada a dimensão da crise. Por outro lado, pode haver um efeito positivo neste reforço do Estado na área financeira e económica. Estou a pensar na chamada economia social de mercado, que de algum modo é susceptível de ganhar novo fôlego na Europa e de tomar algum corpo em países tão diferentes como os Estados Unidos e a China. O tão criticado «modelo social europeu» afinal tem virtualidades que são invejadas noutros continentes e que a crise evidenciou. Naturalmente que a reforma desse modelo não é menos necessária, sobretudo por razões de sustentabilidade financeira, ligadas ao envelhecimento da população. Mas muita gente passou a reconhecer a importância, até económica (pensemos na produtividade, por exemplo), de alguma protecção social no desemprego, na doença, nos azares da vida. Acresce que, por motivos que não cabe aqui explicitar, o leque de rendimentos nos países desenvolvidos voltou a alargar-se nos últimos 30 anos. O capitalismo industrial foi um democratizador económico. Nos Estados Unidos a maioria dos proletários passou para a classe média ao longo dos três primeiros quartéis do séc. XX. Mas desde cerca de 1970 os salários da classe média praticamente estagnaram, enquanto os vencimentos dos que ganham mais subiram astronomicamente. 343
Mesmo sem a crise, o descontentamento da maioria dos americanos com a sua situação económica é um factor que pode levar os EUA a adoptarem medidas de protecção social que até aqui desprezaram. E há mais de 40 milhões de americanos sem qualquer seguro de saúde Obama tentará seguir esse caminho, mas a crise obriga-o a adiar parte do seu programa social.
4. A crise não vai acabar com o capitalismo, mas irá mudá-lo. O mesmo aconteceu na Grande Depressão dos anos 30. E nessa altura existiam alternativas, sedutoras para alguns como o comunismo soviético ou até o totalitarismo nazi. Iremos ter, com certeza, mercados financeiros mais regulados, melhor supervisionados e mais transparentes. A reunião do G 20 em Londres avançou significativamente nesta área. Em matéria de abertura do sigilo bancário já se conseguiram avanços apreciáveis da parte de países como a Suíça, por pressão do G 20. É provável, também, que o sector financeiro se reduza, depois de ter crescido muito nos anos recentes. E o estilo próprio do capitalismo anglo-saxónico, muito assente nas bolsas e algo alérgico à intervenção estatal, dará lugar a um tipo de capitalismo mais próximo do vigente na Europa continental. Por exemplo, a remuneração dos gestores deixará de ser predominantemente ligada aos resultados trimestrais e às cotações bolsistas, para se privilegiarem estímulos respeitantes à saúde empresarial a longo prazo. Mas as novas leis e regulamentações dos mercados não serão nenhuma solução mágica (até podem resultar contraproducentes, se forem demasiado burocráticas e bloqueadoras). Nada consegue suprir a ética, que faltou e de que maneira! na gestão bancária e empresarial nas décadas mais próximas. É precisa outra cultura de responsabilidade. Talvez a crise ajude a difundir uma nova consciência ética nos negócios, o que seria um grande bem.
344
«Casamento homossexual»? Salvar o Casamento II
Pedro Vaz Patto *
Alcance da questão De todas estas reflexões, importará retirar a real dimensão do que está em jogo com a redefinição do conceito jurídico do casamento. Há quem apresente esta redefinição como uma generosa proposta que pretende apenas alargar a «novas formas de família» os direitos da «família tradicional» sem a esta subtrair os direitos de que já goza. Na já referida sentença do caso Goodridge afirma-se que com essa redefinição o «casamento heterossexual» não perde dignidade e continuará a ser «uma vibrante e respeitável instituição». Mas o que se verificará e que assume notável gravidade é o esvaziamento desse conceito, a sua completa descaracterização. Afirma Xavier Lacroix: «Não teríamos nome para designar a união socialmente reconhecida do homem e mulher como tais. Qualquer que seja a análise que se possa fazer sobra a homossexualidade, é forçoso reconhecer que se joga entre homem e mulher algo de específico, que não se joga noutro tipo de relação. O casamento é a celebração social desta especificidade. Este símbolo maior, esta valorização solene perder-se-iam se o sentido do casamento fosse diluído em qualquer forma de união. Para falar com a linguagem da lógica, ganhando em extensão, o termo perderia em compreensão» 1.
«A neutralização do casamento como bem consumível conduz à perda do seu conteúdo e substância» 2. Está em causa uma * Juiz de Direito.
Brotéria 168 (2009) 345-362
1 De Chair et de Parole. Fonder la Famille, Paris, Bayard, 2007, p. 153. 2
LACROIX, Xavier, La Confusion des Genres. Réponses à Certains Demandes Homossexuelles sur le Mariage et l Adoption, Paris, Bayard, 2005, p. 58.
345
3
Ibidem, p. 67.
4
Ibidem, p. 67 (S).
5 «Mariage Homossexuel et Homoparentalité», in Commentaire, n.º 116, Inverno 2006-7.
6 As estatísticas relativas à pessoas com tendência homossexual que optam pelo casamento apontam para percentagens variáveis, que oscilam entre os 3 e os 16% (ver, sobre a questão, LACROIX, Xavier, op. cit., p. 47, e «Il Matrimonio Omosessuale Vacilla Pochi Sono Gli Omosessuali Interessati a Sposarsi», in www.zenit.org, edição italiana, 1/7/06).
346
«dessimbolização», que «apaga a mediação institucional maior pela qual a diferença de sexos é socialmente valorizada» 3. Afirma, na mesma linha, Miguel Nogueira de Brito: «À custa de querer tornar o casamento um símbolo acessível a todos (nem todos, apesar de tudo ), para quaisquer efeitos», este «transforma-se num símbolo de nada, para ninguém» 4. E afirma também Philippe Malaurie, professor de Direito Civil: (O casamento) « é uma antropologia, uma visão do Homem, um modelo social da sexualidade e da via sexual, do seu domínio e do seu desabrochar, que dela faz um humanismo: um compromisso para criar a vida, para as crianças que hão-de nascer, a fundação de uma família. Se for retirada deste modelo a sua essência, a diferença de sexos e a constituição de uma família, deixa de haver modelo, o casamento morre. O casamento homossexual mata o casamento, porque é a sua negação» 5.
Afirma a Conferência Episcopal espanhola, também a este respeito, na sua nota, já atrás referida, En Favor del Verdadero Matrimonio. «Fabricar moeda falsa é desvalorizar a moeda verdadeira e pôr em perigo todo o sistema social» (n.º 4, b)). Por tudo isto, o Consejo General del Poder Judicial, no seu parecer já referido, considera a admissão de casamentos entre pessoas do mesmo sexo «a reforma do regime legal do casamento de maior alcance alguma vez empreendida em toda a história do nosso Direito» (p. 7). A este respeito, salienta-se com frequência a injustiça que representa a descaracterização de uma instituição a que adere a esmagadora maioria para satisfazer pretensos direitos de uma minoria. Minoria (de pessoas com tendência homossexual) em que a opção pelo casamento também é acentuadamente minoritária 6. No primeiro ano de vigência da lei espanhola (quando seria de esperar um número particularmente elevado, por corresponder à legalização de situações que perduram desde há muito tempo), o número de casamentos entre pessoas do mesmo sexo rondou os mil e qua-
trocentos (0,6% do número total de casamentos), contra as inicialmente (antes da aprovação da lei) anunciadas centenas de milhar 7. Trata-se de um argumento válido, mas importa acentuar que não se trata tanto de fazer prevalecer os direitos da maioria, como tal, sobre a minoria (a maioria, por ser maioria, não tem que impor todos os seus interesses e a minoria, por ser minoria, não está privada de direitos), mas, como vimos, de fazer prevalecer o bem comum e o interesse vital da sociedade sobre desejos e interesses particulares. Sem acentuar alarmismos exagerados, pode recear-se justificadamente que a descaracterização do casamento que representa a admissibilidade de casamentos entre pessoas do mesmo sexo conduza a outros ataques ao modelo que tem caracterizado a nossa civilização. Quando o conceito de casamento se esvazia, torna-se um recipiente onde tudo cabe. Onde poderá também caber como também já se defende a poligamia, para ir de encontro a realidades que em sociedades multiculturais têm expressão numérica até superior à das uniões de pessoas do mesmo sexo, ou para satisfazer os direitos de pessoas de tendência bissexual, uma outra «orientação sexual» que não pode dar origem a discriminações. E com isso desapareceria também a «homenagem» à dignidade da pessoa com um valor único e irrepetível que a instituição do casamento monogâmico sempre tem representado nas culturas de raiz cristã 8. O receio 9 é justificado porque há factos objectivos já ocorridos que o sustentam. Há notícia de que na Holanda foi já legalmente reconhecida, em termos equiparáveis e próximos do casamento (como o são, em vários ordenamentos jurídicos uniões homossexuais) uma união polígama 10. Aquando da aprovação da lei espanhola que veio admitir os casamentos entre pessoas do mesmo sexo, o presidente da Federação Espanhola das Entidades Religiosas Islâmicas veio reivindicar, a propósito, a admissibilidade de casamentos poligâmicos, alegando (o que poderá ser verdade) que em sociedades com forte presença islâmica a «procura social» desse tipo de casamentos é até maior do que
7 Ver www.forumlibertas. com, 14/6/06.
8 Também na visão kantiana, expressa na sua Doutrina Geral do Direito, a monogamia é uma exigência do princípio da dignidade da pessoa humana e do princípio da igualdade: a doação conjugal que não é total, exclusiva e recíproca reduz o outro cônjuge a objecto. É o que recorda o jurista Carlo Cardia a propósito destas questões relativas à descaracterização do casamento em «Famiglie al Mercato delle Convivenze», in www.avvenire.it, 22/6/06. 9 Partilhado também pelo Consejo General del Poder Judicial no parecer atrás referido (p. 30). 10
Ver www.lifesitenews. com, 30/9/05.
347
11
Ver www.forumlibertas. com, 19/1/05.
12 Ver D AGOSTINO, Francesco, «La Mal Interpretata Libertà di Coscienza», in www.avvenire.it, 8/5/08.
13
Apud GEORGE, Robert P., «What s Sex Got to Do with It? Marriage, Morality and Rationality», in The Meaning of Marriage. Family, state, market and morals, GEORGE, Robert P.; ELSHTAIN, Jean Bethkeceds, Dallas, Spence Publishing Companhy, 2006, nota 66, p. 272, que acrescenta que esta linha de raciocínio também justificará o reconhecimento do chamado «poliamorismo», as comunidades sexuais.
348
a de casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Invocou as declarações de um ministro da Justiça espanhol no sentido de que tal admissibilidade seria possível quando o justificassem «o clamor social e as situações de facto e quando a sociedade estivesse preparada para a assumir». Também por essa ocasião, a admissibilidade de casamentos polígamos foi defendida pelo escritor Eduardo Mendicutti e para responder às exigências de pessoas de tendência bissexual 11. A admissibilidade de casamentos poligâmicos é defendida pela filósofa Martha Nussbaum em nome da liberdade de consciência 12. Afirma a este respeito o historiador da Universidade de Princeton Hendrik Hertog, defensor do «casamento» entre pessoas do mesmo sexo: «Se for autorizado o casamento homossexual, não deverá ser também autorizada a poligamia? A minha resposta é sim. Se reconhecermos que as pessoas têm direito à felicidade e têm direito a formar uniões que as façam felizes, então teremos de autorizar que mais do que duas pessoas formem uma união, desde que haja o cuidado de prevenir a coerção e de garantir a capacidade das pessoas que tomam tais decisões» 13.
Quando se descaracteriza de forma tão grave uma instituição, não sabemos até onde nos levará a derrocada. A partir da admissibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo, também há quem defenda a própria abolição do casamento. O casamento perderia, assim, relevância jurídica. Ou, pelo menos, seria reduzido a um simples contrato, sem dimensão institucional: deixaria de representar um modelo pré-definido e passaria a estar sujeito, como a generalidade dos contratos, à autonomia negocial. Poderia ser, por exemplo, clausulada a isenção de deveres de fidelidade e co-habitação, por um ou ambos os cônjuges. Poderiam passar a ser celebrados casamentos a termo (apesar da cada vez mais acentuada liberalização do divórcio, o casamento continua hoje a ser tendencialmente perpétuo, não podendo ser celebrados casamentos «a prazo»).
Uma tendência para que contribui também a admissibilidade do divórcio unilateral (requerido por qualquer dos cônjuges a todo o tempo, independentemente dos motivos e mesmo pelo cônjuge violador dos seus deveres conjugais contra o cônjuge «inocente» que não quer divorciar-se). Também esta admissibilidade descaracteriza radicalmente o casamento (que diferença há, então, entre estar casado e não estar?; em que é que se traduz um vínculo que pode ser desfeito a todo o tempo e independentemente dos motivos?). Não será coincidência que em Espanha a admissibilidade de casamentos entre pessoas do mesmo sexo tenha sido acompanhada pela admissibilidade do divórcio unilateral (popularmente conhecido como «divórcio-expresso»). No fundo, a perspectiva que se avizinha no horizonte é a da própria alteração radical do Direito da Família. Esta deixaria de apresentar um qualquer modelo institucional, tido como o socialmente mais benéfico, e passaria a estar aberto a tantos «modelos familiares» quantos os que correspondessem à vontade livre dos sujeitos envolvidos (incluindo, até, o chamado «poliamorismo», as comunidades sexuais) 14. A feminista norte-americana Marta Finemann propõe a erradicação da relevância legal do casamento e a sua substituição pela tutela legal de qualquer relação de dependência e auxílio mútuo, com ou sem expressão sexual 15. Por aqui se vê o desfecho a que pode conduzir a descaracterização do casamento e da sua dimensão de abertura à procriação. Para compreender o alcance da proposta em causa, temos, pois, de partir da consciência do papel da dimensão simbólica da Lei, da mensagem cultural que ela transmite e do seu papel pedagógico. São estes aspectos que estão em causa, mais do que direitos ou deveres específicos, os quais, como veremos, até podem ser consagrados por vias diferentes das da institucionalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo ou de uma outra figura equiparável. Mas a questão ganha, por isso, uma relevância muito maior, uma relevância com um alcance civilizacional que está para além do curto prazo e da política quotidiana.
14
Pode ver-se, sobre esta questão, KURZ, Stanley, «Beyond Gay Marriage», in www.weeklystandart.com, 8/4/03, e «The Conspiracy to Abolish Marriage in Canada If Everything Is Marriage, Nothing Is», in www. lifesitenews.com, 25/9/06.
15
Ver BROWNING, Dan e MARQUARDT, Elizabeth, «What About the Children? Liberal Cautions on Same-Sex Marriage», in The Meaning of Marriage, p. 47.
349
16
Ibidem, pp. 11 (S) e 67 (S).
17
The Transformation of Family Law, The University of Chicago Press, Chicago, 1989, pp. 10, 311 e 312. Neste sentido, pode ver-se, também, MARTÍNEZ DE AGUIRRE, Carlos, op. cit., p. 114.
18
«Lo Stato Sia Liberale, Non Delini Modelli di Vita», in www.avvenire.it, 9/12/05.
19
«Difendiamo il Matrimónio, Specifico Bene Umano», in www.avvenire.it, 8/2/07.
350
Pedro Múrias também parte deste pressuposto. O casamento é, fundamentalmente, «um símbolo como bem jurídico protegido». Na sua perspectiva, desse símbolo não deveriam ser privadas as pessoas de tendência homossexual. Mas, como também já vimos, a esta argumentação Miguel Nogueira de Brito responde alegando que o casamento entre pessoas do mesmo sexo fará do casamento «um símbolo de nada» 16. Mary Ann Glendon, catedrática de Direito da Família da Universidade de Harvard põe em relevo a eficácia do Direito na conformação de ideias, sentimentos e condutas e a interacção entre o Direito e as ideias, os sentimentos e as condutas. As transformações do Direito da Família não são apenas reflexo das transformações de mentalidades, mas são também, muitas vezes, causa dessas transformações, ou para elas contribuem decisivamente, constituindo factor de consolidação ou aceleração das mudanças, ou de consolidação das mesmas. Quando o Direito se move na mesma direcção das tendências socialmente predominantes, a sua eficácia é multiplicada; quando se move em sentido contrário a essas tendências, a sua eficácia é inferior. Daqui resulta a eficácia pedagógica e exemplar no plano das mentalidades e comportamentos, que ultrapassa o campo estritamente jurídico, do Direito da Família 17. Uma eficácia que se torna particularmente significativa quando está em causa a valorização simbólica do casamento como fundamento da família. Afirma o jurista Marco Olivetti a respeito do reconhecimento legal de uniões entre pessoas do mesmo sexo: «E é evidente a relevância educativa e de condicionamento dos costumes que uma tal opção configura: equivaleria a enfraquecer ulteriormente o estatuto do casamento, reduzindo-o a uma realidade negligenciável» 18. Para Franceso D Agostino, a definição de casamento apela à noção da vida como dom e tarefa: quem recebeu a vida, tem o dever de a comunicar. Alterar essa definição de modo a confundi-lo com uniões entre pessoas do mesmo sexo «activa no imaginário colectivo a ideia de que a convivência afectiva é essencialmente auto-referencial» 19.
Afirma, nesta linha, Robert P. George, professor de Filosofia do Direito da Universidade de Princeton: «A Lei é um professor. Há-de ensinar que o casamento é uma realidade na qual as pessoas podem escolher participar, mas cujos contornos não podem por elas ser moldados arbitrariamente (por exemplo, uma comunhão de pessoas «numa só carne», unidas numa forma de vida especificamente adequada para a geração, educação e crescimento de crianças), ou há-de ensinar que o casamento é uma simples convenção, que é maleável a ponto de indivíduos, casais e até grupos, poderem fazer dele tudo aquilo que satisfaça os seus desejos, interesses ou finalidades subjectivas».
A valorização do casamento monogâmico não pode depender apenas de opções individuais, mas de uma cultura que reconhece e apoia essas opções, através de meios informais, mas também formalmente através de instituições jurídicas e políticas 20. Este é um aspecto que tem sido posto em relevo por pessoas e instituições que se têm pronunciado sobre a questão da redefinição jurídica do casamento. Assim, por exemplo, a Congregação para a Doutrina da Fé na já referida nota Considerações sobre os Projectos de Reconhecimento Legal das Uniões entre Pessoas Homossexuais (n.º 6). E a nota da Conferência Episcopal espanhola En Favor del Verdadero Matrimónio (n.º 4, c)). Afirma, a respeito da legislação da família, o Cardeal Francis George, arcebispo de Chicago: «A cultura não existe num vácuo legal Porque a Lei é necessária à civilização. Mesmo a ausência de lei a opção de omitir ou remover a regulação legal numa área da vida cultural molda a cultura, para o bem ou para o mal ( ). Sozinha não pode curar os defeitos morais de um povo. Pode, porém, modificar o sentido popular da hierarquia de valores e do que representa um comportamento aceitável. A Lei ensina mais do que previne» 21.
Mons. Giampaolo Crepaldi, secretário do Conselho Pontifício «Justiça e Paz» tem salientado como a política de família é, antes de tudo, uma política cultural de promoção da famí-
20
Ibidem, pp. 170-171.
21 Apud SPATH, Katherine Shaw, «Current crisis in marriage law» in The Meaning of Marriage, p. 221.
351
22
Ver www.zenit.org, edição italiana, 18/2/08.
23
Ver, por exemplo, o sítio da campanha em favor da definição na Constituição da Califórnia do casamento como união entre um homem e uma mulher: www.protectmarriage.com.
24
Ibidem, pp. 188-190.
25
Ver www.forumlibertas. com/frontend/forumlibertas/noticia.php?id_noticia=6146
26 Apud SUGRUE, Seana, op. cit., nota 51, p. 276.
352
lia, mais do que a atribuição de subsídios ou outras regalias: «Não bastam as políticas sociais para apoiar a família, é necessária uma renovada cultura que promova uma ideia de família fundada no casamento e aberta à vida». A questão principal é, pois, de ordem cultural: «a correcta interpretação cultural da própria família», «a compreensão que a pessoa tem da família e do seu valor único» 22. A redefinição do conceito jurídico de casamento acarretaria uma profunda mudança nos programas educativos e escolares. Às jovens gerações, necessariamente, passariam a ser apresentados outros modelos e outras referências de casamento e de família. Trata-se de um aspecto que tem sido realçado em campanhas em prol da manutenção da definição jurídica de casamento como união entre um homem e uma mulher 23. Como já atrás referi, Seana Sugrue salienta como, sendo o casamento como união entre homem e mulher uma instituição pré-política e o casamento entre pessoas do mesmo sexo necessariamente uma criação política, esta criação não pode deixar de traduzir-se numa forma de «despotismo», conduzindo à utilização do próprio sistema educativo público para criar condições culturais que apoiem o casamento entre pessoas do mesmo sexo 24. Em Espanha, à legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo está associada a introdução no currículo escolar da disciplina de «Educação para a Cidadania», orientada no sentido da promoção ideológica dessa legalização e da homossexualidade em geral, facto que tem dado origem à recusa de frequência dessa disciplina com a invocação do direito à objecção de consciência por parte de grande número de pais 25. O Supremo Tribunal canadiano, na sequência da definição do casamento entre pessoas do mesmo sexo como exigência constitucional, decidiu que seria lícita a recusa de reconhecimento estadual de cursos de ensino privado que reprovassem o comportamento homossexual, tal como seria ilícita a recusa de uma escola de adoptar livros que apresentem a união homossexual como uma forma de família 26.
Compreende-se facilmente, a esta luz, a relevância da questão da definição jurídica do casamento. No fundo, perde sentido a afirmação política e jurídica de que o Estado reconhece e promove a família como célula da sociedade quando este conceito se esvazia. Como pode ser promovida a família se nem sequer é clara a definição de família e a consciência da sua insubstituível missão? Como poderá, então, falar-se em política cultural de valorização da família? Se chega a ser abolida a primeira e mais elementar «homenagem» (no plano cultural), a valorização simbólica da sua fonte, que é o casamento?
Alternativas É com frequência sugerido que a alternativa à redefinição jurídica do casamento de modo a nela incluir as uniões entre pessoas do mesmo sexo é a de prever uma forma de união análoga ao casamento, com outra denominação, eventualmente com algumas diferenças, mais ou menos substanciais, de regime jurídico. Dessa forma seriam reconhecidos legítimos direitos dos membros dessas uniões (regime de comunhão de bens, sucessão num contrato de arrendamento em caso de morte de um dos parceiros, segurança social, sucessão hereditária, justificação da faltas por doença, possibilidades de visitas hospitalares, declaração fiscal conjunta com os benefícios que daí possam decorrer, etc.). À luz das considerações acima tecidas, justificam-se algumas observações a esta proposta. Em resumo, parece importante que através do reconhecimento dessas uniões não se traduza numa forma indirecta de lhes dar o mesmo reconhecimento social ou jurídico que é dado ao matrimónio. Não se trata apenas de uma questão de nome (apesar da relevância simbólica do nome, compreensível à luz do que acima foi dito), mas também de estatuto substancial, estatuto que reflecte (ou deveria reflectir 27) uma intenção de tutela e promoção da família como tal. Afirmam Jorge Miranda e Rui Medeiros que, como foi sublinhado em votos de
27
Muito haveria a dizer a este respeito e da incoerência ou injustiça de uma ordem jurídica que, cada vez mais, vai criando regimes que, no plano fiscal ou noutros planos, ignoram o relevo e função social da família e da família aberta à vida. Mas entraríamos num tema que justificaria outro estudo.
353
vencido da decisão do Tribunal Constitucional Federal alemão de 17 de Julho de 2002,
28
Ver op. cit., «Artigo 36.º», p. 406.
«a conclusão mais coerente com a consagração constitucional do casamento como garantia institucional é a de que não pode a lei, ainda que sob a capa de outro nome ou designação, atribuir às pessoas do mesmo sexo que convivem em união de facto um conjunto de direitos e deveres essencialmente idênticos ou análogos àquele atribuído aos cônjuges» 28.
Por outro lado, há o risco de criar figuras híbridas, uma espécie de «semi-casamento» ou «casamento de segunda classe», menos empenhativas (equiparáveis ao casamento no que se refere aos direitos, mas não no que se refere aos deveres, pois será possível a desvinculação de qualquer dos parceiros a todo o tempo, sem formalismos e independentemente dos motivos), que entram «em concorrência» («desleal», poderemos dizer) com o casamento, e dessa forma também o desvalorizam, afectando a sua insubstituível centralidade nos planos social e cultural. A consideração dos direitos dos conviventes pode realizar-se através de vários institutos do Direito comum, já existentes ou a criar (quando tal se justifique), sem recorrer a figuras com alguma analogia com o casamento. No fundo, estão em jogo direitos decorrentes da dignidade das pessoas (que nunca pode ser posta em causa), não o reconhecimento institucional e público de uma relação, seja qual for a fórmula desse reconhecimento. Também poderá servir de critério o de não conferir às pessoas parceiras de uma união homossexual mais direitos do que os que possam ser atribuídos a pessoas unidas por laços estáveis de entreajuda e economia comum, por razões familiares (irmãos) ou de amizade (adopções ou guarda de crianças ou jovens «de facto», por exemplo), sem dimensão sexual. Aprofundemos um pouco estas observações. No panorama europeu, no momento em que escrevo (Janeiro de 2009), ao lado de países que admitem o casamento entre pessoas do mesmo sexo (a Espanha, a Holanda, 354
a Bélgica e a Noruega), há outros (como o Reino Unido, a França, a Alemanha ou os países escandinavos, estes últimos pioneiros na criação desta figura) que prevêem o reconhecimento de uniões homossexuais sob a forma de figuras contratuais cuja denominação varia entre «contrato de vida comum», «contrato de união civil», «contrato de união social», «pacto de interesse comum», «pacto civil de solidariedade» ou «convivência registada». Nalguns casos (como os dos países escandinavos, da Alemanha ou do Reino Unido), tais contratos são especificamente concebidos para as uniões homossexuais. Noutros (como no caso do Pacto Civil de Solidariedade francês, o PACS), os contratos representam uma figura alternativa ao casamento, menos «vinculativa» (podem ser dissolvidos com uma simples comunicação ao outro parceiro), que podem ser subscritos por uniões de duas pessoas de sexo diferente ou do mesmo sexo. No caso do Reino Unido, o estatuto em causa é inteiramente equiparável ao do casamento (só a denominação é diferente), mesmo para efeitos de adopção. Noutros casos não se vai tão longe e não está, designadamente, prevista a possibilidade da adopção, ou está prevista apenas a adopção do filho do outro parceiro (como na Alemanha). Também o grau de autonomia negocial varia de caso para caso. Na Holanda e na Bélgica, a admissibilidade de casamentos entre pessoas do mesmo sexo não exclui a possibilidade de celebração de contratos como estes, menos «vinculativos». A Itália, a Polónia, a Grécia, a Hungria e a Croácia não prevêem alguma forma de reconhecimento legal das uniões homossexuais 29. Portugal, a esta data, também não (não está prevista qualquer figura contratual e institucionalizada que abranja tais uniões), embora, como veremos, se aplique a essas uniões o regime legal das uniões de facto (a Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio) e das uniões de pessoas em economia comum (a Lei n.º 6/2001, de 11 de Maio). A respeito do regime do Reino Unido, que equipara integralmente as uniões homossexuais ao casamento excepto na denominação, podemos afirmar que em grande medida se lhe podem ajustar as críticas à admissibilidade de casamento entre
29
Pode ver-se uma panorâmica dos regimes legislativos de alguns países europeus no relatório elaborado, em Maio de 2007, pela Divisão de Informação Legislativa da Assembleia da República para apoio aos trabalhos parlamentares e publicado na revista Julgar 4 (Janeiro-Abril de 2008), 223ss. Pode ver-se, também, entre outros, CASINI, Carlo, op. cit., pp. 62 a 64, e MACIOCE, Fabio, op. cit., pp. 37 a 41. É natural que o panorama descrito se desactualize rapidamente, dada a relevância e recorrência destes debates, que estão longe de ser consensuais, em todo o mundo.
355
30
«Après le PACS, une Crise de Société Ineluctable», in France Catholique, 10/12/99.
31
Salienta também este aspecto SPATH, Katherine Shaw, op. cit., pp. 236-237: Na perspectiva da Lei e da sociedade, o casamento deixa de ser único a partir do momento em que os casais podem escolher o grau do seu compromisso.
32
LACROIX, Xavier, op. cit., p. 50, nota 6.
356
pessoas do mesmo sexo. Como já disse, não se trata apenas de uma questão de nome (apesar da relevância simbólica do nome, compreensível à luz do que acima foi dito), mas também de estatuto substancial, estatuto que deveria reflectir uma intenção de tutela e promoção da família como tal. A dimensão simbólica da valorização do casamento não fica inteiramente salvaguardada com uma simples mudança de nome (embora esta questão tenha, mesmo assim, alguma relevância). No que se refere ao regime francês, é de considerar que foi a propósito da sua introdução que na Europa se suscitou talvez a primeira polémica de grande alcance em que foram abordadas as questões que vimos debatendo. Foi a propósito do PACS que se teceram muitas das considerações de autores franceses atrás referidas sobre a desvalorização do casamento. Acresce que a essa figura também se podem opor outras críticas. Trata-se de um instituto que se poderá qualificar sumariamente como «semi-casamento», «casamento ligeiro» ou «casamento de segunda classe», menos empenhativo e que é equiparável ao casamento no que se refere aos direitos, mas não no que se refere aos deveres, desde logo porque é possível a desvinculação de qualquer dos parceiros a todo o tempo, sem formalismos e independentemente dos motivos. Este instituto surge como alternativa ao casamento (uma alternativa mais fácil, menos empenhativa e, nesta medida e de algum modo, mais «atraente») e este perde, assim, a sua centralidade no plano social, e cultural (a sua «imagem social» é gravemente afectada). O editorialista Gerard Leclerc, director do periódico France Catholique, afirmou que a proposta «relativiza o casamento», reduzindo-o a apenas uma entre várias opções familiares possíveis e que, assim, se «põe em causa a estrutura nuclear da sociedade» 30 31. Xavier Lacroix, a propósito do PACS, questiona-se sobre o alcance da sua introdução na ordem jurídica em confronto com o casamento: alternativa, substituição ou etapa estratégica? 32.
Que possa servir de alternativa, podemos verificá-lo quando se atende ao número crescente de pessoas que a ele recorre, com o que isso representa de sintoma de uma menor valorização de compromissos mais sólidos e duradouros. O que não deixa de ter reflexos socialmente nocivos na perspectiva, que vimos salientando, da função social da família 33. Que possa representar uma etapa estratégica, também se pode verificar, se atendermos a que as forças políticas que implementaram a introdução deste instituto na ordem jurídica francesa (o Partido Socialista, designadamente) com ela já não se contentam e reivindicam hoje a admissibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo, enquanto as forças políticas que inicialmente a ela se opuseram hoje já a aceitam 34. Este facto não deve passar despercebido. Pode, na verdade, a aceitação de uma figura jurídica equiparável ao casamento traduzir-se num primeiro passo para a aceitação do casamento entre pessoas do mesmo sexo. A Conferência Episcopal Francesa manifestou a sua tenaz oposição à lei que introduziu o PACS e que qualificou como «inútil e perigosa» e foi nessa posição acompanhada por uma vasta mobilização de movimentos católicos. Criticou a «hierarquia de tipo de uniões» assim estabelecida na ordem jurídica. E afirmou a esse respeito:
33
Ver, neste sentido, DUMONT, Gérard François, «Riconoscimento Coppie, Non Aprite Quelle Porte», in www.avvenire.it, 18/11/07.
34
Sobre as posições dos candidatos presidenciais Nicolas Sarkosy, Ségolène Royal e François Bayrou a este respeito, pode ver-se www.la-croix.com, 19/6/06.
«A sociedade não tem que reconhecer todas as associações afectivas que relevam da experiência singular de cada um e do domínio do privado. A Lei só pode ser edificada sobre realidades universais e não sobre desejos, ou sobre representações afectivas singulares».
Devem ser respeitados direitos de que devem beneficiar todas as pessoas, mas isso não significa erigir um qualquer comportamento em «referência e modelo» 35. Em Itália, o mesmo tipo de oposição também se manifestou a propósito das tentativas de introdução de institutos semelhantes ao PACS (o «contrato de união social»), ou a ele equiparáveis (os «DICO»). Este último chegou a ser objecto de uma proposta governamental e consistia na regulação do esta-
35
Ver esta tomada de posição e a notícia da mobilização dos movimentos católicos em La Croix, 18/9/98.
357
36
Ver, por exemplo, Avvenire, 16/2/07, 29/3/07, 9/5/07, 13/7/07 e 14/7/07. Para Mons. Giuseppe Betori, então secretário da Conferência Episcopal Italiana, seria possível tutelar os direitos das pessoas conviventes com recurso ao Direito Privado «sem criar um novo sujeito jurídico, uma semi-família ao lado da família legítima» (ver Avvenire, 31/1/07). Pode ver-se, também, a este respeito o editorial deste jornal (orgão dessa Conferência Episcopal) Il Perchè del Nostro Leale «Non Possumus», de 6/2/07.
37
http://www.vatican.va/ roman_curia/congregations/cfaith/documents/ rc_con_cfaith_doc_ 20021124 _politica_po.html
38
Esta posição tem sido defendida por autores, como os já citados, que se opõem à admissibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo e ao reconhecimento legal de uniões homossexuais. Pode ver-se, neste sentido, MACIOCE, Fabio, op. cit., p. 85; Carlo Casini, op. cit., pp. 103 a 140; RODRIGUEZ LUNO, Angel, op. cit., LODOVICI, Giacomo Samek, op. cit., e GAMBINO, Alberto (professor da Universidade de Nápoles), «Perchè il PACS non è la Soluzione per Regolare le Convivenze di Tipo non Matrimoniale», in www.zenit.org, edição italiana, 20/9/05. Também neste sentido se pronuncia a Congregação para a Doutrina da Fé na nota Considerações sobre os Projectos de Reconhecimento Legal das Uniões Homossexuais (n.º 9).
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tuto das pessoas conviventes, de sexo diferente ou do mesmo sexo, em termos que não supunham (ao contrário do PACS) a celebração formal de um contrato, mas um registo público e oficial que não deixava de representar alguma forma de reconhecimento institucionalizado. Este facto, e também o receio (justificado até porque as declarações de muitos dos proponentes eram claras nesse sentido) de que se tratasse de um primeiro passo a que se seguiriam outros no sentido de uma mais nítida equiparação entre o casamento e as uniões homossexuais, levaram também a uma tomada de posição contrária à proposta da parte da Conferência Episcopal Italiana (considerada «inaceitável no plano dos princípios e perigosa nos planos social e educativo») e a uma mobilização nesse sentido de movimentos católicos que culminou na grande manifestação do Family Day 36. Também os autores italianos acima citados se pronunciaram a propósito destas propostas tecendo as considerações atrás referidas sobre a desvalorização do casamento (não directamente a propósito da redefinição do conceito jurídico de casamento, que em Itália não chegou, ainda, a ser proposta pelas forças políticas mais influentes). É de salientar que a Congregação para a Doutrina da Fé na já referida nota Considerações sobre os Projectos de Reconhecimento Legal das Uniões entre Pessoas Homossexuais e também na Nota Doutrinal sobre Algumas Questões Relativas à Participação dos Católicos na Vida Política 37 (n.º 4) manifestou oposição a projectos de reconhecimento legal de uniões de pessoas homossexuais indistintamente, e não apenas à admissão de casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Como já disse, a consideração dos direitos dos conviventes pode realizar-se através de vários institutos do Direito comum, já existentes ou a criar (quando tal se justifique), sem recorrer à institucionalização de figuras com alguma analogia com o casamento 38. No fundo, estão em jogo direitos decorrentes da dignidade das pessoas (que nunca pode ser posta em causa), não o reconhecimento institucional e público de uma relação, seja qual for a fórmula desse reconhecimento. Podemos concluir facilmente que o que move os proponentes
da admissibilidade de casamentos entre pessoas do mesmo sexo ou de outra forma de reconhecimento legal de uniões homossexuais não é a tutela de direitos específicos, pois essa tutela pode concretizar-se de outra forma e não são para ela necessárias essa admissibilidade ou esse reconhecimento. Os conviventes podem ser co-titulares de um contrato de arrendamento; podem ser comproprietários dos seus bens; cada um pode dispor dos seus bens por meio de testamento em favor do outro. Nalguns casos, pode justificar-se o alargamento de direitos de pessoas casadas a conviventes homossexuais nos mesmos termos em que se dá esse alargamento a pessoas que vivem em união de facto heterossexual. Pode justificar-se a possibilidade de justificação de faltas por assistência ou a possibilidade de visitas hospitalares. Não é, obviamente, necessário, para tal redefinir o conceito de casamento ou reconhecer uma união homossexual como novo instituto jurídico. No que ao ordenamento jurídico português diz respeito, há que considerar que as já referidas Leis n.º 7/2001, de 11 de Maio (que adopta medidas de protecção das uniões de facto) e n.º 6/2001, de 11 de Maio (que adopta medidas de protecção das pessoas que vivam em economia comum) consagram em termos muito amplos esse alargamento. O artigo 3.º da primeira dessas Leis atribui às pessoas que vivam em união de facto (heterossexuais ou homossexuais), em termos equiparáveis aos dos cônjuges, os direitos de protecção da casa de morada de família; de beneficiar do regime jurídico de férias, feriados e faltas (nos âmbito da Função Pública e do contrato individual de trabalho), licenças e preferência na colocação de funcionários da Administração Pública; de aplicação do regime do imposto do rendimento das pessoas singulares dos sujeitos passivos casados e não separados de pessoas e bens; de protecção na eventualidade de morte do beneficiário pela aplicação do regime geral da Segurança Social e da Lei; de prestação por morte resultante de acidente de trabalho ou doença profissional, e de pensão por preço de sangue e por serviços excepcionais e relevantes prestados ao País. O artigo 5.º do mesmo diploma prevê a transmissão do arrendamento por 359
39
Neste sentido também se pronunciam MACIOCE, Fábio, op. cit., p. 85, e CASINI, Carlo, op. cit., pp. 119-123.
40
Como vimos atrás, a feminista norte-americana Marta Finemann propõe a erradicação da relevância legal do casamento e a sua substituição pela tutela legal de qualquer relação de dependência e auxílio mútuo, com ou sem expressão sexual, o que não será aceitável por representar o desfecho a que pode conduzir a descaracterização do casamento e da sua dimensão de abertura à procriação.
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morte em termos equiparados aos do cônjuge residente na casa arrendada. O artigo 7.º do mesmo diploma consagra o direito de adopção conjunta apenas no caso de uniões heterossexuais. O artigo 4.º da segunda dessas Leis atribui às pessoas que vivam em economia comum, em termos equiparáveis aos dos cônjuges, os direitos de protecção da casa de morada comum; de beneficiar do regime jurídico de férias, feriados e faltas (no âmbito da Função Pública e do contrato individual de trabalho), licenças e preferência na colocação de funcionários da Administração Pública; de aplicação do regime do imposto do rendimento das pessoas singulares dos sujeitos passivos casados e não separados de pessoas e bens; e de transmissão do arrendamento por morte. O alargamento dos direitos dos cônjuges às pessoas conviventes tem como limite apenas o daqueles direitos que são reflexo da protecção especial concedida à família. É o que se verifica com as regras da herança legítima e legítimária, destinadas, precisamente, à tutela da família, tutela que se sobrepõe à liberdade individual do testador. Se é aceitável a tutela da liberdade do testador de beneficiar um seu convivente (do mesmo ou de outro sexo) no âmbito testamentário, já não seria aceitável que a inclusão desse convivente nas categorias dos herdeiros legítimos ou legitimários viesse a prejudicar por essa via os outros herdeiros legítimos ou legitimários, cônjuge, descendentes ou ascendentes 39. Também poderá servir de critério o de não conferir às pessoas parceiras de uma união homossexual mais direitos do que os que possam ser atribuídos a pessoas unidas por laços estáveis de entreajuda e economia comum, por razões familiares (irmãos) ou de amizade (adopções ou guarda de crianças ou jovens «de facto», por exemplo), sem dimensão sexual 40. Será legítimo que pessoas casadas possam beneficiar de alguns direitos de que não beneficiam pessoas envolvidas neste tipo de relações, em atenção ao relevo e função social da família. Não será legítimo que essa diferença se verifique em relação a uniões homossexuais que não gozam desse relevo, nem desempenham tal função. É de salientar, a propósito, que
casos destes serão, até, mais numerosos do que os de uniões homossexuais e nunca se levantou (como se pretende que se levante a propósito das uniões homossexuais) o problema de a ordem jurídica não prever mecanismos de salvaguarda dos direitos das pessoas envolvidas nessa tipo de relações. Uma relação estável de cooperação e assistência mútuas pode ser considerada pelo legislador em atenção aos direitos e interesses privados das pessoas nela envolvidas, sem que esta protecção seja confundida com a que se justifica pela função social (não meramente privada) do casamento. Mas, para esse efeito, e como não está em causa a função social do casamento com a sua normal abertura à procriação, não me parece que seja razoável e não arbitrário conferir uma maior protecção a relações desse tipo que se revistam de dimensão sexual em relação a relações que não assumam essa dimensão. Será oportuno evocar, a este propósito, o caso submetido à apreciação do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Burden e Burden contra Reino Unido e decidido por acórdão de 29 de Abril de 2008 41. Duas irmãs, Joyce e Sybill Burden, de 90 e 82 anos, optaram por não casar para cuidar dos pais e tios e viveram juntas toda a vida, numa relação de economia comum, cooperação e auxílio mútuo. Consideraram contrário ao princípio da igualdade e à proibição de discriminação consagrados no artigo 14.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o facto de não poderem beneficiar do regime de isenção de imposto sucessório de que beneficiaria um casal de mulheres lésbicas que tivesse celebrado uma união civil registada. «Se fossemos lésbicas, teríamos todos os direitos do mundo. Mas, como somos irmãs, parece que não temos direitos nenhuns» afirmou uma delas. Por uma votação de quatro contra três, o Tribunal considerou que não havia violação do referido artigo 14.º e que a diferença de regimes cabia dentro do espaço de livre apreciação dos legisladores dos Estados parte da Convenção, sem ultrapassar as fronteiras do que é indubitavelmente irrazoável e discriminatório. Nos seus votos de vencido, os juízes Bornello, Garlicki e Pavlovschi, consideraram, pelo contrário, que a diferença de regimes não tinha
41
Acessível em www.echr.coe.int
361
um fundamento objectivo e racional, porque se trata de uma situação de relação prolongada de auxílio e dependência mútuos, não sendo a dimensão sexual da relação, para este efeito, relevante. Poderemos salientar que estas são situações provavelmente mais frequentes do que as uniões homossexuais (que não têm a visibilidade destas, apenas porque não se enquadram em qualquer campanha de afirmação ideológica) e certamente, em regra, mais estáveis (duram normalmente toda uma vida, como se verifica no caso referido).
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Jerónimo Nadal, SJ:
A sua importância na cultura apostólica da Companhia de Jesus II
Ferdinand Azevedo, SJ *
Coimbra Em 1561, Nadal visitou a residência de Coimbra, na Província de Portugal, que sofria por causa do governo turbulento do Provincial Pe. Simão Rodrigues. Graças à generosidade do Rei D. João III, a Companhia tinha meios para manter muitos jovens em formação, porém, a maioria dos 170 Jesuítas estava em formação e sofria por falta de orientação espiritual. Nadal vai remediar essa situação. Os Jesuítas seriam beneficiários da experiência acumulada das visitas de Nadal porque, lá, cristalizou-se o seu entendimento sobre o «modo de proceder» na Companhia de Jesus, nos três termos: «spiritu», «corde» e «practice», em português seria, «no espírito», «de coração» e «na prática». «No espírito»: Inácio recomendava que os Jesuítas andassem no caminho do Espírito Santo, no sentido de que a sua vida, as suas conversas e as suas acções fossem informadas pela influência da graça de Deus e a orientação do Espírito Santo que assegurava a fidelidade à graça específica da sua vocação. Tudo deve ser referido a Deus e à graça divina, uma atitude sustentada pela presença directa e contínua de Deus. Os Jesuítas desejavam isso, não somente para eles mesmos, mas tentaram estimulá-lo noutras pessoas. No século XVI, tão agitado por questões religiosas, essa ideia não foi compartilhada por todos os teólogos e reformadores. Alguns desses grupos pensaram que o catolicismo era só dogma, prática de moralidade e disciplina e desconfiaram e, até, repudiaram os * Historiador.
Brotéria 168 (2009) 363-369
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1
O MALLEY, John W. SJ, The First Jesuits, Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 1993, pp. 371-372. BANGERT, William V., Jerome Nadal SJ, 1507-1580. Tracking the first generations of Jesuits, Ed. e completado por Thomas M. McCoog SJ, Chicago, Loyola University Press, 1992, p. 247.
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Jesuítas pela sua espiritualidade. Os Jesuítas não desprezavam o dogma, a moralidade e a disciplina, mas, para eles, dogma, moralidade e disciplina não constituíam a sua principal motivação. «De coração»: Nadal explicava, usando o que chamava «o verdadeiro coração», definindo-o como «a caridade e o amor afectivo de Deus». Esse amor informa tudo o que o Jesuíta faz estudos, pregações, tarefas domésticas com uma felicidade e suavidade, um crescimento em graça e um desejo cada vez mais forte para servir. O «coração verdadeiro» é, também, «um coração muito gentil». Nadal sublinhou que essas são moções e atitudes que os jovens Jesuítas devem sentir nos seus estudos e na execução da obediência. Devem, também, incorporar os seus sentimentos nas decisões a serem tomadas e nunca devem agir só abstractamente. Tudo isso constituía uma maneira de trabalhar com outras pessoas nos seus ministérios, principalmente, nas suas pregações e esperavam que as pessoas e grupos ministrados viessem a responder-lhes, também, «do coração». «Na prática»: era sinónimo de «pastoral». Nadal definiu-a ao descrever as actividades externas do Jesuíta como uma extensão da sua vida interior. Entre a contemplação e as suas actividades deve existir uma corda sem remendo. A afectividade jesuítica não é como a do contemplativo mas é orientada para ajudar os outros. O seu ponto de referência principal foi quando Jesus mandou em missão os discípulos para pregar e restabelecer a saúde, tanto do corpo como da alma, não pedindo recompensa. Aqui podemos lembrar que Nadal, ao descrever Inácio, disse que ele agia como «um contemplativo na acção». Baseados nessa frase é que os Jesuítas devem ser «contemplativos na acção» 1. Essa tríade fazia parte da «teologia mística» realizada não somente por Nadal mas também pelos outros Jesuítas. O historiador Jesuíta, John W. O Malley, explica a «teologia mística» assim: «Por mística, entenderam (Os Jesuítas) não os vôos e os êxtases normalmente associados ao termo, mas, segundo Nadal, um conhe-
cimento interior e sabor da verdade expressada na maneira como uma pessoa vivia. Aqui Nadal articulou num contexto diferente a orientação mais básica dos Exercícios Espirituais» 2.
Como em Alcalá, Nadal salientou a importância da vida de Inácio no contexto da Igreja. Segundo ele, as Constituições eram uma destilação das suas experiências e, embora não seja dito, temos a impressão de que, para ele, as Constituições tinham um tom de uma autobiografia e merecida reverência como se fossem um ícone, representando a vida de Inácio. Nadal, também, iniciou a tradição errada na Companhia de que nas experiências espirituais em Manresa e La Storta, Inácio previu a fundação da Companhia. Às vezes, Nadal deu certos toques de romantismo às suas descrições. Nadal passou a falar sobre o coração como lugar onde o Espírito Santo aproveita para ajudar uma pessoa a alcançar um conhecimento de Deus. Confidenciou aos jovens Jesuítas em Coimbra que «Quanto mais uma pessoa ama a Deus ao se conformar à sua divina vontade, tanto mais cresce o seu conhecimento Dele. Não há outra maneira. São João disse isso. Jo. 2:3-5» 3. Iria dizer a mesma coisa em relação à Companhia e às suas Constituições. Quando uma pessoa ama mais a Companhia, Deus ajuda-a a conhecê-la melhor 4. Em Alcalá, dizia que Deus escolheu Inácio para ajudar a Igreja num determinado momento; em Coimbra, vai dizer que os Jesuítas iriam atender as pessoas que não tinham ajuda e o Papa, conhecendo as necessidades da Igreja, iria determinar essas missões para os Jesuítas. Assim, Nadal integrou o quarto voto «acerca das missões» ao Papado como o apelo para ajudar aquelas pessoas mais necessitadas. Isso é especificamente de Nadal. Quando falava sobre a oração em Alcalá, tocou no assunto da mortificação, a parte ascética da vida religiosa. Em Coimbra, expandiu-a e deu-lhe um papel importante na formação da identidade jesuítica. Lembrou a orientação de Inácio quando o aconselhou seguir Cristo no seu sofrimento, nos contratempos da vida, em termos religiosos, carregando a sua
2 By mystical they meant not the transports and exstasies usually connoted by the term, but according to Nadal, an inner understanding and relish of the truth translated into the way one lives. Nadal here articulated in a different context the most basic orientation of the Spiritual Exercises», O MALLEY SJ, John W., op. cit., pp. 243-244.
3 «The more one loves God by conforming to his divine will, the more one comes to know him», BANGERT SJ, William V., op. cit., p. 253. 4
Ibidem, p. 253.
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5 Hoje esse cargo é chamado Ministro. Constituições da Companhia de Jesus e Normas Complementares, São Paulo, Edições Loyola, 1997, pp. 357-8.
6
BANGERT SJ, William V., op. cit., pp. 255-256.
7
Ibidem, p. 257.
8 «To his quest for knowledge (scientia) a Jesuit links his quest for wisdom (sapientia), which is knowledge steeped in compassion», Ibidem, p. 258.
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cruz. Os Jesuítas tinham que aprender a «amar» a mortificação não como fim, mas como meio, motivo para servir, visando a maior glória de Deus. Nas Constituições, Inácio designou uma pessoa como «síndico», cuja função, além de fiscalizar a manutenção da casa, era observar o decoro externo dos jesuítas 5. Podia informar o Superior das falhas ou simplesmente aconselhar as próprias pessoas. Em termos gerais, fez correcções fraternais aos jovens jesuítas. Previu uma certa resistência a essa orientação, mas Nadal encorajava os jovens para aceitá-la como parte ascética da sua vida religiosa e considerava que, assim orientados, os jesuítas iriam sentir a liberdade de espírito 6. Em Coimbra, deu uma explicação da obediência muito a seu gosto. Muito inclinado ao Pseudo-Dionísio e à sua teologia apofática, na qual Deus é conhecido na escuridão, Nadal fez uma comparação do exercício de obediência no contexto dessa teologia. Suspendendo o seu juízo e entendimento pessoal quando não conseguia entender bem uma decisão do superior, Nadal garantiu ao seu auditório que essa é a maneira melhor para descobrir a luz e compreensão verdadeira da obediência e indicou três razões para a sua segurança: a providência divina, a vocação jesuítica e a presença de Cristo no Superior. Cada uma dessas razões era um sinal de acção de Deus na vida do Jesuíta. Aceitando isso, uma pessoa poderia progredir bastante animado na sua vocação, mesmo se fosse enviado para trabalhar nos dois lugares tidos, então, como os mais difíceis: as Índias e a Alemanha 7. Logo no início, em Alcalá, Nadal indicou que uma das características da Companhia era a sua integração da santidade com a sabedoria («letras com espírito»). Em Coimbra, frisou as razões pragmáticas dessa união. A Companhia só tinha vinte anos de existência e já demonstrava a importância de uma educação adequada para alcançar a finalidade dos seus apostolados. Os jovens Jesuítas devem esforçar-se para unir o saber com a devoção. Aqui Nadal reverteu a sua teologia do coração, dizendo: «Ao seu desejo de conhecimento (scientia), o Jesuíta une o seu desejo de sabedoria (sapientia) que é conhecimento permeado pela compaixão» 8.
De todos os temas, Nadal dedicou mais tempo para a oração. Indicou vários tipos: vocal, mental, eucarística, meditativa e contemplativa. A quantidade de informação foi tão grande que criou um esquema para a sua apresentação, o qual chamava cordas. A primeira corda era a imagem de um círculo que já vimos na sua visita em Alcalá. A ideia básica é que a oração dá motivação para trabalho, servindo os outros, e esse trabalho, feito por motivos de caridade, anima a sua oração. Nesse sentido, a oração é circular. A segunda corda era encontrar Deus em todas as coisas. Segundo ele, Inácio esperava que os Jesuítas, aplicando-se, com a graça de Deus, poderiam ter êxito nesse tipo de oração. A terceira corda era a unidade da experiência espiritual da oração jesuítica. Criou um neologismo «reliquiae cogitationum» (uma lembrança dos seus pensamentos e sentimentos). Essa lembrança iria permanecer durante o dia, dando uma tonalidade ao seu dia. Aplicou essa lembrança à vida de Cristo. Ao contemplar o Cristo Ressuscitado, o Jesuíta deve lembrar a sua oração quando rezava sobre outras partes da vida de Cristo. A alegria sobre o Seu nascimento, a tristeza da Sua morte e a felicidade da Sua ressurreição. O sentido é que a sua oração passada ajuda a sua oração presente. Assim, aconselhou os jovens Jesuítas a lembrar as suas experiências no noviciado retiro de trinta dias, serviço no hospital, peregrinação tudo para avivar os sentimentos nobres que experimentaram nessas etapas na sua oração actual. Nadal aplicou essa lembrança na contemplação. Para ele, contemplação era um crescimento no conhecimento e amor de Deus, um crescimento feito pela acumulação de conhecimentos sobre Deus. A contemplação actual dependia da contemplação anterior. Utilizou um exemplo de uma vista do campo: leva tempo a apreciar todos os aspectos e, somente depois de um bom tempo, é que uma pessoa pode «entendê-lo» ou «apreciá-lo» na sua totalidade. Também apresentou as tradicionais três maneiras de rezar, como purgativa, iluminativa e unitiva. Às vezes, Nadal 367
9 Nessa descrição, estou seguindo a apresentação do Pe. William V. Bangert cujo livro venho citando várias vezes BANGERT SJ, William V., op. cit., pp. 246-264, Passim.
10
Ibidem, pp. 264-265.
ficava apreensivo nas suas orientações para os jovens Jesuítas porque não queria impor uma maneira de rezar, deixando cada um com liberdade total para rezar à sua maneira conforme o momento do espírito. Além de ser uma atitude muita inaciana, foi uma ideia favorita de Nadal de que é Deus que nos ama primeiro e a iniciativa é toda Sua 9. Os Jesuítas gostaram das suas conferências mas, quando Nadal saiu de Coimbra, deixou uma lista de regulamentos para as residências muito pormenorizada. É difícil entender como esse homem, tão abrangente no seu conhecimento das Constituições e tão sensível nos assuntos de oração, pode ficar tão preso aos pormenores do dia-a-dia de uma residência. E não foram poucos os Jesuítas que o criticaram 10.
Considerações finais
11
Mesmo tido como o melhor entendido da cultura da Companhia, Nadal, errou duas vezes: uma, num aspecto de oração, e outra, sobre os critérios para o Jesuíta professo. Numa conversa com Inácio, acamado, Nadal narrou que na visita a Alcalá, em 1554, vários alunos Jesuítas pediram-lhe sobre a possibilidade de acrescentar o tempo de oração. Nadal concordou, aumentando meia hora à norma prescrita nas Constituições, justificando a deci-
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A contribuição de Nadal para a cultura apostólica da recente Companhia de Jesus é profunda. Se a primeira geração de Jesuítas, sob a liderança de Inácio, fundou a Companhia de Jesus, a segunda, composta de pessoas como Nadal, Polanco e Laínez, assimilou o espírito da primeira e construiu uma cultura apostólica que foi disseminada entre outros Jesuítas. A transição da primeira para a segunda não aconteceu sem dificuldades, principalmente depois do falecimento de Inácio, em 1556. À primeira vista, a aprendizagem de Nadal na Companhia de Jesus foi muito rápida. Temos que lembrar que, antes de entrar na Companhia, Nadal, aparentemente um homem feito, ainda estava a procurar a sua vocação, passando por muitas experiências espirituais. Unia caraterísticas antagónicas: grande poder de síntese de conhecimentos com uma mania por detalhes domésticos; lógico e analítico, mas encantado com a teologia apofática; prolixo, mas criador de ideias suscintas para explicar a vida dos Jesuítas como «contemplativos na acção» e o seu tríade «spiritu», «corde» e «practice» para explicar a «teologia mística» da Companhia que foi introduzida no seu «modo de proceder».
Nas suas conferências, Nadal, a nosso ver, privilegiou o amor mais do que o conhecimento; aliás, utilizou o amor para conseguir o conhecimento. É interessante porque Santo Inácio, na contemplação da encarnação, orienta o retirante para pedir « o conhecimento interno do Senhor que por mim se fez homem, para que mais o ame e o siga» (EE 104). Sugiro que uma diferença importante entre Inácio e Nadal foi essa. Inácio muito pragmático, quis conhecer mais deste Deus que entrou na sua vida. Enquanto Nadal, mais intuitivo e atraído para andar na escuridão, tateava sem saber como dar o próximo passo, porém, sem ficar amedrontado. Apostou no amor e ganhou segurança, conhecimento e mais amor. Historicamente, é encantador ver como Inácio, tão agraciado por Deus, percebeu que Nadal, homem tão diferente dele, poderia explicar tudo o que Deus fez na sua vida aos jovens membros da Companhia de Jesus. Praticamente deu-lhe liberdade total para criar a cultura apostólica da Companhia de Jesus porque estava convencido que Nadal tinha entendido o seu espírito. Num itinerário tão acidentado, a divulgação das Constituições, a nosso ver, permanece com o seu maior êxito em Nadal. As Constituições da Companhia são fruto dos discernimentos e das orações místicas de Santo Inácio; porém, lendo-as, isso não é tão evidente. Inácio não foi um grande escritor e a expressão de seu misticismo não é feita com um belo estilo literário, mas é prática e familiar como um velho par de sapatos muito confortável. Para Nadal, as Constituições eram um ícone da vida e do génio de Inácio. Diante deste ícone muito santo, Nadal contemplava, amava e «absorvia» as graças dadas a Inácio. Filtrava as mesmas pela sua personalidade e, até, embelezava algumas um pouco mais. Apesar das suas digressões, com toques de imaginação fértil para explicar certos aspectos das Constituições, Nadal teve um instinto afinado para ver quase sempre o essencial e o grande dom de comunicá-lo para os jovens jesuítas 11. A recente Companhia de Jesus ficou a dever-lhe muito por ter explicado a sua cultura apostólica e, para a Companhia actual, a sua herança espiritual continua a ser um magnífico ponto de referência para todos os nossos apostolados.
são como sensata. Inácio não disse nada, porém, no dia seguinte, na presença de Pe. Luís Gonçalves da Câmara, Inácio, firmemente, castigou Nadal pela sua decisão e reiterou que «um homem verdadeiramente mortificado só precisa de quinze minutos para alcançar união com Deus», Ibidem, pp. 136-137. O segundo erro foi em relação aos critérios para ser professo na Companhia, e esse foi mais sério. Nadal interpretou a palavra «suficiente» (sufficiens) na frase conhecimento suficiente de teologia nas Constituições para indicar que um jesuíta tinha que ter a qualificação para ensinar teologia para ser professo. Quando Inácio faleceu, a Companhia tinha cerca de 1.000 membros mas somente 48 professos. De facto, Inácio não deixou uma orientação muito clara, mas tudo indica que queria mais Padres Professos e os quatro anos de teologia indicados nas Constituições foram suficiente para isso. Laínez e Borja, os dois sucessores de Inácio seguiram essa interpretação. O quarto Geral, Mercuriano foi influenciado, em grande parte, por Nadal cuja opinião pesava, e a partir dessa interpretação, o Padre Jesuíta cuja competência teológica foi considerada insuficiente seria um «Coadjutor Espiritual». Em vez de diminuir, como Inácio provavelmente tinha previsto, o número de «Coadjutores Espirituais» cresceu. Esse desenvolvimento é mais estranho ainda quando tomamos conhecimento de que Inácio admitiu Francisco Borja na Companhia como professo mesmo antes de ter começado a fazer os seus estudos teológicos para o sacerdócio. O MALLEY SJ, John W., The First Jesuits, p. 346; Saint Ignatius of Loyola, The Constitutions of the Society of Jesus, Trans. e comentário por George E. Ganss SJ, St. Louis, The Institute of Jesuit Sources, 1970, pp. 349-356.
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Contributos para a Leitura de A Faca não Corta o Fogo de Herberto Helder O livro A faca não corta o fogo: súmula & inédita
1
(2008) de Herberto Helder é formado por uma primeira parte em tudo semelhante 2 a Ou o poema contínuo: súmula (Helder 2001), exceptuando o primeiro poema de Cinco canções lacunares e a totalidade de Os brancos arquipélagos (cf. Helder 1996: 295-296 e 311-317; Helder 2008: 48-58). A segunda parte do livro publicado em 2008 a que correspondem os poemas inéditos (Helder 2008: 133-207) inclui um primeiro poema constituído por um único verso retirado de Lugar (Helder 1996: 123) e ainda um poema publicado em 2001 3. Passados três meses e meio, a mesma editora, Assírio & Alvim, publica Ofício cantante: poesia completa (2009), retomando «o título escolhido para a primeira publicação, em 1967, de poemas reunidos do autor» (2009: 5). Nesta reedição da obra de Herberto Helder, encontramos o seu último livro A faca não corta o fogo (2009: 533-618), com mais onze novos poemas intercalados, ao longo das oitenta e cinco páginas, e breves alterações, algumas das quais referiremos. No verso da página que apresenta o título A faca não corta o fogo, podemos ler o provérbio grego «Não se pode cortar o fogo com uma faca» (2009: 534) 4 que terá originado o título do livro. Os poemas iniciais reforçam a relação com a beleza, ao perspectivá-la na imagem da mãe, donde tudo brota desde o princípio, e representam a pedra de toque dos diversos momentos até ao final do livro. A função unificadora da
João Amadeu Carvalho da Silva *
1 A propósito da constituição deste livro realce-se a presença de dois ritmos distintos. O primeiro, identificado por súmula (cf. Silva 2004: 203-204), representa uma amplitude temporal que se situa entre 1953 e 1994; o segundo deve entender-se como a realização de um momento expansivo de criatividade, sem intenção selectiva. 2 Quando referimos a semelhança, salvaguardamos possíveis alterações pontuais, efectuadas de edição para edição. 3 Referimo-nos ao poema «Redivivo. E basta a luz do mundo movida ao toque no interruptor» (Helder 2001: 124-126). Entre a versão de 2001 e a versão de 2008 encontra-se uma única alteração na 3.ª estrofe: «rodilhas» é substituída por «rojo».
4 No decurso do artigo, para citarmos A faca não corta o fogo, utilizaremos somente a sua publicação em Ofício cantante: poesia completa, Assírio & Alvim, 2009. Para o efeito, referiremos apenas a página do livro, entre parêntesis.
* Faculdade de Filosofia de Braga da UCP.
Brotéria 168 (2009) 371-383
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imagem materna, a potência, a energia e o amadurecimento que concedem ao corpo do poeta reforçam os sentidos possíveis da poesia de Herberto Helder: «mãe, / que a tua mão inseparavelmente amadureça / segundo as redacções de Deus, / o autor improvável mais próximo que temos» (536), a mesma mãe «interpreta com intuição e intuito no mesmo comprimento de onda, / [ ] / lavra a fio exímio, salga, limpa, muda, move, inventa» (536). A faca não corta o fogo, porque este elemento primordial eleva-se da terra-mãe no ar, enquanto inspiração, fundada radicalmente na realidade mais profunda do corpo e no excesso das suas entranhas. A potência da criação chega à língua, ascendendo dos espaços internos do corpo, e realiza-se num diálogo com as vozes do mundo, num «extremo exercício de beleza».
1. A pluralidade das vozes na língua do poeta As vozes de povos de culturas ancestrais e escritores de diversas línguas sempre foram, ao longo da obra do poeta, uma fonte essencial, a que recorreu não só para alimentar as imagens da sua poesia, mas também para reforçar a essência da palavra, enquanto entidade propiciadora de sonoridades e sentidos originais. Recordem-se O bebedor nocturno (1996: 159-241), Húmus (1996: 279-292) e os três livros de 1997 Ouolof, Poemas ameríndios e Doze nós numa corda. Não é por isso de estranhar neste conjunto de poemas a presença de vozes diversas, num diálogo promissor, situado entre a comunhão e a ironia. Desde os hinos litúrgicos e os excertos da Bíblia, passando pela poesia trovadoresca portuguesa e provençal, pela poesia de Luís de Camões e terminando com a intertextualidade homo-autoral, visita ainda a sonoridade e a construção típica da linguagem oral brasileira, num percurso concentrado no fenómeno da língua quase que apreciada no seu sentido mais prometeico e dionisíaco, de sobrevivência ou realização possível de um espírito inquieto que não encontra outra realização e outro sentido para além da palavra dita e rebolada fisicamente pelo corpo. 372
O diálogo com temas religiosos, já diversas vezes desenvolvido e estudado na obra de Herberto Helder (recorde-se, por exemplo Os selos e a sua relação intertextual com o Apocalipse (cf. Silva 2000; 2007)), torna-se mais uma vez evidente no conjunto dos poemas que agora lemos. Quando o poeta inicia um texto por «gloria in excelsis» (587) está parodisticamente a referir-se à glória. A altura circunscreve-se ao céu do corpo, a glória não estará para lá da «minha língua na tua língua» (587) e as alturas ficam-se pela «ponta com ponta tocando-se dentro da boca» (588); o poeta termina o poema com «a minha língua na tua língua em todos os sentidos sagrados e / profanos, / saliva, muita, e temperatura animal» (589). Gloria in excelsis Deo, um hino de louvor à Santíssima Trindade, dá azo a uma perspectiva bem distinta do texto litúrgico ao desfocar a elevação para o espaço interior e ao concentrar o acto criativo na «temperatura animal», entre o sentido profano e sagrado. São diversas as sonoridades bíblicas ao longo da poesia de Herberto Helder. Do Cântico dos cânticos encontramos ecos sugestivos ao longo de todo um poema (2009: 546-548). Este texto, que não se encontra na edição de 2008, faz lembrar os diálogos entre os esposos da Bíblia: «belo belo é o meu amado correndo pelas colinas como um cervo» (546). A língua assume, num outro poema, uma renovada centralidade, sendo para o efeito recordada uma passagem bíblica da paixão e morte de Jesus: «Eli, Eli, lamma sabacthani» (Mt 27: 46; 2009: 582) (meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?). No entanto, de imediato dilui a empatia com a pergunta que formula: «porque me abandonaste entre os semáforos da gramática [ ]» (582). O Verbo, a língua, feito carne, com o nascimento de Jesus, entrega-se depois à morte por crucifixação: «a língua que me atravessa, e morre» (582). Impõe-se o sacrifício do Filho de Deus para que a humanidade seja redimida: o filho abandonado aos seus algozes ressuscita ao terceiro dia. Os «semáforos da gramática», porém, representam um obstáculo para a sobrevivência, em estado bárbaro, do verbo-língua na terra dos homens. A relação com a narrativa 373
5 «a morrê-la cada dia ao rés das unhas e da boca» (2008: 177).
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bíblica da paixão de Cristo continua nos versos seguintes: «a terra tremeu e as rochas fenderam-se» (Mt 27: 51) e, em Helder, «o céu retirou-se como um livro que se enrola: / e todos os montes e ilhas se moveram dos seus lugares» (582). O aproveitamento do acontecimento bíblico da crucifixação transmite ao acto criativo uma aura que, por não se afigurar irónica, sugere uma grandeza que se inscreve no âmbito do sacrifício sagrado. No entanto, enquanto que Cristo ressuscita depois da crucifixação, a morte, na sequência do poema herbertiano, assume-se sem redenção, obscurece-se na palavra poética, até porque «é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha / do que uma linha escrita» (582). Aqui, com aproximações evidentes a uma passagem do Evangelho de S. Marcos onde se lê que «É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus» (Mar 10: 25). A linha escrita, metáfora de linha/fio, não passa pelo fundo da agulha e por isso é-lhe negada a vida eterna, porque o verbo/filho vive morrendo e nessa disponibilidade total de entrega diz o poeta: «aprendi a morrer, / e porque estou morrendo aprendo / a unidade do mundo» (582). Só a disponibilidade absoluta, a redução da identidade pessoal, a dissolução do evento particular no universo da língua de tantos utilizadores permitirá a unidade do mundo. Ainda no mesmo poema, realce-se o diálogo com os versos finais da Canção IX de Luís de Camões: «Assim vivo; e se alguém te perguntasse, / Canção, como não mouro, / podes-lhe responder que porque mouro» (Camões 1984: 470); em Helder: «e tu, Canção, se alguém te perguntasse como não morro, / responde-lhe que porque / morro» (582-583). Ao contrário de Camões que lamenta o sofrimento em que vive e recorda a amada distante, Helder concentra e eleva o acontecimento da morte à realização de um sacrifício ou emulação dos corpos do poeta e da língua, que se indiferenciam, já que «estou a morrer a língua que não é curda nem inglesa, / a morrê-la ao rés das unhas e da boca 5» (583). Camões é ainda visitado noutros poemas, através de versos por demais conhecidos. A acompanhar os sons de
Haendel e de Bach (cf. 570; este segundo músico é referido por diversas vezes - cf. Helder 1994a: 11, 156, 158, 160), o poeta pede que lhe leiam «o curso de sôbolos rios que vão» (570; cf. Camões 1984: 91) ou, noutro poema, recorda «meu tão certo secretário» (599; Camões 1984: 471) da Canção X de Camões. Nos dois momentos, se é reforçada a necessidade de um convívio de vozes com aqueles que comungam uma ansiedade e um estado de busca, torna-se evidente a relação de aproximação a Camões, como personalidade capaz de recriar a língua. Talvez deva, porém, o leitor pertencer a um outro grupo, dado que, como confessa o poeta, «falo para outras pessoas, / falo em nome de outra ferida, outra / dor, outra interpretação do mundo, outro amor do mundo, / outro tremor» (578-579). Reunidas as vozes, concitados os fragmentos, impõe-se sempre um novo caminho, «mexendo os dedos nas costuras de sangue entre as placas do cabelo rude, / rútilo cabelo e o sangue que suporta tanta rutilação, tanta / beltà, beauty, que beleza!» (579), e no caminho «através da floresta devorada, / [ ] já desapareci como quem se abisma / num espaço de hélio e labaredas, / eu próprio atravesso o incêndio imitando uma floresta» (579). Assim, o percurso faz-se no ensejo da beleza que não está nunca onde se procura e, por entre vozes depuradas pelo fogo que a faca não corta, se vão construindo os passos de uma língua, «nas lides de ar e fogo, / edoi lelia doura 6» (537).
2. O Acto poético e a língua Herberto Helder, ao longo dos poemas da Faca não corta o fogo, concede uma atenção especial à língua 7. A língua será, assim, uma entidade a quem o poeta se entrega intensamente, de quem depende, mas também contra quem se revolta, quando reconhece que as regras perturbam a expressão dessa relação visceral. Vê a língua como entidade que lhe é interior, procura entender e explicar a intensidade corporal que brota do acto criativo pessoal.
6 Recorde-se Edoi lelia doura: antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa, organizada por Herberto Helder, em 1985.
7 Entendemos a língua como um sistema em contínua evolução, sujeito a um conjunto de códigos pertencentes ao sistema modelizante secundário (cf. Aguiar e Silva 1988: 97-107).
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Referimos diálogos com diversas vozes capazes de moldar a língua a uma vontade dominadora, já que todo o acto criativo implica uma ruptura, uma certa atitude analfabeta, em sentido metafórico, um desconhecimento propositado. Voz experiente em lidar com a matéria bruta e informe é a do canteiro com quem o poeta força o diálogo para que lhe seja possível verbalizar o sentido e o objecto de busca da poesia. Ao interrogar o moço canteiro, [ ] ele diz que não lavra só uma pedra ¿e que fazes então na ordem das coisas entre nó e laço? faço a beleza ¿que beleza? faço-a comum, manual, analfabeta, mas não fecho só um nó nem abro só um laço, com o grosso movimento das riscas do analfabeto da gente, eu faço numa pedra a catedral inteira (572)
No tratamento da pedra, o canteiro não necessita de teorias, impõe na pedra que trabalha a sua radical ligação à matéria, sem intermediários, sem ruídos. A voz que brota da massa informe desponta natural; do estado bruto impõe-se inteira essa voz, sendo a beleza analfabeta criada à custa do acto analfabeto, com riscos analfabetos exercidos, para que surja «numa pedra a catedral inteira» (572). Realça-se o apego à matéria bruta e a relação profundamente religiosa (no sentido do verbo religare) ao fazer no (e não a partir do) elemento matricial a expressão da totalidade e da beleza. A arte poética encontra-se associada ao título do livro, elemento que ressurge com renovado interesse num poema central, ao aproximar e distinguir a língua dos elementos primordiais, fogo e água: «a faca não corta o fogo, / não me corta o sangue escrito, / não corta a água, / e quem não queria uma língua dentro da própria língua?» (572). A criação de um núcleo brilhante e duro, denso e obscuro, seguindo regras pessoais, dentro e para além das regras da gramática, representaria uma língua própria dentro da língua. A combustão verbal ou a densidade turbulenta e vulcânica, conseguida à custa da aproximação de vocábulos que se repelem, são o 376
fogo ou o seu «sangue escrito» (572). A faca não manipula estas imagens de densidade sanguínea e visceral que se cruzam de forma a criar a unidade e a harmonia. Para além da combinação entre os fenómenos do fogo e a pouca água, vemos no poema seguinte também a aproximação do fogo ao ar, numa espécie de reescrita ou intertextualidade homo-autoral do poema anterior: «no mundo há poucos fenómenos do fogo, / ar há pouco, / mas quem não queria criar uma língua dentro da própria língua? / eu sim queria» (574). Da aproximação dos «elementos leves ar e fogo» (580) derivará uma combustão intensa e permanente, profunda, oculta e aérea «e soube então que ar e fogo se mantinham um ao outro mas, / em vez de se abrirem, / se fechavam, e estremeci das músicas» (575), construindo-se, assim, uma poesia direccionada para o silêncio. Aquela língua «incalculável» e «absoluta» fará não só com que jamais a faca corte o fogo, mas permitirá também que o fogo corte e a água seja cortada. Daquela língua brotará a poesia, porque «la poésie, c est quand le quotidien devient extraordinaire» (573). O exercício violento praticado sobre a língua proporcionará um primeiro passo no sentido de transformar o quotidiano em extraordinário, será uma vocação criminosa a do poeta já que deixa de ter como objectivo manter uma relação mimética com a realidade, mas deformar, corrigir o espaço banalizado e a beleza estandardizada em perturbação, em crime, em algo que vá para lá da ordem comum, uma visão extra-ordinária («extraordinaire»). Como afirma o poeta, «a beleza é sim incompreensível, / é terrível, já se sabia pelo menos desde o Velho Testamento, / a beleza quando avança terrível como um exército, / e eu trabalho quanto posso pela sua violência 8» (549) ou ainda como refere, noutra circunstância: «Os poemas são apenas equivalências do crime, ou são então, eles mesmos, um acto explosivo no próprio centro do mundo» (Helder 1995: 40). A vocação do poeta é a do alquimista que trabalha o quotidiano para transmutar o comum dos corpos em ouro:
8 O poema a que pertence este excerto não se encontra em A faca não corta o fogo de 2008.
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[ ] eu mexo com a colher de pau imemorialmente o milagre quotidiano da transmutação dos corpos: porque é glorioso trazer, de minas da terra, e de não sei que direitos e avêssos, os elementos, e trabalhá-los, e a poder de plantas e óleos, atingir a unidade [ ] (568)
A pedra trabalhada pelo canteiro (cf. 571-572) e «o milagre quotidiano da transmutação dos corpos» são metáforas da acção do poeta sobre a língua. A partir da pedra e dos elementos primordiais, qual matéria-prima do poeta, procura-se o extraordinário do quotidiano, a beleza, a unidade, a catedral toda. A construção do extraordinário da língua é conseguida à custa do empenho corporal, da respiração do ar das palavras, da rarefacção dos elementos no verso, da eliminação dos elos que ligam as coisas, da continuidade do sentido procurada em cada outra palavra: «se alguém respirasse e cantasse numa palavra, / e súbito fosse respirado por ela, fosse / cantado assim / de puro júbilo ou, quem sabe? de medo puro, / poria no termo o selo de si mesmo?» (600). A poesia em Herberto Helder não fica pela rama das coisas, cria com tudo o que o cerca uma relação violenta de paixão, de entrega e de perda. A palavra cantada pelo poeta dá lugar à palavra que canta o poeta; o canto passa a conter a origem de si, fechando-se o círculo sobre a palavra que é criação e criador, fogo e água, ar e beleza. A composição linear da imagem poética e da frase é conseguida pela combinação de elementos divergentes; entende-se à custa da selecção e redução dos seus atributos e não será possível erigir um sentido da frase se quisermos avançar com todos eles; o segredo estará sempre na combinação possível dos atributos possíveis, de forma a que se eleve a frágil torre de Babel construída com base em desentendimentos e desencontros semânticos, «oh maravilha da frase corrigida pelos erros, / [ ] / a frase rítmica e restrita que não pode ser posta em língua, / elíptica, / a frase de que sou filho» (602). 378
A frase de que o poeta é filho não pode ser formulada pela língua comum, a frase que diz o criador, di-lo à custa dos breves sentidos e de muitos silêncios, no entanto, sempre na procura do poema contínuo. O que não pode ser posto em língua comum está, no entanto, imbuído de paixão, elemento atrás realçado e reforçado num dos últimos poemas do livro. li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios, quando alguém morria perguntavam apenas: tinha paixão? [ ] e então indago de mim se eu próprio tenho paixão, se posso morrer gregamente, que paixão? [ ] ¿e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega, pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva, e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes, palavra soprada a que forno com que fôlego, que alguém perguntasse: tinha paixão? afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia, ponham muito alto a música e que eu dance, fluido, infindável, apanhado por toda a luz antiga e moderna, os cegos, os temperados, ah não 9, que ao menos me encontrasse a paixão e eu me perdesse nela, a paixão grega (612-614).
9 «que não» (2008: 205-206), em vez de «ah não».
O estilo narrativo do excerto assume-se como uma auto-análise, a justificação para o rumo assumido e o esclarecimento sobre os passos a dar. Nada disso quebra com opções do passado, consolidam-se os critérios que dão sentido ao poema contínuo. A desmesura, o excesso, a ruptura, o erro, o caos, a barbárie, a morte, o crime, a obscuridade são imagens da paixão na poesia de Herberto Helder. As regras, o consentimento, a unanimidade, a homogeneidade, o alinhamento, as modas, os grupos são elementos mornos, não permitem uma respiração carnívora e criminosa. Prefere o excesso da música aos temperados racionais, prefere as «faíscas estilísticas», o «rís379
pido», o «rútilo», o «revulsivo», a «frase corrigida pelos erros» (602), prefere «uma canção curtida pelas cicatrizes» (613). Esta é a confessada paixão de Herberto Helder e o pathos da tragédia grega, sendo que, como afirma Hegel, «nada de grande se realiza no mundo sem paixões» (Hegel cit. por Meyer 1994a: 231), só por ela acede à unidade, à harmonia, à totalidade, ao ouro.
3. A imagem do sagrado no espaço da palavra Relacionada com a imagem do sagrado está a paixão como estado de alma nos limites da experiência humana e em Herberto Helder jamais dissociada da actividade criadora, como tivemos oportunidade de referir. Tal como a entende o poeta, é uma experiência que se afasta das circunstâncias comuns, provocando vivências e representações únicas, experiências que se apartam da rotina diária: «uma palavra, uma só, regula / ininterruptamente tudo» (600), dispõe «a vida inteira para fundar um poema» (611), concebe a «frase corrigida pelos erros» (602), entende as «pronúncias bárbaras / dos nós da língua» (587), repudia os «semáforos da gramática» (582). A paixão, mais do que relacionada com a imagem do sagrado, pode assumir-se como uma vivência do sagrado. A embriaguez da paixão, a exaltação interior, o descontrolo e simultaneamente a sensação de que se é capaz de decidir, a bipolaridade na descrição de situações «de puro júbilo ou, quem sabe? de medo puro» (600) proporcionam simultaneamente a sensação de felicidade e de terror e ambas resultam da aproximação ao sagrado. isto que às vezes me confere o sagrado, quero eu dizer: paixão: tirar, pôr, mudar uma palavra, ou melhor: ficar certo com a vírgula no meio da luz, dividindo, erguendo-me do embrulho da carne obsessiva: que eu habite durante uma espécie de eternidade o clarão (593)
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O acto de trabalhar a palavra com esta disponibilidade, a capacidade sobre-humana de desferir um golpe fatal na palavra, eliminá-la ou escolhê-la; a consciência pelo mínimo pormenor da vírgula e a sua capacidade simbólica, a relação profunda, visceral, entre o corpo e o corpo da palavra, a iluminação do corpo pessoal, enquanto corpo do verso, pormenor luminoso de uma vírgula «no meio da luz» (593) são representações da paixão que indelevelmente marcam uma vida pelo meio das palavras. Todo este envolvimento, esta relação e indistinção passa a ser somente intensidade e energia, elevação inapreensível, libertação da massa corporal para «que eu habite durante uma espécie de eternidade / o clarão » (593). Aquela atenção ao mínimo que concentra toda a energia dos sentidos proporciona um momento de estranheza, «uma espécie de eternidade», um excesso de paixão. E, no entanto, não passa de um olhar «de viés» para «o outro lado das linhas». Há como que uma necessidade radical de caminhar no sentido do sagrado, porém, verifica-se também uma certa descrença irónica nos utensílios que são utilizados para aceder a esse espaço que se nega. que não há nenhuma tecnologia paradisíaca, mas com que estranheza se habita o mundo, olhando de viés o outro lado das linhas, onde se emaranha o nome profano que se inventa como se fosse o inominável, movido, oh inebriamento! miraculosamente até ao desastre da beleza (605)
Mesmo que, em momentos de menor paixão, não seja possível incutir no «nome profano» algo para além da sua materialidade, não deixa de se reconhecer a «estranheza» com que «se habita o mundo»; mesmo que a palavra não seja capaz de nomear o «inominável», continua a ser possível olhar para o «outro lado das linhas». Quando a língua não é suficientemente capaz de transmitir esses estados de alma, até porque não há «nenhuma tecnologia paradisíaca», ficamos pelo excesso 381
de palavras como forma de encobrir o seu vazio: a emotividade balofa, «oh inebriamento! / miraculosamente», redunda no «desastre da beleza», porque se torna impossível olhar para o «nome profano» e entendê-lo como palavra viva. Porém, como víamos atrás, a paixão acompanha o acto criativo e potencia o nome para o sentido enigmático do mundo, para o outro lado da realidade. Desse modo, através do nome o poeta acederá a um outro plano de conhecimento. Pela sua capacidade de afastamento da materialidade que se esgota em cada objecto, a linguagem livra-se dos acidentes e, depurada do circunstancialismo limitativo, sustém um contacto com a essência das coisas. A vocação do poeta é a de captar em estado puro a pura essência das coisas e daí o seu olhar recair não tanto sobre as coisas mas sobre o nome das coisas (já Aristóteles afirmava que «a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta, o particular» (Aristóteles: 1471b)). A imagem do sagrado no espaço da palavra realiza-se no encontro com o extraordinário, com a beleza que é incompreensível e se distancia do quotidiano, porque essa procura-se para lá das pequenas realizações. Pelas vozes, pela língua pessoal acede o poeta àquele espaço que é o único que lhe interessa e dá sentido à procura pela palavra: «o único sentido, digo-te agora, é a beleza mesmo, / a tua, a proibida, entrar por mim adentro / e fazer uma grande luz agreste, de corpo e encontro, de ver a Deus se houvesse, luz terrestre, em mim, bicho vil e vicioso» (549). A beleza será o espaço de eternidade sentido e vivido no extraordinário do quotidiano, será, como referimos noutra ocasião, a realização da eternidade na imanência (2004). A intensidade da procura e a persistência das imagens saem reforçadas nos poemas com que o poeta abre e fecha A faca não corta o fogo, constituídos por um único verso cada, como que representando fulcros de energia, concentração de luz agreste, condensação de imagens que se impõem na busca de um sentido mais profundo. Por um lado a justificação da construção humana vinculada à beleza indefectível, realizada na língua corporal e por outro a consecução de um 382
poema-palavra, a essencialidade e a brevidade da unidade, enquanto representação e transcrição do «poema do mundo»: até que Deus é destruído pelo extremo exercício da beleza (535) abrupto termo dito último pesado poema do mundo (618)
Passaram 50 anos após a publicação do seu primeiro livro, O amor em visita (1958, ed. Contraponto). Entre o primeiro livro e A faca não corta o fogo há o fio persistente de uma coerente valorização da palavra poética. O gosto pelo recurso a outras vozes é evidente nos longos e diversos «Poemas mudados para português», para além do diálogo com variadas vozes da literatura. A vocação para cruzar a sua voz com outras vozes serve também para reforçar o universo da palavra e o papel da língua portuguesa. Neste contexto, o poeta procurou centralizar a definição da sua poética numa particular língua pessoal de forma a transformar o quotidiano em extraordinário. Igualmente fundamental na poesia de Herberto Helder é a energia vulcânica, a força das imagens intensas, a vocação pela origem e o gosto pela depuração das palavras e nessa perspectiva entendemos uma ambiência sagrada desde os seus primeiros poemas. Pelas palavras do poeta, vimos a paixão associada ao sagrado para depois encontrarmos de forma clara o percurso desenvolvido pelo acto poético e a sua relação com a visão depurada a que recorre, quando se escreve no poema. A consistência das imagens, uma maior depuração na relação entre as palavras e uma densidade semântica cada vez mais perturbadora marcam definitivamente o sentido do percurso de Herberto Helder, durante meio século de criação poética.
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O Hospital na Vida do Homem 1
1. «O Hospital na Vida do Homem»: este tema pode ser encarado segundo muitas e diversas perspectivas que deveriam ser todas elas consideradas, caso se tratasse de uma monografia. Cito algumas: teleológica, histórica, sociológica, jurídica, administrativa, financeira, arquitectónica, sanitária, assistencial, antropológica. Tratarei o tema referindo-o à perspectiva antropológica e no contexto dos hospitais públicos. Ao fixar-me no foco antropológico trago à luz da ribalta as pessoas que estão no hospital e que, por isso, são o hospital: os doentes e os profissionais de saúde. O facto de não incluir os outros profissionais que trabalham num hospital não resulta de os subestimar, mas da consideração de que, sem doentes nem os que deles directamente cuidam, não há hospital. Disse que são os hospitais públicos que terei em mira, como milieu em que se desenrola o drama, a epopeia, a tragédia há de tudo isto do viver humano em hospital. Se excluo os hospitais privados é porque, no universo dos doentes, distingo os que estão ali, nos hospitais públicos, por não terem recursos financeiros para usufruírem do menor mal-estar proporcionado pelos hospitais privados.
Joaquim Pinto Machado *
1 Intervenção no «Dia do Médico/Dia de S. Lucas», em 18 de Outubro de 2008, no 50º aniversário do Hospital de S. João, na cidade do Porto.
2. No seguimento imediato do que acabo de dizer, vem a propósito recordar a etimologia da palavra «hospital». Como substantivo, «hospital» vem do latim «hospitale domus», que significa casa de hóspedes, hospedaria. Do latim * Professor Catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.
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passou para o francês «hôpital», com o significado de casa onde se dá abrigo aos pobres e, se doentes, se lhes prestam os cuidados possíveis. O português adoptou este significado que, aí pelo último quartel do século XX, se estendeu a estabelecimentos onde se tratam doentes que não são pobres, e que até então adoptavam a designação de «Casa de Saúde». Mas «hospital» não é só gramaticalmente substantivo, também é adjectivo, de que derivou «hospitaleiro», aquele que acolhe com benevolência e, se for caso disso, com compaixão. E quando se trata de doentes, seja qual for o montante dos seus recursos financeiros, todos são, porque doentes, porque carentes de ajuda, «pobres». Primeira reflexão quanto a «Hospital na Vida do Homem»: há que recuperar e proclamar estas raízes etimológicas mesmo que se mantenha a terminologia oficial de «utentes» quanto aos doentes e de «trabalhadores» quanto aos que deles cuidam.
3. O cenário desta exposição é, pois, o hospital-casa de hóspedes que acolhe doentes de parcos recursos financeiros ou de recursos nenhuns. «Hóspede» é uma pessoa que é acolhida numa casa e aí se instala, gratuitamente ou não. Instala-se: cama, mesa e roupa lavada tudo isto decente, isto é, de harmonia com a dignidade de se ser «pessoa», que é inerente a qualquer humano, sem discriminação. Num hospital, os hóspedes são os doentes internados. Claro que há neles doentes não internados e há internados que não são doentes. Há doentes não internados: os das consultas e os dos serviços de diagnóstico e de terapêutica em ambulatório. Mas estes não estão no hospital, passam por lá umas horas de cada vez. Num hospital há também pessoas internadas que não são doentes, bem pelo contrário: as parturientes. O hospital, acolhimento de quem está prestes a dar à luz, é, ipso facto, acolhimento de quem acaba de ser dado à luz e 386
cujo primeiro grito é ansiosamente esperado enquanto arauto da vida, hino da vitória final da Vida, de especial sonoridade ali, onde tanta gente permanece por a sua vida estar ameaçada e até por a sua vida estar a chegar ao fim. Ai, os doentes em fase terminal internados num hospital público! Doentes a diversos títulos incómodos, inconvenientes, estranhos Pessoas que ali não deviam estar porque o hospital não é para elas, que não podem ser curadas, nem sequer detido o seu caminhar para a morte Contudo, Pessoas, pessoas num processo existencial de autenticidade, que depura o imo do ser, eliminando tudo o que é crosta, tudo o que é acessório, tudo o que é lixo Doentes terminais, quinta essência dos cuidados dos profissionais de saúde, para cuja competência, sabedoria e compassividade apelam e que, simultaneamente, são seus mestres, a apontar-lhes o valor da vida, da vida deles, da vida do Eu singular que cada um é e cuja descoberta e prossecução é o único caminho da felicidade. Sê quem és! Vai por aí! Hospital: ali, onde, não raras vezes, indo-se buscar a cura de uma doença se adquire uma outra, até mais grave, até mortal. Hospital: ali, onde, junto a novas vidas que se acolhem, há novas vidas que deliberadamente se destroem para não nascerem Hospital, hospital público, onde permanecem internadas pessoas já sem necessidade de cuidados médicos mas que por ali vão ficando porque, idosas, não têm para onde ir E contudo voltas que o mundo dá! estes internados, agora como asilados, representam a vocação originária do hospital: acolhimento de quem não tem quem o acolha «Hôtel-Dieu», na bela expressão francesa. É tempo de falar dos internados por tal ser necessário para a sua cura ou melhoria. Um doente é uma pessoa com uma alteração biológica que afecta mais ou menos a sua fisiologia. Pessoa que, por ser doente, é também «dolente», isto é, assume o estar doente 387
como uma outra identidade, expressa numa outra subjectividade e num outro comportamento: isto em particular grau no doente internado num hospital público. Aqui, à dolência por se estar doente, por ser doente, junta-se a dolência por imersão existencial num mundo outro, totalmente estranho, em que não se é reconhecido como sujeito e sujeito em situação afectiva de alta vulnerabilidade, em que se perde a privacidade, em que desaparecem afectos recebidos e afectos dados, em que se esvai a autonomia, em que se passa a objecto de ordens e de regulamentos A dolência em e por, internamento em hospital público, constitui expressão por excelência da caracterização que António Gedeão faz do ser humano como «animal aflito», no seu poema «Homem». Sim, a aflição é impressão digital da humanidade.
4. Como disse, «hospital» não é só, gramaticalmente, substantivo, é também adjectivo, com o significado de «hospitaleiro», de acolhedor amigo e compassivo. Num hospital, os acolhedores sem os quais não há hospital são os médicos e os enfermeiros. Uma primeira reflexão, respeitante aos seus deveres, para dizer que eles são de tal modo imperativos que nenhum alibi jamais poderá justificar qualquer falta ao seu integral e íntegro cumprimento. Esta exigência ética não é estigma de escravidão, pelo contrário, é marca da alta dignidade que é ser profissional de saúde. Outra reflexão, indissociável da precedente, refere-se aos médicos e enfermeiros enquanto sujeitos de direitos inalienáveis, de tal modo que cometeria vergonhosa indignidade a entidade patronal muito especialmente se for o Estado que, exigindo-lhes o cumprimento dos deveres, escamoteasse os seus para com eles. Não posso deixar de fazer uma outra reflexão, agora sobre uma categoria de personagens que só existe em alguns hospitais, e numa situação híbrida: por um lado, estão ali acolhidos, são, portanto, «hóspedes», por outro lado, estão 388
ali enquanto aprendizes de acolhedores, de hospedeiros de doentes. Refiro-me, obviamente, aos alunos de cursos de profissões de saúde. E porque estamos a celebrar o Hospital de S. João que não o esqueçamos! nasceu por causa da Faculdade de Medicina do Porto, destaco, dos alunos que frequentam um hospital, os de cursos de Medicina. A principal vulnerabilidade das escolas médicas no contexto universitário é a de, para poderem cumprir a sua missão, terem de recorrer a entidades não universitárias: hospitais e centros de saúde. Contudo paradoxal contradição a merecer a ironia assassina de um Eça a lançar-lhe «farpas» de pontaria cirúrgica visando a «morte à tolice», que tem «cabeça de touro» o Ministério da Saúde, que acredito estar interessadíssimo na qualidade dos recém-formados em Medicina até porque, quanto mais competentes os médicos, menos onerosas as suas prescrições diagnósticas e terapêuticas manifesta olímpico desinteresse pela qualidade do processo da sua formação.
5. «O Hospital na Vida do Homem»: Hospital, microcosmos onde fervilham todas as expressões do ser humano: do seu nascer, do seu viver, do seu morrer. Hospital, nicho ecológico de realização profissional por excelência, muito especialmente se médicos e enfermeiros, usufruidores do privilégio de mergulho na condição humana até às suas profundidades e de dedicação ao Serviço da Vida mesmo na aurora da morte e de, por essa entrega, crescerem sublimemente no ser e assim percorrerem o caminho que não só conduz à felicidade mas que é, ele mesmo, felicidade.
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Cinema O Valor de um Título
Francisco Perestrello *
Um quadro, uma obra literária, um poema, tem como iden-
tificação um título, sendo este imutável desde a sua criação. Não passaria pela cabeça de ninguém que pelo simples facto de mudar de editor «Os Lusíadas» se passassem a chamar «Os Portugueses», ou renomeassem «A Jangada de Pedra» como «O Calhau Flutuante». Por que será então que tal situação absurda se verifica com os filmes? Uns melhores, outros piores, são elementos da cultura de cada povo e, em muitos casos, permitem uma ampla divulgação de conhecimentos. Seria portanto de prever, entre mentes saudáveis que uma vez entrado num mercado, o nome de um filme fosse imutável. Ao longo de muitos anos grandes variações se ficaram a dever à inexistência de registos adequados ignorando-se mesmo, muitas vezes, se passados alguns anos sobre a sua produção um dado filme teria ou não já passado em Portugal. No Século XXI, com os registos por via informática em pleno, não seria de admitir que a situação se mantivesse numa falta de qualidade insustentável. Os filmes entram em Portugal por diversas vias, para diferentes utilizações, sem o respeito mínimo pela informação correcta dos espectadores, que deveriam ser o objectivo último de quem comercializa as obras da 7.ª Arte. Alteram-se os títulos consoante o suporte; alteram-se os mesmos apenas em função do ano. Esquecendo os suportes menos divulgados, como UMD, Blu-ray ou HDVD, temos hoje cinco vias de divulgação, cada * Crítico de cinema.
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uma com um mercado forte que tende a crescer na maior parte dos casos. Temos a via mais nobre, a projecção em sala, a que se seguem as edições em vídeo e DVD. Mais tarde, ou em sobreposição ou exclusivo, temos os canais abertos de televisão e a televisão codificada, por cabo, paga como serviço acrescentado. Era do interesse comum que todos usassem a mesma nomenclatura, que cada filme, uma vez iniciada a carreira no nosso País, fosse identificado por um título imutável. O primeiro obstáculo a que tal ocorra reside no facto de não existir um registo nacional de títulos. Os filmes estreados em sala ou editados em vídeo ou DVD têm o respectivo registo no IGAC, Inspecção-Geral de Actividades Culturais, mas mesmo esses têm uma divulgação muito limitada e os registos não se estendem até às origens do Cinema. A consulta pública, obviamente permitida, não tem uma resposta com a celeridade desejada, exigida pela velocidade de programação hoje em vigor. Pelo menos é o que consta por parte dos canais de televisão. No sector privado existe um registo geral, sendo o único que abarca todas os suportes, incluindo os menos populares, e que se estende ao passado remoto de 1918, quando as longas-metragens, se bem que então ainda de uma forma incipiente, começaram a povoar os cinemas portugueses. É a base de dados da Cinedoc que tem impedido que nas televisões se tenha instalado uma anarquia total no que respeita a títulos, dado que, com uma única excepção, os canais que programam filmes de longa-metragem consultam a Cinedoc. Haverá sempre quem argumente que o mesmo se passa nos Estados Unidos, em que uma larga percentagem das obras muda de título entre a exibição cinematográfica e a passagem a vídeo, criando os chamados aka (also know as), que chegam a ter quatro e cinco linhas, entre o working title, normal title, new title, etc. Mas se somos tão pouco expeditos a copiar os melhores exemplos, não deveremos considerar esta situação como um pretexto para deixar tudo como está, mas antes como um exemplo a não seguir. 392
Apenas a título de exemplo, refira-se o filme «BZ Viagem Alucinante», estreado com este título e como tal editado em DVD, em vídeo, e apresentado na televisão por cabo, na televisão aberta, num mesmo canal, saiu três vezes como «estreia»: primeiro como «A Escada de Jacob», depois como «BZ» e, finalmente, como «Viagem Alucinante». Também aconteceu, ao que tudo leva a crer de total boa fé, dois distribuidores importarem o mesmo filme e lançarem-o em cartaz em sobreposição. Um importou-o dos Estados Unidos, o outro da África do Sul, co-produtora. O primeiro deu-lhe o título «Olimpíada do Karaté»; o segundo «O Último Combate». E ambos viveram felizes até ao dia em que um cinema do Barreiro contratou um e outro para dois Domingos seguidos, evitando-se a revolução dos espectadores pelo olho clínico do projeccionista que, a partir do trailer da segunda aquisição, avisou o gerente. Este dizia ao autor destas linhas: «o meu projeccionista está maluco, pois vê dois filmes diferentes como sendo iguais». Esclarecido da situação, alterou o programa e ficou a saber o que é que a «casa gasta». Tanta linha, tanto texto, tem por último objectivo pedir que se abram as consciências de profissionais e organismos responsáveis para que o público não continue a ser induzido em erro com alterações de título que nada deviam permitir. Nota adicional: Estão em cartaz as duas partes do filme sobre Che Guevara realizado por Steven Soderbergh. Em Português a primeira chama-se «O Argentino»; a segunda «Guerrilha». Na imprensa, além destes, variam também entre «Che: 1.ª Parte» e «Che O Argentino»; e ainda «Che: Segunda Parte» e «Che Guerrilha», chegando a ser usado mais de um título diferente na mesma página de um só jornal.
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Ordens e Congregações Religiosas em Portugal Congresso Internacional
Luís Machado de Abreu *
As ordens religiosas fazem parte, desde sempre, da história
religiosa, social, cultural e política de Portugal. Pertencem a um processo global em que o caso português acompanhou, participou e se confundiu com a gestação da própria consciência cultural europeia. Ao contrário do que seria de esperar, o relevantíssimo significado social e cultural das ordens e congregações religiosas na vida nacional nunca mereceu, até hoje, a atenção verdadeiramente empenhada da investigação científica e da comunidade reflexiva portuguesa, de modo a promover o estudo desse fenómeno histórico como fenómeno social em toda a amplitude das suas coordenadas e implicações. Isso não deixa de ser tanto mais digno de nota quanto, pelo menos em dois momentos da história política do país, elas foram no seu conjunto objecto de severas medidas de extinção e de proscrição. Acabámos de referir dois factos incontestáveis: a presença antiquíssima e contínua das ordens na vida nacional e a sua rejeição violenta e radical nos contextos revolucionários de implantação da Monarquia Constitucional e da República. Só por si, tais acontecimentos seriam razão bastante para questionamento e reflexão que ultrapasse a mera descrição ou crónica do que aconteceu. Mas muitas outras interrogações surgem quando nos confrontamos com a situação paradoxal de homens e mulheres que deixaram o curso habitual da existência no mundo para melhor poderem regressar a esse
* Universidade de Aveiro.
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mesmo mundo, convertidos ao serviço de Deus e ao dos seus irmãos, sobretudo os mais pobres e marginalizados. Sob este paradoxo crescem os muitos desafios em que a opção pela vida religiosa se desdobra frente ao bom senso vulgar, ao habitual projecto de vencer na vida, à fruição do bem-estar e das comodidades terrestres. Em cada instituição de vida consagrada e em cada história de vida dos seus membros repete-se e actualiza-se o cenário de contradição vivido pela significativa procura do encontro com Deus no deserto, a partir do século IV da nossa era. Por essa altura, através dos seus chefes o Império Romano começava a dar provas de conversão à fé cristã, depois de a ter submetido a frequentes perseguições. Tudo indiciava que a vida difícil e quase clandestina imposta até então à Igreja estava a mudar, abrindo-se assim novas possibilidades à livre profissão da fé e do culto cristão. Ora, é precisamente quando aparecem condições favoráveis à prática, sem constrangimentos, da vida conforme às exigências do Evangelho, que se assiste à emigração para o deserto de muitos seguidores de Cristo. Pareciam temer que o fim das adversidades trouxesse uma tranquilidade e monotonia inimigas da exigente entrega à luta interior necessária para levar à prática a fé cristã. Seduzidos pelo ideal de cumprimento rigoroso dos conselhos evangélicos, procuram no despojamento do deserto o habitat heróico em que podem pôr à prova a capacidade de fidelidade a Cristo. Na sua experiência de metoikesis, os eremitas vivem a emigração, física e interior, que os faz passar da segurança e comodidade da vida comum em sociedade, para o risco de terem de inventar, na pobreza e na renúncia, ásperos caminhos de encontro consigo mesmos e com Deus. Depois de ter sido prática dos padres do deserto no século IV, o abandono da vida mundana e a partida para o deserto à procura de mais intensa intimidade com Deus ficou como símbolo da etapa decisiva de quantos optaram e continuam a optar pela vida consagrada. Mas a entrega que o religioso faz de toda a sua vida a Deus para mediante a profissão dos conselhos evangélicos de 396
pobreza, castidade e obediência, se empenhar na via da santidade, segundo o carisma próprio do instituto a que aderiu, nunca o isola em absoluto da comunidade humana. O encontro com a plenitude do mistério de Deus é sempre vivido com tanto mais intensidade quanto mais rica, diversa e profunda for a dimensão de humanidade que a experiência religiosa transporta dentro de si. Desde os primeiros tempos da instituição da vida consagrada tem esta oscilado, no que respeita à componente comunitária, entre duas situações-limite: o eremitismo e o cenobitismo. Na primeira, o consagrado afasta-se do convívio fraterno e propõe-se travar a luta pela santidade, retirado no ermo. Na segunda situação, experimenta-se a vida comunitária de acordo com uma regra e sob a direcção de um superior. Mas, entre o total isolamento e a completa inserção no dia-a-dia de uma comunidade de vida num mosteiro, podem existir muitas variantes nas formas de organização da existência consagrada. E devemos reconhecer que diversidade semelhante se verifica ainda entre os pólos de contemplação e de vida activa ou entre os modos de assumir o carisma singular segundo o qual cada ordem ou congregação vive a sua identidade espiritual na imitação de Jesus Cristo. Seja qual for o modo próprio de estar no mundo ao serviço de Deus, acompanhando as transformações e vicissitudes próprias de cada época e de cada experiência cultural, os religiosos sempre estiveram presentes e participaram nos grandes e nos pequenos acontecimentos da sociedade. Na vida portuguesa, à semelhança do que aconteceu com todos os povos europeus, tanto no plano religioso como nos campos social, cultural e até político, encontramos marcas indeléveis da intervenção benéfica das ordens e congregações religiosas. Hoje, sem dúvida, muito mais a contracorrente do que ontem, a existência de religiosos proclama a precariedade daquilo que a mentalidade vigente exibe como padrões supremos de valor, o dinheiro, o poder, o sexo. Ao fundar no seguimento de Jesus Cristo os alicerces de uma arte de viver feita de pobreza, obediência e castidade, a vida consagrada não 397
está apenas a interpelar criticamente os grandes ídolos da civilização contemporânea. Mostra também que há, afinal, outros caminhos por onde, sem ganância, sem obsessão de poder e sem a idolatria do prazer, se conquista a felicidade de amar, de dar e de servir. Vindos de épocas mais ou menos remotas, os religiosos continuam presentes e inseridos no mundo contemporâneo, enfrentando as contrariedades e resistências da mentalidade hedonista e pragmática em vigor e tentando responder aos seus desafios. E não faltam sequer novas fundações em que o sentido do apelo de Deus e da Igreja imprime o alento de carismas melhor adaptados às exigências de tempos novos e de novas necessidades. Importa também afirmar que as ordens contemplativas continuam a ser importantes na actualidade, ao lado dos institutos vocacionados para a vida activa. Desempenham a função de sentinelas de Deus, em permanente vigília orante, como sinais proféticos de um Mundo Novo de harmonia e paz, cujo advento acompanha a agitada aventura humana. A frequente alusão aos aspectos históricos que envolvem estas instituições poderia inscrevê-las num cenário predominantemente voltado para o passado, como se delas nada de importante houvesse a esperar para o presente e para o futuro. Nada mais erróneo do que alimentar semelhante perspectiva. A sua participação nos mais diversos contextos e situações humanas e sociais não se esgotou nem esgotará nunca. Ao lado da história já feita a que pertencem por direito próprio, abre-se diante dos institutos religiosos o horizonte vasto de muita história por fazer. A realização de um congresso sobre Ordens Religiosas em Portugal, no enquadramento temporal das celebrações do centenário da República, há-de parecer a espíritos preconceituosos um gesto de revindicta ou de protesto por parte de instituições que foram maltratadas e banidas pelo jacobinismo republicano. Julgar dessa maneira é desconhecer que o espírito cristão de mulheres e homens que optaram pela vida consagrada não alimenta sentimentos de ódio nem de vingança 398
contra os que os proscreveram e maltrataram. Possuem uma cultura de perdão, de fraternidade e de esperança mais comprometida com o presente e o futuro do que com ressentimentos e mágoas por injustiças de que foram alvo. Encontramos na história surpreendentes lições dessa cultura religiosa, mais pronta a proteger e preservar os valores do espírito do que a relembrar ofensas e denunciar malfeitores. E não foram precisamente os conventos e mosteiros das ordens religiosas que, após séculos de perseguições e violências desencadeadas pela Roma imperial contra os cristãos, asseguraram para bem de toda a humanidade a preservação e transmissão do património cultural clássico de gregos e romanos?! A realização deste Congresso Internacional subordinado ao tema «Ordens Religiosas em Portugal Memória, Presença, Diáspora» obedece ao propósito de promover a concretização dos objectivos seguintes: 1. Analisar as coordenadas da presença das ordens e congregações em Portugal, tanto na dimensão religiosa e eclesial como na sua inserção nas complexas dinâmicas sectoriais e globais do mundo contemporâneo. 2. Actualizar e aprofundar o nosso conhecimento acerca da caminhada árdua, longa e multifacetada das ordens e congregações religiosas intimamente associadas, desde sempre, às vicissitudes da história da nação portuguesa. 3. Extrair dos acontecimentos, e em particular nos episódios trágicos de perseguição e expulsão, as lições que, pondo à prova a fidelidade ao mais genuíno espírito da vida consagrada, despertaram nos institutos religiosos dinâmicas de restauração e de renascimento. 4. Avaliar o significado e alcance do contributo dado pela presença das ordens e congregações, ao longo dos séculos, nas diferentes áreas da vida social e cultural, nomeadamente, na evangelização, assistência, saúde, ensino, literatura, música, e nas artes em geral. 399
5. Contribuir para que os diferentes institutos religiosos, na fidelidade à Igreja e ao carisma dos fundadores possam identificar e assumir formas de participação e presença que melhor correspondam ás necessidades de humanização da sociedade actual.
*** Congresso Internacional Ordens e Congregações Religiosas em Portugal: Memória, Presença e Diásporas DATA: 2, 3, 4 DE NOVEMBRO DE 2010 LOCAL: AUDITÓRIO II DA FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN EM LISBOA
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recensões
Ciência MURPHY-O CONNOR, Jerome: Éphèse au temps de Saint Paul. Textes et archéologie. 352 págs. CERF, PARIS, 2008.
Dominicano e professor de Novo Testamento na Escola Bíblica e Arqueológica francesa de Jerusalém, o A. é mundialmente conhecido pelas suas pesquisas sobre S. Paulo, tendo anteriormente publicado, também na Cerf, uma obra similar a esta Corinthe au temps de saint Paul (1986) , seguida de Histoire de Paul de Tarse (2004) e Jésus et Paul. Vies parallèles (2006). Reúne o presente trabalho, a todos os títulos original, os textos dos autores antigos de historiadores como Estrabão, Ápio, Cícero, Heródoto, Inácio de Antioquia, Josefo, Lucas, Pausânias, Plínio O Antigo e Plínio O Jovem, Plutarco, Séneca, Tácito, Tito Lívio, Vitrúvio, etc., e de poetas e romancistas como Calímaco, Filóstrato, Xenofonte de Éfeso, etc. , que falam ou fazem menção de Éfeso, uma das principais cidades do Império Romano. Em Éfeso residiu Paulo três anos (52-54) e foi a partir dessa urbe que o Apóstolo encarou a evangelização das províncias romanas da Ásia e se dirigiu por escrito aos Gálatas, aos Filipenses, Colossenses, Filémon e Coríntios. Daí a necessidade de conhecer bem Éfeso para melhor com-
preender S. Paulo nos anos que aí passou. Só que, segundo previne o A., «Recriar o quadro material da estadia de Paulo em Éfeso representa um certo desafio. Em Corinto no tempo de S. Paulo, tinha-me sido mais fácil integrar os resultados de mais de um século de escavações arqueológicas, porque Pausânias, no século II da nossa era, tinha escrito um guia de Corinto. Isso permitia combinar muito naturalmente os textos e a arqueologia. ( ). Infelizmente, nenhum dos autores clássicos que escreveu sobre Éfeso menciona uma só construção, à parte, é certo, o Artemísio» (251). Foi, todavia, possível a Murphy-O Connor encontrar uma solução alternativa. Para tanto, recorreu aos resultados obtidos por arqueólogos austríacos que realizaram escavações em Éfeso como os Americanos as tinham feito em Corinto , fornecendo-lhe estes mesmos o que os autores clássicos tinham ignorado. Efectivamente, os arqueólogos do Instituto arqueológico de Viena empenhados em tais escavações «puseram a descoberto um grande número de construções no centro da cidade» que foram «datadas com diversos graus de probabilidade», tendo o nosso A. decidido concentrar-se «naquelas que existiam no tempo em que S. Paulo viveu em Éfeso, nos anos cinquenta do I século da era cristã», já que constituíam verdadeiras «jóias de arquitectura» com que o imperador Augusto tinha enriquecido a cidade (Ib.).
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Paulo terá visto Éfeso pela primeira vez aí pelo «princípio do Outono 51 da nossa era, precisamente antes do fim da estação de navegação, tendo partido de Cêncreas em companhia de Priscila e de Áquila (Act. 18, 18-19)». Todavia: «Por altura desta curta etapa, Paulo não viu grande coisa de Éfeso» (257); «Quando Paulo retorna a Éfeso no decurso do verão 52 da nossa era, chega por via terrestre, vindo da Galácia; aí tinha pregado a colecta para os pobres (1 Cor. 16, 1-4), sobre a qual se haviam posto de acordo em Jerusalém no Outono precedente (Gál. 2, 10)» (258). Assim, com grande abundância de dados, descritos ao pormenor, prossegue o livro a inventariação da cidade nas suas várias facetas. A dada altura, chama o texto a nossa atenção para outro aspecto singular: «Nestas breves descrições, não mencionei os frescos que cobriam bom número de muros, porque não estão datados. Seria razoável pensar que eram renovados à medida que se descoloriam com a idade e/ou as modas mudavam. Se não sabemos precisamente que imagens ornavam os muros no tempo de Paulo, podemos estar seguros de que as paredes eram coloridas e alegres» (267). Aludindo à acção pastoral de Paulo em Éfeso, fornece-nos a obra este dado curioso acerca daqueles que aí se converteram ao Cristianismo: «Não temos os meios para contar o número de crentes em Éfeso; mas seria muito surpreendente que tenham sido menos numerosos do que os convertidos por Paulo em Corinto. A partir dos nomes dados nos Actos e nas cartas de Paulo, podemos avaliar que o número minimum de cristãos em Corinto se situava entre 40 e 50», como o A. já tinha, aliás, insinuado na referida História
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de Paulo de Tarso (p. 101 e ss.). Quanto ao termo do ministério de Paulo em Éfeso, ele viria a ocorrer com a sua partida da cidade, no Outono 54. Acabariam, contudo, por ser ainda oferecidas ao Apóstolo «duas ocasiões de contactar a comunidade no decurso dos anos seguintes, a primeira durante a sua viagem para Jerusalém com a colecta em favor dos pobres, e a segunda quando teve de substituir brevemente Timóteo à cabeça da comunidade» (334) comunidade residente numa urbe que recobra vida e muita cor diante dos nossos olhos, graças aos referidos escritos das testemunhas oculares a que sapientemente soube recorrer o ilustre dominicano. Isidro Ribeiro da Silva.
Espiritualidade VARILLON, S.J., François: A mensagem de Jesus. 288 págs. A. O., BRAGA, 2007.
Livro complementar como II vol. do já publicado Viver o Evangelho - I (1995), extraído da gravação das conferências dos últimos Exercícios de mês orientados pelo celebrado mestre espiritual de Lyon, falecido em 1978. Corresponde aos temas da segunda semana, vida de Jesus. Além da diferença de tempos há que ter em conta os métodos, linguagem e objectivos em vista: trata-se de meditações ou contemplações para Exercícios completos e intensivos, com «vista a uma decisão espiritual pessoal». Permanecem a seriedade, a exigência, a autenticidade.
Não sendo investigador doutrinal ou exegético, o P. Varillon esforçava-se por acompanhar «o aprofundamento bíblico e teológico de que se alimentava constantemente» para assim manter vivas as exigências do Espírito . Como diz o responsável da edição original: para Varillon, «a religião está na profundidade da vida». A mensagem de Jesus desde a infância encontrava-a sobretudo nas suas palavras e parábolas (logo reconhecidas pelos títulos) e nos exemplos de vida, mas também em sínteses temáticas como o perdão, o risco da fé, ser tudo para todos, Marta e Maria, a liberdade de Jesus. Mensagem forte, a da caridade autêntica: o amor nasce do perdão e conhecer é participar . F. Pires Lopes.
VARILLON, S.J., François: A Páscoa de Jesus. 272 págs. A.O., BRAGA, 2007.
Também complementar, como III vol. de
Viver o Evangelho - I (1995), este livro corresponde aos temas da terceira e quarta semanas, paixão e ressurreição de Jesus. A Páscoa de Jesus envolve o mistério da sua morte e ressurreição, a par com sínteses temáticas: as grandes Páscoas da história, o fracasso, domingo, a Igreja. Claro, a mensagem já anunciava a passagem (Páscoa e ressurreição de Jesus). No final, vive-as com uma intensidade e um impacto que deixam os discípulos surpreendidos e suspensos esperavam uma coisa, Ele fazia outra. Após a última ceia, os doze começam por adormecer; depois, um traiu-O, outro negou-O, todos O abandonaram. Cuidado! Tradição e traição são a mesma
palavra em latim: traditio (entrega) Jesus entrega-se a Judas e judeus; mas o traidor entrega Jesus. «Quem corre o risco de renegar? Nós, os cristãos» (26). Mas a cruz o prova e De Lubac o afirma: «o amor chama a Si o pecador» (138). Logo a abrir: «O mistério pascal não é apenas o mistério central do cristianismo. Muito mais do que isso, é o próprio cristianismo» (9). Tal a transformação entre esta vida e a de ressuscitado mas uma na sequência (e na lógica) da outra, com a cesura da morte. Na fé, «esta morte é uma ressurreição» (21). Todos os testemunhos dos vários apóstolos e evangelistas sobre a ressurreição querem afinal ser a prova histórica de um acontecimento que já está fora da história: «o acto de passar da morte para a vida eterna» (172). O ressuscitado que viram e tocaram é perfeitamente corpo mas já plenamente espiritual e por isso a própria fé dos discípulos é progressiva, até à Ascensão e Pentecostes, e depois, na vida. Tudo agónico até à Páscoa, da parte de Jesus e dos seguidores, com um selo que marca a profunda mudança na vida concreta dos cristãos, segundo o plano geral de viver o Evangelho , como Jesus o viveu. Sem impacto em cegos, coxos, surdos, inválidos, a esperança não passa a morte/ressurreição para outra vida. Na morte, a revelação da glória. Realismo do amor completo: dar-se até ao fim (termo da fé e da esperança) para que todos tenham a vida e vida mais abundante, eterna a caridade. A principal intenção do autor é aprofundar a modificação que a vida-morte de Jesus trouxe (na fé) à vida de cada um e da humanidade. Poderá parecer a alguns que dá explicações teóricas; mas elas mer-
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gulham tão fundo que penetram a fazer parte da vida de outra vida, que já nem é só humana, mas passa por escândalo e loucura (I Cor. 1, 23) para chegar a ser, mais que sobre-humana, divina e eterna. Perante Quem encarna para morrer por amor, toda a superioridade humana é incinerada para salvar o ser; ao fim, só sobrevive o amor. Talvez entre o povo cristão haja mais devoção que teologia. E então seria de dizer que a piedade é inimiga da espiritualidade. Só que, «na casa do Pai há muitas moradas» e cada alma tem o seu caminho animada pelo Espírito. Sempre no activo, o ideal da redenção. No final, o índice integrado dos três volumes da trilogia: I - Viver o Evangelho; II - A mensagem de Jesus; III - A Páscoa de Jesus. Com paginações autónomas. F. Pires Lopes.
Filosofia CALVEZ, Jean-Yves: Chrétiens penseurs du social. Après le Concile, après «68» (1968-1988). 288 págs. CERF, PARIS, 2008.
Sempre existiu ao lado do ensino oficial
da Igreja Papa, Bispos e Concílio todo um trabalho de intensa reflexão e de aturada pesquisa conduzido por pensadores independentes, desconhecidos por vezes ou depressa olvidados, que inspiraram e alimentaram frequentemente o pensamento oficial, quer provocando-o, quer sugerindo-lhe possíveis vias de renovação. Para obviar a esse desconhecimento
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ou olvido, o conhecido filósofo e teólogo jesuíta, J.-Y. Calvez, tem vindo a estudar as sucessivas gerações dos referidos pensadores, a partir dos anos vinte do século passado. Num I tomo, Chrétiens, penseurs du social, Maritain, Mounier, Fessard, Teilhard de Chardin, de Lubac, 1920-1940 (Cerf, 2002), abordara o A. a chamada «geração dos anos trinta», composta por figuras particularmente brilhantes, inovadoras e influentes, que continuam a representar uma fonte «sempre fecunda e estimulante» para os tempos actuais. Seguiu-se-lhe um II tomo, Chrétiens, penseurs du social, L après-guerre (1945-1967), Lebret, Perroux, Montuclard, Desroche, Villain, Desqueyrat, Bigo, Chambre, Bosc, Clément, Giordani, Courtney Murray, Ellul, Mehl (Cerf, 2006), concernente «de novo essencialmente à França» (8), sendo dedicado ao período de reconstrução do pós-guerra e aos anos de preparação do Concílio, com muitos cristãos então implicados nas questões sociais, por força de uma leitura mais coerente e radical da mensagem evangélica e do inevitável confronto com o marxismo então muito em voga, embora se comece a afirmar que a análise das teorias marxistas volta a estar na ordem do dia (Cfr. Colóquio Internacional de Marx, realizado recentemente em Lisboa (Nov. 08). O tomo em título, o III da série, segue o «mesmo método» (7), consagrando-o Calvez aos vinte anos que se seguiram à realização do Concílio, à revolta social de 68 e às questões que na altura agitaram a Igreja sobretudo em França mas também no resto da Europa e na América Latina, tendo avultado nesse período os nomes aqui tidos em consideração Aubert, But-
tiglionne, Chambre, Chenu, Coste, Defois, C. Geffré, Guichard, Gutiérrez, Madelin, Matagrin, Metz, Novak, Simon, Sorge, Valadier, Warnier bem como os de outros teólogos da libertação, além do aqui referido Gutiérrez. Pode dizer-se que, no conjunto, se assinala nitidamente um deslocamento das preocupações relativamente à linha de pensamento dos pensadores sociais dos períodos anteriores, dado que o acento recai agora sobre a problemática da relação entre libertação humana e salvação cristã e da relação entre a fé e política. O vol. que, ao contrário dos anteriores, se organiza mais em torno de temas sucessivos do que das personalidades implicadas, inclui ainda a «teologia política» alemã, Comunione e Liberazione e seus críticos, os debates em torno da Carta pastoral sobre a economia (1986) nos Estados Unidos, ressaltando, por comparação, as particularidades e as diferenças do pensamento social católico em França. Os dois eventos a que alude o título, o Concílio e o movimento de 68, «têm em comum o haverem constituído grandes interrogações de que não tinha havido tantos exemplos ao contrário nos anos 1945-1967, o imediato pós-guerra» (8). Dado que a maior parte dos textos fonte são hoje ignorados ou se tornaram mesmo inacessíveis, não se coíbe o A. de citar em abundância os originais, no desenrolar da sucessiva temática, a fim de mais facilmente conseguir por esse meio tornar sensível uma atmosfera o que o simples relato não consegue por si só transmitir. A terminar, pergunta-se Calvez se a preocupação da relação entre libertação e salvação, entre fé e sociedade ou reforma social permaneceu tão central no período
que vem decorrendo a partir de 1989, ano da viragem crucial para os regimes da Europa de leste. E responde que não, prevendo já a elaboração de um IV tomo, por enquanto ainda longe do esboço. Quanto ao aludido questionamento acerca do período em referência, acrescenta o A: «Não me parece. Retornámos antes às grandes questões económicas e sociais, incluindo aí o liberalismo e a protecção social, e entrámos simultaneamente, cada vez mais, nas questões de ética da vida e da ecologia às quais as comunidades políticas não podem evidentemente ser indiferentes, vasto e novo sector. A filosofia regressou também em força, de modo especial com o cristão protestante Paul Ricoeur mas não sem relação com um pensador de tradição judaica, Emmanuel Levinas, do qual se sentem próximos muitos cristãos » (282). Isidro Ribeiro da Silva.
DE LUBAC, Cardinal Henri: Teilhard posthume. Réflexions et Souvenirs. Précédé de Blondel - Teilhard de Chardin. Correspondance 1919. 442 págs. CERF, PARIS, 2008.
Trata-se do XXVI tomo, integrado na 7.ª secção, das Obras completas de Henri De Lubac (1896-1991) que, segundo previsto pelos responsáveis, irão abranger um total de 50 volumes, a editar pela CERF. A presente colectânea recolhe três textos e, entre eles, o último escrito do P. de Lubac consagrado ao seu amigo Teilhard de Chardin: Teilhard posthume. Réflexions et souvenirs (1977), texto precedido aqui por Blondel et Teilhard. Correspondance 1919, comentado pelo próprio de Lubac, 405
estendendo-se ao longo das primeiras 205 páginas do vol., descontado o texto de apresentação em torno de «A génese e as características dos escritos reunidos neste volume», da autoria do teólogo Jean-Pierre Wagner, da Universidade Max Broch de Estrasburgo. A propósito, convirá porventura lembrar, de passagem, as demais obras que de Lubac havia anteriormente dedicado ao seu confrade e amigo: La Pensée religieuse du P. Teilhard de Chardin (1962) e La Prière du P. Teilhard de Chardin (1964) que já aqui referimos, por altura da apresentação dos sucessivos tomos das ditas Obras completas , Teilhard missionnaire et apologiste (1966) e L Eternel féminin suivi de Teilhard et notre temps (1968). Abre o presente tomo, com a volumosa correspondência trocada entre 5 e 29 de Dezembro de 1919 entre o «conhecido e reconhecido» filósofo Maurice Blondel (1861-1949) e o jovem paleontólogo e jesuíta, Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955), que havia começado a redigir uns textos, ou ensaios, quer de ordem filosófica quer de índole mais teológica ou espiritual. A alma desse intercâmbio, que garantiu a transmissão, entre os dois personagens, dos referidos textos «convém portanto falar de memórias e não de cartas» (10) foi um discípulo de Blondel, o P. Auguste Valensin, confrade e amigo de Teilhard. Em prefácio de 1965, Henri de Lubac precisou bem os vínculos e as inquietações intelectuais entre as três figuras mencionadas, comentando de seguida, de modo preciso, erudito e exuberante, a correspondência em causa, fornecendo elementos para acompanhar a filosofia «por vezes técnica» de Blondel, e apresentando ao mesmo tempo textos teilhardia-
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nos menos conhecidos ou inéditos mas úteis, decerto, para captar com justeza o verdadeiro propósito do autor de Le Phénomène humain (Seuil, s/d), vítima, tantas vezes, de comentários tendenciosos ou até mesmo de processos de intenção. Duas foram as principais razões pelas quais o intermediário A. Valensin convidou o seu amigo da mesma Ordem a voltar-se para o antigo mestre, Blondel: 1. Procurar conduzir Teilhard a abrir-se a uma perspectiva filosófica exigente a fim de, por meio de uma metodologia precisa, tentar contrabalançar o pendor mais intuitivo do seu espírito; 2. Implicá-lo, além disso, nos debates blondelianos relativos ao Cristianismo, aos quais a filosofia da acção vinha oferecer um contributo novo e original: «Blondel meditava os grandes textos paulinos sobre Cristo e os textos de S. João sobre o Verbo incarnado, textos que Teilhard não cessará de estudar, de citar e de interpretar quando for falar do Cristo cósmico, desse Cristo universal de quem é dito em Col. 1, 17: Todas as coisas foram criadas por ele e para ele » (11). Como J.-P. Wagner faz notar aqui, adivinha-se, através das observações de Blondel, o debate, «sempre recorrente», em torno das analogias mais familiares a Teilhard de Chardin bem como o seu nítido intento de religar os diversos domínios do saber sem jamais os confundir: «Num primeiro tempo, Blondel e Teilhard marcam as mesmas distâncias em relação ao extrinsecismo que visava cortar as relações entre a ordem natural e a ordem sobrenatural, e que fazia das verdades de fé verdades exteriores ao homem e devendo ser cridas sobre critérios de autoridade» (14).
Faz ainda parte deste vol. das Obras completas o livro Teilhard posthume. Réflexions et souvenirs, publicado por H. de Lubac em 1977. É a última das obras consagradas a Teilhard pelo seu confrade, mas a menos ambiciosa, já que não se trata agora de apresentar de maneira profunda todo um pensamento com os seus desafios e contributos, em clima de franca desconfiança. Teilhard posthume é, por isso, uma obra mais pessoal e comprometida, repassada de juízos e de recordações com alcance histórico que constituem certamente um encanto para os amigos de Teilhard. É que, neste texto, preocupa-se sobretudo de Lubac em restituir toda a estatura à figura humana e espiritual do autor de Le Milieu Divin (Seuil, 1957) para o libertar de interpretações erróneas: «Este pequeno livro não deixará os leitores indiferentes, alguns encher-se-ão de simpatia, outros permanecerão críticos e ficarão talvez exasperados pelo tom apologético e polémico do P. de Lubac» (16) daquele que, todavia, afirmara de si próprio jamais ter sido o discípulo incondicional de Teilhard. Enraizado na mais rica Tradição cristã, jamais foi Teilhard um mero sonhador grandiloquente. Muito pelo contrário, investiu como ninguém todo o seu esforço em renovar o problema do lugar do homem na natureza, dedicando mesmo uma obra explícita La place de l homme dans la nature (1977) a toda essa temática. Sem esquecer ainda o seu receio de uma nova intimidação da consciência cristã através de um neo-arianismo: «a tentação de uma diminuição de Cristo, não mais (pelo menos directamente) na sua relação a Deus, mas na sua relação ao universo. É por isso que ele desejava um concílio (Vaticano II foi con-
vocado cinco anos depois da sua morte) que soubesse conferir à cristologia tradicional um suplemento de actualidade e de vitalidade dando todo o seu relevo às afirmações de S. Paulo e do Apocalipse» (385-386). Será ocasião de lembrar, a propósito, as linhas por ele escritas a 25.X.1953, Festa de Cristo Rei, já que exprimem a sua fé profunda e firme esperança: « Cristo, desde que apareceu, não cessou jamais, depois de cada crise da história, de re-emergir mais presente, mais urgente, mais invasor do que nunca (Le Dieu de l Evolution, t. 10, pp. 289-290; cit. aqui na p. 395). Claude Cuénot designa Teilhard como «o homem da Visão», da intensa visão religiosa, «o homem do Coração de Cristo transparecendo para ele através da totalidade do Universo» (193). Os textos teilhardianos da correspondência com Blondel, ao longo de Dezembro de 1919, «contêm já a substância de Le Milieu Divin e de outros escritos apologéticos ou espirituais. Sob uma forma por vezes lírica, às vezes próxima da confidência, mas de onde não estão ausentes nem o rigor dialéctico, nem sempre a precisão conceitual, reflectem verdadeiramente a fonte e a génese do seu pensamento» (194). Concluímos com um texto feliz (24) do já citado professor de teologia de Estrasburgo: «Blondel e Teilhard de Chardin convidam-nos a interessar-nos pelas relações entre teologia e filosofia, incluindo a elaboração de uma cristologia. Assim se verifica a pertinência dos propósitos de Henri de Lubac sobre a Tradição: Nada se conserva intacto sem esforço. A repetição das fórmulas não assegura a transmissão do pensamento. Não podemos confiar um tesouro doutrinal à passividade da memó-
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ria. É preciso que a inteligência participe na sua conservação reinventando-lhe, por assim dizer, a medida » (Henri de Lubac, Paradoxes, em Obras completas, t. XXI, Cerf, Paris, 1999, pp. 13-14). Isidro Ribeiro da Silva.
História CACHO NAZABAL, Ignacio: Iñigo de Loyola el heterodoxo. 422 págs. UNIVERSIDAD SAN SEBASTIÁN, 2006.
DE
DEUSTO,
«Ignacio de Roma no es Iñigo de Loyola», disse um escultor basco. Iñigo até aos 44, Ignacio depois (99). «Porque andava tanto a inquisição sobre mim», escreve ele a D. João III (15.III.1545). Em época de muitos alumbrados que se multiplicavam na Europa e de rígida ortodoxia sobre que velava a Inquisição, era normal que à mínima desconfiança se fosse denunciado ou chamado a tribunal. Inácio de Loiola sentiu por várias vezes e em diversos sítios a ominosa carga da Inquisição. Se não se tivesse convertido tudo seguia normal. Convertendo-se, tudo passou a duvidoso. Rezava, mortificava-se, peregrinava, pregava, dava catequese e retiros, queria converter toda a gente. Até se metia a discutir espíritos ou moções espirituais e a calibrar pecados na maneira de se viver ou não o cristianismo. E os donos da ortodoxia não só estranharam aquele espiritual sem carta, mas em várias ocasiões o chamaram à pedra para lhe levantar oito processos judiciais. Após recordar a saga da família Loiola
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três constantes: fé, armas, mulheres (33) e o processo de Azpeitia (1515), procede o autor à análise de todos os processos: em Alcalá acusaram-no de alumbrado (1526, 1527), de erasmiano em Salamanca (1527), de sedutor de estudantes em Paris (1529, 1535), de católico desviado em Veneza (1537), de lobo luterano disfarçado de ovelha romana em Roma (1538), de transgressor das normas com arrependidas em Roma (1546). Durante trinta anos dos 65 da sua vida (de 1515 a 1546) andou em bolandas com juízes eclesiásticos ou civis. A propósito desta última acusação (a pior de todas), um capítulo final acerca da castidade pedida por estatuto aos jesuítas, ou, em geral, a espiritualidade da castidade. Aliás, todos os capítulos são boa introdução à espiritualidade de S. Inácio. A experiência convenceu-o de que, para bem dele e dos companheiros, o melhor era conseguir uma sentença em cada processo. Porque não era a acusação que lhe interessava mas sim a sentença de absolvição ou inocência, para poder continuar o seu apostolado e até a aprovação oficial deste, ainda antes dos quatro anos de teologia . A sofrer tudo estava ele pronto, mesmo as piores ignomínias e a morte. À pergunta se lhe encontravam heresia, respondeu em 1527: «No, que si la hallaran os quemaran». Ora os juízes sempre lhe ditaram a inocência, algumas vezes até com louvor. Para nós e para o autor deste livro, o que importa analisar e saber é qual era o fundamento real de todas essas acusações no momento em que lhe instauravam cada processo ou sobre que alicerce está construído o edifício da Companhia de Jesus. Esse é também o princi-
pal motivo para ler Iñigo de Loyola el heterodoxo. Em questão, no processo de Alcalá, os alumbrados ; no de Salamanca, Erasmo; no de Paris, os Exercícios; no de Roma, a honra da Companhia. Já em Alcalá, o maior louvor a Inácio e aos Exercícios. Pedro Ortiz, acusador em Paris será defesa em Roma, onde aparecerão todos os acusadores para defenderem Inácio e os seus. Contudo, ainda em 1575, vinte anos após a morte de Inácio, o Conselho de Valladolid perguntava à Inquisição se havia algum processo contra ele (277). Este livro do autor é complementar de Iñigo de Loyola, ese enigma, esse enigma de contrastes que o vão revelando na realidade humana da sua vida, longe do modelo edificante originário que antes servia de norma obrigatória de hagiografia. Certo é que se o Santo foi sempre absolvido, nem sempre ele e os seus Companheiros se livraram de acusações, sofrimentos e perseguições que chegaram a custar honra e fama, vidas, martírios e classificações que fazem deles ainda hoje, objecto de escárnio e maldizer, mas para bem da lista dos santos que por seu modo de viver, prestigiaram a sociedade, a Igreja e a Companhia de Jesus. Principal mérito histórico: aduzir, interpretar e conjugar a vária documentação existente relativa aos primeiros tempos da Companhia de Jesus. Gralhas bastante frequentes não deformam o sentido da frase. Conclusão: para o tempo de S. Inácio, para as épocas do Marquês/Liberalismo/República e para hoje: «Será todo pura historia, será todo puro azar, será todo pura providencia, pero todos los procesos judiciales en que
Ignacio interviene llevan la huella de la cruz y el sello de la gloria. El sello de la gloria, pues todo los procesos finalizan con sentencia de clara inocencia. Y la huella de la cruz, pues la mayoría de ellos concluyen con puntos suspensivos». F. Pires Lopes.
Literatura HALDEMAN, Joe: Liberdade sempre. 216 págs. EUROPA-AMÉRICA, MEM MARTINS, 2005.
Com títulos desafiantes e na colecção Nébula , o professor do MIT projecta as suas obras para o mundo da ficção científica. Mas os ideais são defensáveis na realidade térrea, sobretudo no caso americano empenhado em guerras desesperadas. Em abertura, o que parece ser a sua tese: sem o rufar dos tambores, que paraíso seria a terra! Os homens fazem os deuses e em nome deles é que fazem guerras para ceifar vidas; o remédio é novos deuses com repugnância pela guerra; isto é, «para impedir a guerra, temos que nos tornar deuses». «Nós, os paranóicos» e «este desolado planeta», «se lá houver homens» (5, 9, 13, 42) é o que se recolhe das primeiras páginas. Nesta ficção científica se refugiavam alguns desmobilizados com a família, à velocidade da nave vaivém do tempo (32) que dilatava a duração e impedia o envelhecimento. Após viagem de 10 anos, regressam à Terra passado um milénio. Cá não 409
havia sobreviventes. Ficam eles como garantia de herança genética (14): «nós, ratos de laboratório» (21). Tudo vai em piloto automático e sentimos dificuldade em estabelecer relações tanto humanas como factuais: questões de bases, de fronteiras espaciais e temporais marcas do carácter americano, revisão de um sonho esgotado (cfr. 43); podem muito, mas ainda estão a decifrar a gramática . Percebemos finalmente que se trata de uma parábola das problemáticas relações internacionais. Porque transportam o tempo, fazem figura de fósseis um mundo vazio, em que só eles habitam. Somando as dificuldades do original, as da tradução e as da leitura, ficamos naquele tempo , ou in die busilis indecifrável. Em suma: «Liberdade, naquela pequena prisão» (50). Aqui entram os deuses da tese inicial, a autonomia da condição humana: libertação (sugerimos), sempre. Desta prisão da matéria. Com «pessoas a explodir, antimatéria a evaporar, dez mil milhões de pessoas a desaparecer para qualquer colónia de nudistas cósmica. Ou para a vala comum» (200). Conclusão da tese: «Toda a ciência era agora questionável e requeria ser confirmada» (208). «Iremos reconstruir tudo, fazê-lo ainda melhor» (53). Como disse o velho Pascal de outros tempos: «qui veut faire l ange fait la bête»? «Em órbita o chão é apenas um estorvo». Decidiram «construir um novo mundo de cima para baixo (106-7). «A nave dos loucos é deprimente» (115). Até começarem os eventos que «cientista e engenheiros não conseguiam explicar» (122) «taxa de sobrevivência,
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zero» (128). Preocupações de base: carteira, coldre, intelectualismo mecanicista. Sucessivamente, as grandes divisões tituladas do livro: Génesis, mudanças, Êxodo, mortos, apócrifos, Apocalipse. F. Pires Lopes.
HALDEMAN, Joe: O velho século XX. 258 págs. EUROPA-AMÉRICA, MEM MARTINS, 2006.
Mais uma viagem no tempo, virtual e idílica, até quando o século XX já é apenas uma recordação na história da humanidade, as doenças tinham desaparecido e só a ultra-velhice levava à morte. Então, máquinas de vida virtual, esses abencerragens viajam no tempo: maníacos do passado, procuram a vida-morte quase a tanger a eternidade. «Nem humanos nem sequer orgânicos» (102). Só utilidade artificial e realidade virtual; «a máquina do tempo não está programada para imitar a autoconsciência» (162). Publicado em 2005 o original americano «o velho século XX era chamado o século americano» (189) começa no Iraque em 1915, com guerra à baioneta: «O cheiro da morte nunca nos abandona» e é «nunca pior do que agora» (11). Não vale a pena acompanhar as transformações, pois são pura fantasia. Nem admira que a demanda de destinos / recordações seja sobretudo o velho século XX , conhecido. O autor é também narrador em primeira pessoa e engenheiro de realidade virtual a bordo da própria nave romanesca concebida para uma viajem que dura mil anos até que «algo deixa de funcionar» (124) e os tripulantes «come-
çam a morrer» e lá se vai quanto Marta fiou: a primeira geração dos que se julgaram imortais foi encerrada em habitações sociais, pessoas pobres já mortas (253). O final é anódino: o brinde com um velho vinho de 1945 dá «o momento que pode durar uma eternidade» (257). Nem estatística nem fé, apenas um despropósito. Do professor de escrita do MIT. F. Pires Lopes.
Poesia FARTO, A. J.: Breve cartilha dos nossos padecimentos. 80 págs. CONTEMPO, SEIXAL, 2005.
Ao ler o aviso liminar do «guarda-vento desta escola da amargura» (3) vem-nos à mente outra grande advertência, a de Dante. Se homem prevenido vale por dois , não se deixa atemorizar: «meu irmão e meu parceiro / da via dolorosa» (5). Mais que noutros cadernos, transparece aqui o saudável tom exortativo de quem aprendeu a dor e a soube integrar na vida nem conformismo nem fatalidade, mas aceitação compartilhada e redentora. Tonalidade bastante diferente dos restantes livros, mais filosófico-moral do que prática. Mas a enumeração descritiva da variedade de sofrimentos é mais uma prova de quanto sofre a humanidade,
sem esquecer o sacrifício de inocentes. Para nem referir as lacrimae rerum de tanta violência à natureza. Simplesmente, outro poeta: leccionador e de mais forte vaga. F. Pires Lopes.
FARTO, A. J.: Pensamentos, meu tesouro III. 68 págs. CONTEMPO, SEIXAL, 2006.
Terceiro caderno com este título. Sinal de que, recorrendo à gaveta, vai revendo e revivendo produções de antanho e dando-lhes pinceladas de actualidade como o sábio da Escritura que vai tirar do seu tesouro (arquivo) coisas novas e velhas : «aforros de tantos anos» desde a Escola e o rio que sabemos (5, 6), e já com o poder evocativo que de ponte romana (45) passa à presença das legiões e com a subida inspiração que desde cedo é marca de poetas, mas só depois dos 25 se confirma. Desse amadurecimento ficam marcas de sabedoria em formulação sentenciosa de tradição popular. Daí a aliança evidenciada de poesia e pensamentos. Uma e outros de vida por vezes negros, por vezes agradecidos. Exemplo flagrante, os versos do trinco da porta (7ss), mas recorrendo também depois a modelos mais camonianos. Animadora confissão: «Eu sei que há um segredo» (28) cada dia mais perto e face a face . F. Pires Lopes.
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«...de forma breve e destinada a um público geral, a história do ensino e das actividades científicas na famosa "Aula da Esfera", possivelmente a mais interessante instituição de ensino científico na história de Portugal.» 112 PÁGINAS ILUSTRADAS A CORES PREÇO: 20 E (COM IVA E PORTES INCLUÍDOS) 1
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AROUCA, Manuel, Rosa do oriente, Lisboa, Aletheia, 2008. BEIRÃO, Eugénio, Os dias férteis, Aveiro, Edição do Autor, 2009. IDEM, Invenção para dois trombones e outras histórias, Aveiro, Edição do Autor, 2009. CARVALHO, Alfredo de, Dicionário de regência nominal portuguesa, Belo Horizonte, Livraria Garnier, 2007. GADELHA, Regina Maria A. F. (ed.), Missões Guarani: Impacto na sociedade contemporânea, São Paulo, EDUC, 1999. (Oferta do autor dum artigo da obra). RAMOS, Hermínio Duarte, Crítica da disrupção de dieléctricos sólidos, Luanda, Universidade de Luanda, 1972. IDEM, Síntese da disrupção de dieléctricos gasosos, Luanda, Universidade de Luanda, 1974. IDEM, Fundamentos dos isolantes poliméricos, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 1976. IDEM, Mais ou menos. Grandezas eléctricas contínuas, Lisboa, Hader, 1985. IDEM, Roda à roda. Princípios da energética mecanicista, Lisboa, Hader, 1986. IDEM, Catraplim. Estórias fora do tom, Lisboa, Hader, 1986. IDEM, Os robôs também nascem. História da génese robótica, Lisboa, Edinova,1998. IDEM, Sopros de riscos. Teoria e prática do controlo de fumo em incêndios nos edifícios, Lisboa, Hader, 2003. IDEM, A mente e a consciência no modelo sistémico da cognição, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 2004. IDEM, Eu o outro e os outros. Livro de jubilação, Lisboa, Hader, 2007. IDEM, Caminho para a excelência. História de trinta anos (1977-2007) da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, Campus de Caparica, Fundação da FCT, 2007. SALA, Dalton, Ensaios sobre arte colonial luso-brasileira, São Paulo, Landy Editora, 2002. VILA-CHÃ, Augusto, A arte de confortar. Reflexões sobre a pastoral da saúde nos hospitais, Braga, APPACDM, 2008.
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OFERTA DOS EDITORES Apostolado da Oração Largo das Teresinhas, 5 - 4714-504 Braga: 1) PEDROSO, S.J., Dário, Palavra e Eucaristia. Horas santas, 2009. Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa Faculdade de Letras Cidade Universitária - 1600-214 Lisboa:
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3) Correspondência Luso-Brasileira, I Das invasões francesas à corte no Rio de Janeiro (1807-1821), II Cartas baianas. O liberalismo e a independência do Brasil (1821-1823), 2008. 4) CUNHA, Rodrigo Sobral, A teoria silvestrina da harmonia do universo. Homem, mundo e Deus na obra de Silvestre Pinheiro Ferreira, 2008. 5) PESSOA, Fernando, Rubaiyat, 2008. 6) RIBEIRO, Aleixo, Bússola doida, 2008. 7) SILVESTRE, João Paulo, Bluteau e as origens da lexicografia moderna, 2008. 8) TOJAL, Altino do, Jogos de luz e outros natais, 2008. Lucerna Rua Marques Leal, 21 - 2765-495 S. João do Estoril: 1) WITHERUP, Ronald D., São Paulo. Um apelo à conversão, 2008. Paulinas Rua Francisco Salgado Zenha - 2685-332 Prior Velho: 1) ALBISETTI, Valerio, Como atravessar o sofrimento e sair dele mais forte, 2009. 2) Congregação para a Doutrina da Fé, Instrução Dignitas personae, sobre algumas questões de bioética, 2009. 3) MARTIN S.J., James, Torna-te aquilo que és. Da imitação à autenticidade, 2009. Publicações Europa-América Apartado 8 - 2726-901 Mem Martins: 1) BERNIÈRES, Louis de, A filha do Partisan, 2009. 2) BLOOR, Thomas, Sam e o coração da serpente. Livro III da triologia do dragão, 2009. 3) CANFIELD, Jack; WATKINS, D. D., A chave para viver a lei da atracção, 2009. 4) FRASER, Beau; BERNSTEIN, David; SCHWAB, Bill, Morte às vacas sagradas. Como os homens de negócios de sucesso mandam pastar as velhas regras, 2009. 5) JAMES, P. D., A paciente misteriosa, 2009. 6) LEVENSON, Claude B., O Tibete, 2009. 7) PLUTARCO, Conselhos aos políticos para bem governar. Seguido de A um dirigente sem educação, 2009. 8) STALLWOOD, Veronica, Intriga em Oxford, 2009. 9) SHOLES, Lynn; MOORE, Joe, O legado 731, 2009. Roma Editora Av. de Roma, 129 - r/c Esq. - 1700-346 Lisboa: 1) BALTAZAR, Isabel, D. João VI. As duas faces do poder, 2009. 2) MENDES, Maria da Saudade Cortesão, O desdobrar da sombra seguido de Fragmentos de um labirinto, 2009. Tenacitas Rua Bartolomeu Dias, 23 - 3030-041 Coimbra: 1) CHARDIN, Pierre Teilhard de, Sobre a felicidade. Sobre o amor, 2008.
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