Novembro de 2009 Volume 169

Page 1

C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u 5 C r i s t i a n i s m o e C u l t u ra C r i st ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ul2ra C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo VOL. e C ult ura169 C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i sm o e C u l t u ra C r i s t ia nis mo e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u C r i s t i an i sm o Preparando e C u l t u ra C r i s t ia nisa mo “RepĂşblicaâ€? e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult u Vaz ePinto C r i s t i a n i s m o A va n ç o s e c u mĂŠnicosr istAntĂłnio ianismo C ultS.J. ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i sGĂŠnesis t i a n i s m o e C1 ult e uraaC rvocação ist ianismo e CcientĂ­fica ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist i a n i s m o e C u l t u ra C r i s t i a n i s m do homem e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r istJean-Pierre ianismo eSonnet, C ult uraS.J.C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism ou eapatia? e C u l t u ra C r i sDemocracias t i a n i s m o e C ult ura Cliberais r ist ianismo -e Tolerância C ult ura C r ist ianismo C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C rJosĂŠ Tomaz is t ianismoCastello e C ultBranco ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism BioĂŠtica – um saber transdisciplinar? e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism Britoe C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis moJosĂŠe CHenrique ult ura CSilveira de r is t ianismo e C u l t u ra C r i sAinda t i a n i s m o eaCEncĂ­clica ult ura C r is t iaCaritas nis mo e C ultin uraVeritate C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura Manuel C r is t ianismo Porto e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i sAt i aEconomia n i s m o e C ult ura eC rois tapĂłstolo ia nis mo e C ult Paulo ura C r is t ianismo – II e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult Pedro McDade ura C r is t ianismo S.J. e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism CatĂłlica e C u l t u ra C r i sAt i aIn iRepĂşblica s m o e C ult ura C e r is a t ia Igreja nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism P. Francisco e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ultSenra Coelho ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r Novembro ist ianismo e C ult2009 ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism e C u l t u ra C r i s t i a n i s m o e C ult ura C r is t ia nis mo e C ult ura C r is t ianismo e C ult ura C r ist ianismo e C ult ura C r ist ianism

Revista publicada pelos jesuĂ­tas portugueses desde 1902

BrotĂŠria


Novembro 2009 Série Mensal Assinatura para 2009: Portugal 47,00 - (IVA incluído); U. Europeia 90,00 -; Outros países 95,00 Número avulso: 5,50 - (IVA incluído) Números atrasados (+3 anos): preço actual NIB: 0007 0101 00461660002 25


ISSN 0870-7618 Dep贸sito Legal 54960 / 92 Tiragem: 1100 exs.

$!


Director Conselho de Direcção Conselho de Redacção

Recensão e Crítica

António Vaz Pinto S.J. Manuel Morujão S.J. Domingos Terra S.J. Alfredo Dinis S.J. António Júlio Trigueiros S.J. Daniel Serrão Domingos Terra S.J. Emília Nadal Francisco Sarsfield Cabral Henrique Leitão Isabel Horta Correia João Norton S.J. Mário Garcia S.J. Miguel Corrêa Monteiro Francisco Pires Lopes S.J. Isidro Ribeiro da Silva S.J.

Bibliotecário

António Júlio Trigueiros S.J.

Secretariado

Ana Maria Pereira da Silva Ana Rodrigues Isabel Tovar de Lemos

Design Gráfico Propriedade

Teresa Olazabal Cabral Brotéria Associação Cultural e Científica NIPC 503312070

Direcção, Administração, Assinaturas e Distribuição

R. Maestro António Taborda, 14 1249-094 Lisboa Tel. 21 396 16 60 - Fax 21 395 66 29 E-mail: broteria@gmail.com NIB: 0007 0101 00461660002 25

Composição e impressão

Oficinas Gráficas de Barbosa & Xavier, Lda., Braga Rua Gabriel Pereira de Castro, 31-A e C 4700-385 Braga Tels. 253 618 916 / 253 263 063 Fax 253 615 350 NIPC 500041539

$!



ÍNDICE $!#

$!'

$##

$$'

$%%

$&!

$'!

António Vaz Pinto, S.J.

Preparando a «República» Jean-Pierre Sonnet, S.J.

«A origem das espécies»: Génesis 1 e a vocação científica do homem José Tomaz Castello Branco

Tolerância ou apatia? O problema da diferença nas democracias liberais contemporâneas José Henrique Silveira de Brito

A Bioética um saber transdisciplinar? Manuel Porto

A Encíclica Caritas in Veritate e a problemática da globalização Pedro McDade, S.J.

A economia e o apóstolo Paulo - II Francisco Senra Coelho

A I República e a Igreja Católica D. Augusto Eduardo Nunes e a redacção dos Documentos Colectivos do Episcopado Português

% %

Recensões

%!

Obras recebidas na redacção

$!!



Editorial

António Vaz Pinto SI

Preparando a «República»

Comemorar Aproxima-se o ano de 2010 e com ele, naturalmente, os 100 anos de vida da República Portuguesa. Quer se goste quer não se goste, é uma data incontornável que irá ser recordada e celebrada. Estão constituídas comissões, nacionais e locais e certamente, ao longo de todo o próximo ano, os eventos e acontecimentos irão surgir com abundância. Não poderia deixar de ser assim, pois ignorar os factos, silenciá-los, esquecê-los ou tentar fazê-los esquecer, não é nunca um bom e saudável caminho A memória é traiçoeira e vingativa. Nalguns aspectos, embora existam zonas de fricção e «temas fracturantes», a sociedade portuguesa está hoje mais pacificada do que à volta de 1910, por natural amadurecimento democrático e mérito indiscutível de alguns líderes políticos do pós 25 de Abril, que não quiseram repetir os erros da I República, sobretudo no ataque frontal à Igreja Católica. Assim, nas comemorações de 2010 o que não deve haver é o branqueamento do passado, como se tudo tivessem sido rosas ou tudo tivessem sido espinhos Nem ressentimentos, nem vinganças A decadência política dos últimos anos da monarquia; a tentativa de João Franco; o regicídio de D. Carlos e assassinato do Príncipe herdeiro; o papel das sociedades secretas, sobretudo maçonaria e carbonária, na preparação, proclamação e vigência da República; o papel da imprensa; a animosidade contra a Igreja católica, a coberto da chamada «Lei de separação do Estado e das Igrejas» (1911); a I República, os sindica635


tos e os anarquistas; o parlamentarismo exacerbado e estéril do tempo pré e pós-república; o envolvimento na política europeia e concretamente na I Grande Guerra de 1914-18; a «política colonial» da I República; o fracasso e descontentamento popular e a «preparação» do sidonismo, da ditadura e do Estado Novo. Estes são alguns tópicos que, a meu ver, fazem parte integrante e indiscutível do «evento República». Importante é lembrá-los, estudá-los e reflectir sobre eles, para que as comemorações não se limitem a vazios discursos laudatórios, com gritos, bandeiras e sessões solenes Com-memorare: comemorar é lembrar com outros. Se o acontecimento for seriamente lembrado, com a investigação, a reflexão e a discussão sobre as raízes, os factos e as consequências, então as comemorações poderão ser fecundas para todos, portugueses de hoje, republicanos e monárquicos O que interessa, de facto, é saber «tirar proveito»: aprender a fazer da história, mestra da vida O resto é espuma Espírito crítico, exige-se!

«Ética republicana»? Tem surgido, até em grandes responsáveis, a expressão «ética republicana». Terá sentido? Julgamos que não. A ética, o comportamento correcto, seja no domínio privado seja no domínio público, não é republicana nem monárquica Como não é verde nem azul A atitude, o comportamento é correcto ou não é correcto, é ético ou não-ético. Se houvesse uma ética republicana, teria de haver uma ética monárquica Ou será que se pretende dizer, através desta expressão, que só os republicanos podem ser éticos, correctos? Ou será ainda que se pretende afirmar que os cidadãos das monarquias (vg. Grã-Bretanha) são menos éticos que os das repúblicas (vg. Portugal)? Seria ridículo e ainda mais se nos lembrar-mos que de 1910 até hoje, 2010, sempre vivemos em República. Teremos sido, na vida pública, nestes 100 anos 636


I República, «Estado Novo», IIIª República exemplo de comportamento correcto, ético? Há todo o direito a defender o ideal republicano. Perfeitamente legítimo, tal como defender o ideal monárquico. Mas um «ideal» não é uma ética, é um objectivo, uma finalidade. Lutar por um comportamento cívico, democrático, pela lei, os direitos civis e públicos, por uma sociedade mais digna, livre, justa e fraterna, é que é ou deve ser o ideal comum. E fazê-lo de modo ético. Sem adjectivos.

637



«A origem das espécies»: Génesis 1 e a vocação científica do homem 1

Jean-Pierre Sonnet, S.J. *

Em memória de Henri-Géry Hers (1923-2008)

Relativamente às origens, o desafio, para os cristãos deste

tempo, é viver uma dupla fidelidade: uma fidelidade inteligente ao ensino do Génesis 1 e uma abertura atenta às propostas da investigação científica. Herdeiros da Bíblia e unidos à vida intelectual, os cristãos vivem esta dupla hospitalidade desde o nascimento da idade crítica e científica. Falta-lhes, contudo, melhorar esta dupla fidelidade hoje, no tempo em que alguns têm prazer em «atirar» uma contra a outra as noções de criação e de evolução, sob a forma de ideologias criacionismo e evolucionismo ambas exclusivas. Para os defensores do evolucionismo, invocar hoje o poema inicial do Génesis é regressar a uma forma de obscurantismo, incompatível com a racionalidade da idade moderna. Nas páginas que se seguem, manifestarei que a referência aos primeiros capítulos do Génesis não implica, em nada, uma demissão da inteligência. Se estes capítulos desenvolvem uma perspectiva que é oferecida a um reconhecimento de fé, não garantem, de modo algum, uma recepção própria do fideísmo cego ou do fundamentalismo obscuro. Uma racionalidade luminosa atravessa estes textos, capazes de falar, à partida, a qualquer homem de razão e especialmente ao homem contemporâneo de ciência. Devido à sua dimensão «mítica», (própria dos discursos sobre as origens) e teológica, o texto do Génesis 1 tem, naturalmente, uma pretensão sui generis, irredutível à da investigação científica. O modelo literário desta narrativa recorre a um

1 Artigo originalmente publicado na Nouvelle Revue Théologique 131 (2009), 529-545.

* Pontificia Università Gregoriana. (E-mail: sonnet@unigre.it).

Brotéria 169 (2009) 639-653

639


narrador omnisciente, capaz de contar aquilo que nenhum homem testemunhou (cf. Job 38,4-ss), referindo as palavras «Faça-se luz» e o ponto de vista divino «Deus viu que a luz era boa» (Gn 1,3-4). Isto põe este texto à distância e à distância absoluta, do que quer e pode a investigação científica, empenhada, por si, na observação crítica dos fenómenos. Na sua finalidade teológica, o capítulo que abre a Bíblia desenvolve no entanto uma visão do real cuja articulação, iremos ver, é racional (e, à sua maneira, «científica») e merece ser exposta como tal. Em tudo isto, não há nenhuma intenção de «concordismo»: em vão se irá procurar ligações entre os conhecimentos das ciências da natureza e as afirmações do Génesis 1 (ainda que, estranhamente, os seres vivos tenham aqui também a sua origem no meio aquático). A racionalidade em questão, nestas páginas, é a da inteligibilidade de um mundo nascido da palavra divina e simultaneamente dedicado à palavra do homem. Esta inteligibilidade deveria também «falar» ao homem de ciência contemporâneo. Porque, o concordismo uma vez posto de lado, importa que as racionalidades, antigas e modernas, possam reconhecer-se e cumprimentar-se mutuamente.

I. A inteligibilidade de um mundo articulado pela palavra

2 O tema do combate divino aparece em diversos lugares na Bíblia hebraica (sempre em contexto poético), evocando uma vitória de YAVÉ sobre o mar primordial (Is 51,10: «as águas do abismo [tehôm] gigantesco»; ver também Is 27,1; 51,9; Sl 74,13; 89,10-11; Job 7,12; 26,12), associado a Rahab, a Leviatã ou ao Dragão; é dada assim a medida de um compromisso primordial de Deus contra as forças do mal.

640

Qualquer leitura faz-se tendo em conta um fundo de saber cultural, e esta lei geral verificou-se aquando do aparecimento da narrativa do Génesis. O âmago da inteligibilidade deste texto foi fornecido especialmente pelos relatos cosmogónicos do Próximo Oriente antigo, e particularmente pela epopeia acádica Enuma Elish, «Quando no alto». Aparecida no início do segundo milénio para justificar a supremacia adquirida por Mardouk, o Deus de Babilónia, sobre as outras divindades do panteão mesopotâmico, esta epopeia conferiu uma autoridade particular ao modelo da criação por teomaquia (luta entre deuses) 2. Sobre fundo de um universo primitivo, constituído pelas águas doces, personificadas por Apsou, intimamente misturadas com as águas salgadas, personificadas por Tiamat,


estabelece-se um combate terrível, que dá nascimento ao mundo tal como os homens o conhecem. Mardouk, divindade da sexta geração, trava uma batalha sem piedade contra a deusa Tiamat, o mar primordial e aniquila-a. Quebrando a sua carcaça, como a de um crustáceo gigante, o Deus vencedor estende então o universo, «forrando» o céu com a ajuda de uma das metades do «cadáver». Certos ecos deste fundo cultural são perceptíveis na abertura do Génesis 1, especialmente na evocação do «abismo» do oceano o têhõm hebraico é aparentado linguisticamente ao ti ãmat acádico 3 entre os elementos primordiais sobre os quais opera o acto criador» 4. Confrontado com este elemento desde o primeiro versículo da cosmogonia bíblica, e descobrindo-o associado às trevas, o leitor antigo interroga-se: o acto criador tomará, aqui também, a forma de um combate? A surpresa que se segue revela o génio subversivo dos escritores bíblicos face aos materiais das culturas circundantes: «a intervenção vitoriosa » do Deus criador toma a forma de uma palavra: « Faça-se luz! e houve luz» (Gn 1,3). Tendo por fundo uma surda ameaça, o poder de Deus manifesta-se como domínio suave da palavra, nascendo ela mesma de um domínio do sopro ou espírito divino. Na narrativa de Enuma Elish, os ventos desenfreados forneceram a Mardouk a arma decisiva para a sua vitória contra Tiamat, e especialmente «Imhullu, o vento mau, a tempestade, o turbilhão, o furacão, o quádruplo-vento, o séptuplo-vento, o vento sem igual». A presença em Gn 1,1 de «um vento de Elohim movimentando-se sobre a superfície das águas», escreve André Wénin, faz imaginar «uma força palpitante, estremecendo ao ser retida, suspensa, em espera», e isto antes que Deus convertesse esta aragem em palavra, modulando a sua expiração: «E Deus disse: ». «O início da acção criadora», prossegue Wénin, consiste em Deus «conter o seu próprio poder que, como qualquer vento forte, poderia ser uma força destruidora, violenta e aplicá-lo numa palavra» 5. O controlo suave da palavra prolonga-se na nomeação dos elementos: «chamou à luz, dia » (1,4) 6. O Deus bíblico

3 Este parentesco linguístico não implica que Génesis 1 tenha em Enuma Elish a sua matriz literária. A relação joga-se, sem dúvida, ao nível das analogias culturais e portanto de expectativas de leitura. A investigação mais profunda sobre a relação entre o têhõm bíblico e os seus análogos acádicos e ugaríticos é a de TSUMURA, D. T., The Earth and the Waters in Genesis 1 and 2. A Linguistic Investigation, JSOTSup 83, Sheffield, JSOT Press, 1989, principalmente pp. 45-83 (reeditada em Creation and Destruction: A Reappraisal of the Chaoskampf Theory in the Old Testament, Winona Lake, Eisenbrauns, 2005, ver pp. 36-75); embora contestando a tese de uma dependência directa de Génesis 1 face ao Enuma Elish, tese formulada por H. Gunkel em Schöpfung und Chaos in Urzeit und Endzeit (1895), Tsumura reconhece que têhõm e ti ãmat são linguisticamente aparentados; ver também CLIFFORD, R., Creation Accounts in the Ancient Near East and in the Bible, CBQMS 26, Washington, CBA, 1994, pp. 140-141 e 201. 4 Não há portanto que procurar em Génesis 1 uma afirmação da criação ex nihilo, afirmação que aparece contudo em 2 M 7,28, texto escrito no século II antes da nossa era, em resposta aos desafios da cultura helenista (e aos seus desenvolvimentos filosóficos sobre o começo ou o não-começo do mundo). O interlocutor cultural do Génesis 1 são as cosmogonias do Oriente antigo e a ponta final do texto recai sobre o «como» do acto criador. A presença de uma matéria «prima», anterior à intervenção divina, é particularmente perceptível quando a primeira palavra de Gn 1,1 é compreendida como um estado construído: «No início da criação por Deus do céu e da terra,

641


a terra era deserta e vazia [ ]» (ver Joüon Muraoka, §129p, 3); para um retomar recente do processo, ver HOLMSTEDT, R. D., «The Retrictive Syntax of Genesis, 1, 1, em VT 58 (2008) 56-57. 5 W ÉNIN , A., D Adam à Abraham ou errances de l humain. Lecture de Genèse 1,1-12,4, Paris, Cerf, 2007, p. 30; cf. igualmente LUSTER, R., «Wind and Water: Cosmogonic Symbolism in the Old Testament», em ZAW 93 (1981) 1-10, e TSUMURA, D. T., Creation and Destruction, pp. 74-75. 6 Sobre o tema do «domínio suave», ver BEAUCHAMP, P., «Création et fondation de la Loi en Gn 1,1 2,4a*. Le don de la nourriture végétale en Gn 1,29s», in Pages exégétiques, Lectio Divina 202, Paris, Cerf, 2005 (1986), pp. 105-144; ver também WÉNIN, A., Pás seulement de pain Violence et alliance dans la Bible, Lectio Divina 171, Paris, Cerf, 1998, pp. 31-34.

emerge, imediatamente, como logon ecbõn, e eis que o conjunto da narrativa da criação está colocado em perspectiva. No fim do gesto criador, o homem, a quem Deus se dirige na palavra (1,28), aparece como aquele que prolonga a nomeação divina (2,20). Recebeu de Deus, e só ele, um nismat hayyzm («sopro de vida» [2,7]) ponto de partida de um subtil jogo de palavras sobre a capacidade do homem dar nomes (semôt) ao vivos do seu biótopo: «O homem chamou pelo seu nome todo o gado, todos os pássaros do céu e todos os animais dos campos» (2,20). O poder criador não estava, por conseguinte, no furacão ou em alguma arma violenta, mas na discreção da linguagem articulada e na transcendência do homem em relação ao resto da criação (cf. 1,28) devem procurar-se, igualmente, no seu ser de palavra. A Bíblia abre-se desde então num surpreendente momento de reflexão. Se o capítulo inicial do Génesis conta uma «poética» divina a fabricação do mundo pela palavra mostra-se parte integrante desta poética: este capítulo é feito, ele próprio, de palavras, análogas àquelas com as quais o mundo é feito. Noutros termos, este capítulo é a narrativa manifesta da inteligibilidade profunda do mundo, articulado pela palavra de Deus e destinado a sê-lo pela do homem.

II. «O processo» da criação, entre inteligibilidade e teleologia (finalidade) Génesis 1 poderia ter como subtítulo, Processo e Realidade: o acto criador distribui-se em momentos sucessivos, na sequência de uma semana. Os Rabinos e os Padres comentaram à vontade a semana criadora, ou ainda o heptameron (sete dias), desenvolvendo múltiplas harmónicas. Nesta leitura, sublinharei como o «processo» da criação noutros termos a sua discursividade contribui para a inteligência do acto criador e para a manifestação da sua teleologia (finalidade). Longe de ser a explosão de um poder cego, a criação, manifesta o poema narrativo do Génesis 1, é uma acção que se articula progressivamente, numa sequência ordenada, onde 642


se formula um desígnio. A progressão é, especialmente, tal como mostrou Paul Beauchamp no seu estudo Criação e separação, a de separações sucessivas, expressas primeiro com a ajuda da raiz verbal bãdal ou hifil «E Deus separou a luz das trevas» (1,4; ver também 1,6,7.14.18) 7. A partir do terceiro dia, uma vez colocados os macroelementos do cosmos, o verbo da separação já não aparece mais (excepto em 1,14.18, a propósito «dos grandes luminares») substituído por outra expressão: «segundo a sua/suas espécies». Repetida dez vezes, esta fórmula refere-se primeiro às espécies vegetais (v. 11-12) e animais, seguidamente (v. 21.24-25). É a partir do informe e do indeterminado que Deus salva, desde a origem, instaurando progressivamente um mundo diferenciado. Na sua sequência, os dias da criação aumentam a sucessividade já ligada à palavra. Desde o primeiro dia, os actos divinos, por mais imediatos que sejam, manifestam-se de maneira discursiva. Em hebraico, a ordem divina, «faça-se luz», exprime-se na sucessão de duas palavras, e o relato do narrador, «Deus separou a luz das trevas», é enunciado num sintagma formado por seis palavras. A sucessividade é certamente uma lei da linguagem e especialmente do discurso narrativo, que só pode dizer as coisas uma após a outra. Num reflexo de «realismo» teológico, o relato do Génesis 1 tem o cuidado de atribuir esta sucessividade à própria liberdade divina. É a iniciativa divina que está no início de cada um dos dias e que assegura a sua sucessão (começam todos pela fórmula: «Deus disse: »). «Numa correspondência significativa», escreve Meir Sternberg, «o autor do discurso bíblico anda sobre as pisadas do Senhor da realidade bíblica, como se o narrador, na sua maneira de contar, devesse captar o sinal de Deus na sua maneira de fazer progredir a intriga» 8. Este «realismo» bíblico é, contudo, uma «feliz oportunidade» preceptiva e epistemológica para o leitor, porque aos nossos ouvidos e nos nossos espíritos humanos, é na sucessão que se torna perceptível a distinção. A raiz verbal que, em hebraico bíblico, exprime a inteligência das coisas bîn, «compreender», «discernir» encontra-se retransmitida na narrativa,

7 Cfr. a esse respeito o estudo de BEAUCHAMP, P., Création et séparation: étude exégétique du premier chapitre de la Genèse, Lectio Divina 201, Paris, Cerf, 2005 (1969). Na outra ponta do Antigo Testamento, o livro de Sirac faz eco ao narrador do Génesis: «Quando, no princípio, o Senhor criou as suas obras, ao fazê-las separou as suas partes» (Si 16, 26-27).

8

STERNBERG, M., La grande chronologie, Le livre et le rouleau 32, Bruxelas, Lessius, 2008, p. 8.

643


9 Articulando progressivamente o real nas suas distinções fundadoras, Deus põe diante do homem um mundo rico de determinações compreensíveis, como o serão as determinações éticas do Decálogo. «O mundo foi criado por dez palavras», tinha já observado a tradição judaica antiga (Pirqe Avot, 5,1), e a exegese moderna salientou-o por sua vez: o sintagma «E Deus disse» aparece repetido dez vezes no Génesis 1 (v. 3.6.9.11.14.20.24.26.28. 29) (ver BEAUCHAMP, P., Création et Séparation [supra citado n. 12], pp. 21.27-37).

644

sob a forma da preposição bên, «entre»: «Deus separou entre (bên) a luz e entre (bên) as trevas» (v. 4); «que [o firmamento] separe as águas entre (bên) as águas» (v. 6; ver também vv. 14.18). O meio discursivo e narrativo (e especialmente porque a narração obriga-se aqui a contar as coisas «por ordem») é pois o lugar de uma redundância «providencial»: leva à linguagem; uma após outra, as realidades que Deus distinguiu uma da outra, (luz/trevas; marés baixas/marés altas, «os animais selvagens segundo a sua espécie, os animais domésticos, segundo a sua espécie e todos os pequenos animais do solo, segundo a sua espécie» [v. 25]). Uma narrativa pode certamente prosseguir muitos fins e produzir muitos efeitos; aqui tem a forma de um método heurístico. Enquanto segue passo a passo as iniciativas divinas, o narrador tem o cuidado de acentuar o que tem de construído e finalizado o desígnio criador. O acto criador, na sua sequência, não é um processo aleatório ou um extravagante desperdício de energia. O gesto divino, expõe o narrador, estende-se entre o «início» (Gn 1,1) e a «conclusão» (ver o verbo «concluir» em 2,1), e numa série («Dia um», «Segundo dia», etc.) que aparece progressivamente na sua integralidade, a dos seis dias mais um. Enfim, descobrimos nós, no fim da narrativa, Deus termina o que tinha precisamente começado a criar, na origem «o céu e a terra» (2,1; cf. 1,1). Por outras palavras, o processo inscreve-se na inteligência de um projecto, que preside a cada um seus momentos 9. O domínio divino, em Génesis 1, paradoxalmente, tem a sua mais bonita demonstração nas pausas que assinalam a sequência criadora. Porque Deus junta às suas iniciativas criadoras um gesto de recuo e admiração: «E Deus viu que a luz era boa» (1,4; ver também 1,10.12.18.21.25.31). «Este recuo maravilhado», escreveu com perspicácia Wénin, «não é insignificante, longe disso. Indica com clareza que, no seu acto criador, Elohim não se contenta em estender o seu poder para ordenar, transformar, produzir, dar vida. Sabe também suspendê-lo, para olhar melhor: para fazer ser o que criou, considerando-o com um olhar que lhe abre espaço, que lhe vai


permitir existir. Ele vem, de novo, ponderar o domínio desencadeado de outro modo» 10. Em cada uma destas pausas, Deus revela que não é em nada escravo do seu próprio poder; este último é, pelo contrário, até ao fim, a expressão da sua liberdade, tal como o encontramos ao sétimo dia, quando Deus «pára» (wayyisbõt, da raiz sãbat) e consagra um dia inteiro a esta paragem (2,2). Longe de ocupar os sete dias da série «a esgotar» o seu poder criador (e a encher, correlativamente, o conjunto do mundo) o Deus bíblico é aquele que põe um limite ao gesto criador, «dominando o seu domínio», para falar como o grego Salomão: «Mas tu, tu dominas a tua força e julgas com doçura» (Sab. 12,18). Nesta paragem, Deus exibe a sua recusa de tudo encher e, correlativamente, a sua vontade de abrir um lugar de autonomia ao universo, em especial à humanidade. O recuo que escandiu cada um dos dias, culmina no descanso do sétimo dia: o processo da criação não tem nada de uma demonstração «de força bruta»; procede, na perfeição de um desígnio, reflectido em cada um dos seus momentos e senhor de si, até ao seu termo. Por último, este processo, pela sua organização em patamares, revela a teleologia subjacente: os elementos progressivamente colocados desenham uma curva, a que vai do «bom» do v. 4 ao «muito bom» do v. 31. O eixo da palavra é o que melhor revela esta curvatura do espaço criado. Se Deus fala desde a criação da luz, e se fala de todos os elementos que cria «que haja luz Que as águas acalmem Que haja luminares » não fala (na segunda pessoa) senão aos seres vivos, a partir, por conseguinte, do quinto dia: «Frutificai, abundai, enchei as águas nos mares » (v. 22). As criaturas, até então, não eram interpeladas estavam quando muito no lugar de terceira pessoa; a partir desse ponto, Deus fala a seres vivos, susceptíveis de o entender. Mas é ao sexto dia, aquando da criação do homem, que a pessoa gramatical em falta a primeira pessoa faz a sua aparição, no caso concreto da personagem divina. Primeiro, no plural «façamos Adão » (v. 26) no singular, seguidamente «Eis que vos dou todas as plantas para alimento» (v. 29). Além disso, é com o aparecimento

10 WÉNIN , A., D Adam , [supra citado n. 7], p. 35.

645


11

BEAUCHAMP, P., «Au commencement», [supra citado n. 14], p. 24; BALMARY, M., La divine origine, [supra citado n. 18], p. 59.

do casal humano que a palavra divina se dirige a um interlocutor explícito: «Deus diz-lhes» (v. 28) 11. Deus dirige-se e na primeira pessoa ao ser que será também ele ser de linguagem, o «ser à imagem», dedicado ao controlo suave da palavra. A sequência, portanto, de uma ponta a outra, estava ordenada ao seu fim e a forma narrativa, especialmente na sua maneira de representar as variações na palavra divina, foi o veículo eficaz desta teleologia.

III. A bondade da intenção de Deus passa pela diversidade das espécies Génesis 1 poderia igualmente ter como subtítulo Da origem das espécies, de tal modo o projecto de Deus está ligado com a diversidade das espécies. Certamente, não se trata aqui do processo de evolução das espécies. Se Génesis 1 evoca um processo, é necessário procurá-lo na sequência dos dias (respectivamente, o terceiro, quinto e sexto dias) no decurso dos quais Deus faz surgir as espécies vegetais, as espécies animais das águas e dos ares e as da terra firme. Os diferentes biótopos são respeitados (água, firmamento, terra) mas a intervenção divina não se refere às «classes» de animais: vai direita às espécies particulares os vegetais e os animais aparecem todos, «segundo a sua espécie» (v. 11-12, 21.24-25). E estas espécies aparecem «tais quais», ou seja, no estado em que são encontradas, desde o v. 28, pelo olhar do homem. A flora e a fauna que são consagradas por Deus na sua bondade, são as que acompanham a família humana no seu destino. Neste sentido, a afinidade «científica» do Génesis 1 encontra-se do lado dos botânicos e zoólogos, atentos à salvaguarda das espécies presentes preocupados por conseguinte pela sua história futura e não do lado dos paleontólogos, interessados pela sua história passada. Se cada uma das espécies é trazida à existência por uma intervenção imediata de Deus, são também criadas na sua autonomia. As espécies vegetais surgem equipadas com o seu próprio princípio de reprodução: «Que a terra se cubra de ver646


dura, de erva que torna fértil a sua semente, segundo a sua espécie, de árvores de fruto que, segundo a sua espécie, produzam sobre a terra frutos, tendo eles próprios a sua semente» (v. 11). Quanto aos representantes das espécies animais, é-lhes dito: «sede fecundos e multiplicai-vos» (v. 22; cf. 1.28 e 5.3 no caso do homem). Se a heteronomia está presente em cada momento do poema narrativo de Génesis 1 as criaturas tendo o seu segredo neste Outro que os faz surgir , a autonomia das espécies na sua duração, é igualmente manifesta: Deus cria os seres vivos confiando-os à sua autonomia reprodutiva, ao que os tornará os «mesmos» de idade em idade. É contudo num outro texto do Pentateuco, o capítulo 11 do Levítico, que se torna plenamente evidente o desafio «do discurso sobre as espécies» de Génesis 1 (os dois textos são estreitamente aparentados, emanando os dois da redacção sacerdotal). «O tratado» sobre os animais puros e impuros que se lê no Levítico 11 representa, com efeito, a execução sofisticada dos dados e das distinções introduzidas no Génesis 1. Uma nova luz foi projectada sobre o Levítico 11 com os trabalhos de Mary Douglas, antropóloga inglesa que publicou em 1966, Purity and Danger (Pureza e Perigo) 12. Em 1962, Claude Lévi-Strauss, no Pensamento selvagem, tinha contestado a apresentação da mentalidade primitiva como «pré-lógica», e tinha demonstrado através da análise de diferentes mitos e da sua estrutura que o pensamento dito «selvagem» com efeito era guiado por uma lógica rigorosa, classificadora. Em Pureza e Perigo, Douglas mostra que o Levítico 11 ilustra ao mais alto ponto esta lógica tendo ao mesmo tempo o seu ponto de partida num dado de facto. O sistema do puro e impuro no Levítico 11, explica Douglas, ratifica provavelmente uma situação de facto: os Israelitas eram consumidores de vaca, de carneiro e de cabra, ou seja de animais ongulados, com cascos fendidos, todos ruminantes. Além disso, tinham, muito provavelmente, uma aversão em relação ao porco 13. O porco tem cascos fendidos, mas não rumina. A partir de este duplo dado, a lógica classificadora pôs-se a caminho. Uma primeira classe desenha-se: são puros os animais terrestres que possuem as

12 DOUGLAS, M., Purity and Danger: An Analysis of tbe Concepts of Pollution and Taboo, Londres, Routledge, 1966; traduzido em francês sob o título De la souillure: études sur la notion de pollution et de tabou, Paris, La Découverte, 1992; ver do mesmo autor L anthropologue et la Bible. Lecture du Lévitique, Paris, Bayard, 2004.

13

O porco, que chega a comer os cadáveres de animais, tinha má reputação no Próximo Oriente antigo e estava, além disso, ligado a cultos idolátricos (ver Is 66,3); cf. os textos acádicos e hititas neste sentido, reunidos por MILGROM, J., Leviticus 1-16, AB 3, Nova Iorque, Doubleday, 1991, pp. 650-652.

647


14

O coelho e a lebre eram considerados ruminantes (cf., Lv 11,5.6; Dt 14,7) devido ao movimento particular dos seus maxilares.

duas características que acabam de ser evocadas cascos rachados e ruminantes. Isto permite eliminar o camelo, bem como o coelho (cf., Sl 104,18) e a lebre: embora «ruminantes», não têm cascos fendidos 14. Estes animais têm um, e não os dois traços característicos da classe «animais terrestres puros».

Vaca, carneiro, cabra

Porco

Camelo, coelho, lebre

Casco fendido

1

1

0

Ruminante

1

0

1

Mas a lógica classificadora do Levítico 11, necessariamente sistemática, vai mais longe: deve abranger todas as classes do universo, cuja articulação é enunciada no Génesis 1, que distingue as águas, o firmamento e a terra. Retomando este esquema, o Levítico 11 designa os animais próprios a cada elemento. Nas águas, são os peixes com escamas, que avançam com a ajuda das suas barbatanas; no firmamento, são os voláteis/alados com duas patas; sobre a terra, são os animais com quatro patas que saltam ou que andam. Qualquer grupo de criaturas que não está preparado para o modo de locomoção que lhe é atribuído no seu elemento, é declarado impuro (e o indivíduo que entre em contacto com o cadáver de algum destes animais é impuro; já não está autorizado a entrar no santuário). Os últimos animais impuros passados em revista (Lv 11,41-44) são os que se arrastam, rastejam ou movem sobre a terra. Estes diversos modos de propulsão são, com efeito, de forma indefinida, que não entra em nenhuma das classes já descritas e desafiando assim a classificação básica. De todas as criaturas animais monstros marinhos incluídos Deus declarou a bondade, consagrando a sua distinção por espécies (Gn 1,21.25). Porque é que introduz distinções 648


suplementares em Levítico 11, entre animais puros e impuros? As diferenças introduzidas no Levítico 11 valem unicamente para o povo que foi «distinguido»; são de ordem prática, tendo em vista o regime alimentar dos Israelitas e a sua prática sacrifical (bem como a questão do contacto com cadáveres de animais); referem-se a um povo chamado a entrar na santidade de Deus (e por conseguinte na sua «diferença») entrando num mundo mais rico em diferenças. O texto de Lv 20,24-26 resume esta vocação singular: Sou eu, YAVÉ, o vosso Deus, que vos distinguiu do meio dos povos. Assim, fazei distinção entre animais puros e impuros, e entre pássaros impuros e puros, a fim de não vos tornardes impuros com esses animais, esses pássaros e tudo o que rasteja sobre o solo aqueles que distingui, por serem impuros. Sede como Eu, santos, porque Eu sou santo, YAVÉ; e separei-vos do meio dos povos para que sejais meus.

No discernimento acrescido que cabe a Israel, joga-se a ligação ao Deus santo, mas igualmente ao Deus vivo, porque a lógica classificadora do Levítico 11 chama à luz, entre os animais dos três biótopos, os representantes mais «transparentes» (na sua maneira de se deslocar) a finalidade dinâmica que os habita enquanto seres vivos. Associada às outras distinções introduzidas pelo Levítico, a distinção dos animais puros e impuros é daquelas que põem os filhos de Israel do lado de uma circulação e de um não-desperdício da vida, num respeito mais atento, com o próximo e consigo mesmo, do dom principal de Deus que é esta vida. Uma vez mais, a visão bíblica, longe de confirmar uma religiosidade irracional, revela-se ligada a uma articulação sábia do mundo, respeitadora das diferenças internas do real e da finalidade que elas indicam.

IV. Adão, o homem de ciência O conjunto Génesis 1-2 poderia, por último, ter o subtítulo dado por K. Popper à sua última obra, Qualquer vida é resolução de problemas (1994): Questões em redor do conheci649


mento da natureza. Dando nomes aos animais (Gn 2,20), Adão prolonga a obra criadora da separação das espécies. Fazendo isto, exerce, à imagem de Deus, o «domínio suave» do mundo que lhe é confiado (1,28). Uma passagem por um texto do Livro dos Reis manifesta, além disso, que Adão exerce aqui uma função real e, por assim dizer, «científica». Em 1 R 5,10-13, o elogio da sabedoria do rei Salomão termina com os versículos que se seguem: A sabedoria de Salomão ultrapassou a sabedoria de todos os filhos do Oriente e toda a sabedoria do Egipto [ ]. proferiu três mil provérbios e os seus cantos são em número de mil e cinco. Falou das árvores: tanto do cedro do Líbano como do hissopo que brota sobre o muro; falou dos quadrúpedes, dos pássaros, dos répteis e dos peixes». No Estado-jardim que são Juda e Israel (cf. 1 R 5,5) Salomão, cheio da sabedoria que recebeu, prolonga o gesto de Adão que «designou pelo seu nome todo o gado, todos os pássaros do céu e todos os animais dos campos» (Gn 2,20) e põe assim o governo do mundo em acção, pela linguagem.

No seguimento de Johann Gottfried von Herder e de Martin Heidegger, não faltaram interpretações que viram na nomeação dos animais por Adão o nascimento do homem para a sua vocação poética, a de «habitar poeticamente a terra» (Friedrich Hölderlin). Na verdade, o fundo cultural da dupla cena (em Génesis 2 e em 1 Reis 5) incita a ver Adão e Salomão reconhecidos como «homens de ciência» tanto quanto poetas. A «sabedoria» enciclopédica de Salomão no retrato de 1 R 5,12-13 aparenta-se, com efeito, ao saber classificador e à «ciência das listas» dos habitantes da Mesopotâmia, com os quais estão relacionados igualmente os «inventários» do livro dos Provérbios (de Salomão) e os códigos de leis bíblicos. Desta «ciência das listas», elaborada entre o Tigre e o Eufrates, René Labat escreve: «Embora nunca tenha tido como objectivo a universalidade, constata-se, na prática, que esta ciência se estendeu a todas as categorias do conhecimento: ciências da natureza, nas listas de minerais, de plantas e de animais; ciência das técnicas, nas listas de utensílios, de vestuários, de construções, de alimentos e de bebidas; ciência do universo, 650


nas listas dos deuses, de estrelas, de países ou de regiões, de rios e de montanhas; ciências do homem, por último, nas listas das particularidades físicas, as partes do corpo, profissões e classes sociais» 15. Esta classificação dos fenómenos do real organiza-se especialmente a partir dos seus nomes; a Bíblia, faz assim eco à actividade criadora do Deus que cria as coisas nomeando-as. «O recinto dos conhecimentos de Salomão (zoológico e botânico) é um outro jardim de Adão» 16, escreve Beauchamp: é o que Adão e Salomão ambos testemunham, o primeiro nas origens e o segundo na «modernidade» da história, a vocação do homem a «habitar cientificamente» a terra que Deus lhe confiou. Na sua nomenclatura, Labat menciona a elaboração de «listas de deuses». Aí está uma tarefa que já não compete ao homem bíblico, cujo Deus único se revela irredutível aos fenómenos do mundo. É necessário, com efeito, observar quanto o monoteísmo bíblico transformou a relação do «saber» do homem, ao mundo que o cerca: em terra bíblica, a «ciência das listas» toma um novo aspecto. Os politeísmos do Próximo Oriente antigo (egípcio, mesopotâmico e cananaico) tinham todos um forte colorido cósmico. No panteão mesopotâmio (para se ficar por este último) certos deuses (Dumuzi, Ishtar/ Inanna) tinham conservado a imanência forte das suas origens, que os tornava inseparáveis de processos naturais; do seu lado, os deuses importantes (An, Enlil, Enki/Éa) estavam estreitamente associados a domínios cósmicos (respectivamente o céu, a chuva e as constelações, o ar e o vento, as águas doces). Aí está o que já não é «pensável» em contexto bíblico: se Deus penetra com seu olhar e a sua preocupação o mundo que criou até aos seus mais inacessíveis recônditos (ver Job 38-39), está no entanto, «separado» dele, na sua absoluta transcendência (ver Is. 40,25; 46,5; 66,1-2). As sociedades religiosas do Próximo Oriente antigo caracterizavam-se, além disso, por um fundo obscurantista onde reinavam demónios e forças maléficas. O pensamento bíblico e especialmente sacerdotal, reorientou consideravelmente este dado, atribuindo a noção de impureza a uma força dinâmica e

15

LABAT, R., «La Mésopotamie», em TATON, R., (Ed.), Histoire générale des sciences. Tome 1 La science antiqúe et médiévale. Dês origines à 1450, Paris, PUF, 1994 (1957), pp. 86-87. A propósito desta «ciências das listas», BOTTÉRO, J., Mésopotamie. L écriture, la raison et les dieux, Paris, Gallimard, 1987, pp. 165-169 e 206-217. Ver também o dossier e a discussão de TRUBLET, J., «La science dans la Bible. Méthode et résultats», em MIES, F., (Ed.), Bible et sciences. Déchiffrer l univers, Le livre et le rouleau 15, Bruxelles, Lessius, 2002, pp. 11-58, ou ainda, na mesma obra, VERMEYLEN, J., «Les représentations du cosmos dans la Bible hébraïque», pp. 59-102, principalmente p. 65. 16 BEAUCHAMP, P., L un et l autre Testament. Essai de lecture, Paris, Seuil, 1976.

651


17

Ver MILGROM, J., Leviticus, [supra citado n. 21], p. 47 e 711-713.

18

Ver VERMEYLEN, J., «Les représentations du cosmos dans la Bible hébraïque», em MIES, F., (éd.), Bible et sciences, [supra citado n. 28], pp. 59-102, principalmente pp. 66-70.

19

Se a «ciência das listas» mesopotamia encontra ecos do lado bíblico, é pois num universo cuja inteligibilidade foi completamente refeita pelo monoteísmo de Israel. Um sinal desta refundição lê-se no inventário do Código da Aliança, o mais antigo código de lei em contexto bíblico (Êxodo 21-23). Este código, assim como o apresentou o assiriólogo Jacob Finkelstein introduziu uma distinção inédita e fundamental, na sua maneira de organizar pessoas, onde se reflecte a hierarquia do real expressa em Génesis 1; ver FINKELSTEIN, J. J., The Ox That Gored, Transactions of the American Philosophical Society 71:2, Philadelphie, American Philosophical Society, 1981; ver também o meu estudo, «La Bible et l Europe: une patrie herméneutique», em NRT.

652

não mais demoníaca e reduzindo fortemente a sua zona de influência 17. Libertada das imanências divinas e demoníacas, a terra do homem bíblico é-lhe entregue inteiramente «os céus são os céus de YAVÉ, mas a terra, deu-a aos filhos de Adão» (Sl. 115,16; cf. Qo 5,1); ela é-lhe confiada em toda a sua extensão, céu, mar e terra, como canta o Sl. 8 (v. 8-9) 18, com o dever de investigação que daí se segue: «a glória dos reis é perscrutar as coisas» (Prov 25,2) 19. Esta tarefa real do homem bíblico recebe a sua forma mais «moderna», quase secularizada, na busca de Salomão como o põe em cena o livro de Qohélet: «Foi minha intenção procurar e explorar tudo o que se faz sob o céu» (Qo 1,13). Certamente, há grande distância entre esta busca e as ciências da modernidade crítica; para ficarem operacionais, estas exigirão que sejam ultrapassados outros limiares de racionalidade (começando pelo da conceptualidade grega). Não obstante, a ideia bíblica da entrega da realidade criada ao poder e ao saber do homem, representou uma das condições de «emancipação» do saber científico. Génesis 1, por conseguinte, à sua maneira, é um manifesto da inteligibilidade do mundo, um mundo confiado ao poder e ao saber do homem. Na sua própria estrutura na sua discursividade luminosa, ilustra o «controlo» do mundo pela linguagem, que cabe a Adão. Sublinhemos, por último, que este capítulo e os que lhe seguem, no Génesis, não sancionam minimamente uma forma de concorrência entre a ciência divina e a do homem. O acesso do homem ao saber da linguagem não é uma prerrogativa roubada à divindade, como um fogo prometaico (e isto apesar das falsas promessas da serpente em Gn 3,1-5). A vocação «científica» do homem enuncia-se, pelo contrário, em momentos de imediatês de Deus ao homem, quer se trate do discurso directo de Deus a Adão em Génesis 1, da proximidade de YAVÉ ao homem no jardim, em Génesis 2, ou da experiência mística em 1 Reis 3, onde Salomão pede a Deus a sabedoria (que tomará nomeadamente a forma do seu governo do mundo, pela palavra). Este saber não está certamente ao abrigo de derivas, mas procede, antes de mais, do «ser à imagem», bem como da tarefa real confiada


por Deus a Adão. O Salmo 8 põe as coisas na justa perspectiva quando celebra o senhorio de Deus celebrando também o do homem: «Quase fizeste dele um Deus: tu o coroaste de glória e de brilho; fizeste-o reinar sobre as obras das tuas mãos; tudo colocaste sob os seus pés» (v. 6-7). *** Os primeiros capítulos do Génesis dizem, indiscutivelmente, bem mais que o que foi apresentado nestas páginas; demonstram em todo caso uma fé surpreendente nas capacidades racionais do homem. Fazer referência a estes textos não é mostrar obscurantismo; é antes comprometer-se a defender e ilustrar a responsabilidade científica do homem no mundo que lhe é confiado. A «luz» que emerge em Gn 1,3 tem a sua origem em Deus; ela ilumina também o mundo a partir das capacidades e as responsabilidades intelectuais do homem. Nos debates actuais, as racionalidades científicas mais aguçadas têm tudo a ganhar cumprimentando o seu remoto antepassado.

Sumário Para os defensores do evolucionismo, referir-se hoje ao ensinamento do Génesis é regressar a uma forma de obscurantismo, incompatível com a racionalidade da idade moderna. Estas páginas mostram o contrário: os capítulos inaugurais do Génesis são um manifesto da inteligibilidade do mundo, nascido da palavra divina e votado à do homem, nomeadamente na sua vocação científica. Uma racionalidade luminosa atravessa estes textos, capazes de falar a qualquer homem de razão e especialmente ao homem de ciência contemporâneo.

653



Tolerância ou apatia?

O problema da diferença nas democracias liberais contemporâneas

José Tomaz Castello Branco *

A afirmação da diferença como pressuposto teórico da ideia

de tolerância poderá parecer demasiado comum. No entanto, o sentido comum em que a tolerância é habitualmente concebida parece não ser esse. No seu sentido mais comum, a tolerância parece apontar muito mais frequentemente para a sua identificação com a indiferença: tendemos a ser mais facilmente tolerantes quanto menor for a intensidade da reacção que sentimos perante a diferença que reconhecemos no outro. Neste sentido, subvertemos o sentido da tolerância na medida em que a equacionamos com a indiferença e não com a diferença. Mas, note-se, também aqui tendemos a usar a indiferença num sentido erróneo: aquilo que pretendemos significar quando usamos vulgarmente a expressão indiferença não é, na verdade, indiferença, mas apatia. A indiferença traduz a anulação ou inexistência de diferenças. Estritamente falando, significa a não existência de diferenças ou, pelo menos, a desvalorização das diferenças. Porém, os conceitos de diferença ou de indiferença não são meros sentimentos. Eles são o produto de avaliações racionais: empregamos a expressão diferença quando constatamos que duas coisas são efectivamente diferentes; empregamos a expressão indiferença quando julgamos que duas coisas não são, pelo menos, suficientemente diferentes. E, é sobre esta avaliação que se poderá seguir uma outra: perante a diferença poderemos sentir simpatia, no sentido * Professor Auxiliar Convidado. Instituto de Estudos Políticos. Universidade Católica Portuguesa.

Brotéria 169 (2009) 655-667

655


mais vulgar do termo, se essa mesma diferença nos for agradável; noutro sentido, poderemos sentir simpatia se conseguirmos sentir ou, pelo menos, se nos conseguirmos aproximar daquilo que o outro, o diferente, sente se conseguirmos partilhar, ou melhor, comungar do seu sentimento e, assim, compreender as raízes da diferença. Mas a diferença poderá também parecer-nos incómoda e intransponível, o que estará na base de um sentimento de antipatia. Por último, quando, embora reconhecendo a diferença, ela não nos provoca nem antipatia nem simpatia, isto é, quando não nos provoca nem um sentimento de proximidade ou de comunhão, nem de defesa ou de repulsa, estaremos perante um sentimento de apatia. Assim, a apatia consistirá na ausência de sentimento reactivo face à diferença. Mas, note-se bem, a apatia espelha a ausência de simpatia ou de apatia perante uma diferença que, sendo reconhecida, não é sentida não a ausência de diferença. Por seu turno, a ausência de diferença não traduz apatia, mas, simplesmente, indiferença. Aquilo que a indiferença e a apatia têm em comum será o seu reflexo para a problematização da tolerância. Ambas são irrelevantes no âmbito da tolerância. A tolerância resulta da necessidade de dar resposta a uma situação de confronto de diferenças relevantes. Neste sentido, o confronto, e a necessidade de o ultrapassar, dependerão do grau de relevância da diferença efectivamente existente entre as posições em confronto, ou do grau de relevância com que as diferenças são sentidas pelas partes em confronto. Sempre que esse mesmo grau seja irrelevante, poderemos estar perante situações de indiferença ou de apatia. Em ambos os casos, estaremos perante situações que, na verdade, se colocam à margem da questão política da tolerância. Porém, se esta configuração estiver correcta, então a solução neutralista, para que apontam as mais recentes formulações da filosofia política liberal, pura e simplesmente, não colhe. Essa solução, longe de procurar encarar e resolver o problema da tolerância, acaba por escondê-lo, por camuflá-lo. 656


De alguma forma, o que este liberalismo mais contemporâneo procura fazer é reduzir a intensidade das posições particulares de cada um, esbatendo-as num quadro homogéneo e unificador porque decorrente de um alegado consenso de sobreposição. O que este novo liberalismo faz, afinal, é procurar uma solução não-política para um problema político. Revelando-se incapaz de encontrar uma solução política para um problema político, o que o novo liberalismo procura é des-politizar a tolerância.

1. Carey e Murray: o pensamento Cristão e a dignidade da pessoa humana Uma das vozes que mais recentemente nos alertou para o perigo desta confusão entre a ideia de tolerância e a de apatia foi a de George Carey. Vale a pena recuperar o alerta: É simplista pensar-se que a tolerância é alcançável por uma mera indiferença de encolher de ombros para com as pessoas que acreditam e agem diferentemente de nós. Essa atitude não é tolerância, é apatia 1.

Reportando-se ao momento fundador da preocupação liberal com a questão da tolerância, normalmente identificado com o período da Reforma e com toda a problemática da tolerância religiosa dela emergente, o ex-Arcebispo de Cantuária insiste que, na sua génese, a questão da tolerância nada tinha que ver com a mera apatia.

1 CAREY, George, «Tolerating Religion» in MENDUS, Susan (Ed.), The Politics of Toleration, Edinburgh, Edinburgh University Press, 1999, pp. 45-63, sobretudo p. 52.

Pessoas sem quaisquer convicções não estarão a ser tolerantes se permitirem que os outros sigam o seu próprio caminho ou se contemporizarem com as opiniões de outros. Eles serão simplesmente indiferentes . A própria palavra apático expressa este ponto. Ela refere-se a alguém que não sente a dor , e para a nossa sociedade isto precisa de ser enfatizado. Indiferença não é tolerância. Pessoas dominadas pela letargia da indiferença mental ou moral por vezes orgulham-se da sua tolerância. Mas elas não são tolerantes. A indiferença nunca é uma virtude. O indiferente não exerce qualquer auto-limitação. Eles não precisam de cultivar a humildade quando

657


2

Ibidem, pp. 46-47.

3

Ibidem, p. 53.

4

Ibidem, p. 54.

5

Ibidem, pp. 55-56.

6

V. MURRAY, John Courtney, We Hold These Truths: Catholic Reflections on the American Proposition, London, Sheed and Ward, 1960.

7

CAREY, George, «Tolerating Religion», op. cit., pp. 56-57.

658

se confrontam com uma colisão de valores. ( ) Não há qualquer luta moral. ( ) a verdadeira tolerância implica convicções e valores profundamente enraizados 2.

A tolerância, para Carey, não é confundível com apatia. O que significa que, para este prelado, no campo da liberdade religiosa, aquilo que é visto por muitos como desejável, nomeadamente, a indiferença perante as convicções religiosas de cada um, na verdade não o é. Pelo menos não será sinónimo de tolerância. A tolerância, recorde-se, envolve «entrar na estranheza dos outros e sentir a sua dor» 3. «Estranheza» essa que podemos reconverter em «enriquecimentos potenciais para as nossas vidas e sociedades» caso reconheçamos que ela «não significa necessariamente o mau mas que pode ser uma expressão diferente do bem » 4. Neste sentido, a tolerância encontra-se intimamente ligada com a liberdade: «Tolerar o outro significa dar-lhe a liberdade de seguir a sua própria consciência e exercer a sua liberdade qualquer que seja a maneira que lhe pareça bem dentro dos limites da lei 5». Como o próprio reconhece, esta ideia brota directamente da reflexão do grande pensador Jesuíta John Courtney Murray acerca da liberdade religiosa 6. Nomeadamente, sobre a clássica distinção entre «bem comum» e «ordem pública», mas, sobretudo, sobre a distinção entre liberdade de consciência, traduzível na imunidade face à coerção externa, e liberdade de prática religiosa, que faz depender a consideração de uma sociedade como livre da condição de que todas as fés devem merecer igual protecção da lei e gozar de igualdade de expressão entendimento que, afinal, estaria na base da declaração Dignitatis Humanae, aprovada pelo Concílio Vaticano II (1965). É nestes termos que se entende a liberdade como fruto da tolerância, porque essencial à dignidade da vida humana. Carey, por seu turno, sustenta que «a pessoa religiosa verdadeiramente tolerante é levada a abraçar, não com renitência mas com felicidade, a perspectiva de que aqueles que diferem dele têm todo o direito a rezar como entenderem» 7. Porém, no


plano da «ordem pública», não poderemos deixar de reconhecer «o medo que a nossa estranheza nos pode causar uns aos outros»; medo esse que será justificado, e intolerável, caso a «paz pública» (ou a moralidade ou a justiça públicas) seja ameaçada esta é, aliás, uma posição derivada directamente da reflexão Lockeana sobre a tolerância, tornada hoje moeda corrente no pensamento liberal contemporâneo. No entanto, Carey, seguindo Murray, não justifica a sua posição no «humanismo liberal», mas antes na «natureza de Deus» o que também poderá ser entendido como uma peculiar forma de pluralismo religioso, capaz de combinar o cepticismo da observação empírica com a crença religiosa. Isto é, citando Jonathan Sacks, «na crença de que Deus nos deu muitos universos de fé, mas apenas um mundo no qual vivemos juntos» 8.

2. A liberdade religiosa na génese do liberalismo: de Morus a Locke O liberalismo, que pode ser tomado como filosofia política informadora das democracias ocidentais contemporâneas, desde cedo tomou a tolerância como valor primeiro. As Cartas de John Locke ou o Tratado de Voltaire sobre a tolerância são disso bons exemplos. Em bom rigor, no plano histórico, o liberalismo que nasce no quadro das revoluções liberais sobretudo da Revolução Gloriosa, de 1688 tem na questão da liberdade religiosa, herdada da Reforma, uma clara pedra angular. Poderemos então concluir que, em larga medida, o liberalismo nasce da tentativa de construir um regime político capaz de responder à conflitualidade religiosa crescente que ameaçava a paz de todo um continente que antes se reconhecera, e identificara, com o projecto da respublica christiana. Na génese deste processo, porém, não deveremos esquecer a contribuição seminal de São Tomás Morus que, no quadro da sua Utopia, antecipava já, em mais de um século e meio, os pontos fundamentais que Locke estabeleceria nas Cartas Nomeadamente a ideia da liberdade religiosa fundada

8

SACKS, Jonathan, The Persistence of Faith, London, Weidenfeld and Nicolson, 1991. Para uma boa discussão sobre as respostas que o liberalismo pode oferecer à questão do pluralismo religioso, V. SWAINE, Lucas, The Liberal Conscience: Politics and Principle in a World of Religious Pluralism, New York, Columbia University Press, 2006.

659


9

FLECHER, George P., «The Instability of Tolerance» in HEYD, David, Toleration, an Elusive Virtue, Princeton, N.J., Princeton University Press, 1996, 1998, pp. 158-172, sobretudo p. 161. 10

A propósito, refere Locke: «Se alguma pessoa sustentar que os homens deveriam ser forçados, pelo fogo e pela espada, a professarem certas doutrinas, e a conformarem-se com esta ou aquela forma de devoção, sem qualquer consideração pela sua moral; se alguma pessoa desejar convertê-los à Fé aqueles que vivem no erro, forçando-os a professar coisas em que não acreditam ( ); não se poderá realmente duvidar que uma tal pessoa está desejosa de juntar uma assembleia numerosa unida na sua própria profissão; mas que pretenda, principalmente, que esses homens componham uma verdadeira Igreja cristã, isso é completamente inacreditável». (LOCKE, John, A Letter Concerning Toleration, London, 1689, TULLY, James H. (Ed.), Indianapolis, Indiana, Hackett Publishing Company, 1983, p. 25). 11

Ibidem, p. 27. Como Monique Deveaux bem repara: «Locke sustenta aqui que a religião pertence à «persuasão interior da mente», enquanto o poder do magistrado é meramente uma «força exterior». A sugestão de Locke de que a lei simplesmente não pode forçar as crenças ( ) é uma opinião ecoada por Voltaire no século seguinte». (Deveaux, Cultural Pluralism and Dillemmas of Justice, Ithaca and London, Cornell University Press, 2000, p. 44).

660

na necessidade da preservação da paz civil e da inutilidade da conversão forçada. Julgamos mesmo que, os pontos fundamentais da teoria Lockeana sobre a tolerância são, de facto, antecipados por Morus. Não obstante, a reflexão de Morus surge como extemporânea relativamente às origens do pensamento liberal e, ainda hoje, a presença de Morus no debate contemporâneo entre liberais sobre a tolerância é, em nosso entender, injustificadamente desvalorizada. Uma justificação para este fenómeno estranho, ironicamente, poderá ser a dificuldade de integrar o catolicismo de Morus na linhagem Whig, que domina a historiografia do pensamento liberal. A ironia será tanto maior quanto a questão liberdade religiosa aparece, sistematicamente, como fundamento do próprio liberalismo que é, ele próprio, filho da Reforma. A tolerância religiosa, tal como fora proposta por Locke, justificava-se pela inutilidade das conversões forçadas o que se traduzia, politicamente, na inadmissibilidade da coerção, por parte do Estado, sobre todos aqueles que professassem uma religião tida como «falsa». Ora esta era uma visão cuja justificação seria eminentemente religiosa, mais do que política. O que estava em causa era, nada mais nada menos que, a salvação. E esta dependia de um acto de conversão individual. Mas, por mais importante que esta fosse, e numa sociedade como a Inglaterra seiscentista «nenhum outro valor sequer se aproximava do da vida eterna com Deus» 9, a salvação nunca poderia resultar da coerção ela dependia da conversão e esta só faria sentido se fosse genuína, autêntica, livre 10. Nestes termos, a intervenção do poder estatal deveria ser evitada, não apenas por ser inútil, mas por ser verdadeiramente «contraproducente». Nas palavras do próprio Locke: E, com base nestes fundamentos, eu afirmo que o poder do magistrado não se estende a quaisquer artigos de fé, ou formas de oração, pela força das suas leis. Pois as leis não têm qualquer força sem sanções e, neste caso, as sanções são absolutamente impertinentes, porque não são adequadas ao convencimento da mente. ( ) Só a luz e a evidência podem operar uma mudança nas opiniões dos homens 11.


Todavia, repita-se, nada seria mais importante nas vidas das pessoas que a perspectiva da salvação das suas próprias almas. Mas, ainda assim, o poder político, o Estado, nada podia fazer nesse domínio. Esse era um domínio que lhe estava vedado. Ora, esta é a auto-limitação que caracteriza a tolerância. Uma auto-limitação que, aos olhos, ou nos corações, dos crentes, contemporâneos de Locke, comportaria, seguramente um «sofrimento» terrível: o de assistirmos, sem podermos fazer nada contra, à condenação (por oposição a salvação) daqueles que, embora mais ou menos próximos, mais ou menos queridos, nos são semelhantes, nossos irmãos em Deus. Por outro lado, no quadro da teoria lockeana, da impossibilidade de definir um único caminho para a salvação, resulta a necessidade de tolerarmos todos aqueles que, embora diferentes dos nossos, se reclamam como caminhos genuínos. Esta é uma tolerância que não esconde o cepticismo relativamente à verdade nem o individualismo que deve orientar a sua busca: Se algum homem se afastar do caminho correcto, a infelicidade será só sua, e não um prejuízo para ti; nem por isso poderás tu puni-lo nas coisas desta vida porque supões que ele será um miserável na vida que há-de vir 12.

12 L OCKE , John, op. cit., p. 31.

A única limitação que podemos encontrar à liberdade de consciência decorre, no quadro da teoria lockeana, do prejuízo para os «interesses civis» das pessoas note-se aqui, aliás, a proximidade com o princípio do dano, de Stuart Mill. No fundo, se o Estado (Commonwealth) é entendido como «uma sociedade de homens constituída apenas para a procura, a preservação e o avanço dos seus interesses civis» e Locke, recorde-se, chama «interesses civis à vida, liberdade, saúde e indolência do corpo; e à posse de coisas externas, como o dinheiro, terras, casas, mobiliário e outras coisas do mesmo género» então «todo o poder do governo civil é relativo apenas aos interesses civis dos homens, está confinado ao cuidado das coisas deste mundo, e nada tem que ver com o 661


13

V. Ibidem, pp. 41-42.

662

mundo que há-de vir». Neste sentido, o Estado só estará autorizado a limitar a liberdade de consciência individual, quando a sua expressão puser em causa «interesses civis». Ora, o problema para os herdeiros contemporâneos do liberalismo Lockeano parece decorrer do exacerbamento de um individualismo que acaba por sufocar a própria ideia de tolerância. Isto é, estando a tolerância limitada pelos «interesses civis», a sua extensão será inversamente proporcional à extensão dos ditos «interesses civis». Porém, e no limite, a tolerância correrá o risco de ser esvaziada se o leque dos «interesses civis» for demasiado sensível e ambicioso. No limite, e não no domínio da teoria mas no da prática política, aquele que é intolerante para com a religião poderá sempre distorcer a lógica do argumento a seu favor, invocando um «interesse» suficientemente forte que acabará por colidir com a liberdade religiosa do seu vizinho. Curiosamente, porém, este problema fora já antevisto por Locke 13. Em bom rigor, a limitação da tolerância justificando a intervenção do poder estadual é admitida em dois planos: por um lado, pela aplicação da lei geral; por outro, pela avaliação do prejuízo que a prática que se considera não merecedora da tolerância poderá causar à comunidade. Ora, se o primeiro plano não comporta dúvidas de maior, já que se trata de uma tradução do princípio do governo limitado, já o segundo pode dar origem a problemas sérios. Problemas esses que, no domínio da liberdade religiosa seriam facilmente resolvidos pela teoria Lockeana, uma vez que, colocando a salvação das almas como critério absoluto, tenderia a privilegiar qualquer expressão da liberdade religiosa desde que ela não fosse seriamente prejudicial à comunidade ou causasse dano a qualquer pessoa ao Estado caberia apenas a arbitragem política desses conflitos, estando-lhe, obviamente vedada a participação activa no próprio conflito. Assim, o ónus da prova recairia sempre sobre o intolerante, que teria que justificar o prejuízo ou o dano como sendo tão grave que ultrapassaria o bem que a prática em causa alegadamente prejudicaria. Ora, sendo esse bem a


salvação, dificilmente se poderia admitir que qualquer prejuízo, excepto um da mesma natureza, pudesse justificar a supressão da tolerância 14.

3. O novo liberalismo e a justificação «não metafísica» da tolerância: neutralidade, apatia e indiferença Mas, se o liberalismo clássico se construiu em torno de uma fundamentação indisfarçavelmente religiosa, o liberalismo dos nossos dias, tal como é proposto por autores referenciais como John Rawls, busca uma justificação que se pretende «política e não metafísica» 15. Nesta linha, os princípios primeiros não serão produto de uma visão abrangente, de uma concepção particular do bem. Pelo contrário, eles serão princípios capazes de serem aceites por todos, porque adequados à razão pública. É neste quadro prévio que, por exemplo, fica definida a «concepção política de justiça» 16. A justiça, por seu turno, deriva a sua primazia da essencialidade para os sistemas políticos. De acordo com a imagem do próprio Rawls, a justiça estaria para a política como a verdade está para a lógica 17. Porém, como um famoso historiador oitocentista bem prevenia: «A lógica não admite compromisso. A essência da política é o compromisso» 18. Ora, no momento em que nos esquecemos da essencialidade da busca do compromisso, esquecemo-nos também da importância e do verdadeiro significado da tolerância. Num certo sentido, a Modernidade trouxera consigo a promessa secular da «libertação da esperança e do medo». Este novo projecto político seria um projecto libertador e emancipador. O novo cidadão, devidamente esclarecido, não mais se submeteria a nada senão à própria razão. O desafio, aqui, seria o de garantir a conformidade do exercício individual da liberdade de cada um com princípios racionais que seriam universalmente aplicáveis a todos. Em princípio, o respeito por estas regras universais garantiria a possibilidade de sanar qualquer conflito por recurso a essas mesmas regras. Numa tal situação não discutiríamos a oposição de fins últimos, mas

14

Uma questão deste tipo foi colocada perante o Supremo Tribunal dos Estados Unidos, no caso Church of Lukumi Babalu Aye v. City of Hialeah, 508 U.S. 520, datado de 1993. Neste caso, que envolvia «a religião Santeria, a qual faz do sacrifício de animais uma das suas principais formas de devoção», o Tribunal decidiu pela admissibilidade do sacrifício de animais em cerimónias religiosas. A admissibilidade, não obstante, fica dependente da verificação da sua importância e necessidade como «forma de devoção». Neste caso, o Tribunal decide em favor da prioridade da liberdade religiosa sobre outros valores conflituantes com este, como o da legitimidade e autoridade do poder democrático no caso em apreço, a decisão da autarquia local que proibiu aquela prática ou mesmo o das leis do Estado da Florida leis proibitivas de actos cruéis sobre animais, que foram invocadas na decisão da autarquia. As razões invocadas pelo Tribunal neste Acórdão atestam bem do profundo enraizamento no pensamento americano da defesa da ideia da separação entre a esfera política e a religiosa. (O sumário do Acórdão, bem como o relatório final, da autoria do Chief Justice Kennedy, bem como os votos de Scalia, Souter e Blackmun, podem ser consultados no Instituto de Informação Legal, da Faculdade de Direito da Universidade de Cornell, em: http://www.law.cornell. edu/supct/html/91-948.ZS. html; último acesso em 8 de Dezembro de 2008)

15 RAWLS, John, Political Liberalism, New York, Columbia University Press, 1993, p. 10. 16

Ibidem, pp. 223ss.

17

A passagem referida é a seguinte: «A Justiça é a pri-

663


meira virtude das instituições sociais, como a verdade o é para os sistemas de pensamento». (RAWLS, John, A Theory of Justice, Oxford, Oxford University Press, 1972, p. 3). 18 MACAULAY, Thomas B., History of England, London, Penguin Classics, 2006.

19

DWORKIN, Ronald, «Liberalism» in HAMPSHIRE, Stuart (Ed.), Public and Private Morality, Cambridge, Cambridge University Press, 1978, pp. 113-143, sobretudo p. 127.

20

V. RAWLS, John, Political Liberalism, op. cit., pp. 154, 158ss.

664

limitar-nos-íamos a ordenar as posições em disputa e a estabelecer a qual assistiria a prioridade por relação ao princípio ordenador invocado. De acordo com esta visão, dominante na filosofia política liberal contemporânea, exige-se que o Estado «tem que ser neutro» no que diz respeito aos conflitos valorativos, isto é, relativamente à «questão sobre a vida boa»; e, por isso, entende-se que «as decisões políticas devem ser, tanto quanto possível, independentes de qualquer concepção particular da vida boa, ou do que quer que dê valor à vida» 19. No limite uma tal configuração conduziria à própria obliteração do político, ao seu desvanecimento num horizonte de neutralidade. Aquilo que se pretende aqui é uma relação de plena igualdade alcançada pela anulação da diferença. Não obstante, entre iguais, a tolerância deixa de fazer sentido. A tolerância fará sentido entre diferentes mas é logicamente impossível, ou meramente irrelevante, entre iguais. Contudo, longe de sequer ser capaz de percepcionar a própria natureza do político, o construtivismo inerente às grandes teorias que presidem à conceptualização das mais modernas propostas liberais parece esquecer-se da radicalidade etimológica do liberalismo. Preocupado com a acomodação de tudo e todos, este novo liberalismo rejeita posições substantivas e procura refugiar-se em procedimentos adjectivos. No caso típico da proposta de John Rawls, assistimos à rejeição do compromisso, substituindo-o pela adopção racional de uma «posição original» que, de tão original que é, corre o risco de se afastar do sentido da realidade; e, à anulação da diferença, através do recurso a um «véu de ignorância» que o que, eventualmente, acaba por revelar é a incapacidade de um certo formalismo filosófico de olhar de frente a contingência própria da natureza humana. Em boa medida, a obsessão rawlsiana com o «consenso constitucional» embora reflicta a tradicional preocupação liberal com a questão da coexistência pacífica entre indivíduos e se reclame herdeira da tradição de tolerância resultante da Reforma 20 , é incoerente com a própria lógica da tolerância.


A incoerência fica patenteada, desde logo, pela distância que separa o consenso deste novo liberalismo, dos quadros conceptuais, clara e vincadamente substantivos, de um liberalismo clássico como o de Locke, ou mesmo de Voltaire. Ao procurar reduzir ao mínimo as disputas entre bem e mal, entre diferentes visões do mundo e entendimentos sobre a natureza humana, este novo liberalismo revela uma ambição que, afinal, vai ao arrepio dos avisos dos Iluministas de setecentos. Como o próprio Voltaire insistiria: «Seria o cúmulo da loucura pretender pôr todos os homens a pensar de uma maneira uniforme sobre a metafísica. Mais facilmente se conseguiria subjugar o universo inteiro pela força das armas do que subjugar todos os espíritos de uma só cidade» 21.

21

VOLTAIRE, Tratado sobre a Tolerância (1763), Lisboa, Antígona, 1999, p. 135.

4. Reenquadramento da questão Ora, se o liberalismo fosse interpretado de acordo com esta pretensão de neutralidade minimalista do conflito moral e maximalista da tolerância , não seria apenas a liberdade que acabaria seriamente deturpada, mas também a tolerância, que, assim, não poderia senão acabar por perder o seu próprio valor intrínseco, acabando por se fundir no vazio que é próprio da neutralidade. A tolerância não pode ser uma escapatória ou uma desculpa que nos permita evitar julgamentos de valor. Bem pelo contrário. A tolerância só faz sentido num forte quadro de julgamentos valorativos. Mais ainda: a tolerância não é uma expressão de dúvida ou de cepticismo; não é uma fuga perante a dificuldade de julgar ou de distinguir o bem do mal, ou o certo do errado. Ao contrário, a tolerância é consequência da própria capacidade para fazer tais julgamentos e distinções. Longe de ser anulada pelo peso de convicções morais fortes, a tolerância só pode ser fundada nessas convicções Por isso mesmo se distingue da mera apatia ou do indiferentismo proposto por concepções neutrais que evitam julgamentos de valor ou pronunciamentos acerca do que é bom ou verdadeiro. E, note-se, tais convicções morais não devem ser 665


22

GRAY, John, «Toleration: a post-liberal perspective», in Enlightenment s Wake: Politics and Culture at the Close of the Modern Age, London, Routledge, 1995, pp. 18-30, sobretudo p. 19.

666

apenas consideradas a nível individual, mas também a nível social. Tanto uma pessoa como uma sociedade tolerante «não duvidam que conhecem algo acerca do bem e da verdade; a sua tolerância expressa esse conhecimento». E, como John Gray bem sustenta, «quando uma sociedade é tolerante, a sua tolerância expressa a concepção da vida boa que tem em comum» 22. No fundo, o que o novo liberalismo defende não é a tolerância, mas sim a neutralidade uma neutralidade apática. E, nessa medida, o contraste com o velho liberalismo é notório. Na sua defesa incondicional do valor da liberdade, o velho liberalismo reconhece e admite a diferença e, como tal, desenvolveu, ou tem vindo a desenvolver, consentaneamente, práticas de tolerância com vista à coexistência pacífica. Tolera, no seu próprio território, aquilo ou aquele que, após avaliação pelos seus próprios padrões absolutos, considera mau ou errado. Tolera, não incentiva, mas permite a existência do que considera mau ou errado dentro dos limites das chamadas «fronteiras sagradas» da liberdade. Ao invés, o novo liberalismo, concebendo os indivíduos enquanto sujeitos radicalmente autónomos, tem sempre na sua base um ideal de igualdade que, não encarando frontalmente a diferença, nem querendo emitir qualquer juízo de valor, nem incentivar ou privilegiar ou desfavorecer qualquer forma de vida, acaba por se refugiar numa neutralidade que tem como consequência um individualismo oco e alheado, e, em última análise, o esvaziamento da própria moral. E, com esse esvaziamento, esvaziam-se também os laços sociais, que se dissolvem, colocando em risco a própria noção de vida em comum. O que o ideal liberal da neutralidade significa, afinal, é uma negação do reconhecimento legal de formas de vida distintivas. Contrariamente a esta lógica formalista da neutralidade que tende a esvaziar os conflitos de valores, a experiência quotidiana das nossas sociedades revela-nos que as diferenças existem e que, muitas vezes, elas reflectem diferentes visões do mundo que expressam culturas diferentes que não podem


ser completamente homogeneizadas sob pena de perdermos formas de vida que poderão ser boas, embora diferentes. Uma ideia de tolerância, correctamente entendida, nasce do reconhecimento da diferença e da necessidade do estabelecimento de compromissos, com vista à garantia da possibilidade de florescimento de formas de vidas boas, eventualmente heterogéneas, num espaço de coexistência pacífica e ordeira. No entanto, muito embora à primeira vista a condução possa parecer quase inteiramente consistente com a linha do liberalismo herdado das Luzes de setecentos, julgamos que não é evidente que assim o seja. Sobretudo, não o será se por liberal se entender o neutralismo dominante do liberalismo contemporâneo. De alguma forma, e sem qualquer paradoxo, gostaríamos de sugerir que a neutralidade da filosofia política liberal contemporânea, confinada a teorias de justiça e a panegíricos de igualitarismos legalistas, encontra-se bastante mais próxima de um individualismo relativista que de uma tradição de liberdade individual que antecede e, em larga medida informa, as práticas políticas das democracias liberais dos nossos dias. Lisboa, 15 de Novembro de 2009

667



A Bioética um saber transdisciplinar? *

José Henrique Silveira de Brito **

No ano 2000, num texto titulado «Da moral à ética e às

éticas», Paul Ricoeur, reconhecendo que os especialistas não se entendem sobre o sentido a dar aos termos ética e moral, considera ser necessário dispor dos dois e propõe utilizá-los do seguinte modo: o conceito de moral para o termo fixo de referência e de lhe atribuir uma dupla função, a de designar, por um lado, a região das normas, dito de outro modo dos princípios do permitido e do proibido, por outro lado, o sentimento da obrigação enquanto face subjectiva da relação de um sujeito a essas normas 1.

Com o termo «ética» Ricoeur aponta em duas direcções; «a ética anterior apontando para o enraizamento das normas na vida e no desejo, a ética posterior visando inserir as normas nas situações concretas» 2. À ética anterior chama-lhe «ética fundamental» 3. Estas distinções ricoeurianas são geralmente aceites pelos especialistas da filosofia moral: por um lado, a vida moral é vivida em obediência a um conjunto de valores, princípios e normas que regem a vida de uma comunidade, condição de possibilidade da vida em comum, e perante o qual o sujeito moral tem o sentimento de obrigação em lhe obedecer 4. A este nível, julgar da moralidade do agir é verificar se ele está * Conferência pronunciada na sessão de abertura do II Congresso de Bioética subordinado ao tema Paradigmas bioéticos e dilemas emergentes, levado a efeito pelo Centro de Bioética e Enfermagem da Escola Superior de Enfermagem S. Francisco das Misericórdias em colaboração com as Santas Casas da Misericórdia de Portugal, que decorreu em Lisboa de 10 a 13 de Março de 2009. ** Professor de Ética na Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa, em Braga.

Brotéria 169 (2009) 669-676

1

R ICOEUR , Paul, «De la morale à l éthique et aux éthiques», pp. 55-56.

2

Idem, p. 56.

3

Idem, p. 58.

4 Sobre a questão da comunidade ética, cf. OLIVETTI, Marco, «Le problème de la communauté éthique», in Qu est-ce que l homme? Bruxelles, Faculteés Universitaires de Saint Louis, 1982, pp. 324-343 e CORTINA, Adela, Alianza y contrato. Política, ética y religión, Madrid, Editorial Trotta, 2001, pp. 103-113. Sobre a situação contemporânea em que há uma civilização universal e a necessidade, impossível de satisfazer, de uma comunidade ética universal, cf. VAZ, Henrique C. de Lima, Escritos de Filosofia. III. Filosofia e Cultura, São Paulo, Edições Loyola, 1997, pp. 139-151.

669


5 Para este autor, a moral filosófica parte da vida, da vida moral, que não foi inventada pelos filósofos, mas que faz parte da vida de cada homem enquanto homem; a ética é uma «moral pensada» que parte da «moral vivida». Cf. ARANGUREN, José Luis L., Ética, p. 10.

670

ou não conforme os valores morais, a norma moral, os princípios morais que regem a vida individual e da comunidade. Está-se num primeiro nível em que se procuram esses valores, princípios e regras. Por outro lado, há um segundo nível que é aquele em que se procura a justificação ou fundamentação desses valores, princípios e normas. Está-se então perante uma reflexão mais profunda que normalmente se designa com o termo «ética». É a distinção feita por José Luis Aranguren entre moral vivida e moral pensada 5. Quanto à existência destes dois níveis de reflexão, há acordo entre os filósofos da moral. Na utilização dos termos para os designar é que o acordo desaparece, embora a distinção apresentada por Ricoeur seja bastante partilhada. O segundo nível, designado pelo termo ética, ganhou enorme importância a partir do Renascimento e, em especial, a partir do século XVIII, quando se verificou a desvinculação entre moral e religião. Antes, devido à homogeneidade cultural, em que a crença em Deus era generalizada e a prática religiosa comum, o conhecimento das normas e valores morais era ministrado pela religião e a justificação última dos valores e normas estava em Deus. Com a laicização generalizada do espaço público, a questão da fundamentação da moral, as questões teóricas da justificação da moral, passaram para primeiro plano, não havendo grande debate sobre valores e normas que deviam reger a vida pessoal e da comunidade. As normas do agir moral continuavam a ser as de origem religiosa, uma vez que a homogeneidade cultural era bastante acentuada, de modo que a sociedade vivia uma moral tradicional que respondia às situações com que o sujeito moral se deparava, até porque tinham sido essas situações que tinham originado essas mesmas normas morais. Aquilo que Ricoeur designa por ética posterior não era problema, isto é, a vivência em concreto das normas morais não suscitava dificuldades, ou pelo menos não era algo que se apresentasse como altamente problemático. A evolução dos costumes era lenta e as respostas às questões que surgiam eram facilmente encontradas na moral tradicional. Toda a discussão andava em torno da justificação dessas normas. Com a laicização do espaço


público, de que já falámos, e com o recuo de Deus, havia que procurar uma fundamentação que a Modernidade encontrou no ser humano: no sentimento, em David Hume, e na razão, em Kant. Os filósofos da moral preocupavam-se de sobremaneira com questões de «Ética Fundamental». Tudo se modificou, contudo, a partir da Segunda Guerra Mundial (1939-45). O conhecimento do que se passou em muitos campos de concentração, em que foram utilizados prisioneiros para experiências ditas científicas sem o mínimo respeito pela dignidade das pessoas, a descoberta de experiências feitas com populações sem autonomia ou sem lhes ter sido pedido um consentimento informado e o impacto da tecnociência na medicina levantaram problemas a que a ética tradicional não conseguia responder, tornando-se necessário elaborar éticas aplicadas, de modo a encontrar respostas para situações que, pela sua novidade, escapavam totalmente à «vida habitual» e, consequentemente, à moral comum. Foi esta a razão do surgimento da Bioética. Antes de desenvolver a questão da Bioética como ética aplicada e o seu carácter transdisciplinar, manda a verdade histórica que se diga que em certas tradições da filosofia moral, como a tomista, muito antes do aparecimento das éticas aplicadas como hoje as entendemos, encontramos, para além da Ética Fundamental, as chamadas «Éticas Especiais» que tentavam encontrar respostas tão concretas quanto possível para problemas morais como os que apareciam na vida económica e social. Joseph de Finance, por exemplo, no seu clássico tratado Éthique Générale, sublinha que é bastante universal a distinção entre Ética Geral e Ética Especial, considerando esta uma aplicação aos diversos ramos do agir humano dos princípios daquela 6. Mas como uma leitura atenta do texto do autor mostra, as razões do aparecimento das éticas especiais não são idênticas às que motivaram o aparecimento das modernas éticas aplicadas. Na tradição a que pertence De Finance, as éticas especiais visavam a aplicação dos princípios gerais das ética geral a situações e actividades determinadas. Hoje, diferentemente, o que leva à elaboração das éticas aplicadas são, por um lado, o impacto da tecnociência no nascer, viver,

6

DE FINANCE, Joseph, Éthique Générale, Roma, Presses de l Université Grégorienne, 1967, p. 25.

671


7

Cf. JHAR, Fritz, «Bio-Ethik. Eine Umschau uber die ethischen Beziehungen des Menschen zu Tier und Pflanze», Kosmos 24 (1927), pp. 2-4.

8

MARTÍNEZ, Julio L., «De la Ética a la Bioética». BRITO, José Henrique Silveira de (Coord.), Do Início ao Fim da Vida, Actas das Primeiras Jornadas de Bioética, Funchal, 18 e 19 Março 2005, Braga, Publicações da Faculdade de Filosofia UCP, 2005, p. 183. Para além deste texto, pode consultar-se NEVES, M. Patrão, «A teorização da bioética». in NEVES, Maria do Céu Patrão (Coord.), Comissões de ética. Das bases teóricas à actividade quotidiana, 2.ª ed. rev. e aum, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 2002, pp. 37-63. No que se refere à bioética no espaço anglo-saxónico, JONSEN, Albert R., The Birth of Bioethics, New York/ Oxford, Oxford University Press, 1998, principalmente o 1.º capítulo. 9

Cf. FERRER, Jorge José; ÁLVAREZ, Juan Carlos, Para fundamentar la bioética. Teorías y paradigmas teóricos en la bioética contemporánea, Madrid, Universidad Pontificia de Comillas/Desclée De Brouwer, 2003, pp. 60-65. 10

Sobre tudo isto cf., para além do livro já referido de Jonsen, FERRER, Jorge José; ÁLVAREZ, Juan Carlos, Para fundamentar la bioética, pp. 59-82; MARTÍNEZ, Julio L., «De la Ética a la Bioética», pp. 183-217 e NEVES, M. Patrão, «A teorização da bioética», pp. 37-63.

672

morrer humanos e a inter-dependência de todos os seres vivos e, por outro, as profundas alterações sócio-culturais que se verificaram. Isto significa que os motivos do aparecimento das éticas aplicadas contemporâneas e o modo de as elaborar, são muito diferentes dos referidos por De Finance. Ao ouvir o termo Bioética ocorrem imediatamente os nomes de Van Rensselaer Potter e André Hellegers e a discussão sobre a criação do termo. Contudo, a investigação histórica recente veio mostrar que o termo Bioética surgiu pela primeira vez na Alemanha, no fim da década de 20 do século passado, no título de um artigo da revista Kosmos 7, escrito por Fritz Jahr, que, traduzido para português, daria: «Bio-Ética. Um panorama sobre as relações do homem com animais e plantas». Deve, porém, reconhecer-se que o termo utilizado pela primeira vez em 1927, num sentido que reaparecerá com Potter, caiu em desuso e só reaparecerá em 1971, como os estudos mostram, num « nascimento bilocado ( bilocated birth , na expressão de Reich): a dupla via da bioética global (cujo expoente máximo foi V. R. Potter) e da bioética clínica (iniciada por A. Hellegers)» 8. A primeira como saber que combina os conhecimentos biológicos com o conhecimento dos sistemas de valores humanos, e a segunda, dando uma maior atenção às questões biomédicas e à adopção da tradição filosófica e teológica do Ocidente, dando origem a um ramo da ética aplicada ao reino da biomedicina 9. O aparecimento da bioética, tal como a entendemos, verificou-se, com o dissemos, nos anos setenta e ficou a dever-se a condições sócio-culturais, ao contexto científico-técnico da biomedicina, ao contexto filosófico em que se praticava a reflexão ética e ao contexto teológico, temas que não vamos desenvolver 10. Relativamente ao primeiro aspecto, condições sócio-culturais, as movimentações sociais em torno dos movimentos cívicos, com a valorização e defesa da igualdade e da autonomia do cidadão, tiveram consequências, por exemplo, no paradigma que deve prevalecer na relação médico-doente, passando-se do paternalista para a defesa de uma relação de igualdade, em que o doente deve participar nas decisões que lhe dizem respeito. Relativamente ao segundo aspecto, o con-


texto científico-técnico da biomedicina, para ficarmos apenas por estes dois elementos que muita influência tiveram no aparecimento da bioética, tenha-se presente o impacto da tecno-ciência na prática da medicina. Lembremos apenas situações vividas tais como quando apareceram as máquinas de hemodiálise e se tornou necessário fazer a selecção dos doentes a serem tratados por esta nova técnica, a necessidade de estabelecer critérios mais rigorosos de morte, a possibilidade dos transplantes e, de um modo particular em termos de impacto público, o aparecimento da procriação medicamente assistida. A Bioética surgiu porque a ética médica tradicional não era capaz de responder aos novos desafios. A acção médica não podia manter-se na sua dimensão técnica; tornava-se necessário atender à dimensão social. Isso obrigou a colocar a bioética «em zonas de intercepção de vários saberes, nomeadamente das tecnociências (sobretudo a biologia e a medicina), das Humanidades (filosofia, ética, teologia, psicologia, antropologia), ciências sociais (economia, politologia, sociologia, impacto social) e doutras disciplinas como o direito», como diz Luís Archer 11. Isto significa que a Bioética não é um somatório de discursos paralelos, ou um mero confronto interdisciplinar. Trata-se, antes, de um diálogo pluridisciplinar em que, para voltarmos ao texto há pouco citado, «os cientistas têm que integrar na sua estrutura mental os valores e os critérios dos humanistas, assim como estes têm que incorporar, nos seus paradigmas, os métodos e critérios científicos» 12. Os discursos dos cientistas e o dos filósofos são diferentes, é verdade, mas visam a mesma realidade concreta, pelo que, para um entendimento global dessa realidade, os dois são indispensáveis. É por isto que «a bioética não é propriamente uma disciplina, mas uma transdisciplina», nas palavras de Luís Archer 13. Falando das éticas das profissões, Augusto Hortal, numa expressão feliz, afirma que é indispensável que elas pratiquem um bilinguismo 14, a linguagem da profissão e a linguagem da ética. Partindo desta inspiração, pensamos que a bioética, porque saber transdisciplinar, exige dos seus cultores serem poliglotas, o que é, simultaneamente, a sua riqueza e a sua grande dificuldade. Os seus cultores que vêm da área

11

A RCHER , Luís; B ISCAIA , Jorge; O SSWALD , Walter (Coord.), Bioética, Lisboa/ São Paulo, Editorial Verbo, 1996, p. 25.

12

Idem, p. 25.

13

Idem, p. 25.

14 HORTAL ALONSO, Augusto, Ética general de las profesiones. Bilbao, Editorial Desclée de Brouwer, 2002, p. 13.

673


15

A RCHER , Luís; B ISCAIA , Jorge; O SSWALD , Walter (Coord.), Bioética, p. 25.

674

das ciências dominam na perfeição o discurso científico, mas muitos deles nunca estudaram a fundo humanidades, em especial Filosofia; por sua vez os cultores das Humanidades dominam a sua tradição, mas sabem muito pouco ou nada de ciências. Estamos muito longe dos tempos de Descartes ou Pascal em que a distinção letras e ciências ainda não tinha acontecido e em que os homens de cultura, como os dois nomes citados, eram, simultaneamente, grandes filósofos e grandes cientistas. Esta transdisciplinaridade pretende respeitar a autonomia dos saberes, respeitando os seus respectivos objectos e método, linguagens, objectivos e conclusões, «mas procurando respeitar a sua complementaridade na busca de respostas consensuais para a defesa da dignidade da pessoa humana», citando de novo Luís Archer 15. Esta transdisciplinaridade, característica incontornável da Bioética, faz-se numa sociedade pluralista, em que convivem vários códigos morais, várias antropologias filosóficas, diversas concepções acerca do valor da vida e da morte, sendo esse pluralismo tão profundo que muitos somos levados a admitir que a nossa sociedade é radicalmente relativista, posição que, em nosso entender, uma reflexão séria levará a descobrir que é insustentável. Embora este pluralismo esteja na raiz de muitos dos problemas da Bioética, ele nunca poderá ser negado pois que essa negação desvirtuaria a Bioética em cujos consensos todos devem participar. Este diálogo transdisciplinar a fazer numa sociedade pluralista em ordem a atingir o consenso é, efectivamente, muito difícil. Para haver um diálogo transdisciplinar é indispensável que todos participem, e isto não é fácil na nossa sociedade. Ele exige que todos possam participar na discussão de parte inteira, e isso não acontece. Os grupos de pressão, as centrais de informação, os interesses instalados, o modo como é manipulada a informação tornam difícil o verdadeiro diálogo democrático. Quando os temas são polémicos, sugere-se que politicamente sejam resolvidos em referendo, mas muitas vezes, quando se chega ao debate que antecede o escrutínio, já a opinião pública foi preparada para o resultado que interessa a


quem detém o poder. Estas observações colocam o problema da deliberação e do consenso, este último tantas vezes trabalhado pelo Professor Michel Renaud que, partindo da sua reflexão filosófica de grande profundidade e da sua experiência de diálogo no CNECV desde a sua constituição, bem sabe as questões que o consenso suscita 16. Não queria, contudo, terminar esta minha conferência sem chamar a atenção para um dos maiores riscos que a Bioética corre na actualidade. O consenso é antecedido pela deliberação e isto, transposto para a discussão bioética, traduziu-se, muitas vezes, na constituição dos chamados comités de ética de que a National Commission que entre 1974 e 1978 produziu o Belmont Report, é o modelo. A deliberação e o diálogo fizeram com que a ética contemporânea se encontrasse com a linguagem, como tema e meio de reflexão, não só na sua dimensão sintáctica e semântica, mas também pragmática, isto é atendendo aos sujeitos que fazem uso dela. Este modo de encarar a linguagem implica a sua não redução a um mero sistema de signos e regras, mas a reconhecer a acção comunicativa e, com ela, redescobrir o carácter dialógico da razão humana. Isto significa que o diálogo visa alcançar a verdade, não se caindo nas perspectivas naturalistas ou subjectivistas. É este o contexto em que funciona, ou pelo menos devia funcionar, a discussão bioética e, consequentemente, os comités de ética. Isto significa, para lembrar Karl Otto Apel, que o comité de bioética não é uma «comunidade ideal de comunicação», mas uma «comunidade real». Estamos perante um diálogo que levará a um consenso prático e não racional, que é suportado pelo melhor argumento, e não por uma demonstração de tipo matemático. Mais, nas palavras de Julio Martínez, «acreditar na tarefa do comité de ética supõe acreditar na racionalidade prática, na participação dos implicados no processo de deliberação racional e na prudência como modos de tomar decisões morais» 17. Mas, como o autor sublinha logo de seguida, este diálogo corre um perigo para o qual é importantíssimo estar de sobreaviso: pensar a liberdade de expressão como se ela não devesse visar «a tarefa filosófica por excelência da ética que é

16

Cf., por exemplo, RENAUD, Michel, «Liberdade e consenso», Cadernos de Bioética, 12 (2004), 36, pp. 39-45.

17 MARTÍNEZ, Julio L., «De la Ética a la Bioética». BRITO, José Henrique Silveira de (Coord.), Do Início ao Fim da Vida, Actas das Primeiras Jornadas de Bioética, Funchal, 18 e 19 Março 2005. Braga, Publicações da Faculdade de Filosofia UCP, 2005, p. 204. Para toda esta parte da conferência este texto é muito elucidativo.

675


18

Ibidem.

676

a procura da verdade» 18. É esse o principal risco da bioética liberal que se fica por um não cognitivismo, por um emotivismo, em que o sentir é o critério de decisão, sem ter em conta o pensar racional. Para evitar esta situação, há que ter bem presente que este diálogo, o processo de deliberação, tem que começar por atender aos factos; os erros a este nível são sempre fatais para as decisões éticas; há que deliberar sobre os factos. Mas no diálogo, não há que atender apenas aos factos, porque a deliberação deve também atender aos valores em presença: não há actos humanos moralmente neutros, há sempre valores morais na situação. Contrariamente ao que muitas vezes se ouve, não há um relativismo absoluto dos valores porque, se todos os valores valessem o mesmo, nada valeria coisa nenhuma. Há que ver os valores em presença, ver as suas hierarquizações possíveis e, a partir daí, imaginar os diversos cursos de acção possíveis, isto é, os deveres. Aqui, há que dar particular atenção ao lugar da prudência, isto é, procurar encontrar o meio-termo nos deveres ou cursos de acção, não perdendo de vista que a acção moral visa o melhor bem possível, como já dizia Aristóteles. Olhando para o que se acaba de expor, é evidente a dificuldade inerente à deliberação, ao diálogo. Mas se não se atender aos factos, aos valores em presença e que os valores não são todos relativos, se a procura de decisão não for presidida pela prudência, nunca se encontrará o melhor caminho possível para a solução dos conflitos. Para se chegar aqui, para além dos conhecimentos científicos e das ciências sociais em geral, que são o ponto de partida, é indispensável uma formação filosófica séria, necessidade hoje pouco ou nada valorizada por quem, estando no poder, tem a obrigação de valorizar a cultura. Pense-se na contínua valorização da ciência e da tecnologia presente no discurso político e nos órgãos de comunicação social e na desvalorização constante da Filosofia e do seu ensino. O desprezo a que a Filosofia é hoje votada por quem tem o poder, não augura nada de bom na deliberação bioética perante casos difíceis.


A Encíclica Caritas in Veritate e a problemática da globalização

Manuel Porto *

Na linha de uma magnífica e influente tradição, o Papa

Bento XVI publicou neste ano mais uma encíclica sobre problemas sociais. Agora como nos demais casos, trata-se de um texto com a maior actualidade, dando a resposta adequada aos problemas do tempo. Assim aconteceu com a questão operária quando da Rerum Novarum, de Leão XIII, em 1891, preocupada com problemas novos surgidos com a generalização dos processos de industrialização; e depois assim aconteceu, também a título de exemplo e com enorme relevo, com os problemas da descolonização e do desenvolvimento, nos anos 60 do século XX: dando lugar aqui, em 1967, à Encíclica Populorum Progressio, de Paulo VI. Nas palavras de Bento XVI na Caritas in Veritate (n. 8), «ao publicar a encíclica Populorum Progressio em 1967 meu venerando predecessor Paulo VI iluminou o grande tema do desenvolvimento dos povos com o esplendor da verdade e com a luz suave da caridade de Cristo»; exprimindo adiante a «convicção de que a Populorum Progressio merece ser considerada como a Rerum Novarum da época contemporânea, que ilumina o caminho da humanidade em vias de unificação». Nos tempos actuais há naturalmente vários problemas novos e renovados, alguns de grande complexidade, compreendendo-se por isso em boa medida a extensão do novo documento: exprimindo a posição da Igreja sobre problemas que vão do ambiente à energia, à garantia da paz, à família, * Professor de Direito.

Brotéria 169 (2009) 677-681

677


1 São bem significativos os títulos e os conteúdos de alguns livros, casos de VINDT, Charles, A Globalização. De Vasco da Gama a Bill Gates, Lisboa, Temas e Debates, 1998/9; PAGE, Martin, The First Global Village. How Portugal Changed the World, Lisboa, Notícias, 2002 ou RODRIGUES, Jorge Nascimento e DEVEZAS, Tassaleno, Portugal. O pioneiro da Globalização, Famalicão, Centro Atlântico, 2007.

à educação, à cultura, ao turismo, às migrações, à pobreza, ao sindicalismo, ao micro-crédito, à defesa dos consumidores, ao desenvolvimento tecnológico, aos meios de comunicação ou à bio-ética. Mas um dos problemas novos ou renovados a merecer justificadamente uma grande atenção do Papa, com posições especialmente mencionadas na imprensa portuguesa e internacional, é sem dúvida o problema da globalização. É de facto um problema novo com os contornos que apresenta. Mas não pode esquecer-se nunca que a globalização, com movimentos permanentes entre os vários continentes do globo, vem das descobertas dos portugueses, desde o século XV 1. Abriram-se então rotas e intercâmbios regulares antes não existentes, com continuidade e grande significado nos séculos seguintes; podendo dizer-se que ainda hoje o valor do comércio e dos movimentos de factores, pessoas e capitais, em alguns casos naturalmente muito maior em termos absolutos, não é percentualmente maior do que em épocas anteriores. Há todavia muito de novo, em oportunidades e riscos, especialmente no que diz respeito às facilidades de transportes, informação e comunicação (instantâneas, com as novas tecnologias) e no que diz respeito à participação na riqueza do mundo: determinando naturalmente importantes tomadas de posição de Bento XVI na encíclica Caritas in Veritate. Trata-se aliás de tomadas de posição com um relevo acrescido nos nossos dias, com a crise financeira mundial iniciada em 2007, levando a tantos dramas. Uma primeira afirmação a sublinhar será a de que (n. 42), «não obstante algumas limitações estruturais, que não se hão-de negar nem absolutizar», «a globalização a priori não é boa nem é má», já nas palavras recordadas de João Paulo II; sublinhando agora Bento XVI que opor-se-lhe cegamente seria uma atitude errada, fruto de preconceito, que acabaria por ignorar um processo marcado também por aspectos positivos, com o risco de perder uma grande ocasião de se inserir nas múltiplas oportunidades de desenvolvimento por ela

678


oferecidas. Adequadamente concebidos e geridos, os processos de globalização oferecem a possibilidade duma grande redistribuição de riqueza a nível mundial, como antes nunca tinha acontecido (não deixando de acrescentar de imediato que «se mal geridos, podem, pelo contrário, fazer crescer pobreza e desigualdade, bem como contagiar com uma crise o mundo inteiro»).

Uma segunda nota a sublinhar será a referência do Papa à enorme e provavelmente não esperada evolução do mundo nas quatro décadas decorridas desde a Populorum Progressio, sendo seguro que o mundo do século XXI será muito diferente do mundo do século XX. Depois de sublinhar (n. 22) que «actualmente o quadro do desenvolvimento é policêntrico», que «hoje a linha de demarcação entre países ricos e pobres já não é tão nítida como nos tempos da Populorum Progressio» e que «cresce a riqueza mundial em termos absolutos» («mas aumentam as desigualdades», acrescenta ), Bento XVI sublinha adiante (n. 42) uma outra constatação com o maior relevo: «durante muito tempo, pensou-se que os povos pobres deveriam estar ancorados a um estádio predeterminado de desenvolvimento, contentando-se com a filantropia dos povos desenvolvidos»; recordando que «contra esta mentalidade» já «tomou posição Paulo VI na PopulorumProgressio». E é aqui, na abertura de esperanças novas e no reconhecimento de que os países menos desenvolvidos têm responsabilidades básicas, que estão de facto elementos novos, que não eram antecipados por todos, ou mesmo por muitos. Não estão em causa as obrigações de filantropia e a exigência de cumprimento correcto de regras justas: no n. 60 Bento XVI sublinha a necessidade de «os Estados economicamente mais desenvolvidos» destinarem «quotas maiores do seu produto interno bruto para as ajudas ao desenvolvimento, respeitando os compromissos que, sobre este ponto, foram tomados a nível da comunidade internacional» 2; e para ilustrar a ausência de cumprimento de regras justas há que referir o proteccionismo agrícola de países ricos, v.g. da União Europeia, limitando ou impedindo mesmo o acesso ao mercado de produtos dos países menos desenvolvidos 3).

2 Cumpridos apenas, é de sublinhá-lo, por países (alguns) da União Europeia: ver PORTO, Manuel, Economia. Um Texto Introdutório, 3.ª ed., 2009, Coimbra, Almedina, p. 543. 3 Sobre o modo de funcionamento da PAC pode ver-se PORTO, Manuel, Teoria da Integração e Políticas Comunitárias: Face aos Desafios da Globalização, 4.ª ed., Coimbra, Almedina, 2009, pp. 339ss. e as referências aqui feitas. As «altas tarifas aduaneiras impostas pelos países economicamente desenvolvidos que ainda impedem os produtos originários dos países pobres de chegar aos mercados dos países ricos» são mencionadas no n. 33 da encíclica; sublinhando-se adiante, no n. 58, que «no campo económico, a principal ajuda de que têm necessidade os países em vias de desenvolvimento é a de permitir e favorecer a progressiva inserção dos seus produtos nos mercados internacionais, tornando possível assim a sua plena participação na vida económica internacional».

679


4 Sendo todavia as projecções para 2050 feitas antes da crise actual, em que a China e a Índia sofreram muito menos (tal como os outros dois BRIC s, o Brasil e a Rússia); estando já a crescer acentuadamente, quando os países antes industrializados estão quando muito a iniciar a retoma. Projecções com as evolução actuais dariam pois um lugar ainda de muito maior relevo para a «Chindia» em 2050 (designação, englobando os dois grandes gigantes asiáticos, por exemplo de ENGARDIO, Pete (ed.), Chindia. How China and India are Revolutionizing Global Business, Nova Iorque, McGraw-Hill; falando Federico Rampini no L Imperio di Cindia, Arnaldo Mandadore, 2005.

680

Mas a lição de países como a China e a Índia, antes países subdesenvolvidos, com mais de um terço da população mundial e onde morreram de fome dezenas de milhões de pessoas, é a lição de que o desenvolvimento depende basicamente da conduta de cada país. Se tivessem ficado à espera da filantropia alheia estes dois países não seriam no século XXI as potências que vão ser (estimando-se que em 2050 terão 45% da riqueza mundial, recuando a um passado histórico que remonta apenas a dois séculos atrás: tinham 42% em 1820 e desceram no fim do século XX a menos de 6% da riqueza mundial, a China com 4% e a Índia com 2% 4). Há aqui sem dúvida razões de preocupação para nós, com a concorrência acrescida a que temos de dar resposta; mas no fundo um incentivo a uma melhor competitividade (exigindo-se obviamente deles o cumprimento rigoroso das «regras do jogo», designadamente nos domínios social e ambiental, no interesse dos nossos e dos seus trabalhadores e cidadãos em geral!). Mas não pode deixar de se saudar, num mundo que tem de ser solidário, que a globalização está a tirar da miséria centenas de milhões de pessoas, não deixando além disso de criar novas oportunidades de negócios que a todos podem beneficiar, muito em particular empresas dos países mais ricos (cfr. as palavras do Papa no n. 21). De novo nas palavras de Bento XVI (no n. 33), a «interdependência mundial, já conhecida comummente por globalização», havia sido «em parte» prevista por Paulo VI, mas são «surpreendentes» «os termos e a impetuosidade» com que evoluiu. «Nascido no âmbito dos países economicamente desenvolvidos, este processo por sua própria natureza causou um envolvimento de todas as economias. Foi o motor principal para a saída do subdesenvolvimento de regiões inteiras e, por si mesmo, constitui uma grande oportunidade». Mas acrescenta: «contudo, sem a guia da caridade na verdade, este ímpeto mundial pode concorrer para criar riscos de danos até agora desconhecidos e de novas divisões na família humana».


No momento presente, com a maior actualidade, sublinha Bento XVI que «o envolvimento dos países emergentes ou em vias de desenvolvimento permite gerir melhor a crise». De facto, quando há uma assinalável diminuição da procura dos países mais industrializados, estamos todos a beneficiar, estando aí novas e amplíssimas oportunidades, com a capacidade de investimento e a procura crescente que passou a ser feita pelos países emergentes, com um relevo muito especial para os BRIC s, o Brasil, a Rússia, a Índia e a China, muito em particular para este país 5. Por fim, em relação a um texto tão rico e diversificado, valerá a pena recordar ainda, na linha do que vimos referindo, o modo como Bento XVI sublinha o papel do Homem nos processos de desenvolvimento. Mais uma vez nas suas palavras (n. 53), «o tema do desenvolvimento coincide com o da inclusão relacional de todas as pessoas e de todos os povos na única comunidade da família humana», estando (n. 68) «o tema do desenvolvimento dos povos» «intimamente ligado com o do desenvolvimento de cada indivíduo» 6. E não deixa de particularizar (n. 58) que «o maior recurso a valorizar nos países que são assistidos no desenvolvimento é o recurso humano». A experiência de sempre é muito clara a este propósito, tornando-nos, no interesse de todos e em tarefas em que não há substituição possível, participantes activos nas tarefas de promoção dos outros cidadãos.

5 Num texto muito recente podem ver-se ALEXANDRA, Fernando; MARTINS, Ives Gandra; A NDRADE , João Sousa; CASTRO, Paulo Rabello de e BAÇÃO, Pedro, Crise Financeira Internacional, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2009, cap. 9.

6 Desde logo na linha básica, sublinhada no n. 35, de que «os pobres não devem ser considerados um fardo mas um recurso, mesmo do ponto de vista estritamente económico».

681



A Economia e o apóstolo Paulo - II

Pedro McDade S.J. *

II. Leitura económica das Cartas de Paulo. Moral económica paulina Na parte II deste estudo vamos procurar reconstruir, ainda que a modo de mero esboço, a moral económica de Paulo, recorrendo a um método distinto do descritivo, mas que supõe os resultados da parte I. De facto, há que ter uma noção do mundo económico em que Paulo viveu e do tipo de experiência pessoal que ele próprio teve da pobreza ou da riqueza, para depois melhor entendermos o que ele pensava sobre temas económicos (como por exemplo, a atitude a ter face ao dinheiro e bens materiais) e assim reconstruir a sua moral económica. Em nossa opinião, do mesmo modo que em Paulo há uma teologia, uma cristologia, uma soteriologia, uma antropologia, uma eclesiologia, uma escatologia e uma visão da moral pessoal, também há uma visão da moral social e económica. Qualquer tentativa de reconstrução dos tratados teológicos tem sempre presente esta realidade: como teólogo, Paulo não é um pensador com um sistema teológico perfeitamente acabado, mas é antes alguém que foi fazendo a reflexão segundo os problemas e situações que tinha de resolver nas suas comunidades. Paulo é, pois, um teólogo in faciendo 1. A sua teologia está sobretudo marcada pelo anúncio da salvação em Cristo o «Filho de Deus que me amou e a si mesmo se entregou por mim» (Gal 2, 20) e a isso se subordinam outros temas, como * Licenciado em Economia. Estudante de Teologia na Universidade Comillas, Madrid. (E-mail: pedromcdade@jesuits.net).

Brotéria 169 (2009) 683-692

1 Paulo busca responder da melhor maneira possível aos problemas que lhe apresentam, elaborando para tal reflexões parciais e provisórias, necessitadas de posteriores melhorias e integrações, de correcções e ampliações, abertas todas elas às novas e distintas circunstâncias. Cf. BARBAGLIO, Giuseppe, La teología de San Pablo, Salamanca, Secretariado Trinitário, 2005, p. 9.

683


2

A pessoa de Cristo é o centro vivo do seu pensar teológico e não como um mero conceito central de um sistema estático. Cristo não é um princípio abstracto, mas é o critério central de discernimento a partir do qual Paulo decidia o que era mais importante face ao que era secundário. Cf. DUNN, James D. G., The theology of Paul the apostle, Edinburgh, T&T Clark, 1998, pp. 722-730.

3 Possivelmente escritas por esta ordem: 1 Tes, Gal, Flp, Flm, 1-2 Cor, Rom. As cartas deutero-paulinas (2 Tes, Col, Ef) e as pastorais (Tit, 1-2 Tim) são de escola ou tradição paulina , mas têm certos matizes que nem sempre representam o pensamento original do Apóstolo.

4

MEEKS, Wayne A., The origins of Christian Morality: The First Two Centuries, New Haven and London, Yale University Press, 1993, p. 105.

684

os de moral. Segundo J. Dunn, o centro e foco da teologia de Paulo é Cristo 2. Portanto, não se pode esperar que Paulo tenha uma visão sistemática ou um capítulo dedicado a temas económicos. O que ocorre é que, de facto, em certas ocasiões Paulo fala desses temas nas suas Cartas - são como que pequenas janelas que se abrem e fecham, e que nos permitem vislumbrar algo sobre a situação económica e social das suas comunidades, bem como ver de que modo Paulo achava que os cristãos deviam viver e praticar a sua fé. Por isso, opinamos que se pode falar de uma moral económica em Paulo. Seguidamente, apresentamos de forma esquemática e a modo de esboço, 11 tópicos de temas económicos que brotam de uma leitura económica das 7 cartas autênticas 3 de Paulo alguns dos quais já apareceram na parte I deste estudo. 1. Paulo viveu uma vida de pobreza, com as suas dificuldades e perigos. 2. Paulo trabalhou para não ser gravoso para as comunidades. 3. Houve situações em que as comunidades ajudaram Paulo e os seus colaboradores, algo que está ligado à importância da hospitalidade no mundo antigo. Assim, por exemplo: Paulo pede a Filémon que prepare alojamento para ele (Flm 22); Paulo refere o acolhimento de Gaio, que o recebeu como hóspede (Rom 16, 23); em Rom 16, 1-2, Paulo pede a hospitalidade «de um modo digno dos santos» para quem transporta a carta, Febe (diaconisa da igreja em Cêncreas) e «protectora para muitos e para mim pessoalmente»; Paulo pede hospitalidade para os companheiros que ele envia às suas comunidades, como Timóteo (1 Cor 4, 17; 16, 10-11, Flp 2, 19-23) e Tito (2 Cor 8, 16-24); Paulo também pede que preparem adiantadamente o seu próximo destino e que façam provisões para a viagem (Rom 15, 24; 1 Cor 16, 6.11; 2 Cor 1, 16). Os grupos de Filipos deram apoio financeiro a Paulo e seus colaboradores, mesmo quando estavam pregando noutras províncias: para Meeks, tratou-se de um companheirismo e de um modo de partilhar único «no seio das igrejas paulinas (2 Cor 11, 8-9; Flp 1, 5; 4, 10-20ss). A hospitalidade serviu pois, tanto os propósitos simbólicos, como os práticos do cristianismo nascente» 4.


4. Nas Cartas aparecem várias referências à caridade e a ajudar os pobres. Em Gal (2, 10), Paulo conta que: «Só nos disseram que nos devíamos lembrar dos pobres o que procurei fazer com o maior empenho». E sobre os ministérios de ajuda, afirma em Rom 12, 8: «quem reparte, faça-o com generosidade; quem preside, faça-o com dedicação; quem pratica a misericórdia, faça-o com alegria» 5. Neste tema da caridade e da hospitalidade antes assinalado é preciso ter em conta que naquela cultura e numa economia de subsistência, optar por ser altruísta era algo que podia pôr em causa a própria subsistência (lembremos que a maior parte dos membros das comunidades paulinas pertencia ao grupo dos relativamente pobres). 5. Para a moral social e económica, é muito importante a reflexão de Paulo sobre a comunidade (composta de diversos membros/indivíduos com diferentes interesses) como Corpo de Cristo, que deve buscar o bem comum face ao interesse pessoal ( self-interest ). Por exemplo: «Ninguém procure o seu próprio interesse mas o dos outros» (1 Cor 10, 24); «O amor ( ) não procura o seu próprio interesse» (1 Cor 13, 4-5). 6. Paulo usa, por vezes, metáforas económicas para falar de realidades espirituais (a redenção em Cristo) juntamente com a metáfora doméstica de Deus como o senhor da casa ( paterfamilias ). Paulo diz aos coríntios: «Fostes comprados por um alto preço!» (1 Cor 6, 20; 7, 23) do qual resulta que, como escravos de Deus, eles devem actuar de modo a honrar o senhor (6, 20) e não devem voltar a ser escravos dos outros (7, 23) 6. 7. Na carta a Filémon, Paulo exorta-o a acolher de novo o escravo Onésimo. Para tal, Paulo invoca forçosamente o círculo de referência da comunidade cristã, tanto o local como o mais extenso, para colocar Filémon numa situação de obrigação 7. Mais interessante ainda, é que Paulo descreve a relação que tem com Filémon com termos económicos: Se, pois, me consideras em comunhão contigo, recebe-o [a Onésimo] como a mim próprio. E se ele te causou algum prejuízo ou alguma coisa te deve, põe isso na minha conta. Sou eu, Paulo, que

5 Segundo Bosch, «quem reparte/dá (metadidômi)» deve entender-se em paralelismo com todos os ministérios da Palavra que o rodeiam; por isso, não significa dar do próprio, mas refere-se a alguém que reparte as esmolas que se recolheram na Igreja para dar a quem necessita. Cf. BOSCH, Jordi Sánchez, Maestro de los pueblos: una teología de Pablo, el apóstol, Estella, Verbo Divino, 2007, p. 658.

6

Cf. MEEKS, op. cit., p. 169.

7 De facto, a carta começa por ser dirigida, não só a Filémon, mas também à irmã Ápia, a Arquipo e à igreja que se reúne na casa de Filémon (Flm 1-2); e termina com uma saudação plural: «a graça do Senhor Jesus Cristo esteja convosco» (Flm 25).

685


o escrevo pela minha própria mão: serei eu a pagar. Isto, para não te recordar as dívidas que tens para comigo, pois tu me deves a tua própria pessoa (Flm 17-19).

8. No que toca às relações com o Estado que inclui o pagamento de taxas e impostos Paulo optou por uma estratégia de realismo político ou, se quisermos, quietismo político. Assim, lemos em Rom 13, 1-7: «Que todos se submetam às autoridades públicas, pois não existe autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram estabelecidas por Deus. ( ) Dai a cada um o que lhe é devido: o imposto, a quem se deve o imposto; a taxa, a quem se deve a taxa». Portanto, Paulo não defendeu uma revolução socio-política (como fizeram os zelotes na Palestina), nem optou por uma política de afastamento da corrupção na metrópole (como o grupo essénio de Qumran). J. Dunn refere que

8

DUNN, op. cit., p. 680.

9

STEGEMANN, Ekkehard W.; STEGEMANN, Wolfgang, Historia social del cristianismo primitivo: los inícios en el judaísmo y las comunidades cristianas en el mundo mediterrâneo, Estella (Navara), Verbo Divino, 2001, p. 401.

10

Ibidem, p. 402.

686

para Paulo, o realismo político, por sua própria definição, levava a viver dentro do sistema político, mesmo quando isto implicasse ter que viver em grande parte segundo as regras e exigências desse mesmo sistema. Esta realidade também formava parte da tensão escatológica 8.

9. Há afirmações indirectas nas Cartas de Paulo, que podem levar a supor que há diferenças económicas por detrás de certos conflitos. Mas, segundo Stegemann, tais afirmações nem sempre hão-de entender-se necessariamente como referidas a tensões sociais entre membros ricos e pobres das comunidades. Vejamos duas situações: a) Para Theissen, os conflitos originados no contexto da ceia do Senhor em Corinto eram resultado das tensões entre pobres e ricos. Contra esta visão, Stegemann defende que estas divisões «podem ser compreendidas no marco da situação diversificada do estrato inferior (1 Cor 11, 17ss)» 9 e portanto não têm que ser entendidas estritamente como um conflito entre cristãos pobres e cristãos ricos. Também é verdade que «a diferença socio-económica entre os membros da comunidade não era grande» 10.


b) Theissen 11 vê no conflito sobre comer ou não comer a carne oferecida aos ídolos (1 Cor 8-10) um reflexo da presença na igreja de Corinto de pessoas de níveis sociais muito diversos: os fortes ocupavam uma posição económica mais elevada que os fracos / débeis e consequentemente, estavam melhor integrados na sociedade. Mas esta visão é criticável, segundo Meeks 12 e Stegemann: não há nada que obrigue a interpretar os chamados fortes (um termo de Theissen, que não aparece no texto paulino) e os fracos / débeis (astheneis) como pessoas de condição social diferente 13. Uma terceira situação, bem distinta, é o recurso aos tribunais pagãos para resolver litígios entre membros da comunidade (cf. 1 Cor 6, 1-8) litígios estes que, em certos casos, podiam ser de índole económica. Neste ponto, Paulo opõe-se contundentemente a que os membros ( irmãos ) tentem resolver os problemas fora da comunidade, devendo antes tentar julgá-los dentro da comunidade, através de alguém «suficientemente sábio». 10. Que pensava Paulo sobre os ricos e a riqueza? A partir da análise das suas Cartas e do modelo de estratificação social nas suas comunidades, podemos dizer o seguinte: 14 a) Paulo nunca qualifica qualquer das pessoas que menciona como rica. b) Faltam nos seus escritos as típicas repreensões aos ricos, como as que se referem a um uso responsável da riqueza. É verdade que nas listas de vícios menciona-se a cobiça (Rom 1, 29; 2 Cor 9, 5s; cf. 1 Cor 5, 11), mas nunca se trata de admoestações dirigidas em particular aos ricos. Neste aspecto, o Paulo histórico distingue-se claramente de outros autores do NT, que têm uma atitude moralizante face aos ricos: S. Tiago (Tg 1, 9-11; 2, 1-13; 4, 13-5,6: o humilde, o pobre e o rico) 15 e o autor de 1 Tim (6, 3-10.17-19: o dinheiro e os ricos) 16. c) Surpreende, sobretudo, o facto de que Paulo nunca emprega num sentido concreto os termos relacionados com a riqueza, mas usa-os sempre e de maneira exclusiva em sentido

11

Cf. THEISSEN, Gerd, Estudios de sociología del cristianismo primitivo, Salamanca, Sígueme, 1985, 239-244.

12

MEEKS, Los primeros cristianos urbanos, p. 123.

13

De facto, o texto de 1 Cor 8 apenas fala da distinção entre possuir ou não a ciência/conhecimento (gnosis): há aqueles que têm o conhecimento (os chamados fortes , embora tal palavra não surja no texto), enquanto que os fracos / débeis (palavra que surge no texto) são os que não têm esse conhecimento (são débeis na sua consciência). Cf. STEGEMANN, E. W.; STEGEMANN, W., op. cit., p. 402.

14

Cf. Ibidem, p. 401.

15

Por exemplo: «E agora vós, ó ricos, chorai em altos gritos por causa das desgraças que virão sobre vós. As vossas riquezas estão podres e as vossas vestes comidas pela traça. O vosso ouro e a vossa prata enferrujaram-se e a sua ferrugem servirá de testemunho contra vós e devorará a vossa carne como o fogo» (Tg 5,1-3).

16

Por exemplo: «os que querem enriquecer caem na tentação, na armadilha e em múltiplos desejos insensatos e nocivos que precipitam os homens na ruína e na perdição. Porque a raiz de todos os males é a ganância do dinheiro» (1 Tim 6, 9-10).

687


17

Ver também 2 Cor 9, 19ss; cf. 1 Cor 1, 5; Rom 2, 4; 9, 23; 11, 12.33; Gal 4, 9.

18

Ibidem, p. 401. Esta afirmação não nega a existência de uma moral económica paulina, mas apenas confirma o que já dissemos sobre a ausência de uma reflexão sistemática de Paulo sobre os temas económicos, bem como a ausência de uma atitude moralista sobre a riqueza, como a que se verifica, por exemplo, em S. Tiago e no autor de 1 Tim.

19 HENGEL, Martin, Propiedad y riqueza en el cristianismo primitivo: aspectos de una historia social de la Iglesia antigua, Bilbao, Desclée de Brouwer, 1983, p. 48. 20 Cf. WODKA, Andrzes, Una teologia biblica del dare nel contesto della colletta paolina (2 Cor 8-9), Roma, Pontificia Università Gregoriana, 2000.

688

translatício ou figurado, com referência a Deus/Cristo ou aos crentes. Por exemplo: «Somos tidos ( ) por pobres, nós que enriquecemos a muitos; por nada tendo e, no entanto, tudo possuindo» (2 Cor 6, 10). «No meio das muitas tribulações com que [as igrejas da Macedónia] foram provadas, a sua superabundante alegria e extrema pobreza transbordaram em tesouros de generosidade» (2 Cor 8, 2) «Conheceis bem a bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo que, sendo rico, se fez pobre por vós, para vos enriquecer com a sua pobreza» (2 Cor 8, 9) 17. d) Para além do compromisso expresso de Paulo a favor dos «pobres de Jerusalém» mediante a organização de uma colecta, do seu apelo aos coríntios e romanos a serem generosos e hospitaleiros (Rom 12, 13s; cf. 2 Cor 9, 6s), e das suas diversas tentativas de aliviar as tensões sociais no seio das comunidades, «as Cartas paulinas não mostram qualquer interesse particular pelos problemas socio-económicos e, em especial, não mostram qualquer interesse pelo tema pobreza/ riqueza» 18. Na mesma linha, afirma M. Hengel: «pelo menos nas cartas autênticas de Paulo fica marginalizado o problema da riqueza e da pobreza, da possessão e da entrega dos bens» 19. 11. A colecta para os santos de Jerusalém é sem dúvida o grande tema de uma leitura económica de Paulo. Está desenvolvida em: 2 Cor 8-9 (sobretudo); 1 Cor 16, 1-4; Rom 15, 25-28.30-32; cf. Gal 2, 10. Mais do que um tema económico, na colecta reflecte-se a eclesiologia paulina de comunhão (koinonia) entre as várias Ekklesias e a sua fundamentação cristológica. Podemos encontrar aí elementos sugestivos para elaborar toda uma teologia do dar 20. A famosa expressão de 2 Cor 8, 9 «conheceis bem a bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo que, sendo rico, se fez pobre por vós, para vos enriquecer com a sua pobreza» é, no conjunto das 7 cartas autênticas de Paulo, o ponto de convergência e de fundamentação cristológica da atitude dos cristãos face aos bens materiais. Por isso, a colecta não é uma mera contribuição caritativa ou uma ajuda administrativa, mas é um serviço ( diakonia ), no sentido mais profundo da palavra, que as igrejas paulinas fazem pelos santos . É uma obra de graça


( charis ), que se insere na actividade diaconal e ministerial do próprio Paulo 21. É curioso que nas cartas paulinas não vemos o termo colecta ( logeia ) 22 que só aparece em 1 Cor 16, 1.2 mas outros de maior densidade doutrinal (serviço, graça). De facto, para Paulo, a colecta ou o dinheiro é comunhão (koinonia). Enquanto que nós, no actual sistema capitalista, tendemos a ver o dinheiro como uma coisa que distancia e distingue as pessoas («eu tenho mais do que tu, ou algo que tu não tens», «gostava de ter o que ele possui»), Paulo via o dinheiro como algo que possibilitava unir as pessoas: pelo dinheiro, um rico podia abrir-se às necessidades de um pobre e aproximar-se dele. No tema da colecta, o apóstolo recorre a um esquema cultural típico da Antiguidade, o círculo evergético 23, mas muda-o num aspecto essencial: o resultado da evergesía (beneficência) não será a fama, mas a salvação. Assim, as igrejas dos gentios são convidadas a dar dinheiro aos pobres (ptochoi) de Jerusalém, de modo que estes reconheçam a comunhão com os gentios e rezem por eles, fazendo com que os gentios alcancem a salvação. De certo modo, a organização da colecta por Paulo dá-nos pistas sobre como a beneficência cristã começou a institucionalizar-se 24. O princípio de equidade (isotes) entre as igrejas que Paulo enuncia (2 Cor 8, 13-15) 25 merece ser confrontado com a concepção de equidade na moral greco-romana (Aristóteles). Ao longo de 2 Cor 8-9, Paulo demonstra ainda uma sensibilidade pelos recursos financeiros dos coríntios (8, 12-15) e pelas suspeitas que normalmente há sobre as transacções financeiras (8, 19-21; 9.5). Uma leitura económica da colecta deveria atender igualmente aos aspectos técnicos da organização e logística da mesma. Na parte I do trabalho dissemos que a economia de troca directa (pagamento em espécie) estava mais difundida que a economia monetária (de troca indirecta). Então, podemos questionar-nos sobre a composição da colecta: será que Paulo levava consigo, além de dinheiro-moeda, alguns bens

21 Cf. BARBAGLIO, La teología de San Pablo, pp. 166-171. 22

Cf. Ibidem, p. 166. Cf. também BOSCH, J., op. cit., p. 471.

23

Naquela cultura, o círculo funcionava assim: o rico benfeitor gastava dinheiro e fazia uma obra a favor da polis, obtendo com isso prestígio e fama junto da população.

24 Cf. MEEKS, The origins of Christian Morality, p. 107. 25

«Não se trata de, ao aliviar os outros, vos fazer entrar em apuros, mas sim de que haja igualdade. No momento presente, o que vos sobra a vós supera a indigência dos outros, para que um dia o supérfluo deles compense a vossa indigência. Assim haverá igualdade, como está escrito: Quem muito recolheu, não teve de mais e a quem recolheu pouco, nada faltou ». Itálicos nossos.

689


em espécie, inclusive ouro? E qual foi o meio usado para guardar e transportar a colecta? Estas e muitas outras perguntas ficam pendentes no tema da colecta, como por exemplo, saber se esta foi ou não aceite pelos líderes da comunidade de Jerusalém. Por agora, apenas sublinhamos a ideia de que a colecta é, no epistolário paulino, a grande janela que se nos abre em questões de economia e que nos faz ver como a moral económica está subordinada à cristologia e à eclesiologia.

Conclusão

26

Pode ver-se uma lista de mais de 36 colaboradores(as) de Paulo em: HAWTHORNE, G. F. (ed.), Dictionary of Paul and his Letters, Downers Grove (Illinois), 1993, p. 184.

690

Da leitura económica que aqui realizamos emerge uma determinada imagem de Paulo e das suas comunidades: 1) Uma das coisas que mais chama a atenção é a riquíssima rede de relações humanas que Paulo tinha com as suas comunidades e os seus colaboradores mais directos (homens e mulheres) 26. Foi de facto um homem com uma forte personalidade (líder e fundador), mas que também soube trabalhar em equipa . Ajudou e deixou-se ajudar. 2) Paulo viveu na pobreza, desprendido dos bens, e chegou a passar, algumas vezes, por situações de miséria e de risco de vida. Trabalhou para o seu sustento e pediu ajudas económicas para as suas viagens e acção missionária. 3) Fomentou a busca do bem comum nas suas comunidades e empenhou-se em ajudar os pobres, tanto dentro como fora das suas comunidades (é o caso da colecta) de forma a promover o bem da igreja (ekklesia) universal. Centrado na sua missão, nunca se esqueceu do vínculo especial das suas igrejas com a igreja de Jerusalém. 4) A colecta para Jerusalém também nos mostra: o fundamento da actuação dos cristãos no mundo (Cristo); a eclesiologia paulina de comunhão entre a igreja local e a igreja universal; e o início da institucionalização da beneficência cristã. 5) As comunidades paulinas foram, portanto, comunidades de partilha de bens, apesar de grande parte dos seus membros pertencerem ao estrato inferior e ao grupo dos relativamente pobres ( penetes ). Este espírito de partilha é o que possivelmente explica que nas comunidades paulinas não existiram pessoas absolutamente pobres ( ptochoi ).


6) Paulo não se dedicou a uma reflexão sobre a pobreza/ riqueza ou a elaborar uma teoria da justiça para a sociedade ( polis ). A sua primeira preocupação era a comunidade dos crentes, baptizados em Cristo, que juntos formam o Corpo de Cristo. 7) Também referimos alguns casos em que não se devem projectar questões económicas no texto paulino: as tensões na ceia do Senhor em Corinto; e o problema de comer ou não a carne imolada aos ídolos. 8) A moral económica paulina não nos oferece regras de comportamento, mas sim uma motivação de fundo para viver o Evangelho. É uma moral discernida (que atende ao contexto) e que nos mostra a força das convicções de quem age com o coração centrado em Cristo e virado para os outros. 9) Da leitura económica das Cartas de Paulo podemos intuir uma visão positiva 27 das realidades terrenas: os bens materiais e o dinheiro nunca são vistos aqui como algo moralmente mau , mas pelo contrário, se bem usados, podem e devem fundamentar a comunhão (koinonia) entre os seres humanos. O único e verdadeiro bem é a alegria da salvação em Cristo, ao qual tudo o resto e todos os outros bens estão subordinados. Daqui resulta este axioma paulino: a economia da salvação divina pede para ser concretizada numa economia de comunhão ( koinonia ) 28 entre as pessoas. E assim chegamos ao final desta viagem ao passado , em que fomos reimaginando o mundo social em que Paulo viveu, bem como o que ele pensou sobre temas económicos. Partimos do princípio de que o contexto socio-económico em que Paulo se moveu e desenvolveu a sua actividade pastoral moldou a sua mentalidade. Paulo foi um homem do seu tempo e falou às pessoas do seu tempo, utilizando as categorias sociais e económicas do seu tempo. Se não fosse assim, ninguém o teria entendido. Parece algo óbvio, mas só recentemente 29 é que a interpretação bíblica começou a tomar isto em consideração. Para perceber o pensamento de Paulo nas Cartas (parte II deste estudo) há que fazer primeiro um «esforço hermenêutico» em ter presente as categorias culturais do séc. I, para evitar uma projecção ingénua das nossas.

27

Esta visão positiva é um dos pólos no modo de Paulo entender as realidades terrenas. O outro pólo é uma visão negativa, quando Paulo se refere ao poder da carne (sarx) e do pecado (amartia) no mundo.

28

Apresentei uma proposta de economia de comunhão em: «Pensar o ser humano na Economia: do indivíduo (homo oeconomicus) à pessoa», Brotéria 167 (2008), 243-263.

29

Uma das novidades do Vaticano II (1962-5) foi admitir, pela primeira vez no campo da investigação católica, o recurso aos métodos histórico-críticos para a interpretação da Bíblia.

691


Mas não esqueçamos que, ao mesmo tempo, Paulo é um teólogo da «loucura e escândalo da cruz» (cf. 1 Cor 1, 23), o que significa que a sua teologia apresenta não só aspectos de continuidade, mas também de ruptura com a forma normal de pensar do seu tempo. Paulo, arrebatado pela experiência da graça, foi descobrindo que a novidade da Palavra de Deus que recebeu e do evangelho que anunciava nem sempre encaixava nos termos da cultura e da sociedade em que vivia, porque apontava para uma realidade mais além . Dito isto, a teologia actual tem a missão de actualizar o pensamento de S. Paulo palavra de Deus em palavras humanas (cf. Dei Verbum 12-13) com as categorias do mundo de hoje e não do séc. I, consciente de que a mensagem do NT, por maior que seja o esforço de inculturação, terá sempre algo de sinal de contradição , de loucura e escândalo em qualquer cultura. Integrar a autoria humana e a inspiração divina das suas Cartas seria a melhor maneira de render homenagem ao apóstolo dos gentios, cujo nascimento, há dois mil anos, celebramos recentemente no Ano Paulino.

692


A I República e a Igreja Católica

Francisco Senra Coelho *

D. Augusto Eduardo Nunes e a redacção dos Documentos Colectivos do Episcopado Português

Contexto Histórico Dom Augusto Eduardo Nunes, Arcebispo Coadjutor de Évora com futura sucessão (1885-1890) e depois Arcebispo Metropolita de Évora (1890-1920) sofreu o desterro partindo de Évora para Elvas a 08 de Abril de 1912, abandonando para sempre o Paço, onde viveram durante séculos os Arcebispos de Évora. A pena imposta pelo Governo da República Portuguesa foi de dois anos. A 17 de Outubro de 1917, D. Augusto Eduardo Nunes é intimado pelo Governo Civil de Évora a prestar declarações por ordem do Ministro do Interior. De facto, no Ministério da Justiça o processo contra os Metropolitas de Braga e Évora estava pronto para ser publicado, quando, um dia antes, a 5 de Dezembro, deflagrou, em Lisboa, uma revolução chefiada pelo Professor Universitário de Coimbra, Sidónio Pais, uma esperança para a pacificação de Portugal. O Arcebispo de Évora já tinha tudo preparado para cumprir o desterro fora do país, alugando uma casa em Badajoz para dali poder governar a Arquidiocese Eborense e o Bispado Pacense de que era Administrador Apostólico, desde a expulsão de D. Sebastião Leite de Vasconcelos. O primeiro desterro, para fora do Distrito de Évora (para Elvas), teve por base um protesto por ele assinado a 16 de Janeiro de 1912 contra a instituição das Associações Cultuais, usando uma circular dirigida aos Párocos. O Governo consi* Professor de História da Igreja no ISTE.

Brotéria 169 (2009) 693-716

693


1 Volvidos dois anos, segundo o Arquivo Secreto Vaticano realizou-se em Paris uma importante reunião de livres pensadores para preparar o Congresso Internacional do Livre Pensamento a realizar em 1913. Na verdade, esse Congresso, como o da Maçonaria, realizou-se em Lisboa em 1913 e coincidiu com o 3.º aniversário da Revolução Republicana em Portugal. A adesão estrangeira foi grandíssima. Para além da presença europeia contou-se com a adesão da América Latina e da China. Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna (1910-1920), 399.1, Posizione VI, Sezione 1, «Manifesto dos Padres Pensionistas», (16 de Ag. 1912), in O Amigo da Religião, [s.n., s.d.], p. 371, f. 194.

694

derou o protesto ofensivo às Leis da República, mandando levantar um processo ao Arcebispo de Évora, com auto de declarações, a 12 de Março daquele ano, no Paço Arquiepiscopal e perante o Administrador do Concelho. O segundo desterro, que seria fora do país, foi devido ao protesto, escrito por D. Augusto Eduardo Nunes e assinado pelos Metropolitas de Braga e Évora, contra a pena de desterro infligido ao Bispo do Porto, D. António Barroso, pelo Ministro da Justiça, Dr. Alexandre Braga (Agosto de 1917), pelo facto de este Prelado ter concedido autorização a um pequeno grupo de senhoras para viverem em Comunidade Religiosa. O vigor da fidelidade deste Prelado Eborense à Igreja Católica destaca a sua douta preparação intelectual de Professor Catedrático da Faculdade de Teologia da Universidade de Coimbra e merece da investigação histórica uma aprimorada atenção. De facto, D. Augusto Eduardo Nunes era um dos Bispos melhor preparados e dos mais talentosos a nível intelectual e espiritual. Com os seus colegas do Episcopado fez a Resistência Católica à Maçonaria Jacobina e à Carbonária Revolucionária, anti-Clerical e anti-Católica. As páginas que se seguem debruçam-se sobre o contributo do Arcebispo de Évora para a redacção das duas Cartas Pastorais Colectivas da primeira República (24 de Dezembro de 1910 e 22 de Janeiro de 1917) e para o Protesto Colectivo escrito a 5 de Maio de 1911. Servimo-nos, para tal, das fontes arquivísticas do Arquivo Secreto Vaticano (Secretaria de Estado, Nunciatura Apostólica de Lisboa) e do Arquivo da Diocese de Évora: o Pontificado de D. Augusto Eduardo Nunes e a Nunciatura Apostólica de Lisboa, no tempo de Mons. Benedetto Aloisi-Masella (1910-1920).

A Pastoral Colectiva e D. Augusto Eduardo Nunes (24 de Dezembro de 1910) Antecedentes da Pastoral Colectiva No dia 05 de Outubro de 1910 1, foi deposta a Monarquia e proclamado na Câmara Municipal de Lisboa o Regime Repu-


blicano. D. Manuel e toda a Família Real partiram de Portugal, para não mais voltar. Logo no dia 7 do mesmo mês, o Núncio Apostólico, Mons. Tonti 2, informou o Secretário de Estado da Santa Sé, Cardeal Merry del Val, sobre a Revolução Republicana e «sobre a nova forma de governo, não havendo dúvida alguma, que se fará a lei da separação Igreja-Estado» 3. Na mesma mensagem, Mons. Tonti opina que o regime não entenderá esta Lei à maneira brasileira, mas seguirá o exemplo da França. Em consequência dos acontecimentos, Mons. Tonti partiu de Lisboa para Roma, deixando os negócios da Santa Sé e a Nunciatura Apostólica de Lisboa à custódia do Jovem Secretário, Mons. Benedetto Aloisi-Masella 4. A Missão de Mons. B. Aloisi-Masella em Lisboa foi delineada pelo Secretário de Estado, Cardeal Merry del Val, a 21 de Outubro de 1910 5. Este deveria orientar-se por sete propostas de trabalho: Máxima reserva; Guardar silêncio até novas normas da Santa Sé; Permanecer discretamente como simples custódio da Nunciatura em Lisboa, não declarando a sua Qualificação Pessoal Diplomática, excepto em caso de ser necessário para sua defesa pessoal; Abster-se de qualquer acto que pudesse interpretar-se como reconhecimento, ainda que implícito, do novo Governo; Que tivesse em ordem as caixas do Arquivo da Nunciatura para poderem ser expedidas solicitamente, a qualquer momento em que recebesse ordens a tal propósito; Que continuasse a manter informada a Santa Sé sobre todos os acontecimentos que pudessem ter interesse; Fazer chegar um endereço alternativo duma pessoa segura, para que a Santa Sé lhe pudesse enviar a correspondência em caso de necessidade 6. Sabemos, através duma informação de Mons. B. Aloisi-Masella ao Cardeal Merry del Val, fornecida a 28 de Outubro, que, excepto o Brasil e a Argentina, cujos novos Representantes Diplomáticos apresentaram as novas cartas e credenciais, todos os outros países manifestavam reservas perante o novo

2 Mons. Tonti nasceu em Roma a 09 de Setembro de 1844. Nomeado Arcebispo de Sarcos a 11 de Julho de 1892 e promovido a Arcebispo de Sardes em 1893. Foi transferido para Port-au-Prince a 21 de Outubro de 1894. Em 1902, foi nomeado Núncio Apostólico no Brasil e a 04 de Outubro de 1906 é transferido para a Nunciatura Apostólica de Lisboa. A 25 de Outubro de 1910 regressa a Roma, devido à Revolução Republicana. 3 ASV, Segretaria di Stato, (1910), Rubrica 250, Fasc. 4: Original N§349. 4 Mons. Benedetto Aloisi-Masella nasceu em Pontecorvo, Itália, a 29 de Junho de 1879. A 21 de Junho de 1902 foi ordenado presbítero. Regressado a Roma foi apresentado a 15 de Dezembro de 1919 para Arcebispo Titular de Cesareia de Mauritânia. O Consistório de 21 do mesmo mês confirma-o no título. No Consistório de 18 de Fevereiro de 1946 foi feito Cardeal Presbítero pelo Papa Pio XII com o título de S. Maria in Valicella. A 17 de Novembro foi nomeado Cardeal Bispo da Igreja Buburbigário da Palestina. Pela mesma ocasião foi também nomeado Camerlengo S. R. C. e Arcipreste da Patriarcal Basílica Lateranense. Trabalhou nos seguintes serviços: Conselho para os AA: PP. Da Igreja; Congregações para os Bispos e para a Igreja Oriental, para a Disciplina dos Sacramentos, para os Religiosos, para a Evangelização dos Povos, para a causa dos Santos; no Supremo Tribunal da Signatura Romana, na Comissão Pontifícia para a revisão do Código de Direito canónico; nas Comissões Cardinalícias para os Santuários de Pompeia e de Loreto. 5 Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna, n.º 392.1, 1910-1922, Posizione I, Sezione 3.

695


6 ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna, n.º 392.1, 1910-1922, Posizione I, Sezione 3. 7 Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna, n.º 392.1, 1910-1922, Posizione I, Sezione 3.

8

Cf. Ibidem.

Governo, que só viria a ser reconhecido após a Constituição da Câmara dos Deputados e após a verdadeira adesão do Povo ao novo Regime 7. Sabemos ainda, pela mesma informação, que se viviam momentos graves e intranquilos, até porque os Jesuítas tinham sido expulsos, colocados na fronteira, estando ainda alguns detidos no Forte de Caxias 8. Vários acontecimentos, ligados à falta de segurança, contribuíram para estas Posições Diplomáticas Internacionais. Vejamos alguns: Logo no dia 4 de Outubro registaram-se, entre outros, os seguintes ataques violentos: Assalto ao Colégio S. Vicente de Paulo, em Arroios, por bandos revolucionários armados, que prenderam o Padre Bernardino Barros Gomes; julgando-o jesuíta e considerado um dos melhores especialistas nas ciências da natureza, depois de o terem tratado com requintes de crueldade, assassinaram-no barbaramente. Era o irmão do antigo Ministro Barros Gomes; Morte a tiro do Padre francês Alfred Fargeus, que vivia na Igreja de S. Luís. A morte destes dois Sacerdotes causou a maior repulsa às pessoas sensatas; Assalto de muitas casas particulares, de individualidades conotadas com os ideais realistas ou católicos. A dar força a estes bandos revolucionários estavam, com frequência, comissões cívicas, para quem o uso das armas se havia tornado um direito. Na manhã de 5 de Outubro: Assalto ao Colégio dos Jesuítas em Campolide, com prisão do Reitor e empregados. Levados para o Quartel de Artilharia 1, aí foram sujeitos a um processo de identificação e, depois, enviados para o Limoeiro. Como não fosse possível guardá-los aqui, em segurança, foram, depois transferidos para Caxias, acompanhados pelos insultos e enxovalhos da população; Invasão do Colégio do Barro, em Torres Vedras, com a procura de documentos e de sinais comprometedores, procura essa feita com sinais de desrespeito e vandalismo. Assalto à Residência de Vale de Rosal e de Setúbal, violentamente invadidas e vasculhadas por bandos armados e estudantes cheios de ódio às Congregações Religiosas» ( ).

9 MACEDO, José Adílio Barbosa, «D. António Barroso, Afonso Costa e a Pastoral Colectiva», Lusitânia Sacra, 2.ª Série, Tomo VI, (1994), 331-332.

696

Para fundamentar estas atitudes, de facto, foi abundante e contundente a Legislação Republicana contra as Congregações Religiosas, contra o Clero e contra a Religião Católica 9.


Para além destes acontecimentos: 1910.10.08 um Decreto com força de Lei, do Ministério da Justiça, manda que continuem em vigor as Leis de 3 de Setembro de 1759 e de 28 de Agosto de 1767 sobre a expulsão dos Jesuítas, e de 28 de Maio de 1834 sobre o encerramento dos Conventos. O mesmo Decreto anula o anterior Decreto de 18 de Abril de 1901 que autorizou a constituição de Congregações Religiosas. Uma série de Decretos e Portarias posteriores nomeiam as pessoas e estabelecem a forma de proceder à imposição de selos e de fazer o arrolamento dos bens das Congregações, bem como a sua integração progressiva na posse do Estado. Muitos desses bens foram cair, no entanto, em mãos particulares. 1910.10.18 Decreto, com força de lei, abolindo, nos actos civis, o juramento com carácter religioso e estabelecendo as fórmulas que o devem substituir. 1910.10.21 Portaria a suspender o Bispo de Beja, D. Sebastião Leite de Vasconcelos, de todas as temporalidades, até nova resolução do Estado. Esta portaria tenta estabelecer as «obrigações da Autoridade Eclesiástica» ou seja, os preceitos de supremacia do Poder Civil sobre o Religioso. 1910.10.22 Decreto a suprimir o ensino da doutrina cristã nas Escolas Primárias e Normais. 1910.10.26 Decreto a mandar considerar dias de trabalho todos os dias santificados, à excepção do Domingo. 1910.11.03 Decreto, com força de Lei, estabelecendo o divórcio. É decreto extenso, contando 5 capítulos e 70 artigos, a estabelecer conceitos e formas e a definir pessoas e bens. 1910.11.28 Decreto a proibir as Forças do Exército e da Armada de intervir em solenidades de carácter religioso. 1910.12.25 Decretos a definir o casamento apenas como «contrato civil». Eles revelam a preocupação de estabelecer a precedência civil sobre o religioso, através de uma actividade legislativa visceralmente anti-religiosa. 1910.12.26 Catálogo da Província Portuguesa da Companhia de Jesus, no princípio do ano de 1910. Cópia do 697


original em latim, na Casa do Noviciado, no Barro, com respectiva tradução em Português. É um texto bilingue a ocupar 19 longas páginas. 1910.12.31 Decreto, com força de Lei, regulando a posse pelo Estado dos bens das extintas Corporações Religiosas. É um decreto que contém 5 capítulos e 46 artigos. 1911.01.21 Despacho do Ministro da Justiça encarregando os Juízes de Direito das diferentes Comarcas de procederem imediatamente ao arrolamento dos bens mobiliários e imobiliários que tivessem sido ou estejam ainda detidos ou ocupados por quaisquer Corporações ou Institutos Religiosos Congregações, Companhias, Conventos, Colégios, Hospícios, Associações, Missões e quaisquer Casas de Religiosos de todas as Ordens Regulares, fosse qual fosse a sua denominação, Instituto ou Regra segundo as disposições do decreto de 8 de Outubro de 1910 e em conformidade com as informações sobre a vida e bens do Secretário da Comissão nomeada pela Portaria de 27 de Dezembro de 1910, publicada no Diário do Governo, do dia 28. 1911.01.23 Decreto a extinguir o Culto Religioso na Capela da Universidade de Coimbra e a criar um Museu de Arte na mesma Capela. 1911.01.26 Despacho a encarregar uma Comissão de sindicar os actos praticados pelo Pároco Colado da Freguesia do Beato, da Cidade de Lisboa. 1911.02.18 Decreto, com força de Lei, instituindo o Registo Civil obrigatório. Para os nascimentos, casamentos e óbitos. Contém 12 capítulos e 365 artigos, seguidos de Mapas, Modelos, Boletins Estatísticos, etc. Os artigos 312 a 316 estabelecem precedência do Registo Civil em relação às Cerimónias Religiosas, bem como as penalidades que incorrem os que não as observassem. 1911.03.08 Decreto, com força de Lei, destituindo das funções o Bispo do Porto, D. António Barroso, «que não poderá voltar a qualquer ponto do território da mesma Diocese sem que intervenha nova deliberação do Governo da República». O mesmo decreto afirma que «é declarada vaga a 698


Diocese do Porto, para todos os efeitos legais ( ) como se a vacância do Bispado do Porto resultasse de falecimento» 10. Decreto com força de Lei, sobre a Família: 1.º: sobre o Casamento como «contrato civil» com 72 artigos; 2.º: sobre a Protecção dos filhos com 59 artigos. É a laicização da Família. São as chamadas «leis da família».

Apresentação da Pastoral Colectiva 11 Os Bispos, perante a violência destes factos iniciados nas vésperas da Revolução, no dia 4 de Outubro 1910, mas, sobretudo, ao constatarem que as Leis emanadas do Governo Provisório, desde os primeiros momentos da Revolução, eram atentatórias às Liberdades e aos Direitos da Igreja, concluíram que «não podiam nem deviam continuar silenciosos e impassíveis em tão especial conjuntura». Aliás, é com estas palavras que eles justificam a sua intervenção na própria Pastoral Colectiva. Assim, os Bispos reuniram-se em S. Vicente de Fora, no início de Novembro, sob a Presidência do Arcebispo Patriarca de Lisboa, D. António Mendes Belo. Os Bispos concluíram, que perante tão grande calamidade, era necessário agir em colegialidade. Pela primeira vez na História da Igreja Portuguesa iria ser publicada uma Pastoral Colectiva. Concordes nos procedimentos e na essência dos conteúdos, confiaram a redacção do documento ao Arcebispo de Évora, D. Augusto Eduardo Nunes 12. A Pastoral Colectiva saiu a público com data de 24 de Dezembro de 1910 e foi assinada por todos os Bispos Residenciais e pelo Bispo Coadjutor de Viseu. A Carta consta de 42 páginas e foi editada pela Tipografia Veritas da Guarda, sob o título original Pastoral Colectiva do Episcopado Português ao Clero e Fiéis de Portugal 13. A Pastoral começa por debruçar-se sobre as Relações Igreja-Estado em Portugal ao longo da História, concluindo que as dificuldades vividas no momento encontravam razão de ser nas influências inspiradoras do Positivismo, do Determinismo, do Anarquismo, do Colectivismo Socialista e da sua

10

Cf. Ibidem, 332-335.

11 Cf. FONTES, Paulo F. Oliveira, «O Catolicismo Português no Séc. XX: da Separação à Democracia», in AZEVEDO, Carlos Moreira (Dir.), História Religiosa de Portugal, Vol. 3, Rio de Mouro, Círculo de Leitores, 2002, p. 139.

12 Cf. Pastoral Collectiva do Episcopado Português ao Clero e Fiéis de Portugal, (24 de Dezembro de 1910), Guarda, Tipografia «Veritas», 1911, p. 42.

13

( ) a definitiva redacção foi confiada ao Arcebispo de Évora, D. Augusto Eduardo Nunes. Cf. OLIVEIRA, Miguel, História Eclesiástica de Portugal, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1994, p. 225.

699


14

Ressalvada a doutrina da Igreja sobre o respeito devido aos poderes constituídos, protestavam os prelados contra todas as violências do novo regime e davam aos católicos as seguintes normas práticas: «1.ª Não devem jamais cooperar, admitir a menor cumplicidade nem sequer dar aprovação a coisa alguma que signifique ou origine hostilidade ao Catolicismo; 2.ª Devem procurar, por todos os meios legais e honestos, favorecer, na medida da sua possibilidade, a causa da Religião e a Igreja Católica, e unidos em um terreno comum empenhar esforços para remover da legislação tudo o que à mesma causa seja contrário». Cf. OLIVEIRA, Miguel, op. cit., p. 225.

15

Pastoral Colectiva, Edição de Lisboa, 1911, p. 10.

16

Feição não só acatholica, mas anticatholica accusam muitas medidas que, desde a implantação do novo regime, decretou o Governo; porquanto: proscreveu a Companhia de Jesus extinguiu todas as demais ordens e congregações religiosas. Cf. Pastoral Colectiva.

17

Aboliu o juramento religioso. Cf. Pastoral Colectiva.

18

Prohibiu o ensino da doutrina christã nas escolas officiaes, e suprime a Faculdade de Theologia da Universidade de Coimbra. Cf. Pastoral Colectiva.

19

Offendeu o carácter indissolúvel do matrimónio, facultando o divorcio. Cf. Pastoral Colectiva.

20

Cf. Pastoral Colectiva.

21

Cf. Ibidem.

22

Depois do amor à Igreja, que nos promete e assegura a vida imortal da alma, é também dever vosso legítimo e sagrado amar a pátria

700

exaltação económica e do Ateísmo Radical, pelo qual se negava toda a Religião Revelada e até a Religiosidade Natural 14. Nesta introdução é abordada a problemática da conciliação entre a liberdade e a dignidade humana e o devido respeito à autoridade. Para os Bispos só no Catolicismo se encontra uma solução equilibrada para esta dicotomia, pois, o Catolicismo manda obedecer à Autoridade Civil, condicionando esta obediência à sabedoria divina. De facto, «acima de todas as leis humanas está o eterno princípio do justo: lex injusta, lex nulla» 15. Na primeira parte da Pastoral, os Bispos desaprovavam todas as leis que decretavam a extinção das Ordens Religiosas 16; a abolição do juramento religioso 17; a proibição da Religião nas escolas públicas e oficiais, não aceitando a noção de «escola neutra» 18, «pois os pais têm o direito de decidirem sobre a educação dos seus filhos»; a aceitação do divórcio 19, «pois este é inconciliável com a lei divina, abre a porta ao anarquismo na cama, ou seja, às relações de facto, mas sem a estabilidade do amor vitalício». Numa segunda parte, os Bispos falam ao coração dos fiéis. Estes deviam encarar com serenidade e confiança em Deus os acontecimentos 20; aceitar as tribulações com fé e à luz da vontade de Deus 21, pois ela «do mal tira o bem»; amar a Igreja e amar a Pátria 22; viver a fé e permanecerem fiéis aos Pastores, aceitando as suas orientações de fé, de moral e do referente aos compromissos públicos e sociais 23. Os católicos não deviam «jamais cooperar, admitir a menor cumplicidade nem sequer dar aprovação a coisa alguma que signifique ou origine hostilidade ao catolicismo. ( ) deviam procurar por todos os meios legais e honestos, favorecer, na medida da sua possibilidade, a religião e a Igreja Católica( )». Os Bispos davam também orientações para as eleições: votar em candidatos que ofereçam garantia e façam a defesa dos interesses do catolicismo «sejam quais forem os partidos a que pertençam» 24. A conclusão da Pastoral Colectiva dirigia-se aos Sacerdotes 25, a quem eram confiadas as tarefas de ensinar nas prega-


ções, catequizar as crianças e os adultos, falar mais à inteligência do que à memória 26. Finalmente os Sacerdotes deviam utilizar as orações «Pro quacumque tribulatione» do Missal e lerem a Pastoral Colectiva aos seus Fiéis num dos Domingos seguintes 27.

Reacções à Pastoral Colectiva A reacção do Governo Provisório em relação à Pastoral Colectiva foi a sua proibição. O Conselho de Ministros decidiu negar ao documento o Beneplácito 28. Através da imprensa da época, nomeadamente da Voz da Verdade, Revista Religiosa 29, sabemos que vários Padres foram presos por lerem aos seus fiéis, na Missa Dominical, esta Pastoral. O Governo tentou impedir a difusão dos exemplares e inclusivamente apreendê-los. Mas em vão, pois a Pastoral já estava espalhada por todas as Dioceses, Vigararias e Paróquias. O Governo Provisório decidiu enviar um ofício a cada Bispo, exigindo que estes comunicassem aos Vigários e aos Párocos que a Pastoral carecia de Beneplácito e por isso não poderia ser lida. O Governo ameaçava que puniria os Bispos se o Episcopado se recusasse a cumprir as suas ordens 30. Todos os Bispos acataram obedientemente as orientações do Governo, excepto o Bispo do Porto, D. António Barroso, pelo que lhe foi depois aplicada a primeira pena de desterro 31. Interessa aqui conhecer a posição do Arcebispo de Évora, D. Augusto Eduardo Nunes, autor da «Pastoral Colectiva», intelectual prestigiado e um dos primeiros oradores da Nação. Évora, 14, às 12 e 42. Tenho a honra de acusar, recebido ontem à noite, o telegrama de Vossa Excelência. Peço respeitosamente licença para ponderar o Beneplácito, pois jamais foi exigido no Regímen antigo para Pastoraes dos Prelados. Todavia, tenho recomendado aos Párocos que obedeçam à intimação das autoridades, prohibindo a leitura da Pastoral Collectiva nas Igrejas, conformando-me assim com a doutrina da mesma Pastoral qua aconselha respeito aos poderes constituídos 32.

terrestre, em cujo seio maternal gozamos a vida do tempo. Cf. Pastoral Colectiva. 23

Não é apenas nas coisas propriamente da fé e da moral que os catholicos dignos d este nome devem acceitar a autoridade e direcção dos legítimos Pastores da Igreja: cumpre também docilmente se lhes sujeitem nas referentes à vida pública e aos deveres sociaes. Cf. Pastoral Colectiva.

24

Cf. Pastoral Colectiva, pp. 15-26.

25

Se aos fiéis em geral são applicáveis as recomendações que deixâmos até aqui feitas, de maneira muito especial vos tocam a vós, Reverendos Sacerdotes Cf. Pastoral Colectiva.

26

Tudo isto conheceis perfeitamente, e será supérfluo insistir na necessidade urgente e na obrigação sacratíssima que sobre vós impende, de ensinar a doutrina quer sob a forma de pregação propriamente dita, quer por meio da homilia e da catechese, que, sendo menos brilhantes, são contudo mais profícuas e necessárias. Cf. Pastoral Colectiva.

27

Cf. Pastoral Colectiva.

28

Beneplácito Régio (BR) Exigência do poder civil de que os documentos pontifícios e episcopais fossem submetidos à aprovação régia, para terem valor jurídico no país, mesmo no âmbito eclesial. Esta exigência começou em Portugal com D. Pedro I, atravessou todo o Antigo Regime e atingiu o seu auge no tempo de D. José, com o regalismo dominante. No liberalismo o BR estava entre as prerrogativas reais, mediante a aprovação das Cortes. O BR exprimia a clara dependência da Igreja face ao poder civil. A «lei da separação»

701


(1911) pretendia manter o BR, mas os prelados não o aceitaram, sofrendo as consequências O B(R) foi abolido em 1918 e mais expressamente ainda na Concordata de 1940. (Nota do editor). Cf. Voz da Verdade: Revista Religiosa 10 (09 de Março de 1911), 134-139. O governo, «sem prejuízo doutras providências, resolveu negar o beneplácito à pastoral colectiva» e expediu ordens aos administradores de concelho para proibirem a sua leitura. Em algumas dioceses suspendeu-se a leitura já começada, mas no Porto, D. António Barroso manteve a ordem dada, e a leitura fez-se com raras excepções. Cf. OLIVEIRA, Miguel, op. cit., p. 253 29

Cf. Voz da Verdade: Revista Religiosa 10 (09 de Março de 1911), 134-139.

30

Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna, Relatorio n.º 408 de Mons. Masella ao Cardeal Merry de Val (27 de Outubro de 1911), fls. 118-119. Afonso Costa chamou o prelado a Lisboa (D. António Barroso) e, depois de o sujeitar aos insultos da populaça, publicou um decreto em que o declarava «destituído das suas funções de bispo» e «vaga a diocese», como se a vacância ( ) resultasse de falecimento». Cf. OLIVEIRA, Miguel, op. cit., pp. 235 e 236.

31

Cf. Nota anterior.

32

ADE (Casa Episcopal), Cx. Correspondência Expedida, Correspondência de D. Augusto Eduardo Nunes em Actividades Civis, 1911.

33

Cf. ASV, Nunziatura Apostolica de Lisbonna, 398.1, Posizione IV, Sezione 2, Lei da Separação, Pastoral Colectiva.

34

Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna (1910-1922), 398.2, Posizione V, Sezione 1.

702

Também houve reacções por parte de alguns intelectuais leigos contra a posição do Governo Provisório em não conceder Beneplácito à Pastoral Colectiva. De facto, como se poderia entender uma Lei de Separação que pugnava pela intromissão na vida interna da Igreja? Assim, o Doutor Manuel de Oliveira Chaves publicou duas importantes reflexões sobre a Liberdade da Igreja: Pastoral Colectiva do Episcopado Português e Rectificações e Comentários Jurídico e Histórico 33.

O Protesto do Episcopado Português (5 de Maio de 1911) O contexto da Lei de Separação do Estado e das Igrejas 34 A intenção de realizar a separação Igreja-Estado foi descoberta pelo Patriarca de Lisboa, desde o primeiro momento em que o Governo Provisório a planificava. A sua reacção foi a antecipação. Assim, no dia 5 de Novembro de 1910, foi enviado um telegrama da parte de Mons. B. Aloisi-Masella ao Cardeal Merry del Val, no qual informava que seis ou sete Bispos se tinham reunido para se colocarem de acordo com o Patriarca sobre as atitudes a tomar sobre os rumores de que o Governo iria pedir sugestões aos Bispos acerca dos conteúdos da futura Lei de Separação Igreja-Estado 35. A resposta do Secretário de Estado é que o Patriarca deve procurar ouvir as Propostas do Governo, se este lhas indicar; e não se pronunciar pela parte dele, dizendo que se tem de reunir com os Bispos, informando entretanto a Santa Sé sobre o assunto 36. No dia 13 de Novembro chegou um segundo telegrama do Cardeal Merry del Val, recebido em Lisboa por Mons. B. Aloisi-Masella 37, pedindo-lhe que comunicasse ao Patriarca: Segundo os princípios constantemente mantidos pela Igreja, nem a Santa Sé, nem o Episcopado podem tratar directamente ou indirectamente sob as bases da separação. Portanto, em caso algum, o Patriarca pode formular qualquer projecto. O Patriarca poderá, através de terceira pessoa, de modo absolutamente confidencial, tratar melhor o Projecto de Lei e discordar das disposições mais funestas.


Talvez não seja inútil recordar que no Brasil foi obtida a pacificação dos ânimos e consequente prosperidade do Estado, mediante a separação que reconheceu a liberdade e a personalidade jurídica da Igreja. O Patriarca deverá ter em atenção não acolher censuras antipatrióticas, gerando rupturas, as quais prejudicariam o Patronato das Índias. As disposições canónicas sobre as faculdades da Nunciatura foram acertadas no referente ao Matrimónio. De facto, no dia 12 de Novembro tinha chegado às mãos do Patriarca de Lisboa, uma carta do Ministério da Justiça, Direcção Geral dos Negócios de Justiça 38, na qual se comunicava que o Conselho de Ministros tinha votado, em princípio, a Lei da Separação, recebendo-se indicações e sugestões sobre o assunto, devendo dirigir-se estas colaborações ao referido Ministério da Justiça. Antes desta carta chegar às mãos do Patriarca, já o Ministro da Justiça tinha pedido ao Patriarca que lhe enviasse sugestões sobre a Lei de Separação. Mons. B. Aloisi-Masella telegrafou para Roma a dar disto conhecimento, no dia 8 de Novembro de 1910 39, e a dizer que sugeriu ao Patriarca que não enviasse nenhuma sugestão, nem sequer como pessoa privada, sem licença do Papa. O Patriarca tinha acedido às instruções recebidas e pedia mais instruções a Roma. No dia 11 de Novembro, Mons. B. Aloisi Masella telegrafava ao Cardeal Merry del Val 40 pedindo-lhe directivas, pois os Bispos

35

Cf Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna (1910-1922), 398.2, Posizione V, Sezione 1.

36

Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna, 398.1, Poszione IV, Sezione 1, fl. 10.

37

Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna, Telegrama do Cardeal Merry Del Val a Mons. Masella, recebida em Lisboa (13 de Novembro de 1910, hora 6 p.m.), fls. 11.

38

Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna, n.º 365, f. 229.

39

Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna, n.º 47185, f. 8.

40

Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna.

perguntam se o Santo Padre aprovaria o seguinte Projecto de Lei: 1.ª) Que a Lei da Separação garanta o livre exercício da Religião Católica. 2.ª) Que a Igreja deva ser governada seguindo leis próprias, segundo as suas Constituições. 3.ª) Abolição do Padroado. 4.ª) Que reconheça à Igreja Personalidade Jurídica e que se deixe na sua posse os seus próprios bens. 5.ª) Até que o Governo não consiga a todos os seus bens, deve garantir-se renda actualmente. 6.ª) Que se autorize as Corporações Locais a subsidiar as despesas do Culto.

703


7.ª) Que para as Dioceses Ultramarinas se deve ter em conta as suas circunstâncias específicas. O Patriarca não apresentará nada, sem o consenso do Santo Padre.

41

Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna.

A resposta do Secretário de Estado chegou dia 16 de Novembro, através do telegrama enviado a Mons. B. Aloisi Masella 41. Segundo estas instruções da Santa Sé, o Patriarca pode enviar Carta Oficial protestando contra o Projecto da Separação, segundo os princípios constantemente reafirmados pela Igreja, nomeadamente referindo a defesa do número quatro da vossa instrução. Os números um, dois e três devem ser apresentados por terceira pessoa, fazendo sentir a necessidade de pacificar os ânimos e proporcionar a prosperidade do Estado pela unidade de todos os cidadãos.

42

Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna.

O Patriarca de Lisboa cumpriu as orientações de Roma. Uma terceira pessoa apresentou os pontos 1, 2 e 3 da proposta, tendo obtido um comentário positivo do Ministro da Justiça, Afonso Costa, sobre a resposta do Patriarca. Esta terceira pessoa soube ainda que a Lei de Separação estaria pronta dentro de quatro meses e que dentro de dias seria publicada a Lei do Registo Civil Obrigatório. O atraso da Lei de Separação, segundo esta informação, devia-se a dissenções no Governo sobre o conteúdo da Lei de Separação. Importa conhecer um conjunto de informações confidenciais enviadas, por Mons. B. Aloisi Masella ao Cardeal Merry de Val 42, para percebermos as influências sobre a Lei da Separação Igreja-Estado: O Grão-Mestre da Maçonaria Lusitana, Sr. Magalhães Lima, chegou a Lisboa, vindo de Paris a 31 de Outubro de 1910. Foi acolhido como um Libertador da Pátria e aclamado com grande alegria e entusiasmo. A 20 de Novembro houve na sede da Maçonaria em Lisboa uma Solene Reunião. Na mesma, o Sr. Bernardino Machado, Ministro dos Negócios Estrangeiros proferiu um discurso no qual disse: «que a Proclamação da República Portuguesa era em grande parte devida à Maçonaria e ao mesmo tempo fez alvo das obras prestadas a partir do estrangeiro, do Sr. Magalhães Lima a favor da Pátria.» O Sr. Afonso Costa durante o jantar fez um discurso no qual

704


nega que o Governo Provisório tenha sido imposto pela Maçonaria, mas segue os nossos ideais de liberdade da Maçonaria. Promete caça aos Jesuítas e demais Religiosos, pôr quanto antes em acção a Lei da Obrigatoriedade do Registo Civil e logo que possível a Lei da Separação Igreja-Estado. No discurso de agradecimento, o Sr. Magalhães Lima elogiou a Acção do Governo, sobretudo do Sr. Afonso Costa.

Também por iniciativa do Círculo Republicano 31 de Janeiro, teve lugar no dia 12 de Fevereiro de 1911, numa Sala da Sociedade Geográfica e na presença do Sr. Ministro Afonso Costa, uma conferência proferida pelo Pe. Dr. Santos Farinha, na qual defendeu-se o célebre Princípio «Igreja Livre em Livre Estado». Foi também defendida a remuneração do Clero por parte do Estado e o arrolamento dos bens da Igreja, evitando-se o poder económico do Alto Clero e a pobreza dos Párocos 43. No dia 29 de Março de 1911, Mons. B. Aloisi Masella informava telegraficamente a Secretaria de Estado sobre um discurso de Afonso Costa, proferido na Loja Maçónica de Lisboa no dia 26 daquele mês e publicado no jornal «O Dia» e declarava perante Alexander Zavaes e Vicenzo Ferrer, respectivamente representantes da Maçonaria Francesa e Brasileira que a Lei da Separação que se está preparando não poderá ser aquela do Brasil, pois que esta é demasiado desinteressada pela Igreja, tendo esta por tal motivo podido florescer e singrar aí, nem aquela da França que ignora a existência da Igreja e não se preocupando da sua acção; mas que talvez seja a lei portuguesa e para explicar tal reflexão o Sr. Afonso Costa acrescentou que «a Igreja funciona no Estado como qualquer outra sociedade anónima» e que quanto ao poder civil incumbe o grave dever de vigiar, de saber a que Nação pertencem os homens que a dirigem, de conhecer os seus regulamentos e sobretudo de impedir que sejam violadas as consciências. Ao terminar o seu discurso, ele afirmou que em Portugal «após duas gerações será completamente eliminado o Catolicismo que é a causa principal da desgraçada situação de Portugal» 44.

43

Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna, Mons. Masella ao Cardeal Merry Del Val, Rapporto n.º 377, Sr. Magalhães Lima e um discurso do Ministro da Justiça, n.º 377 (16 de Dezembro de 1910).

44

Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna.

No dia 20 de Abril de 1911, Mons. B. Aloisi Masella comunicava ao Secretário de Estado do Vaticano, Cardeal Merry del Val, que «a Lei da Separação da Igreja do Estado está 705


45

ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna (1910-1922), 398.2.

46

Cf. Ibidem.

47

Cf. Ibidem.

48

Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna, (1910-1922), 398.2.

49

Esta lei ficou conhecida pela data da assinatura, mas a sua publicação no Diário do Governo é de 21 de Abril de 1911, n.º 92. Contra a Lei da Separação protestaram colectivamente os prelados portugueses (5 de Maio de 1911), definindo o conteúdo desse diploma em quatro palavras: injustiça, opressão, espoliação e ludíbrio. Cf. OLIVEIRA, Miguel, op. cit., p. 236.

706

próxima a ser publicada, provavelmente o Diário do Governo apresente o texto oficial» 45. Segundo Mons. B. Aloisi Masella, a Lei seria de inspiração maçónica, demonstrando através dela o ódio que os membros daquele Governo Provisório nutriam contra a Igreja 46. E para fazer maior ofensa e dor aos Católicos, o Sr. Afonso Costa, Ministro da Justiça, leu, no dia anterior, essa Lei perante os representantes da Maçonaria e perante a associação intitulada de «Registo Civil», os quais foram autorizados pelo mesmo Ministro a fazerem correcções que achassem oportunas 47. A 20 de Abril, Mons. B. Aloisi Masella apresentava já ao Cardeal Merry Del Val o texto sintético com os conteúdos da Lei da Separação, publicados nos diários matutinos de inspiração republicana. Em sete pontos assim distribuídos: Abolidas as côngruas e legados pios. Bens Eclesiásticos declarados Propriedade do Estado; aos Palácios Episcopais e Casas Paroquiais serão concedidos usofruto aos Bispos e Párocos. Os Seminários foram reduzidos a cinco. Continuam em vigor as Leis Vigentes sobre os Seminários. Para a publicação dos breves de Roma e dos Documentos Episcopais exige-se o Beneplácito. O Governo modificará a Bula da Cruzada 48. Serão concedidas às Igrejas, Corporações encarregadas do Culto e nas suas funções poderão tomar parte Padres Portugueses que tenham feito os estudos nos Institutos Nacionais. Estabeleceram-se pensões para o Clero subsidiado e ordenado em Portugal, acrescentando que esses poderão ser dados após a sua morte às viúvas e aos filhos legítimos. São extintos os títulos pelos quais os paroquianos eram obrigados a pagar aos Párocos. O documento oficial da Lei da Separação Igreja-Estado, com data de 20 de Abril de 1911 foi publicado na íntegra através da imprensa só no dia seguinte 49. A síntese antecipada por Mons. B. Aloisi Masella era exacta.


No contexto das reacções da Lei de Separação do Estado e das Igrejas A primeira reacção à publicação da Lei da Separação do Estado e das Igrejas 50, foi a convocação dos Cabidos e do Clero por parte dos Prelados com a finalidade de protestar contra a referida lei 51. Assim, no Patriarcado reuniu-se, a 26 de Abril, o Patriarca com os Cónegos, os Beneficiados, os Vigários, Párocos e demais Clero 52. Nos dias seguintes reuniram-se os Bispos de Coimbra, Viseu, Guarda e Portalegre com os Cabidos das Catedrais e com parte do Clero 53. Os Bispos de Braga, Évora e Faro e o Vigário Geral do Porto fizeram estas reuniões a 3 de Maio de 1911 54. Para além dos Protestos Diocesanos, vários Bispos reuniram-se conjuntamente com o Patriarca, com a finalidade de redigir um protesto colectivo. Neste encontro, alguns Bispos opinavam que se deveria propor ao Governo modificações à Lei e a sua suspensão até às Constituições. Outros três Bispos eram concordes em que se deveria protestar energicamente sem pedir modificações ou supressões 55. No dia 4 de Maio, Mons. B. Aloisi Masella telegrafava para a Secretaria de Estado do Vaticano a dar conhecimento do resultado desta reunião dos Bispos com o Patriarca de Lisboa. Dizia Mons. B. Aloisi Masella que os Bispos tinham feito já enérgico protesto no qual reprovavam a Lei da Separação, acrescentando que a Santa Sé também o reprovaria. Perguntam ainda à Santa Sé se podem publicar quanto antes, pois algumas disposições referentes ao clima entrariam em vigor dentro de poucos dias, ou se deviam aguardar que falasse primeiro o Santo Padre 56.

A resposta de Roma não tardou: «Os Bispos podem publicar o protesto» 57. Conjuntamente chegavam também algumas instruções: 1. Na perspectiva de que os Bispos sejam expulsos, designem três Sacerdotes idóneos para os substituir em ordem sucessiva;

50

A propósito deste assunto confira: MOURA, Maria Lúcia de Brito, A Guerra Religiosa na Primeira República: Crenças e mitos num tempo de utopias, Cruz Quebrada, Editorial Notícias, 2004, pp. 35-63. 51

Mons. Masella informa ao Card. Merry Del Val que os Católicos se sentem indignados com a Lei da Separação pela ofensa que faz aos direitos da Igreja Católica em Portugal, mas perante a desgraçada situação de Portugal, onde não se contam com jornais católicos nem com liberdade de reunião, o protesto ao Ministro da Justiça por esta Lei torna-se difícil, todavia tem Mons. Masella garantias que os Católicos protestarão, bem como o Clero e Bispos. Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna (1910-1920), 398.2, Posizione V. Sezione 1, Promulgazione della Legge di Separazione (1911), Rascunho N 434, Informação de Mons. Masella ao Card. Merry Del Val (23 Abr. 1911), fls. 15-16. Declaração de Recepção N§50411, Secretaria de Estado, (4 Maio 1911), fls. 6-7. No entanto, segundo dá conta Mons. Aloisi-Masella em carta ao Secretário de Estado da Santa Sé, Card. Merry Del Val, os Bispos Portugueses encontram-se muito isolados. A Acção Católica não existe; os jornais católicos quase todos desapareceram; os Católicos não mostram grande organização, face aos Republicanos; muitos dos mais válidos partiram para o estrangeiro; somente alguns círculos católicos lançados por sugestão de Mons. Giacobini, quando Núncio de Lisboa, fazem algum apoio aos Bispos. Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna (1910-1922), 398.2, Posizione V, Sezione 1, Promulgazione della Legge di Separazione (1911), Rascunho N§476, Mons. Masella ao Card. Merry Del Val, (s.d.), f. 99.

707


52

Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna, 398.2, Posizione V, Sezione 1.

53

Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna, (1910-1922), 398.

54

Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna, 398.2.

55

Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna, (1910-1922), 398.2.

56

Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna, (1910-1922), 398.2.

57

Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna (1910-1922), 398.2.

58

No entanto, segundo nos dá conta Mons. Aloisi-Masella, em carta ao Secretário de Estado do Vaticano.

59

Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna (1910-1922), 398.2.

2. Estes administram em nome dos Bispos e se isto não for possível como delegados da Sé Apostólica; 3. Os Bispos ponham prontos a seguir os documentos mais importantes; 4. Mons. B. Aloisi Masella fica autorizado a dar aos Bispos as faculdades que em reunião com o Patriarca achassem oportuno. Também alguns Leigos se insurgiram contra a Lei da Separação. Fernando Sousa, dito «um dos melhores católicos e primeiro jornalista» publicou um estudo em forma de fascículo sobre a referida Lei 58. O advogado Pinto Coelho publicou no jornal legitimista «A Nação», três artigos sobre a Lei da Separação 59. No jornal «Grito do Povo» foi publicado, na primeira página, um artigo escrito pelo antigo Deputado Nacionalista, Pinheiro Torres, contra a Lei da Separação 60. Todos estes protestos foram reunidos pela Nunciatura e enviados para conhecimento de Roma 61.

60

ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna, 398.2.

61

Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna, 398.2.

62

«Ricevo in questo momento dell Ill e Ver.mo Mons. Patriarca di Lisbonna un exemplare delle «Protesto» che questo Episcopato há publicato contro la Legge di Separazione della Chiesa dello Stato». Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna (1910-1922), 398.2, Posizione V, Sezione 1, Promulgazione della Legge di Separazione (1911), Rascunho N§451, Informação de Mons. Masella ao Card. Merry Del Val, (20 Mai. 1911), f. 44. «Il Governo Reppublicano invece si, rimasto irritato e sorpreso, tanto che il Sig. Bernardino Machado, Ministro degli Esteri, fece giorni or sono domandare confidenzialmente all Il.mo e Rev.mo Mons. Patriarca se detta protesta era apocrifa». Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna (1910-1922), 398.2.

708

Apresentação do Protesto Colectivo do Episcopado Português 62 No dia 8 de Maio de 1911 63, o Secretário da Nunciatura de Lisboa informava ao Secretário de Estado do Vaticano que estiveram reunidos em Lisboa, durante quatro dias, todos os Bispos Portugueses, excepto o de Bragança e o de Coimbra, os quais declararam previamente não poderem estar por motivos de saúde, mas que aceitavam todas as decisões tomadas pelos colegas 64. Os Bispos estiveram de acordo em que a Lei da Separação era inaceitável. Concordaram em fazer um enérgico protesto contra o dito decreto e sem propor a suspensão ou a modificação como defendiam alguns Bispos e o Cabido de Évora 65.

No dia 20 de Maio, Mons B. Aloisi Masella comunica para Roma que recebera nesses dias um exemplar do dito Protesto das mãos do Patriarca. O Protesto Colectivo tinha sido escrito pelo Arcebispo de Évora e será público quanto antes 66.


O texto tem o título Protesto Colectivo dos Bispos Portugueses contra o Decreto de 20 de Abril de 1911, que separa o Estado da Igreja. Datado em Lisboa a 05 de Maio de 1911, contém nove páginas. Introdução:

10

63

Foi decidido que se deveria manter em segredo, porém, foi enviada cópia ao Bispo de Bragança. Esta foi interceptada e publicada por Afonso Costa, no Jornal «Mundo», ridicularizando os Bispos. Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna (1910-1922), 398.2.

64

Foi vigoroso o golpe! Realizou-se a previsão Realizou-se? Não! Foi excedida. Veio a atrocidade, a tirania, a humilhação, a confiscação de bens, o sarcasmo. Não nos dirigimos como Prelados ao nosso Clero e aos Fiéis diocesanos, falamos a todos os nossos concidadãos, abstraindo das suas crenças religiosas. Foram os Ministros da Religião e a Igreja Católica, condenados sem processo e punidos sem culpa. O Clero Português não tem obstaculizado, por iniciativa sua, à mudança do Regime. Que razão havia para verberar e desprestigiar assim uma classe inteira de cidadãos e de lançar mais um gérmen de descontentamento e perturbação no conjunto da sociedade portuguesa?

ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna, (1910-1922), 398.2.

65

Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna (1910-1922), 398.2. Em Viana do Alentejo reuniu-se o Clero desta Vigararia e resolveu por unanimidade acompanhar o seu Prelado na atitude a tomar em face da Lei da Separação. Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna (1910-1922), 398.2.

66

Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna (1910-1922), 398.2.

Na República Francesa os legisladores hesitaram 35 anos. E a questão foi longamente debatida no Parlamento. Em Portugal não se esperava pelas Constituintes. Dissolveu-se o Sistema Concordatário sem uma palavra ao Romano Pontífice; um Contrato Internacional Bilateral não se dissolve Unilateralmente. Um pequeno número de livres pensadores, de exaltados, de fanáticos anti-religiosos, decreta uma Lei contra a maioria que se diz Católica. A maioria foi esmagada e sacrificada às exigências de um pequeno grupo. Injustiça:

Contra Contra Contra Contra Contra

o o o o o

Direito Direito Direito Direito Direito

Divino; Público; Canónico; Civil; Natural. 709


Opressão: No exercício do Culto, ficando a mando de Corporações Laicais, como empregados de grupos laicistas; No Ensino Religioso; Na formação de candidatos ao Sacerdócio; Nas relações Bispos Papa, Padres Bispos, Igrejas Particulares Sumo Pontífice pela exigência do Beneplácito. Que separação! Proibição do Hábito Talar. Espoliação: Nega à Igreja Católica o Direito de Propriedade e domínio sobre bens móveis e imóveis. O Estado proclama-se o único proprietário; Dá umas pensões em situação muito dúbia; Pela nossa parte, nós desde já, terminantemente declaramos renunciar a tais pensões, que não podemos decorosamente aceitar; Com que direito ( ) se apodera o Estado destes bens, em grande parte devidos à piedade generosa dos Fiéis, a legados e doações de pessoas particulares? ( ). Ludibriação: Ludibriosa para o Clero, pois o reduz a funcionários das Associações Cultuais, pondo de parte a Hierarquia, incluindo os Bispos; Ludibria o Clero, negociando com ele pensões e propondo-lhe que sejam mantidas as pensões aos Clérigos suspensos, tornando-os transmissíveis às viúvas e filhos dos Padres, quer legítimos quer ilegítimos. Os Padres que quisessem aproveitar a Lei Civil para casar, deveriam decidir-se. Embora a tese «a Igreja Livre no Estado Livre» não represente o ideal, pode ser aceitável e é sempre preferível a esta outra «Igreja escrava no Estado Senhor». O documento termina com um apelo à unidade dos Padres Bispos, Fiéis Pastores, toda a Igreja Portuguesa com a Santa Sé. 710


Resultados obtidos com o Protesto Colectivo No dia 9 de Junho de 1911, Mons. B. Aloisi Masella informava a Santa Sé que Afonso Costa deixaria de ser Ministro da Justiça. Acabava de ser nomeado para tal cargo Bernardino Machado, ex-Ministro dos Negócios Estrangeiros e homem prudente e conciliador. De facto, Afonso Costa fora vítima de doença grave, ao regressar de uma visita a Braga, onde mais uma vez, em discurso inflamado, aos Partidários da República, tinha prometido o fim do Catolicismo em Portugal, em duas gerações 67. Bernardino Machado fez saber à Nação, através da imprensa, o seguinte: A Lei da Separação será modificada na parte menos compatível com a dignidade Sacerdotal. Os Párocos terão voto consultivo na Administração da Paróquia. Os Padres poderão receber a pensão como qualquer outro funcionário do Estado, sem qualquer tipo de discriminação ou humilhação 68. As atitudes conciliadoras de Bernardino Machado tiveram imediatamente oposição dos radicais, nomeadamente da Associação do Registo Civil e do Jornal de Afonso Costa «O Mundo» 69. O Protesto Colectivo do Episcopado Português tinha conseguido alguns dos seus objectivos, fazer ouvir a voz da Hierarquia da Igreja contra os conteúdos da Lei da Separação e fazer recuar os seus Radicalismos Jacobinos 70. Quanto aos efeitos concretos da Lei da Separação no relacionamento entre o Estado Português e a Igreja Católica e na vida interna da Igreja Católica em Portugal, poderemos descrevê-los só genericamente e em forma introdutória, para nos ajudar a perceber o contexto que envolve os «Padres Pensionistas» 71. Em 1911, a Lei da Separação agudiza a crise entre a Santa Sé e o Estado Português 72, iniciada com a legislação de 8 de Outubro contra as Ordens e Congregações Religiosas. Pio X

67

Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna (1910-1922), 398.2.

68

Cf. Ibidem.

69

Cf. Ibidem.

70

Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna (1910-1922), 398.2, O Arcebispo de Évora assinou o seu protesto em 10 de Janeiro de 1912, numa circular dirigida aos Párocos, em que serena e firmemente pôs a doutrina da Igreja sobre o assunto, em 10 alíneas todas com a máxima correcção na forma e na verdade na ideias. O Governo considerou-a ofensiva das leis da República, mandando levantar processo que se iniciou, em Évora, com o auto de declarações de 12 de Março, no Paço Arquiepiscopal, pelo Administrador do Concelho. Cf. GUERREIRO, J. A., Mons. Aloisi Masella e o Arcebispo de Évora D. Augusto Eduardo Nunes (1910-1920), Évora, 1968, p. 35.

71

De todos os problemas debatidos nas altas esferas eclesiásticas, nos tempos conturbados de 1911 a 1913, o que mais preocupou o Arcebispo D. Augusto Eduardo Nunes, foi sem dúvida o dos «Padres Pensionistas», nome que se dava aos sacerdotes que aceitaram do Estado as pensões, nos termos da Lei da Separação. Cf. GUERREIRO, J. A., op. cit., p. 25. 72

A 16 de Maio de 1911, a Secretaria de Estado da Santa Sé dá orientações a Mons. Aloisi-Masella que se tiver de abandonar Lisboa deverá dar a uma pessoa de confiança ali residente uma cifra para se poder comunicar com ela. Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna (1910-1922), 398. 2.

711


73

Com a Proclamação da República, cessaram as relações diplomáticas. Mons. Julio Tonti, Núncio em Lisboa desde 1906, retirou-se em 20 de Outubro de 1910, deixando encarregado da Nunciatura Mons. Bento Aloisi-Masella. Em Roma, encontrava-se apenas um encarregado de negócios, cujas funções terminaram em Setembro de 1911. O rompimento com a Santa Sé consumiu-se pela Lei da Separação (20 Abril 1911) à qual respondeu S. Pio X com a Encíclica Jandudum un Lusitania (24 Maio 1911). O Governo de Sidónio Pais, tendo modificado as leis que mais agravavam os Católicos, encarregou o seu representante em Madrid, Dr. Egas Moniz, de trocar impressões com Mons. Ragonesi, Núncio em Espanha, sobre o reatamento das relações com a Santa sé. Em resultado dessas diligências, Mons. Ragonesi veio a Lisboa conferenciar com o Presidente da República, em Junho de 1918. A 9 de Julho restabelecia-se a legação de Portugal no Vaticano (decr. 4558), e a 9 de Agosto era nomeado Núncio Mons. Aquiles Locatelli, Arcebispo Titular de Tessalonica. Cf. OLIVEIRA, Miguel, op. cit., p. 231. A Encíclica Jamdudum in Lusitania foi acolhida em Portugal por alguns jornais como obra da influência dos Jesuítas em Roma. Passa quase despercebida pelo Povo Português, pois os jornais, por ordem do Governo e para mostrar a sua pouca importância, não a divulgam, por isso, os Bispos preparam divulgação do documento pontifício. Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna (1910-1922), 398.2, Posizione V, Sezione 1, Promulgazione della Legge di Separazione (1911), Rascunho N§458, Mons. Masella ao Card. Merry Del Val, (5 Jun. 1911), f. 94. A 5 de Agosto Mons. Masella faz chegar ao Papa por meio do Card. Merry Del Val o agradecimento do Episcopado

712

respondeu a esta situação de conflito com a Encíclica «Jamdudum in Lusitania» 73, a 24 de Maio do mesmo ano 74. Alguns sinais destas dificuldades de relacionamento são a laicização 75 e a arrolação dos bens da Igreja 76; a abolição do juramento de carácter religioso, como por exemplo, o caso do juramento e defesa do Dogma da Imaculada Conceição a que obrigavam os estatutos das Universidades; a anulação das matrículas do primeiro ano da Faculdade de Teologia com o consequente encerramento desta; a supressão do ensino da Doutrina Cristã nas escolas 77; os ataques ao Clero; a abolição dos Dias Santos; a dissolução das Irmandades; a criação do Registo Civil 78; o encerramento de muitos Seminários; a expulsão das Ordens e Congregações Religiosas, mesmo aquelas dedicadas ao Ensino, à assistência e às missões 79. A situação foi melhorando gradualmente. Porém, só com Sidónio Pais, em 1918, as relações foram restabelecidas com a Santa Sé 80. Até este restabelecimento de relações, houve momentos de grande tensão, como quando os Bispos Residenciais foram desterrados das suas Dioceses 81. Após o restabelecimento de relações, a aplicação da legislação abrandou nos seus aspectos mais acutilantes 82.

D. Augusto Eduardo Nunes e a Instrução Colectiva do Episcopado Português (22 Janeiro de 1917) Uma vez que a Igreja se separou do Estado, havia de reformar as Estruturas Seculares Eclesiásticas e readaptá-las às novas condições 83. Assim, e em relação às Eleições Políticas, a Santa Sé enviou duas instruções aos Prelados Portugueses. A primeira a 16 de Maio de 1915 e a segunda a 01 de Novembro de 1916. De facto, aproximavam-se as Eleições Administrativas e era necessário precaver o Episcopado para saber como actuar na nova situação. Citamos ambas as cartas. Para os devidos efeitos tenho a honra de comunicar a Vossa Excelência Reverendíssima as seguintes instruções sobre as eleições políticas. «É preferível que os Eclesiásticos não se apresentem como


candidatos, mas se isto em algum caso particular for útil, é necessário que o próprio Eclesiástico obtenha a licença do próprio Bispo e do Ordinário do lugar por onde se quer propor e prometa expressamente que votará sempre contra as Leis opostas aos preceitos de Deus e da Igreja».

Mais completas foram as instruções de 1 de Novembro de 1916: Convém que o Excelentíssimo Episcopado complete as instruções dadas na Pastoral Colectiva do mês de Dezembro de 1910, pondo bem em evidência a necessidade para os Católicos de apoiarem, na falta de candidato próprio favorável à Religião, pessoa mais temperada e menos hostil à Religião. Resulta portanto de tais instruções que, segundo a mente da Santa Sé, é necessário que nas Eleições os Católicos, abstraindo da questão da forma de Governo, dêem o seu apoio, quando não houver candidato seu, àquele que menos for contrário à Santa Igreja, para assim impedirem o mal maior; o que Vossa Excelência procurará levar ao conhecimento dos Fiéis pela maneira que tiver por mais oportuna e conveniente 84.

Os Bispos perceberam que era inconveniente levar até aos Fiéis estas orientações. Urgia, sim, uma Pastoral Colectiva. Mais uma vez, recaiu a tarefa de a redigir sobre o Arcebispo de Évora, D. Augusto Eduardo Nunes. O primeiro sinal desta escolha manifestou-o Mons. B. Aloisi Masella ao dirigir ao Prelado Eborense uma consulta com data de 4 de Novembro de 1916. Pede-se nesta consulta que o Prelado Eborense opine sobre os temas a abordar na urgente Pastoral Colectiva do Episcopado Português a dirigir a todos os Católicos Portugueses: Peço a Vossa Excelência o favor de dizer se concorda que no documento colectivo que em breve deverá ser publicado se faça menção, em linguagem simples e apostólica, não somente dos deveres dos Católicos perante as Eleições, mas outros relativos à: 1. Santificação dos dias festivos; 2. Casamento Religioso, distinguindo-o do Casamento Civil; 3. Baptismo e Educação Religiosa da prole; 4. Oferta para o Fundo do Culto 85

De facto, foi consensual, por parte dos Bispos de Portugal que a reelaboração da Nova Pastoral Colectiva deveria ser

Português pela Carta Encíclica Iamdudum in Lusitania. Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna (1910-1922), 398.2, Posizione V, Sezione 1, Promulgazione della Legge di Separazione (1911), Rascunho N§498, Mons. Masella ao Card. Merry Del Val, ( 5 Ag. 1911), f. 107. 74

«Conheceis de sobejo, vós todos, Veneráveis Irmãos, a série inaudita de enormes crimes com que nos últimos meses vai sendo oprimida a Igreja em Portugal. ( ) Vimos destruídas violentamente as Ordens e Congregações Religiosas. ( ) No propósito pertinaz de descristianizar toda a economia civil e não deixar na vida social vestígio algum de religiosidade, vimos suprimidos do número dos feriados os dias santos da Igreja, tirado o seu carácter religioso ao juramento, fabricada precipitadamente a lei do divórcio, proibido nas escolas públicas o ensino da doutrina cristã. Finalmente, passando em silêncio outras medidas que seria longo enumerar, vimos guerreados ainda mais encarniçadamente os Bispos, e até expulsos das suas Sedes dois deles: os ilustríssimos Prelados do Porto e Beja. ( ) Como remate de obra tão nefasta da lei que separa o Estado da Igreja, lei iníqua e sobre toda a ponderação perniciosa. O dever sagrado do múnus apostólico não nos consente tolerar e sofrer em silêncio um golpe tão grave vibrado aos direitos e dignidade da Religião Católica. ( ) Portanto prossegui, como começastes, a defender com toda a energia a causa da Religião, intimamente relacionada com a salvação da Pátria; mas sobretudo procurai diligentemente manter e estreitar cada vez mais a união e concórdia entre Vós mesmos, dos vossos fiéis convosco e de todos com esta Cadeira de Pedro; já que o intento dos autores da ne-

713


fanda lei é, como dissemos, separar a Igreja Lusitana que roubam e oprimem, não do Estado, segundo dão a entender, mas do Vigário de Jesus Cristo». Cf. Pio X, «Jamdudum in Lusitania», in GUERREIRO, J. A., op. cit., pp. 11-12\1. 75

A Proclamação da República (5 Out. 1910) foi acompanhada das maiores violências e ataques ao Clero e às Casas Religiosas: assaltos, insultos e assassínios. Cf. OLIVEIRA, Miguel, op. cit., p. 234.

76

A perseguição legal começou logo em 8 de Outubro, com o primeiro decreto do Ministro da Justiça (Afonso Costa), que mandava pôr em vigor as leis de Pombal contra os Jesuítas e as de Joaquim António de Aguiar relativas às Casas Religiosas. Uma série de decretos e portarias ordenou em seguida a forma de arrolamento dos bens das Congregações e a sua integração na posse do Estado. Cf. Ibidem, p. 235.

77

A propósito desta matéria confira: MOURA, Maria Lúcia de Brito, op. cit., pp. 431-468. 78

Cf. Ibidem, pp. 397-429.

79

Expulsas e espoliadas as Ordens Religiosas, intentou o Governo Provisório a laicização da vida pública, por achar «conveniente dar satisfação às aspirações liberais e democráticas». Aboliu «o juramento com carácter religioso» (decr. 18 Out.), o da Imaculada Conceição e outros a que obrigavam os estatutos da Universidade de Coimbra (decr. 23 Out.); anulou matrículas do 1.º ano da Faculdade de Teologia (decr. 23 Out.); extinguiu a cadeira de Direito Eclesiástico da Faculdade de Direito (decr. 14 Nov.); suprimiu nas escolas primárias e normais o ensino da Doutrina Cristã (decr. 22 Out.); mandou considerar dias de trabalho todos os

714

entregue à responsabilidade do douto Arcebispo de Évora, D. Augusto Eduardo Nunes. Este deveria enviar um esboço à apreciação dos Colegas do Episcopado que o poderiam corrigir, acrescentar ou mudar, enviando depois as suas opiniões ao Arcebispo de Évora. Todo este trabalho deveria ser acompanhado e apoiado por Mons. B. Aloisi Masella, que iria dar a conhecer o andamento do trabalho à Secretaria de Estado do Vaticano 86. Somente um Bispo discordou em alguns aspectos de D. Augusto Eduardo Nunes, o Bispo de Miranda-Bragança, D. José Lopes Leite de Faria 87. D. Augusto soube dos seus pontos de vista e após diálogo com Mons. B. Aloisi Masella decidiu não alterar a redacção proposta para a Pastoral, mas permaneceu nos princípios assim expostos: uma introdução à Pastoral, referindo-se à pertinência do tema. Numa primeira parte, a Carta explanava os princípios doutrinários em que se baseiam os poderes da Igreja Católica, na essência a sua fundação divina 88. Na segunda parte, a Carta faz uma doutrinação sobre o Homem, enquanto sujeito moral 89: o Homem individuo 90; o Homem na sociedade doméstica e civil 91; o Homem na sociedade religiosa 92. Para cada um dos aspectos referentes ao ser humano, D. Augusto Eduardo Nunes enumerou os diversos deveres. Na conclusão da Carta, retoma-se o tema que motivou a redacção da Carta: o dever do voto para um católico 93, seguindo de perto as instruções recebidas de Roma a 1 de Novembro de 1916. Podemos concluir que o Arcebispo de Évora, D. Augusto Eduardo Nunes, deu um contributo grande à Igreja Portuguesa ao ter redigido os três Documentos Colectivos do Episcopado Português, tendo merecido dos colegas a confiança e o reconhecimento do seu equilíbrio 94 em questões tão sensíveis e em momentos tão complexos. O Arcebispo sempre soube reconhecer que a Igreja não está ligada a Regimes e deve saber adaptar-se à diferença dos tempos. Porém, também teve a firmeza dos Homens de mente bem arrumada, colocando de modo saliente a liberdade da Igreja face a atitudes que não se podem confundir na designa-


ção de Separação do Estado e das Igrejas, mas na designação Estatização da Igreja, com finalidade de a asfixiar 95. Teremos de concluir que D. Augusto Eduardo Nunes era, nos difíceis factos em questão, o Prelado Português com mais concurso e melhor preparado entre os seus colegas. De facto, foi sempre a partir dele que o Episcopado Português se foi manifestando e reagindo perante tão grande ameaça ao futuro da Igreja em Portugal 96.

dias santificados, à excepção do Domingo (decr. 26 Out.); permitiu aos governadores civis que dissolvessem as mesas administrativas das irmandades e confrarias, substituindo-as por comissões (decr. 27 Out.); proibiu às forças do Exército e da Armada que interviessem em solenidades de carácter religioso (decr. 28 Nov.); atacou os fundamentos da família com a lei do divórcio (3 Nov.) e as chamadas leis da família, que consideravam o casamento como «contracto puramente civil» (25 Dez.). Numa palavra, a actividade legislativa do Governo Provisório obedeceu à preocupação anti-religiosa. Cf. O LIVEIRA , Miguel, op. cit., p. 235.

(Continuação das notas) 80

O Ministro da Justiça no período sidonista, Dr. Alberto Moura Pinto, envidou todos os esforços para criar boas relações entre o Estado e a Igreja, começando por introduzir algumas modificações na legislação persecutória de 1911, ainda antes do reatamento diplomático com a Santa Sé. Com efeito, por iniciativa governamental e sem consulta de qualquer ordem às autoridades eclesiásticas, pelo Ministério da Justiça foi publicado um decreto, em data de 22 de Fevereiro de 1918, modificando em vários pontos a lei da Separação de 20 de Abril de 1911. Cf. GUERREIRO, J. A., op. cit., p. 101.

81

Dos Prelados portugueses, a primeira vítima foi o Bispo de Beja, D. Sebastião Leite de Vasconcelos, que já havia suportado perseguições nos últimos anos da Monarquia. Ameaçado de morte ao proclamar-se a República, o Prelado retirou-se para Sevilha; o Ministro da Justiça suspendeu-o «de todas as temporalidades», numa portaria em que pretendeu marcar as «obrigações de autoridade eclesiástica» (21 Outubro). Cf. OLIVEIRA, Miguel, op. cit., p. 235.

82

Em 5 de Dezembro, estalou a revolução chefiada por Sidónio Pais, no intento de «restaurar a injustiça e o império da lei», pondo termo à agitação em que se encontrava o país desde a proclamação da República. O novo Governo anulou os castigos que pesavam sobre os dois Prelados (dec. 9 Dez.) e outros Ministros da Religião (dec. 22 Dez.) e modificou as disposições da Lei da Separação que mais feriam os Católicos (dec. 3856, 22 Fev. 1918). Cf. Ibidem, p. 237.

83 Actualmente, são 15 as dioceses do Continente. Pelo Breve Quo vehementius (17 Jan. 1918), Bento XV restaurou a de Leiria, com 50 paróquias que estavam incorporadas em Lisboa e Coimbra, Pela Bula Apostolica Praedecessorum Nostrorum (20 Abril 1922), Pio XI criou a diocese de Vila Real, que ficou a compreender todo o distrito, com 257 freguesias outrora pertencentes a Braga, Lamego e Bragança. Enfim, pela Bula Omnium ecclesiarum (24 Agosto 1938), Pio XI reconstituiu a diocese de Aveiro com 82 freguesias desmembradas de Coimbra, Porto e Viseu. Cf. OLIVEIRA, Miguel, op. cit., p. 239. 84

Cf. ADE, Nunciatura Apostólica de Lisboa, D. Augusto Eduardo Nunes, Correspondência recebida, 1915 e 1916.

85

Cf. ADE, Nunciatura Apostólica de Lisboa, D. Augusto Eduardo Nunes, Correspondência recebida, 1916.

86

Cf. OLIVEIRA, Miguel, op. cit., p. 235.

87

D. José Lopes Leite de Faria, nasceu em Fagolde, Guimarães, a 12 de Março de 1874. Formado no Seminário de Braga. De 1911 a 1915 viveu no estrangeiro, Lourdes. Foi colocado Bispo de Miranda Bragança a 5 de Outubro de 1915. Morreu a 23 de Agosto de 1924.

715


88

«Se Deus é o Senhor dos homens e dos povos, é necessário que reconheçamos a sua soberania e obedeçamos à sua lei, sem tergiversar: Si Dominus est Deus, sequimini eum ». Cf. Pastoral Collectiva.

89

«E a idéa do dever moral é uma contradição inepta desde que o império da obrigação não venha de fora e de alto: se cada homem é lei de si mesmo, não terá grande dificuldade em a si mesmo desobedecer». Cf. Pastoral Collectiva.

90

«Que significação tem no mundo este extranho animal, que pelos pés está preso ao globo, e que se eleva ao infinito pelo pensamento?». Cf. Pastoral Collectiva.

91

«A sociedade, escreveu Thiers é impossível, se não for reconhecido o império das ideias basilares que constituem a ordem moral, - a idéa da essencial distinção do bem e do mal, as idéas da ordem, da justiça, do direito e do dever. ( ) Uma grande autoridade em questão d esta ordem, Bismark, dizia já em 1870: «As nações latinas encheram os seus dias e estão em plena decadência: um único elemento de força lhes resta, e é a religião; quando tivermos vencido o Catholicismo, ellas hão-de desaparecer». Cf. Pastoral Collectiva.

92

«Os catholicos, assim com são membros da Igreja, são egualmente cidadãos da nação: não lhe é licita a indifferença e a abstenção no que toca aos grandes e vitaes interesses da pátria». Cf. Pastoral Collectiva.

93

Cf. Pastoral Colectiva.

94

«La pastorale che stata scritta dall s Ex.a Rev.ma Mons. Auguto Nunes, Arcivescovo di Evora, il quale, uno dei primi oratori di questa nazione, se nulla vi sari n contrario, comincer ad essere distribuita in tutto il Portogallo lunedi prossimo». Cf. ASV, Nunziatura Apostolica di Lisbonna, 398.1, Posizione IV, Sezione 2 Lei da Separação, Pastoral Colectiva, Relatorio N§406, Pastorale Collettiva de Episcopato Portughese, Mons. Masella ao Card. Merry Del Val, (18 Fev. 1911), f. 67-68. Declaração de Recepção N§40334, Secretaria de Estado, (6 Março 1911), fls. 70-71.

95

«( ) declarei logo que, tanto na qualidade de cidadão português, como na de ministro da Igreja Católica, reconhecendo à nação o direito de livremente escolher as instituições políticas que hajam de a reger, acatava lealmente a nova forma de Governo, como expressão da vontade nacional. ( ) a República Portuguesa, inspirada na genuína e sincera compreensão da liberdade, siga o caminho da justiça e da paz, da ordem e do progresso, garantindo todas as crenças e convicções e usando de generosidade para com todas as classes e pessoas». Cf. GUERREIRO, J. A., op. cit., Évora, 1968, p. 21.

96

Logo que puderam reunir-se em Lisboa, assentaram os bispos nos termos de uma Pastoral cuja definitiva redacção foi confiada ao Arcebispo de Évora D. Augusto Eduardo Nunes. Cf. OLIVEIRA, Miguel, op. cit., p. 235.

716


recensões

Bíblia CAZEAUX, Jacques: Le Cantique des cantiques. Des pourpres de Salomon à l anémone des champs. 241 págs. CERF, PARIS, 2008. (25 A)

Com O Cântico dos cânticos em título, são já cerca de uma dúzia as obras publicadas pelo A. nesta mesma casa editora, metade das quais inseridas na bem conhecida colecção «Lectio divina» onde, com o n. 222, se veio inscrever por sua vez o presente volume; também ele é tributário da exploração da hipótese de leitura, ditada pela análise propriamente literária, que Cazeaux tem vindo a aplicar aos livros históricos da Bíblia. De passagem, lembramos a propósito que, não há muito, foi apresentada aqui (Brotéria, Abril de 2008, 411-412) La contre-épopée du désert. Essai sur Exode Lévitique Nombres (2007), aguardando por vir a lume outro texto de recensão sobre uma segunda obra, Os Actos dos Apóstolos (2008), aparecida em igual altura. Suspeito de início basta atentar na questão recorrente: «Por que é que o Cântico figura entre os livros da Bíblia?» (82) O Cântico dos cânticos, cujos poemas supõem «um quadro cortês» (204) e que apresenta como «tema essencial» a «suficiência dos amantes» (Ib.), acabou finalmente por ser não apenas admitido no cânon judaico mas até mesmo enalte-

cido ao ser recitado pelos próprios judeus por altura da Páscoa e a cada entrada no Chabbat para certas comunidades: «Depois de ter corrido o risco de terminar no inferno, lê-se nem mais nem menos do que na festa maior da Páscoa, e as comunidades sefarditas lêem-no todas as sextas-feiras para acolher o Chabbat» (65). É por demais patente o motivo dessa tão fulgurante promoção que aconteceu por força da interpretação alegórica que logrou decifrar, no diálogo do amado e da amada, uma original parábola da Aliança bíblica pela qual o Deus de Israel entranhadamente se vinculava ao seu próprio Povo. Esse enaltecimento deve-o, assim, O Cântico dos cânticos «à interpretação alegórica que discerniu nele o amor de Yahvé pelo seu Povo, figura tradicionalmente feminina, em especial nos Profetas» (64). Todavia, mais recentemente, é em nome do próprio valor directo do amor humano que se procura justificar o lugar do Cântico dos cânticos na Bíblia, existindo mesmo comentários que, ao insistirem nessa linha, chegam ao ponto de ressaltar, no livro bíblico em questão, a presença de um erotismo exacerbado. Adverte, porém, o A. que, entre a alegoria tradicional e o erotismo na moda, se torna possível ler O Canto dos cânticos como «uma competição entre poetas da corte» que assim proporcionam, a gente letrada, um desafio de poesia. Basta, para tanto, «partir dos três enigmas finais, opondo o poderio artificial à simples presença do amado e da amada». O Rei Salo-

717


mão, «de mil mulheres e todo de grandeza artificial», serve-lhes de emblema e de referência, é certo, «o que explica o carácter precioso dos poemas» , mas serve-lhes também de crivo com grande alcance: «O Cântico opõe efectivamente a escolha do amor directo, imediato, à vontade de poder que existe no Príncipe. Esta crítica do poder, bem como o apelo à solidez de cada ser, estão em consonância com o projecto da Bíblia inteira, que passa pela política para dizer o religioso» (cit. de contracapa). Em suma, acerca da consistência bíblica e da límpida mensagem de O Cântico dos cânticos é eloquente o seguinte texto: «Entrado graças ao apadrinhamento da Aliança, ao mecenato da alegoria, ele permanece na Bíblia em prol dos valores mais profundos e como pré-estabelecidos» (65). Isidro Ribeiro da Silva.

Filosofia GISEL, Pierre (éd.): Le corps, lieu de ce qui nous arrive. Approches anthropologiques, philosophiques, théologiques. 317 págs. LABOR (38 -)

Obra

ET

FIDES, GENÈVE, 2008.

colectiva de grande riqueza de conteúdo, pluridisciplinar e pluriconfessional consagrada à realidade do corpo, «esse real fora do qual nada advém ( ), lugar de afectos, de vulnerabilidade, de emoções e de desejos», ponto verdadeiramente «central» no cristianismo e «no destino do Ocidente» (10); do corpo como

718

revelador da nossa relação plural com a vida, com a morte, com a religião e com tantas outras realidades da existência concreta: «O corpo e o mundo de que ele é a inflexão é o lugar onde me acontece a existência» (11). Corpo aqui pensado, por antropólogos, filósofos e teólogos, em relação àquilo que o excede, o põe em cena, o retoma e o transforma, já que ele constitui «o lugar onde se diz do excesso» (Ib.) Em pano de fundo, estão presentes as questões do rito e da cura. Acerca do primeiro, recolhemos o seguinte texto, eloquente por si mesmo no âmbito da intencionalidade da obra: «Existe rito porque há corpo. ( ). Existe rito porque o existir humano está inscrito no mundo um mundo de corpo , que apresenta a sua consistência própria, a sua materialidade, e que advém como exterior ao sujeito e se experimenta como resistência. ( ). Em suma, o corpo na sua materialidade e nos seus afectos, bem como na realidade das inscrições simbólicas a que dá lugar cristaliza um momento que excede o humano: o sujeito que eu sou, sujeito de saber e de projecto» (8-9). Com nova elaboração e maior apuramento na consideração das temáticas, retoma o vol. os trabalhos de um programa de teologia sistemática das Faculdades de Teologia da Suíça francesa, sob o título Corps, rite, guérison programa dirigido por G. Vergauwen, actual Reitor da Universidade de Friburgo, e por P. Gisel, professor na Universidade de Lausana. Dentro da temática abrangida pelo referido programa, assim se exprime, em dado momento, Sílvia Mancini: «Pôr a questão da relação entre o corpo, o rito e a cura equivale de facto, no meu sentir, a pôr a questão seguinte: Qual é a teoria


das relações entre a ordem somática, a ordem psíquica e a ordem simbólico-cultural que esteja à altura de esclarecer certos factos enigmáticos de que a história das religiões e a antropologia nos dão conta ?» (41-42). A resposta às questões suscitadas pela presença desses «factos perturbadores» cura chamânica entre os ameríndios ou siberianos, efeitos psico-físicos do misticismo, fenómenos de personalidades múltiplas, capacidades de conhecimento extra-sensorial, etc. ultrapassa, naturalmente, o domínio disciplinar específico do historiador das religiões, já que elas concernem à própria natureza do psiquismo humano, à sua plasticidade e aos seus confins. Dizem ainda respeito às relações estreitas que se manifestam entre a esfera de representações culturais, por um lado, e o substrato psico-orgânico que o homem partilha com todas as outras formas de vida, por outro: «De facto, o historiador das religiões preocupado com elucidar fenómenos psico-culturais como os mencionados acima encontra-se colocado face à necessidade de questionar esta região ainda informe do humano, mas que tende sempre a revestir uma forma precisa; a trabalhar sobre este campo instável que não é nem o do indivíduo, objecto da psicologia, nem o da sociedade e da cultura, objectos da sociologia, da antropologia e da história, um campo ou espaço que diz respeito sobretudo ao pré-individual, situado no interface do social e da esfera psico-orgânica. ( ). Eis por que só a comparação com outros fenómenos que atestam, de maneira análoga, a grande plasticidade do vivente operando noutras escalas da realidade escalas estudadas pela estética e pela fenomenologia da percepção, por

um lado, e por certas ciências da vida como a etologia, a fisiologia, a psicopatologia, a psicologia da percepção, a parapsicologia, por outro poderia, a meu ver, esclarecer a génese destes fenómenos que acabo de enumerar e que percorrem a vida cultural das sociedades» (43). Reflectindo, mais à frente, sobre «Os interfaces entre saúde e espiritualidade ou as vias mascaradas do corpo em sofrimento», salienta I. Rossi a estreita permeabilidade entre corpo, fé e cura que as religiões deixam transparecer, ao ponto de estarem mesmo na base de muitos conhecimentos médicos: «Todavia, o aspecto mais marcante reside no facto de que as concepções de saúde, de enfermidade e de corpo mobilizam simbólicas que estão no fundamento de toda a cultura, e colocam muitas vezes em jogo o espiritual. Esta coerência funda a identidade da pessoa e pode englobar ou não uma adesão às religiões instituídas. Esta aproximação da dimensão espiritual da pessoa doente responde à demanda e tem por efeito contribuir para a busca de sentido , com base no postulado de que o sofrimento pode ser aliviado, ou mesmo tratado, pela virtude espiritual e religiosa. ( ). Assim, espiritualidades e religiões não se reduzem a propor lógicas curativas face ao sofrimento mas têm também implicações relacionais e sociais mais importantes, já que é todo o ser humano em situação de sofrimento, é o sujeito que aceita ou suporta » (97). Como é patente, não faltam, em todas as religiões, exemplos desta adesão à fé ou à busca de si mesmo, a partir da experiência da enfermidade com a fragilidade existencial ou o sofrimento que ela comporta o que nos leva a interrogarmo-nos acerca da compatibilidade

719


de coisas na aparência incompatíveis: «face aos tormentos humanos, a coabitação entre religiões, espiritualidades e medicina advoga em favor da necessidade de conceder à saúde uma legitimidade tanto humana como científica» (98). Mas o corpo, porque resiste aos saberes conceptuais e ultrapassa a consciência e vontade do sujeito, não é apenas o lugar de práticas e de efectividades que nos interrogam mas constitui igualmente o lugar de encenações que, como tais, «abrem um mundo, um espaço de vida, um espaço do humano» (101), segundo ilustram aqui três trabalhos de diferentes autores, elaborados em referência, respectivamente, à Bíblia (livro de Samuel), à filosofia (Platão) e à literatura contemporânea de cariz mais filosófico. Sobre essas encenações, vemos desfilar constantemente realidades antropológicas e, a partir do filósofo grego, somos induzidos a repensar o lugar das invenções do corpo: «O Timeu recicla desta vez não a linguagem de descrição da medicina, mas os saberes biológicos e médicos no quadro de uma psico-fisiologia fantástica inscrita não mais sob a égide de um lógos científico, mas sob a tutela de um lógos verosímil. O corpo já não é o da techné médica nem o (corpo), filosoficamente degradado, da ontologia e da epistemologia. É um corpo postiço, um corpo de ciência-ficção. Mas o relato mítico constitui também uma primeira tentativa de teoria sistemática das interacções entre o corpo e a alma, longe da imagem que delas dá o Fédon mas fora do cânon severo da epistéme. Com o Timeu, a Ideia reencontra o seu corpo» (136). Numa terceira parte do vol., «Deslocamentos e retomas no seio do corpus cris-

720

tão», abordam outros autores um conjunto de questões mais especificamente religadas à tradição cristã, «com o corpo na história e o contexto da Igreja católica», desdobrando-se em três secções: variações na época do cristianismo primitivo, exemplo de pastoral africana e prática da ascese. Os contributos da última parte, «Desafios contemporâneos», concentram-se na exploração do grande desafio que representa a virtualização e a des-realização do corpo nas sociedades actuais e acrescentam uma reflexão acerca do dualismo que atravessa o questionamento do corpo, traduzido não exclusivamente em contexto cristão por uma relação ambígua à carne: « tento retomar certos desafios que dizem respeito à condição corporal e mundana do humano e do que aí está em jogo. Isso vale como proposta de orientação, parcial e situada, sobre o fundo de uma reflexão de tipo genealógico onde se reencontram as questões tradicionalmente postas pela filosofia e pelo exercício da teologia » (243). A concluir, demos a palavra ao próprio editor da obra, P. Gisel, cuja reflexão se concentra em torno «Do corpo e do que o atravessa»: «Em cristianismo, o corpo não é uma forma que Deus nem o homem aliás reveste, mas aquilo que dá lugar à existência, ou a uma emergência singular. E isso, radicalmente: tudo está lá (o corpo não é ocasião de uma mensagem ou de uma verdade outra) e somente lá; ou: o corpo dá tudo e dá-o como corpo»; «A carne, é antes de mais a realidade na qual eu sou, que eu sou, onde sou provado, tocado, padecente e desejante: o lugar onde sou revelado »; assim, não dizemos que «Deus ou o Lógos ( ) tomou um corpo. Mas que se fez carne »; «Tal é a


radicalidade cristã, com as suas forças e a sua loucura» (286, 288, 287, 291). Isidro Ribeiro da Silva.

SEN, Amartya: The Idea of Justice. 469 págs. PENGUIN-ALLEN LANE, LONDRES, 2009 (26,46 -)

O indiano Amartya Sen, que ensina nas melhores universidades inglesas e americanas, ganhou em 1998 o Prémio Nobel da Economia. Mas Sen é, também, um dos pensadores mais importantes do nosso tempo na área da filosofia ética e política. Esta conjugação pouco usual economista e filósofo torna a sua contribuição para ambas as disciplinas particularmente interessante. Neste seu último livro (tem uma vasta obra publicada) Sen apresenta-se sobretudo com o seu chapéu de filósofo. E, como aconteceu com tantos outros pensadores interessados nas questões da ética pública, a sua referência é o norte-americano John Rawls (1921-2002), para concordar e discordar. O livro fundamental de Rawls, A Theory of Justice, data de 1971. Rapidamente o seu autor se tornou o mais célebre, o mais citado e o mais discutido filósofo ético e político das últimas décadas. E Rawls foi introduzindo algumas alterações na sua teoria em resposta a críticas e sugestões de outros filósofos. Surgindo em 2009, depois de tanto ter sido escrito sobre Rawls, será que a análise crítica de Amartya Sen em The Idea of Justice traz algo de novo que mereça atenção? A minha opinião é francamente positiva, ainda que várias ideias de Sen desenvolvidas neste livro tenham apare-

cido já em anteriores textos do autor, aliás muito prolífico. Amartya Sen manifesta uma enorme consideração por John Rawls, a cuja memória dedica este livro. Sen partilha com Rawls a oposição ao utilitarismo, doutrina que exerceu grande influência entre os economistas, nomeadamente nos mais empenhados na chamada economia do bem-estar (welfare economics). Ambos, Rawls e Sen, consideram que o utilitarismo, ao tomar como critério ético básico a maximização da utilidade colectiva, não respeita a individualidade de cada pessoa. E pode levar à violação de direitos humanos fundamentais de pessoas e minorias, para fazer valer essa utilidade colectiva. Mas os dois opõem-se, também, aos individualistas radicais, como Hayek ou Nozick, para quem falar em justiça social não tem sentido. Rawls é um individualista liberal (no sentido americano, ou seja, situado à esquerda) que defende a justiça social. A sua influente teoria da justiça é de inspiração kantiana e segue a tradição do contrato social. Ora Amartya Sen defende também a justiça social, mas não perfilha o contratualismo. A raiz do seu pensamento está em Adam Smith, que (tal como Sen ) se interessou pela economia e pela moral. Hoje Adam Smith é pouco lido e as ideias que correm sobre ele a «mão invisível», por exemplo são uma caricatura redutora do seu verdadeiro pensamento. Sen valoriza sobretudo o conceito de «espectador imparcial» de Smith, como critério de justiça. Uma perspectiva aberta ao pluralismo, requerendo o debate racional entre vários pontos de vista.

721


Este critério permite a Sen afastar-se do construtivismo teórico e abstracto de Rawls e da focagem quase exclusiva deste na dimensão institucional da justiça. Pelo contrário, Sen não quer definir o que será uma «sociedade justa»; quer, sim, atacar as reais injustiças que existem no mundo. Da esfera ideal e «imaginária» de Rawls, Sen pretende descer à realidade tal como ela é. Por isso a sua perspectiva não é puramente institucional, antes tenta combinar princípios operacionais de justiça, baseados designadamente em comparações (ainda que incompletas), com o efectivo comportamento das pessoas. A teoria da escolha social é usada por Sen, que já a havia desenvolvido em anteriores trabalhos. Embora esta teoria tenha recebido os principais impulsos de economistas (Kenneth Arrow, James Buchanan, o próprio Sen, etc.), o nosso autor distancia-se do entendimento mais corrente na economia, que considera o interesse próprio como o motivo principal do agir económico das pessoas. Esta é, para Amartya Sen, uma visão extremamente limitada da razão e da racionalidade. E Sen nega existir uma única medida para avaliar o bem-estar e muito menos uma medida expressa em valores de mercado. Realista, Sen aceita a multiplicidade dos valores e a sua eventual contradição (uma ideia cara a Isaiah Berlin), assim como a legitimidade de várias escolhas racionais sobre o mesmo caso. Como desconfia de soluções únicas e perfeitas para os problemas éticos da justiça. O seu objectivo não é encontrar a resposta acabada e ideal para esses problemas, mas abrir caminho a soluções concretamente possíveis que reduzam as

722

injustiças no mundo, sem se impressionar que fiquem conflitos por resolver e que não possamos dispor de uma teoria completa para todas as questões. The Idea of Justice é um livro intelectualmente estimulante e uma obra útil para quem queira agir ou influenciar o agir de outros em matéria de ética social, económica e política. Francisco Sarsfield Cabral.

História NEBGEN, Christoph: Jesuiten aus Zentraleuropa in Portugiesisch- und Spanisch Amerika, Ein bio-bibliographisches Handbuch mit einem Überblick über das auâereuropäische Wirken der Gesellschaft Jesu in der frühen Neuzeit Neugranada (1618-1771). 244 págs. ED. JOHANNES MEIER, ASCHENDORFF VERLAG, MÜNSTER, 2008, vol. 3. (43 -)

O livro de Christoph Nebgen Jesuiten aus Zentraleuropa in Portugiesisch- und Spanisch Amerika, Ein bio-bibliographisches Handbuch, Neugranada (1618-1771) constitui o terceiro volume duma série de livros com os resultados do projecto de investigação Jesuiten aus Zentraleuropa in Portugiesisch und SpanischAmerika (Jesuítas da Europa Central na América Portuguesa e Espanhola) dirigido por Johannes Meier e a decorrer na Faculdade de Teologia da Johannes-GutenbergUniversität, Mainz, Alemanha. Está previsto que esta obra seja formada por seis volumes correspondentes às seis províncias da Companhia de Jesus na América do Sul durante a Época Moderna e que


eram respectivamente o Brasil (o primeiro volume da autoria de Fernando Amado Aymoré foi editado em 2005 Amado Aymoré, Fernando, Jesuiten aus Zentraleuropa in Portugiesisch- und SpanischAmerika, ein bio-bibliographisches Handbuch mit einem Überblick über das auâereuropäische Wirken der Gesellschaft Jesu in der frühen Neuzeit, Brasilien (1618-1760), ed. Johannes Meier, Münster, Aschendorff Verlag, 2005, vol. 1.), Nova Granada, Chile, Quito, Peru e Paraguai. O livro em análise, que é dedicado à Província de Nova Granada, é formado por oito capítulos principais intitulados 1. Die Ordensprovinz (A Província da Companhia) (1-35), 2. Historische Ethnologie der Indigenen Bevölkerung (Etnologia Histórica da População Indígena) (35-49), 3. Entwicklung der Missionsgebiete (Desenvolvimento dos territórios missionários) (51-73), 4. Die Missionare Zentraleuropäische Provenienz (Os missionários provenientes da Europa Central) (75-104), 5. Mission im Verständniss der Indigenen Völker (A missão na compreensão dos povos indígenas) (105-114), 6. Ausweisung und Ihre Folgen (A Expulsão e as suas consequências) (115-122), 7. Die Epoche aus heutiger Sicht (A Época numa perspectiva actual) (125-130) e 8. Bio-bibliographisches Verzeichnis (Índice biográfico bibliográfico) (131-244). Na análise desta obra, começamos por salientar uma pesquisa documental muito extensa (XIV-XXXVI). Compreensivelmente, para além das pesquisas efectuadas no Archivum Romanum Societatis Iesu e em fundos conservados em Espanha, o autor procedeu à consulta de manuscritos em arquivos e bibliotecas dos países europeus de onde eram provenientes os mis-

sionários (Alemanha, Itália, Luxemburgo, Países Baixos, Áustria, Suíça, República Checa) e ainda no Chile, na Colômbia e na Venezuela. A Província Jesuíta de Nova Granada estendia-se precisamente nestes três países latino-americanos. Ainda do ponto de vista da metodologia da investigação, realçamos uma bibliografia equilibrada incluindo os autores clássicos como Heinrich Huonder ou Luís Fernando Restrepo, entre outros, e obras recentes complementando o recurso frequente às fontes documentais primárias. Não obstante o facto desta obra ser fruto dum minucioso trabalho de investigação, gostaríamos de salientar uma estrutura e uma apresentação facilitando a leitura e a compreensão do texto (Observamos idêntica preocupação no primeiro volume desta obra). Para além do estilo sintético e claro, que caracteriza a escrita de Christoph Nebgen, esta obra divide-se, à maneira alemã, em inúmeros sub-capítulos, tem citações curtas, gráficos acessíveis ao leitor comum, e ainda uma imagem no final de cada sub-capítulo. Esta estrutura clara e o tratamento de uma enorme quantidade de temas locais e ligados à especificidade do trabalho missionário na Província de Nova Granada justificam-se, ademais, pelo facto de esta obra ter sido concebida para servir de manual para os investigadores (Handbuch). Pensamos, no entanto, que o valor académico e científico deste projecto e da própria investigação subjacente à realização deste livro em particular, teriam ganho com um maior recurso à comparação com a organização e a forma de actuar usadas noutras províncias jesuítas. Em especial, teria sido interessante se o autor tivesse realçado em algum sub-capí-

723


tulo as semelhanças e diferenças de concepção da Província de Nova Granada e outras províncias pertencentes à Assistência Hispânica. De igual modo, teria sido importante comparar com algum detalhe os dados biográficos e a actividade missionária dos jesuítas de língua alemã com os dados de outros grupos nacionais no interior da Província. Faltam ainda umas conclusões finais, sintetizando e coordenando a grande quantidade de informações apresentadas ao longo do texto e, em especial, as especificidades da actividade dos missionários da Europa Central e do seu contributo para a Província de Nova Granada. Os capítulos 2. Historische Ethnologie der indigenen Bevölkerug (Etnologia Histórica dos povos indígenas) (37-49) e 5. Mission im Verständnis der indigenen Völker (A Missão na Compreensão dos povos indígenas) (105-113) têm um especial interesse para compreender a relação entre os missionários e «os povos a converter». O capítulo 2 proporciona uma visão aprofundada da complexa realidade social e cultural encontrada pelos missionários. Tratava-se de uma panóplia de tribos com línguas e especificidades culturais muito próprias, incluindo tanto grupos sedentários e com uma grande estratificação social, como tribos nómadas. Juntou-se a este conspecto social a marginalização crescente dos povos indígenas, aliás como é próprio dos sistemas coloniais, por parte dos conquistadores espanhóis (2.2 Entwicklung nach Ankunft der Spanier O desenvolvimento após a chegada dos espanhóis (45-48)). Por sua vez, o capítulo 5 ilustra este encontro de culturas com curiosos episó-

724

dios descritos por cartas enviadas por missionários da Europa Central para os companheiros da Europa. No sub-capítulo 5.2.2 Schlangenbisse (Mordeduras de cobra) (110), o P. Beck escreve que, após um indígena ter sido mordido por uma cobra, a tribo começou a cantar cantigas inteligíveis. O P. Beck «contrapõe uma receita católica», dando a beber ao indígena um pouco de água com terra, que teria sido benzida pelo próprio Apóstolo S. Paulo. Para concluir, consideramos muito interessantes e inovadoras as referências de Nebgen à actividade de outras ordens missionárias nas áreas abrangidas pela Província Jesuíta de Nova Granada. Ainda do ponto de vista da temática, o sub-capítulo 4.6 Besondere Leistungen (96-104) mostra claramente o papel pioneiro e determinante dos jesuítas da Europa Central na definição da Província de Nova Granada. Tiveram estes missionários um papel significativo na gestão patrimonial (4.6.1 Deutsche Jesuiten als Gutsverwalter Jesuítas alemães como administradores de bens (96-99)), enquanto farmacêuticos (4.6.2 Apotheker (99-100)), na actividade missionária entre os escravos africanos, que assumiam a dupla função de servidores nas missões e principais alvos da pastoral jesuíta (Seelsorge unter den afrikanischen Sklaven Cura das almas entre os escravos africanos (100-103)) e na administração da Província durante o séc. XVIII (4.6.4 Administrative Sonderleistungen Höhere Ämter tarefas administrativas especiais, cargos superiores, (103-104)). Cristina Osswald. (Universidade do Minho, Braga, e Universidad Nacional de Educación à Distancia - Madrid).


VON LORINGHOVEN, Bernd Freytag: No bunker de Hitler. 23 de Julho de 1944-29 de Abril de 1945. 152 págs. PAULUS, APELAÇÃO, 2006. (11,90 -)

A agonia do nazismo ou os últimos nove meses do Terceiro Reich e da sua liderança. Ajudante de campo mas não nazista, o autor testemunhou o colapso final do regime, traduzido na apreciação dos acontecimentos e ordens para todas as frentes de guerra. Sem exageros de situação mas com o suficiente dramatismo da vivência, conta como ia crescendo a revolta contra o Führer, até chegar ao último Hitler , sobrevivente ao atentado e ardendo em vingança, mas já encostado à parede e vendo as ruínas do sonhado império a cair-lhe em cima. «Hitler era tudo menos louco. Mas era um anormal. Não tinha amigos. Via traição em todo o lado» (65). Louco de raiva, sim; muitas vezes. Após a libertação o autor escreveu 4 cadernos e guardou-os. 60 anos depois serviram de base para este livro que François d Alençon o convenceu a publicar em francês, de onde foi traduzido não para gáudio de vingativos mas para lição ao possível desvario de governantes: «acabar como ratazana de esgoto» (125) F. Pires Lopes. Política internacional SMITH, David: O dragão e o elefante China, Índia e a nova ordem mundial. 296 págs. EUROPA-AMÉRICA, MEM MARTINS, 2009. (23,66 -)

A crise despoletada no segundo semestre

de 2008 veio provar à saciedade quanto o decadente capitalismo descontrolado exigia mudança de rumo, para bem dele e da humanidade. Só o título (ainda antes de mergulhar no conteúdo) sugere a pesada força do elefante que em loja de louças tudo reduzia a cacos, em contraposição com o astuto dragão que na paciência e sabedoria de séculos se move devagar mas com segurança. A leitura revela que não é bem essa a perspectiva. Em vez de oposição, a soma: China, o dragão; Índia, o elefante. «Os únicos dois países do mundo com populações superiores a mil milhões [ ] provam que a procura do modelo único de desenvolvimento é inútil» (204-5). A tese do autor (estamos na biblioteca das ideias , no caso mais que evidentes) é que «o poder geopolítico global está a mudar de detentores», ou de mãos que, por o terem arrebatado à pressa e à força, dele abusaram e o perderam. A arrastar os outros para a catástrofe, o mundo próspero «caminhava como sonâmbulo em direcção ao declínio económico». Dentro de 40 anos, os três países mais poderosos do mundo serão a China, a Índia e (recuperados) os EUA. A Europa, que também acordou tarde, se souber pôr de lado a soneira, poderá manter os estandartes dos valores, da cultura e da seriedade (aprendida) como base secular da economia e do convívio mundial, corrigido e actualizado após os imperialismos necrófilos e autofágicos. O desafio é para todos: urgentes mudanças, novas regras, outra vivência inter-humana (mais justiça e melhor distribuição da riqueza para mais paz, equili-

725


brado esforço produtivo e geral qualidade de vida). Outra economia, outra sociedade, outra ordem mundial: um propósito construtivo pelo qual vale a pena trabalhar, ainda que seja com a consciência de ser preciso desinstalar-se das comodidades perigosas e contraproducentes a que nos tenhamos habituado. Os abandonados e vítimas do sistema tantos tão pobres contrapostos a poucos tão ricos bem merecem outro olhar, outra preocupação, outro ideal outra vida. O capital foge para países de salários baixos. Mas os trabalhadores de salários baixos fogem para o nível de vida. Para quantos a esperança de vida é armadilha de morte (firmas, deslocações, boat people, migrações, assaltos, razias). Quando o capital se orientar para a vida dos trabalhadores, o resto, tudo o resto (a vida-desvida) vem por acréscimo de eficiência, hoje agravado pela crise mais que certa. Maior e melhor lição: saber gerir o desenvolvimento sustentável. Mas o sucesso é traiçoeiro; e o futuro (por muito que se preveja) ninguém o sabe. O intuito explícito do autor é «explicar a ascensão da Índia e da China, avaliar se essa situação nos deveria deixar alarmados ou alegres, tentar avaliar o rumo destes dois grandes países e o que isso significará para o resto do mundo» (19). Para além da abundância de informação histórica, combina a legibilidade com o debate de ideias feitas ou arcaicas e a análise acutilante. «O dragão e o elefante [2007] é um guia acessível e cativante para essas mudanças». Tanto mais quanto o autor, inglês, é qualificado profissionalmente (no mundo da economia e da finança) para falar com clarividência dos saudáveis desafios que nos esperam: farol que ilu-

726

mina a noite e nos evita sermos atropelados pelo tempo ou pela vida. Como se sabe, os retrógrados andam como os ponteiros do relógio mas contra os sinais dos tempos. De pessimismos, chega. Construir, sim; travar ou obstruir, não este é o caminho da crise. Ajudar e corrigir, sempre. Afinal, colocar um anemómetro que desejamos humanizador ao indicar-nos para que lado sopra o vento e com que intensidade para todos. Mas não há bela sem senão e o reverso da medalha desdoura a modernização ou acentua o peso da tradição. O progresso económico traz também um nascer para a morte. Tanto um como outro paga-se com muitas mortes e forte degradação ambiental. E falta avaliar a repercussão da crise 2008-09 na economia das sociedades emergentes. O melhor nunca é o geral. O bom pode ser. Assim como há três Índias, haverá quantas Chinas? Em toda a parte, os homens da vergonha são a vergonha do mundo. O capital tem mais olhos que barriga; o trabalho tem apenas os braços para cuidar da barriga. Tristemente está-se ainda em problema quantitativo. Mega provas à vista: impressiona a correlação directa entre corrupção e cleptocracia. Conclusão: a grande lição da crise presente (há muito previsível) é que os países ricos (fornalhas dela) se atolaram nos vícios do sistema, enquanto os países emergentes souberam mudar de direcção a tempo e lhes saíram da órbita. Os dois últimos senhores do mundo foram os mais caturras, os que mais pagaram, os que mais fizeram sofrer e mais arrasaram o mundo. Nem só para países pobres se reconhece que são raros os casos em que o problema não seja a corrupção. Que


importam vidas deprimentes para manter a competitividade? Já o Jesus do Evangelho dizia: «Que importa ao homem ganhar o mundo inteiro se vier a perder a sua alma?». F. Pires Lopes.

Teologia METZ, Jean-Baptiste: Memoria passionis. Un souvenir provocant dans une société pluraliste. (Traduit de l allemand par Jean-Pierre Bagot.) 244 págs. CERF, PARIS, 2009. (30,00 -)

A história dos sofrimentos humanos não

cessa de projectar constantemente a sua sombra sobre a esperança cristã. Ora, o cristianismo, enquanto «Religião de rosto voltado para o mundo», não pode, de modo nenhum, alhear-se da realidade flagrante e ponderosa veiculada pelas histórias de sofrimento e de catástrofes do nosso tempo. Muito pelo contrário, compete-lhe antes segundo acentua repetidamente o A. do presente vol. (traduzido da 2.ª ed. alemã, 2006) sentir-se dramaticamente interpelado a retomar de maneira nova a questão essencial da teodiceia, ou seja, a questão de Deus; mas não no sentido de um retorno à velha tentativa de justificação de Deus por e contra tudo, quando temos de fazer face ao mundo, ao sofrimento e ao mal, mas antes, «e mesmo exclusivamente», de nos interrogarmos como podemos falar de Deus de maneira geral, em face do insondável sofrimento do mundo, do seu mundo. Para Metz, é essa «a questão da teologia», sendo tão impossível eliminá-la como dar-lhe resposta. «É a questão escatológica para a

qual a teologia não dispõe de nenhuma resposta capaz de tudo conciliar» (11), embora deva afanar-se sempre por buscar uma nova linguagem sobre ela a fim de a não deixar cair no esquecimento: «O ateísmo, a impiedade são também uma espécie de olvido que já não permite pensar ainda o homem» (65). O desafio ao cristianismo a que acima se alude vai implicar, naturalmente, que a nossa memória bíblica «uma lembrança provocante numa sociedade pluralista» (subtº) se confronte com os diversos universos religiosos e culturais da contemporaneidade, relançando de novo, e em força, os mais candentes problemas da história da paixão do homem. Existem, na verdade, razões de fundo para que o cristianismo critique vigorosamente a imagem hoje difundida no público de uma história fundamentalmente subtraída à dialéctica da recordação e do olvido em ordem a difundir e sustentar a amnésia cultural reinante que, pela sua própria lógica, propende a apagar da memória a recordação da paixão do ser humano. Com efeito: «Numa religião que vê na paixão de Deus uma compaixão (§ 11), uma expressão não sentimental de um amor que se enraíza na unidade inseparável do amor de Deus e do amor do homem, a História da humanidade (no sentido de grande relato), vista como uma história de paixão, não pode senão recusar a ideia (moderna) de um avanço não dialéctico do progresso, mas também a intenção (pós-moderna) de dissolver a História numa pluralidade de histórias sem ligações entre elas» (9 e 235). A condição para fazer da história um grandioso relato é, portanto, falar dela em termos de «história da paixão» (198, n. 1)

727


da história da paixão de Jesus Cristo que «sofreu sob Pôncio Pilatos» e que está no centro do relato bíblico: « é sempre neste quadro que devemos falar do sofrimento dos homens, porque a História, no sentido de Grande Relato, não existe senão como história da paixão» (235). É precisamente essa história que o cristianismo deve narrar e à teologia compete proteger: «Uma teologia que olvidasse totalmente a categoria de relato deveria pôr de lado as experiências originais dos crentes em benefício de uma mística abstracta e sem voz» (234), derivando daí o perigo de resvalar para uma experiência de fé no vago e de conteúdo meramente ritualista. A Memoria passionis é, portanto, categoria básica da teologia fundamental uma nova teologia política , enraizada no mundo e esforçando-se tanto por arrancar o discurso cristão à privatização, em nome do enraizamento bíblico do discurso sobre Deus, como por fazer uma nova avaliação da lógica moderna das Luzes (236-237). Em suma: «A teologia fundamental procura acima de tudo assegurar o universalismo e a veracidade do seu discurso acerca de Deus sobre a categoria da memoria passionis, no sentido de lembrança do sofrimento dos outros. Para ela, a História, no sentido de grande relato portador de verdade, não existe senão como história da paixão da humanidade. É por isso que ela critica uma noção moderna da razão que procura furtar-se à dialéctica entre a recordação e o olvido, e que estabiliza a amnésia cultural da nossa sociedade ainda ou pós-moderna» (239). Por outro lado, o retorno da teodiceia, no sentido atrás apontado, é característico da nossa situação presente: «porque

728

se impõe pelo facto da dramática exacerbação simultaneamente da questão da justiça e da do futuro do homem. ( ). Afirmar o retorno da teodiceia, é interrogar-se sobre uma memória redentora concernente a este futuro» (10-11). Em síntese geral: o que o A. evoca constantemente e vai comentando ao longo deste seu livro é o imperativo de «enraizar e sustentar a nossa tomada de consciência teológica» no que ele designa como «cultura memorial» do espírito do cristianismo (45). Isidro Ribeiro da Silva.

Vária FRÁGUAS, Helder: Sucesso nas carreiras jurídicas Guia para licenciados em Direito e estudantes. 144 págs. ROMA EDITORA, LISBOA, 2006. (10 -)

Estão em toda a parte onde seja preciso

lidar com leis. Mas nem por isso obtêm sempre o desejado sucesso. Advogado é o inscrito na Ordem. Jurista é todo o licenciado em Direito. Em tempos de crise de emprego, têm mesmo de recorrer a outros préstimos que não os jurídicos. Conheci em Roma (1963), como taxista não sindicalizado, um advogado que trabalhava com viatura própria e vivia de chamadas particulares a qualquer hora. Também não esqueço o fresco do juiz corrupto em Monsaraz nem as longas tiradas contraditórias em filmes de tribunal. Daí que o sucesso jurídico seja preocupação de formados e estudantes, e tenha merecido a atenção absorvente de um juiz que antes ocupou diversos luga-


res que tinha alcançado. Conhecimento, experiência, iniciativa, um protector e a necessária dose de sorte são alguns dos ingredientes de que é feito com o tempo o cobiçado sucesso profissional e económico. Uns defendendo a justiça , outros a lei , perante a hierática figura da velha justitia emblematicamente esculpida com olhos vendados, numa das mãos a balança do julgamento e na outra a espada da decisão sinais controversos de um ofício tão dúbio como esforçado e de resultados ( sucesso ) incertos. Em abertura, alguns aspectos abordados no livro um deles: mudar de em-

prego com rapidez . Depois, várias regras fundamentais e as sete saídas mais frequentes. A seguir, aponta os temas principais da própria escrita de admissão ao social, civil e penal. Por fim, testemunhos pessoais de especialistas em determinados campos e a relação de casos práticos são parte importante da exposição. Opinião de não especialista: pareceu-me guia muito pragmático para todas as formações e frentes jurídicas, bastante útil e ilustrativo para quem tenha de lidar com profissionais do sector jurídico e até para enriquecer a cultura geral. F. Pires Lopes.

729



obras recebidas na redacção

OFERTA DOS AUTORES Código pedagógico dos jesuítas. Ratio Studiorum da Companhia de Jesus [1599], Lisboa, Esfera do Caos Editores, 2009. (Oferta de Margarida Miranda, autora da nota prévia, introd., versão portuguesa e notas)

OFERTA DOS EDITORES Aletheia Associação Cultural e Científica Praça da Faculdade, 1 - P-4710-297 Braga: 1) MARTINS, José Cândido de Oliveira (Org.), Padre António Vieira Colóquio, 2009. Câmara Municipal de Vila de Rei Praça Família Mattos e Silva Neves - 6110-174 Vila de Rei: 1) DOMINGUES, José Gaspar, Arautos do amor de Deus, 2009. 2) MAIA, João, S.J., Aguarelas, 2009. Cerf 29, bd. La Tour-Maubourg - 75340 Paris Cedex 07 (França): 1) ALISON, James, Le péché originel à la lumière de la Résurrection. «Bienheureuse faute d Adam », 2009. 2) BOURGINE, Benoît; FAMERÉE, Joseph; SCOLAS, Paul, (Dir.), Qu est-ce que la vérité?, 2009. 3) CAZEAUX, Jacques, L évangile selon Matthieu. Jérusalem, entre Bethléem et la Galilée, 2009. 4) GILBERT, Paul, Violence et compassion. Essai sur l authenticité d être, 2009. 5) GOWLER, David, Petite histoire de la recherche du Jésus de l histoire. Du XVIIIe siècle à nos jours, 2009. DIEL R. Pascoal de Melo, 111 - Vila Luz, 3 r/c Dto. - 1000-232 Lisboa: 1) ISAACS, David, Virtudes humanas. Educar e avaliar, 2009.

731


Instituto Superior Económico e Social de Évora (ISESE) Rua Vasco da Gama, 15 7000-941 Évora:

1) NUNES, Maria de Fátima; SILVA, Augusto da, S.J. (Orgs.), «Da Europa para Évora e de Évora para o mundo». A universidade jesuítica de Évora (1559-1759), 2009. Labor et Fides 1, rue Beauregard - 1204 Genève (Suíça): 1) BONHOEFFER, Dietrich, Vivre en disciple. Le prix de la grâce, 2009. Publicações Europa-América Apartado 8 - 2726-901 Mem Martins: 1) BLYTON, Enid, As novas aventuras da cadeira dos desejos. O mundo dos feitiços, 2009. 2) IDEM, As novas aventuras da cadeira dos desejos. A terra das criaturas míticas, 2009. 3) IDEM, As novas aventuras da cadeira dos desejos. A ilha das surpresas, 2009. 4) BOORMAN, Charley, Por todos os meios. Da Irlanda à Austrália sem andar de avião, 2009. 5) BRASEY, Édouard, A maldição do anel. Os cânticos da Valquíria, 2009. 6) Anónimo Chinês, As 36 estratégias. O manual secreto da arte da guerra, 2009. 7) CONSOLMAGNO, Guy, S.J., A mecânica de Deus. Como os cientistas e os engenheiros entendem a religião, 2009. 8) COX, Simon, O símbolo perdido descodificado, 2009. 9) DICKENS, Charles, Um conto de Natal e outros contos, 2009. 10) FETJAINE, Jean-Louis, A elfo das terras negras, 2009. 11) MOSBY, Steve, Um grito de ajuda, 2009. 12) MOUGEL, François-Charles; PACTEAU, Séverine, História das relações internacionais. Séculos XIX e XX, 2009. 13) RICE, Anne, O tempo do anjo. Os cânticos do Serafim, 2009. 14) RUDEL, Jean; LEROY, Françoise, Grandes datas da história da arte, 2009. 15) TOLKIEN, J. R. R., A lenda de Sigurd e Gudrún, 2009. 16) THOMAS, Neil (Coord.), O melhor de John Adair sobre liderança e gestão, 2009. 17) VERNE, Júlio, À volta da lua, 2009. Roma Editora Av. de Roma, 129 - r/c Esq. - 1700-346 Lisboa: 1) REBOCHO, Manuel Godinho, Elites militares e a guerra de África, 2009.

732


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.