Revista Et alii

Page 1

Um exército invisível contra o câncer

Mãos que sustentam o Brasil O primeiro universitário da família Um case de sucesso na saúde bucal pública

Entrevista - José Mariano Beltrame


índice Revista de Jornalismo Científico e Cultural. Et Alii é uma expressão latina, cujo significado é “e outros”. O termo é usado em citações bibliográficas, quando a obra possui muitos autores. Como esta é uma obra coletiva, voltada para o amplo debate de questões pertinentes em diversas áreas, sendo produzida não apenas pelos repórteres, mas principalmente pelos entrevistados e colaboradores, optou-se pelo uso da expressão como o próprio nome da revista. Expediente Universidade Federal de Ouro Preto Campus Morro do Cruzeiro, s/n, Morro do Cruzeiro Ouro Preto – CEP: 35400-000 Administração Reitor: Prof. Dr. João Luiz Martins Vice-Reitor: Prof. Dr. Antenor Rodrigues Barbosa Júnior Chefe de Gabinete: Profª. Drª. Margarete Aparecida Santos Assessor de Comunicação: Prof. José Armando Ansaloni Coordenador de Comunicação Institucional: Rondon Marques Rosa Produção Coordenação de Jornalismo: Ady Carnevalli Edição Geral: Ady Carnevalli e Edwaldo Cordeiro Projeto Gráfico e Diagramação: Mateus Marques Redação Jornalistas: Ady Carnevalli, Edwaldo Cordeiro e Mariana Petraglia Bolsistas: Bruna Fontes, João Gabriel Nani, Kamilla Abreu, Kíria Ribeiro e Renata Felício Apoio Bolsistas: Íris Zanetti e Roberta Nunes Ilustração: Mateus Marques Revisão: Rosângela Zanetti e Milena Gallerani Tiragem: 1.200 exemplares Impressão: MJR Editora Contato Telefax: (31) 3559-1222 Site: www.ufop.br Email: aci@ufop.br

10. Educação em debate Entrevista com o prof. João Luiz Martins, presidente da Andifes (gestão jun 2011/ago 2012) 16. Economia Agricultura Familiar - Mãos que sustentam o Brasil 23. Terceiro setor Fundação Sorria: um modelo de sucesso na saúde pública 27. Ciência Nanotecnologia – Um exército invisível contra o câncer 33. Esporte Estratégia nutricional para aumentar a performance 37. Memória oral Histórias de um gandula de 1950 39. História Um olhar diferente sobre Roma antiga 44. Cultura - Teatro Rir pra não chorar? 49. Entrevista Bruno Silveira, cineasta 50.Variedades Literatura, cinema, shows e espetáculos 51. Conexões Novidades tecnológicas da web e do mundo digital 53. Convidado especial Entrevista com José Mariano Beltrame, secretário de Estado de Segurança Pública do Rio de Janeiro

editorial

04. Educação e sociedade O primeiro universitário da família

Debate interdisciplinar A proposta da Et Alii é produzir jornalismo voltado primordialmente para ciência, educação, cultura e debates em geral. É uma publicação de uma Universidade, mas sua linha editorial não é a institucional convencional, dedicada a apenas veicular eventos e feitos de si própria. A ideia é que os temas abordados possam informar, ressoar e provocar discussões em qualquer lugar em que sejam lidos. A revista busca como fontes professores, especialistas, estudantes, pesquisadores, artistas e personagens do Brasil e de fora do país, na busca pela diversidade de visões, de ações e de resultados. E suas diretrizes estão ligadas à democratização do conhecimento, à inserção de temas que ajudem a pensar o Brasil, à pluralidade de opiniões e à polifonia crítica e interdisciplinar. Esta edição estampa na capa reportagem sobre o uso da nanotecnologia no tratamento do câncer, uma revolução que já está acontecendo, com resultados altamente positivos. A nanociência deve movimentar até o final do ano quase R$ 6 trilhões no mercado internacional, mas o Brasil é apenas o 25º do ranking mundial. Diante desse cenário, buscamos entender os investimentos do Governo Federal e traçar um panorama sobre as pesquisas e os cursos de ensino superior voltados para esta nova ciência. Já a reportagem de abertura aborda a ampliação do acesso ao ensino público e a possibilidade de mobilidade econômico-social a partir da educação. “O primeiro universitário da família” revela histórias de valorização profissional e melhora da auto-estima dos estudantes e de suas famílias, mas discute também a qualidade do ensino, que estaria, segundo críticos, voltado exclusivamente para o mercado de trabalho. A revista apresenta ainda duas entrevistas com gestores de áreas estratégicas para o país. Elas inauguram espaços que serão cativos a cada edição, um dedicado ao debate permanente sobre temas voltados para a educação, sempre após a primeira reportagem, e outro para convidados especiais, no final da revista. Nesta edição, o presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), João Luiz Martins, faz um resumo de sua gestão à frente da entidade e avalia o cenário do ensino brasileiro. Já o secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, responde sobre UPPs, milícias, inteligência policial e ações de combate ao crime. Et Alii espera assim iniciar sua contribuição para as diretrizes a que se propõe e desenvolver o conceito de que é possível produzir jornalismo público de forma atraente e informativa, mesmo fora de conglomerados comerciais de comunicação.


Educação e Sociedade

6

7

Como a ampliação do acesso ao ensino superior promove ascensão econômica e social, aquece o mercado de trabalho e desperta cobranças quanto à formação Por Renata Felício

O primeiro universitário da família foto: Edwaldo Cordeiro

para servir às necessidades do mercado de trabalho. Nesta batalha ideológica, é possível pensar em vencedores? Quais os caminhos e as alternativas?

O sonho da casa própria, do automóvel e do emprego promissor. Até bem pouco tempo, apenas uma pequena parcela da população brasileira conseguia realizar esses desejos. Na última década, porém, mais do que o aquecimento da economia, a ampliação do acesso ao ensino superior vem mudando perspectivas e recuperando o poder aquisitivo e a autoestima das famílias. Não é raro o estudante ser o primeiro universitário da casa ou mesmo da própria comunidade em que vive. O pioneirismo, nestes casos, não representa apenas crescimento profissional, mas pode significar tornarse o espelho, a referência para as pessoas de sua convivência. No entanto, até que ponto o ingresso na universidade pode realmente provocar transformações sociais e culturais e formar uma sociedade capaz de refletir sobre si mesma e sobre o sistema que a rege? De um lado, as estatísticas, acompanhadas das histórias de conquistas de cada aluno, gritam e promovem as benécies da ampliação do acesso. De outro, a economia responde com a absorção dos recém-formados e aumento na média salarial desta categoria. Há ainda uma terceira via de análise, em que especialistas cobram a qualidade e a formação crítica de uma educação que estaria voltada apenas

Estatísticas positivas De acordo com pesquisa do Ibope, encomendada pelo Ministério da Educação (MEC), oito em cada dez entrevistados disseram que familiares se sentiram motivados a iniciar ou prosseguir os estudos após verem um parente ingressar no ensino superior. O levantamento, feito em 2009, constatou ainda que 80% dos alunos concluintes, pelo Programa Universidade para Todos (Prouni), já estavam empregados, 61% em sua área de formação. Para 68% houve aumento de renda. Foram ouvidos 1.200 recém-formados em estados de todas as regiões do País. O peso do diploma na melhoria da qualidade de vida também foi lembrado, com 97% dos entrevistados mostrando-se motivados a cursarem especialização, mestrado ou doutorado. Em 2012, o Brasil atingiu o contigente de 6,5 milhões de universitários. De acordo com o MEC, são 6,3 milhões matriculados em cursos de graduação e 173 mil na pós-graduação (mestrado e doutorado). O dado é 110% superior ao registrado em 2011. O parâmetro de crescimento do número de faculdades e universidades também revela sensível evolução. Em 1991, eram 893 e, em 2000, 1.180. Já em 2010, a quantidade de instituições de ensino superior se aproximou de três mil, ou seja, três

De menina pobre a pós-doutora vezes mais. O sabor da vitória profissional, Segundo a Unesco – órgão das obtida através do estudo, foi sentido Nações Unidas para educação, ciência por Lucelene Martins em uma época e cultura – a educação ajuda a combaainda mais difícil. “O período na uniter a pobreza e capacita as pessoas com versidade foi uma abertura. Eu passei a conhecimento, habilidades e confiança acreditar mais em mim, mesmo sem ter que precisam para construir um futuro muita consciência disso, e quem acremelhor. Quando uma pessoa está insedita, conquista. O mundo ficou maior e rida em um ambiente em que ninguém mais viável”, conta. Primeira universitáchegou à universidade, ela marca o iniria de sua família, a menina que saiu de cio de um desenvolvimento para todos Barretos rumo à caque fazem parte pital paulista, com o da família. Con“Em 2012, o Brasil atingiu sonho de dar aulas forme dados o contigente de 6,5 milhões de em uma instituição do órgão, na universitários. De acordo com o reconhecida, é hoje América Latina, MEC são 6,3 milhões matricuprofessora e pesquicrianças cujas sadora da Universilados em cursos de graduação mães tiveram dade de São Paulo educação secune 173 mil na pós graduação (USP). Na bagagem dária continuam (mestrado e doutorado. acadêmica, cursos na escola dois ou de mestrado, doutotrês anos a mais rado e pós-doutorado. do que aquelas cujas mães têm menos No início, porém, não bastava o escolaridade. Esta evolução acontece ao nome na lista dos aprovados no vestilongo de décadas e perpassa gerações. bular. Era preciso muito mais. Como o O alargamento do funil de entrada curso de Geologia era integral, o que elino terceiro nível da educação, no Braminava a possibilidade de um emprego sil, já apresenta reflexos na sociedade. formal, Lucelene teve que batalhar para Manter-se em um curso superior, poser monitora de computação e bolsista rém, não é tarefa fácil. Em muitos cade iniciação científica. Com o tempo, sos, é necessário abandonar a cidade garantiu lugar na residência estudantil e natal para desbravar novos lugares, vale-refeições no restaurante universitásem dinheiro, sem trabalho, sem nem rio. Sobrevivia com cerca de um salário ao menos um local fixo para morar. mínimo, contando com o que ganhava Para perseguir o sonho do diploma, o como garçonete nos finais de semana. estudante enfrenta batalhas diárias que Sua família não tinha condições de entornam a conquista pessoal ainda mais viar dinheiro, mas deu o que ela mais valiosa. precisava: apoio. “A gente faz quase


Educação e Sociedade

8

milagre com muito pouco, quando se está cercado de todo o restante que precisa”, conta. Hoje, aos 41 anos, Lucelene sente-se realizada e orgulhosa de ter vencido a barreira dos estudos que a limitava, principalmente por poder ajudar financeiramente todos que caminharam juntos com ela.

De Araçaí para o BDMG Quando a jovem deixou a pequena Araçaí (MG) para morar em Viçosa (MG), um objetivo foi traçado: conseguir um diploma universitário. O sonho concretizou-se com a graduação em Administração e Economia pela Universidade Federal de Viçosa (UFV). Hoje, Marta Eli Dias Oliveira mora em Belo Horizonte e trabalha no Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais (BDMG). Ela é especializada em Gestão de Regime de Mercado, uma área nova no Brasil, e também faz especialização em Estatística. Após fazer um curso na Espanha, na área financeira, passou a exercer um cargo de confiança no Banco, recebendo aproximadamente R$ 10 mil por mês, mais participação nos lucros anuais. Marta afirma que tudo o que conquistou foi à base de muita luta e fé. “A fé, a dedicação e uma pitada de sorte proporcionaram a motivação necessária para alcançar os objetivos com sucesso”, avalia. Já Willian de Poli, também o primeiro da família a passar em um vestibular, está no seu segundo curso superior, no terceiro periodo de Filosofia, na Universidade Federal de São Carlos

(UFSCAR). No primeiro, o de Direito, na Universidade Paulista (UNIP), em Ribeirão Preto (SP), as dificuldades foram grandes. “Minha verba era de R$ “O mundo ficou maior e 400. Gastava mais da mais viável” (Lucelene Martins, metade com aluguel, transporte e alimenprofessora da USP) tação. Meus pais pagavam a mensalidade da Universidade e eu me sustentava com o salário de estágiario”, conta.

9

“A renda familiar se apresenta com possibilidades de maior poder aquisitivo, ingrediente indispensável para fazer a atividade econômica andar sempre para frente” (Marcus Eduardo de Oliveira – UNIFIEO e FAC-FITO)

mais velho de uma família simples da cidade de Jandira, do interior paulista. O pai, que só estudou até o ensino fundamental, é autônomo. A mãe, dona de casa, possui o ensino fundamental incompleto. Robson será o primeiro a concluir os estudos, motivado pela necessidade de um diploma para arrumar emprego. Hoje o jovem percebe que tomou a decisão correta e incentiva os três irmãos a fazerem o mesmo. Assim como João, William e Lucelene, Robson também se sustenta por meio de bolsa concedida pela universidade. Sem este auxílio, provavelmente nenhum deles conseguiria se sustentar em outra cidade. Se, por um lado, o estudante enfrenta os desafios pensando na família; por outro, é a família o suporte para essa conquista. De acordo com Rafael Magdalena, pró-reitor Especial de Assuntos Comunitários e Estudantis da UFOP, a valorização que se dá aos estudos é fundamental. Segundo ele, muitas familías que nunca tiveram alguém em uma universidade se esforçam mais para manter, da melhor forma possível, o estudante em outra cidade. “Você enxerga o quanto que o aluno dá valor e se preocupa com os estudos”. Conforme Magdalena, com o apoio proporcionado pela UFOP, como auxílio-moradia e alimentação, é possível uma graduação de qualidade, permitindo a permanência do estudante durante todo o curso.

A 3 mil quilômetros de casa Para o estudante do curso de Letras, da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), João Henrique Souza, a distância da família é a pior parte. Para realizar o sonho de conseguir o diploma superior, João saiu de Belém (PA) para estudar na cidade de Mariana (MG), a 2.824 km de casa. Com o apoio da bolsa cedida pela Universidade e com o pouco dinheiro que recebe da família, o estudante consegue visitá-los apenas no período das férias. Segundo ele, o sacrifício vale a pena para garantir um futuro melhor para todos. As passagens de sacrifício e de emoções se repetem nas histórias contadas pelos estudantes. “Fazia muito tempo que eu não chorava como no dia em que vi o meu nome na lista dos aprovados”, relata o aluno Robson Rocha, do sexto período do curso de Letras, da UFOP. “Quando eu contei para o meu pai que eu tinha passado na universidade, ele me pegou no colo, eu, com 25 anos nas costas”, brinca. Ele é o filho foto: Edwaldo Cordeiro

Diploma e bons salários De acordo com o economista, mestre em integração da América Latina pela USP e professor da Fundação Instituto de Ensino para Osasco (UNIFIEO) e da Fundação Instituto Tecnológico de Osasco (FAC-FITO), Marcus Eduardo de Oliveira, não restam dúvidas de que a evolução do acesso à universidade apresenta melhora. No entanto, ele ressalta que o caminho para a qualificação plena e irrestrita com inserção no mercado de trabalho com nível salarial acima da média ainda é de muitos obstáculos. E propõe a reflexão se o curso superior garante uma respeitável colocação com bom salário. O professor cita dados do IBGE, com base na Estatística do Cadastro Central de Empresas, de 2009. Segundo o Instituto, entre os que conseguem uma vaga, o salário médio de quem tem diploma universitário é 299,2% maior do que o daqueles com apenas o ensino médio. Enquanto os que possuem nível superior ganham em média R$ 4.239, os que não têm a mesma escolaridade recebem R$ 1.062,14. Na prática, o diploma universitário assegura, de acordo com a pesquisa, ganhos superiores a 211% sobre o salário médio do País, que é de R$ 1.540. Das aspirações profissionais, o concurso público ainda continua sendo a primeira opção para a inserção no mercado de trabalho após a formatura, mas a inciativa privada também vêm absorvendo esses novos profissionais.


Educação e Sociedade

10

Para Oliveira, a partir dessa perspectiva, “o jovem universitário desejoso de progredir profissionalmente se sente motivado a dar continuidade aos seus estudos ainda que o salário inicial não seja o pretendido, pois o curso superior abre possibilidades de melhoria na renda familiar”. Ele recorre também aos dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) para balizar sua opinião. De acordo com o Caged, os salários médios de admissão tiveram aumento real de 4,47% no primeiro trimestre de 2012, quando comparado ao mesmo período do ano passado, subindo de R$ 950,91 para R$ 993,44. Os valores têm como base o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) médio do primeiro trimestre de 2012. Todas as grandes regiões do país apresentaram crescimento real, com destaque para a Norte (6,37%); CentroOeste (6,22%) e Nordeste (5,45%), com ganhos reais acima da média nacional (4,47%). A região Sul apresentou alta de 4,18% e a Sudeste 4,16%”. “Inequivocamente, o ingresso do jovem no ensino superior provoca mudanças estruturais no seio familiar com a recuperação da autoestima e a possibilidade, substancial, de melhoria no seu bem-estar”, analisa Oliveira. “Economicamente, a renda familiar se apresenta com possibilidades de maior poder aquisitivo, o que, para o conjunto da economia, funciona como ingrediente indispensável para fazer a atividade econômica andar sempre para frente”, conclui.

Formação para o mercado X formação crítica Mesmo com a ampliação do número de vagas nas universidades, um dado ainda preocupa. De acordo com a Unesco, apenas um em cada cinco brasileiros frequentam o ensino superior. Diante desse quadro, algumas ações são questionadas. Para a socióloga e pesquisadora da Fundação do Desenvolvimento Administrativo (Fundap), Fabiana Grecco, “se deixarmos de observar casos isolados para refletirmos sobre a estrutura educação/família contemporânea no Brasil, a relação entre essas duas instituições pode ficar mais complexa e, talvez, menos positiva”. Ela lembra do Plano Nacional de Educação (PNE 2011-2020), sobre as metas e estratégias para o ensino, como um documento que contempla a “relação oportunista” entre educação e mercado de trabalho, em que a família seria beneficiada por uma educação com investimento em desenvolvimento econômico e não em conhecimento. Fabiana compara algumas metas do documento, como a 12, que “visa elevar, de forma qualificada, a taxa bruta de matrícula na educação superior para 50% e a taxa líquida para 30% da população de 18 a 24 anos”, mas não deixa claro a que educação se refere, e a 20, que fala em “ampliar progressivamente o investimento público em educação até atingir, no mínimo, 7% do Produto Interno Bruto do País”. A pesquisadora lembra que estudos

11

apontam a necessidade de um investimento público em educação de, pelo menos, 10% do PIB nacional. Segundo ela, “isso significa dizer que a maior inserção nos cursos de nível superior não pode ser exposta como algo apenas positivo, pois a educação que essas pessoas vão receber, em muitos casos, não vai além do que o Estado fornece como vagas para que sua força de trabalho seja melhor qualificada e mais explorada, sem as ferramentas do conhecimento crítico que as ensinariam a refletir sobre sua condição na sociedade”, analisa. Pensar sobre quem são as pessoas que atualmente se beneficiam das vagas em universidades públicas e privadas, tanto quanto em cursos técnicos profissionalizantes, em termos de classe, raça e gênero, seria necessário, conforme Fabiana. “Este exercício pode amenizar o erro de nos atermos em análises que se fixam em dados estatísticos sobre a educação no País e apresentam quantitativamente as benfeitorias que o ensino superior pode trazer, mas mascaram a qualidade dos mesmos. Nesses termos (de classe, raça e gênero), podemos verificar as implicações do ingresso universitário em famílias financeiramente desfavorecidas”, diz. E complementa: “Trata-se de uma reflexão sobre quais interesses simbólicos (como o status social) da família são atendidos e como a educação oferecida pode resultar em termos de conhecimento crítico e emancipatório para o estudante, que atualmente não se enxerga como agente

da história e, portanto, busca por especializações profissionais que o tornam fundamental na manutenção de um sistema que o explora”.

“A maior inserção não pode ser exposta como algo apenas positivo, pois a educação que essas pessoas vão receber, em muitos casos, não vai além do que o Estado fornece como vagas para que sua força de trabalho seja melhor qualificada e mais explorada” (Fabiana Grecco – Fundap)


Educação em Debate

12

Entrevista

13

João Luiz Martins Presidente da Andifes Gestão jun/2011 - ago/2012 Por Edwaldo Cordeiro e Mariana Petraglia

O Brasil ocupa hoje a 13ª posição no ranking mundial de produção de artigos científicos de circulação internacional. Na economia, caminha para ser a quinta potência do planeta na próxima década. Mesmo tendo chegado a esse patamar, somente em abril deste ano a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) foi convidada pela primeira vez na história para uma missão oficial do Governo Federal no exterior. O presidente da Andifes e reitor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), João Luiz Martins, integrou a comissão chefiada pela presidenta Dilma Rousseff, na Conferência Brasil-US: Partneship for 21st Century, em Washington, nos Estados Unidos. Martins foi responsável por apresentar um panorama do Sistema Federal de Educação Superior Brasileira e falou sobre o papel das universidades federais na formação dos recursos humanos e na geração de conhecimento. Entre os tópicos, o Programa Ciência Sem Fronteiras, que prevê a distribuição de 101 mil bolsas, em quatro anos, para estudantes interessados em intercâmbio no exterior. O presidente da Andifes ressaltou também que o Brasil é um país atraente para receber estudantes e pesquisadores americanos. Em entrevista à Ett Alii, Martins fala sobre a viagem histórica e analisa o quadro atual do ensino no País. Ele avalia também sua gestão à frente da Associação. No mandato de um ano, junho 2011/agosto 2012, vê como principal conquista a união entre os reitores e a formulação de diretrizes que foram reunidas em um documento oficial, entregue à Presidência.

foto: Edwaldo Cordeiro

O senhor representou a Andifes em comissão especial que foi aos Estados Unidos com a presidenta Dilma Rousseff. Como os participantes da Conferência Brasil-US: Partneship for 21st Century receberam o seu painel “Parcerias em educação: ciência sem fronteiras”? Disse sobre a necessidade de o Brasil continuar investindo em educação, ciência e tecnologia, com percentual maior de participação no PIB, nos próximos dez anos, e sobre a importância de dividir os royalties do petróleo para serem aplicados nas três áreas. Falei também sobre a possibilidade de os estudantes aprenderem em grupos de excelência, fora do País, para retornarem com conhecimento adquirido em áreas estratégicas. O investimento é fundamental porque senão os jovens não terão mercado quando voltarem. O objetivo era dizer que o Brasil está preparado para esse passo. Os participantes ficaram interessados no conjunto de universidades e nas possibilidades de relacionamento e de parcerias. Em reportagem publicada no site da Andifes, o senhor diz ser importante tratar pendências e propostas comuns do ensino superior e caminhar junto na construção das diretrizes da expansão, com excelência, das universidades federais. É preciso maior integração entre essas instituições para tornar o Brasil um país modelo em educação? Realizamos, ano passado, vários seminários com a presença de reitores, governos e parlamentares, sobre temas

da educação superior e básica. A partir deles, construímos um conjunto de diretrizes, que, na verdade, são conceituais, do que a gente imagina deixar como contribuição para qualquer governo. Isso porque as universidades são equipamentos de estado. Essas diretrizes são uma contribuição da Andifes para o entendimento do que pode ser utilizado na melhoria da educação em todos os níveis, para que cada universidade federal possa se ver. Acredito que a palavra não é nem integração, pois cada uma, dentro daquilo que é possível fazer na sua região, pode dar grandes contribuições à sociedade a partir dessas diretrizes. As universidades são verdadeiras cidades, inclusive com orçamentos superiores a de muitos municípios brasileiros. A UFMG, por exemplo, possui mais de 30 mil alunos, quase três mil professores e um campus de 8,7 milhões de metros quadrados. Diante dessas gigantescas estruturas, qual é o maior desafio dos reitores atualmente? Cada universidade apresenta uma característica e uma importância, e elas vivem hoje alguns problemas comuns. Por exemplo: todas passaram, de 2008 para 2012, por uma grande expansão, praticamente dobraram de tamanho. Recebemos recursos para isso; no entanto, não conseguimos verba para resolver o sucateamento, os laboratórios inadequados, os equipamentos ultrapassados. Ficamos mais de dez anos sem contratação de docentes. Um dos desafios é que as federais tenham recursos para se manterem, para recuperarem as

obras, os prédios que não ficaram prontos. Vários governos anteriores não colocaram a educação superior como prioridade. É preciso fazer contratação de professores e de técnicos-administrativos e suprir as deficiências. Temos aí, portanto, duas questões centrais: uma é resolver a infraestrutura das instituições, a fim de garantir um ensino de qualidade; a outra é a reposição do quadro de profissionais. Entre as diretrizes do artigo 2º do Plano Nacional de Educação (PNE) estão a erradicação do analfabetismo, a superação das desigualdades educacionais e a valorização dos profissionais que atuam no setor. Por se tratar de uma nova proposta para remodelagem do ensino brasileiro, é possível até 2020 resolver efetivamente tais distorções? O desafio da erradicação completa do analfabetismo e do retorno dos jovens e dos adultos que deixaram a escola está diagnosticado, preciso e quantificado, ou seja, o custo para o país. É preciso garantir também que os jovens concluam a série corretamente, com boas noções de matemática e da língua. Isso está diretamente ligado ao papel do Estado em melhorar a carreira docente e a condição da escola, e em incentivar a família nesse processo de responsabilidade na educação. É necessário que o município, responsável pelo ensino fundamental, cumpra o seu papel. Não é só destinar recursos; é necessária uma definição de responsabilidade desses investimentos, o acompanhamento das verbas de financiamento, como elas são aplicadas, como as escolas podem


14

Educação em Debate

passar a ter uma estrutura melhor. Ouresolver algumas questões caseiras. É do conhecimento nas universidades tro aspecto também importante passa necessário que os estudantes se aprofederais? pelos pedagogos, pelos professores. A ximem mais do domínio das línguas, Não. Primeiro acredito que o educação continuada é fundamental. porque isso é uma fronteira difícil de CNPq, uma autarquia pertencente ao Assim como o estudante, o professor ser ultrapassada; que as universidades Ministério de Ciência, Tecnologia e precisa aprender sempre, estudar semcomecem a criar um processo de colaInovação, e a Capes, que é uma autarpre, para consequia pertencente guir do aluno um ao MEC, tiveram “É preciso atrair jovens que sejam bons alunos e que estejam disposresultado melhor. um papel relevante, Os municípios e os estruturante, imtos a serem professores. No entanto, não conseguimos fazer isso hoje estados precisam portantíssimo no porque esse jovem, que é bom aluno, não quer ser professor, ele quer ser investir em conprimeiro passo engenheiro porque vai ganhar mais.” dições que garando “Ciência sem tam uma carreira Fronteiras”. Eles ao professor, para dedicar-se exclusivaboração na formação de uma segunda conseguiram inúmeras visitas, contamente à escola. É necessário que o prolíngua, com cursos intermediários e tos, convênios, e abriram uma série fissional não tenha que estar em cinco, de diálogos. Talvez seja um dos mais de oportunidades para o início do seis escolas ao mesmo tempo para receimportantes desafios dos últimos 20 programa. Só que esse papel esgotou. ber um bom salário. anos com relação à formação de pesAgora o papel pertence às universidasoas no exterior. Nos Estados Unidos, des, porque somos nós quem vamos enO Governo federal vai selecionar por exemplo, mais de 50% dos jovens viar os alunos, fazer a seleção, trabalhar milhares de estudantes em nível de que fazem doutorado nas universidades os estudantes, para que eles possam sair graduação e pós-graduação para estuamericanas são de outros países. O sigpara outras universidades. O “Ciência dar no exterior, por meio do programa nificado disso é que eles voltam para os sem Fronteiras” está instalado e será “Ciência sem Fronteiras”. O que isso países de origem e nunca mais perdem ampliado no horizonte de convênios significa para o avanço das pesquisas a relação com o orientador. Então, ao com outros países, nas oportunidade ponta no Brasil e para o crescidesenvolver trabalhos, o pesquisador des com outras instituições superiores mento das universidades federais? estará se relacionando sempre com o de ensino. Que esse programa seja esO programa é bastante abrangente orientador da universidade americana tratégico para o desenvolvimento do no sentido de ser voltado para estudanque o acolheu. Por isso, a produção país, que os estudantes saiam, façam tes de graduação e de pós-graduação de científica deles é dez vezes maior do que graduação, mestrado ou doutorado, e áreas em que o País necessita intensifia de qualquer país. retornem ao Brasil para dar sua contricar a formação de profissionais, como buição. Se o País precisa desenvolver-se as de tecnologias. O Brasil caminha A impressão que se tinha é de que em todas as áreas do conhecimento, é para ser a quinta potência do mundo não havia uma boa interlocução entre necessário que esses jovens possam voldaqui a uma década, mas carecemos de o Ministério da Ciência e Tecnologia e tar para ajudar nesse desenvolvimento. estrutura, de investimentos profundos. o da Educação. Hoje, fala-se mais em Enquanto isso, o governo brasileiro preO “Ciência sem Fronteiras” é estratéuma atuação conjunta entre as duas cisa fazer o papel dele, que seria investir gico para o País conseguir dar esse salto pastas. Essa é a chave para estabelecer em educação em um percentual maior de desenvolvimento e adquirir a inovanovas diretrizes na educação e na prodo que investe hoje, ampliando as posção necessária. No entanto, precisamos dução de pesquisas em todas as áreas sibilidades nas universidades, abrindo

Entrevista

“Temos que lutar por todas as condições, mas o professor precisa ser valorizado. A transformação se dá a partir do profissional, ele é o responsável pelo ensino” vagas, criando cursos, oportunidades nessa direção, melhorando a educação básica e, ao mesmo tempo, melhorando a infraestrutura de ciência e tecnologia, para receber de volta as pessoas, senão os estudantes vão voltar com qualidade, formação, mas não vão encontrar na universidade laboratórios, equipamentos, tecnologias e condições para seu trabalho. Falta de professores qualificados, salários baixos, estrutura de sala de aula precária; falta giz, cadeira, carteiras e livros. As famílias de muitas crianças em idade escolar são desestruturadas, carentes; moram em locais com difíceis condições de acesso, insalubres. Há crianças que não chegam a ter as três refeições básicas do dia. E a escola é distante. É possível aprender assim? O professor é central no processo de aprendizagem do aluno, de possibilitar ao jovem aprender algo novo, de fazê-lo interessar-se. Sempre desejamos uma condição melhor em todos os aspectos para facilitar o aprendizado, uma boa estrutura, uma boa tecnologia, uma família bem estruturada. Mas se não tiver um grande mediador, uma pessoa que possa provocar e motivar os alunos a aprenderem, não tem valor algum toda uma estrutura. Existem vários exemplos

15

pelo Brasil, em que várias escolas não têm a estrutura desejada, mas às vezes tem um professor lá presente, junto, atendendo, ensinando e mediando as informações. Temos que lutar por todas as condições, mas o professor precisa ser valorizado. A transformação se dá a partir do profissional, ele é o responsável pelo ensino. Outra coisa, o professor no ensino fundamental é responsável por dar todas as disciplinas. Ele precisa de uma educação continuada, de um aperfeiçoamento, porque se não dominar bem o assunto, não vai ensinar. É preciso também atrair jovens que sejam

Cardoso, o Brasil nunca teve um plano nacional de educação. Desde o Império que o Brasil tentou ter um, mas nunca teve. Quando conseguimos um em 2001, com 256 metas, uma das mais importantes - o financiamento - foi vetada pelo FHC. Com a chegada do governo Lula, houve a oportunidade de resgatar o financiamento e Lula não o fez. Cometeu, portanto, um erro histórico. Aí foi criado o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) para cumprir algumas metas imediatas, que apresentou um bom resultado. O Reuni saiu, aconteceram aplicações em creches e assim por diante. Surgiu então essa concepção, a “Precisamos resolver algumas questões visão sistêmica da educacaseiras. É necessário que os estudantes se ção, ou seja, um programa aproximem mais do domínio das línguas porque que pudesse abrigar todos isso é uma fronteira difícil de ser ultrapassaos níveis da educação, no qual você tem todos como da. (...) Talves seja um dos mais importantes sendo importantes, desde desafios dos últimos 20 anos com relação à a creche até a graduação, formação de pessoas no exterior”. com investimentos em programas e ações, aposbons alunos e que estejam dispostos tando também na educação superior a serem professores. No entanto, não como o nível responsável pela formaconseguimos fazer isso hoje porque ção dos demais. Hoje, o novo plano de esse jovem, que é bom aluno, não quer educação possui 20 metas; na verdade, ser professor, ele quer ser engenheiro são 19, a vigésima é o financiamento, e porque vai ganhar mais, vai procurar cada meta apresenta um diagnóstico e o outra área com mais possibilidades de percentual do PIB para garanti-la. Isso mercado. será votado pelo Congresso Nacional. Portanto, nessa visão todos os níveis Especialistas no setor falam da são encarados como estratégicos e imchamada “visão sistêmica da educaportantes, com investimentos e metas a ção” como alternativa para melhorar o serem cumpridas. ensino de base no Brasil. O que seria essa visão sistêmica? Alguns especialistas são a favor Até o governo Fernando Henrique


16

das chamadas “Ações Afirmativas”, as médicos, engenheiros? Se oportunidacotas raciais ou sociais, para tentar cordes pudessem ser dadas para que essas rigir distorções históricas de acesso à pessoas tivessem acesso à educação e educação superior. Outros são contra, formação diferenciada, as famílias iriam pois afirmam que o acesso à universimelhorar e, portanto, iriam ter outras dade deve ser apenas por mérito, ou oportunidades. Teríamos um País meseja, os melhores classificados no veslhor. Estou convencido desde o começo tibular devem ocupar as vagas. Qual a dessa discussão, iniciada em 2000. Na sua posição? UFOP, não adotamos a cota racial, a Primeiro o sistema federal não nossa é social, ou seja, 30% das vagas estem posição, cada universidade usa um tão asseguradas para estudantes egressos conceito, uma política. Há aquelas que de escolas públicas. E a última avaliação conseguiram a aprovação das políticas que fizemos desse processo mostra que afirmativas, outras não. E o Brasil é 90% dos estudantes que entraram na plural, diferente, região por região. No universidade pelo sistema de cotas tiAmazonas, por exemplo, a universidade veram desempenho igual ou superior possui cota para índios; em Alagoas, aos que não entraram. A partir desse adotaram cota para gênero (mulher). diagnóstico, entendemos que estamos Na verdade, a política afirmativa é temdando um passo importante de melhoporária. Ela precisa ser adotada para disria para as famílias. Hoje temos 30% de cutir as distorções sociais, ou seja, você alunos de Ouro Preto e da região. Antem um tecido social com uma série tigamente, em 2005, eram apenas 8%. de problemas, Há então inclusão. provocados jusSempre defendi essa “Temos hoje seis milhões de tamente pelas concepção. pessoas no nível superior, dois políticas sociais dos governos, Nas últimas milhões estão nas universidades por todo esse eleições para presipúblicas e quatro milhões nas processo de desdente da República, particulares. Em linhas gerais, caso e falta de tomou conta dos de25% são formadas pelas instituiinvestimentos. bates a questão das ções públicas e 75% pelas privaExiste hoje uma privatizações. O sedas. De cada 100 estudantes de dívida impornhor acredita que alDireito, 75 são formados pelas tante do Brasil gum dia essa política com certos segpossa chegar às uniparticulares.” mentos, com faversidades federais? tias desse tecido E se chegar, haveria social. Mais de 50% da população braalgum modelo plausível dentro dessa sileira é afrodescendente e grande parte proposta? dos cargos importantes não é ocupada Não existe modelo plausível para por essas pessoas. Quantos negros são uma proposta pública. Acho que a

Educação em Debate

privatização chega sempre aos poucos, tentando conquistar espaço. Há interesses do governo em terceirizar algumas áreas porque o custo fica mais barato. Hoje a lei permite a licitação de uma empresa para fornecer mão-de-obra, como porteiros, vigilantes e motoristas. De certa maneira, uma parte já é privatizada. A luta dos nossos técnicos é que isso não ocorra mais para frente. A minha defesa é nos mantermos no rumo público, que a gente lute pela autonomia universitária. Devemos lutar por uma instituição pública com qualidade. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) realiza um exame para avaliar a formação dos bacharéis em Direito no País — só com a aprovação da entidade e a carteira em mãos é possível advogar. O senhor acredita que um exame nesse formato poderia ser aplicado em todas as áreas do conhecimento para avaliar a formação acadêmica das pessoas? Uma coisa é a universidade ter autonomia para formar uma pessoa, outra coisa é a regulamentação da profissão. O que não podemos abrir mão é da autonomia de formar um currículo necessário para que, naquele modelo, se tenha qualidade para desempenhar uma profissão. Acontece que essas organizações trazem para si a importância de regular, muito por causa das várias instituições que não tem qualidade. Só para se ter uma ideia, 60% das matrículas em nível superior estão localizadas nos cursos de Administração, Direito e Pedagogia. O Brasil não se desenvolve só com essas três áreas. Talvez seja o Direito aquele que tem o maior número

Entrevista

de cursos espalhados pelo Brasil. A Orde fomento, etc. O respeito e a repredem tem que exercer um controle nesse sentatividade foram ampliados nesse processo e ver a qualidade das pessoas um ano, a ponto de sermos convidados em condições de exercer a profissão. para uma missão no exterior, coisa que Acho que as universidades públicas não têm esse pro“Um documento foi deixado com as direblema. Elas possuem uma trizes que imaginamos, ou seja, hoje cada qualidade boa. Contudo, uma das instituições de ensino superior fedetemos hoje seis milhões de ral consegue se ver aqui dentro. Este docupessoas no nível superior, dois milhões delas estão mento foi entregue oficialmente à presidenta, nas universidades públicas e para dizer que, se um dia ela quiser pensar quatro milhões nas particuuma política de estado, de futuro para as lares. Em linhas gerais, 25% universidades, está aí a política sugerida.” são formadas pelas instituições públicas e 75% pelas privadas. De cada 100 estudantes de Dinunca havia acontecido. Portanto, há reito, 75 são formados pelas particulauma união maior dos reitores em torno res. Por isso existem ordens e conselhos da entidade, uma defesa importante do regionais para zelar pela qualidade do sistema federal oferecido aos jovens, profissional que irá atuar no mercado. uma ampliação de oportunidades. Existe um conceito de respeito da AndiComo o senhor avalia a sua gestão fes, inclusive com a imprensa. Defendeà frente da Andifes nesse um ano de mos o coletivo, um sistema público que mandato? Quais os projetos que sua seja um equipamento do Estado e não diretoria deixa consolidados e quais as do Governo. Sinalizamos o que é imporpropostas sugeridas para os sucessores? tante para ele, e se quiser fazer faz, e se O fator principal foi unir a Andiresolver não fazer, a consequência pode fes novamente, unir as pessoas para que ser enorme, porque daqui a dez anos os elas pudessem, nas suas diferenças, conproblemas podem aparecer. Hoje, na tribuir para uma entidade mais forte, Andifes, não existem adversários como pois ela representa mais de um milhão existiam antigamente. As críticas que de estudantes, 59 universidades, todas aconteceram à gestão são construtivas distintas umas das outras. Avançamos e com direcionamento. A sua imagem bastante na concepção de unir o coleestá recuperada. Não somos alinhados tivo em torno dos objetivos para levar ao Governo, podemos ser aliados, mas qualidade às universidades, para formar alinhados jamais. Temos opiniões dispessoas com qualidade. Conseguimos tintas, discutimos aquilo que achamos viabilizar a imagem da Andifes junto ser importante, não concordamos com a Congresso Nacional, Câmara dos uma série de políticas de ações que são Deputados, Poder Judiciário, agências desenvolvidas. Criticamos, inclusive,

17

dizendo o que é o melhor a ser feito. Além desse conceito de entidade forte, representativa, independente, com autonomia, uma série de seminários realizados conseguiu estruturar um “pensar o futuro”. E um documento foi deixado com as diretrizes que imaginamos, ou seja, hoje cada uma das instituições de ensino superior federal consegue se ver aqui dentro. Este documento foi entregue oficialmente à presidenta, para dizer que, se um dia ela quiser pensar uma política de estado, de futuro para as universidades, está aí a política sugerida.


18

Economia

19 foto: Flávia Gobato

“Como seriam venturosos os agricultores se conhecessem os seus bens”. A afirmação, em tom de utopia, é de Publio Marón Virgílio, poeta de Roma antiga, perspectivando uma “revolução agrária” nos campos romanos, visto que na ocasião os produtores rurais, em suas totalidades “familiares”, não obtinham, talvez até por desleixo, uma boa produtividade das terras. Tecendo uma ligação entre os romanos daquela época e o Brasil contemporâneo,

podemos indagar se os agricultores brasileiros “ouviram” Virgílio. O aproveitamento das pequenas terras vem movimentando a microeconomia do país. O mercado interno de alimentos depende hoje dos pequenos produtores rurais, que simplesmente parecem ter surgido de uma hora para outra. Parecem. Os pequenos agricultores sempre estiveram presentes na história do Brasil, desde os nativos indígenas, que cultivavam os alimentos a fim de suprir suas necessidades, até os vários Josés e Marias que mantêm cultivos em suas pequenas propriedades ou quintais. E talvez esteja na produção de alimentos para mercados internos gigantescos um dos alicerces para a força econômica dos países hoje emergentes — Rússia, Índia e China —, que, ao lado do Brasil, formam o grupo dos chamados BRICs.

Agricultura Familiar Familiar Agricultura

Mãos que sustentam o Brasil Por Bruna Fontes e João Gabriel Nani


Economia

20

Toda semana, às terças, em Ouro Preto, e aos sábados, na cidade de Mariana,, os irmãos Luciano Marcos, 35 anos, e Júlio César sar Coelho, 31, trabalham na feira. Com boa estrutura tura e uma ampla barraca, comerciaomerciaachaça, lizam biscoitos, café, cachaça, banana, doces, mel, chouriço turais de e frango caipira. Naturais os, municíSenhora dos Remédios, uilômetros pio localizado a 179 quilômetros de Belo Horizonte, os dois, juntamente com a família, detêm uma propriedade destinada ao cultivo dos cializad produtos a serem comercializados. Os demais irmãos, a cunhada e uma diarista que contribui duas vezes por semana ajudam na produção de café e cachaça. O pai, Hilário de Matos Coelho Neto, sempre foi agricultor e ensinou aos filhos a profissão, que hoje é o sustento de todos. Luciano e Júlio tentaram ingressar no mercado de trabalho de outras formas. Foram garçons por dez anos, depois de concluírem o curso do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial – Senac, em Barbacena (MG). Mais tarde, com a aposentadoria do pai e o desemprego batendo à porta, Luciano decidiu retornar às suas origens. Em 2008, convenceu o irmão a venderem tudo o que tinham para comprar um caminhão. A ideia era facilitar o transporte das mercadorias de Nossa Senhora dos Remédios para Ouro Preto e Mariana. A partir de então, eles passaram a viver com essa renda, extraindo em média um salário mínimo mensal. “O lucro é muito relativo, depende da demanda do mês. Tem

Brasil conta com 12,3 milhões de agricultores em plena atividade

o

açã

ivulg

:D foto

mês que vendemos mais, outros menos, então a renda sempre varia. Tudo tem uma perda. Os biscoitos, por exemplo, quebram; as bananas amadurecem demais e, assim, o que não aproveitamos doamos para o asilo”, contam. A atividade dos irmãos feirantes tem forte peso na economia da região, mas parece ainda escondida atrás de outros setores, como turismo, indústria e mineração. No entanto, o cultivo e a comercialização direta desses produtos pelas famílias tornaram-se cada vez mais significativos e abrangem boa parte da microeconomia nacional.

12 milhões de agricultores Em muitos dos casos, a produção agrícola feita por famílias era tratada apenas como cultura de subsistência. Depois, desprendeu-se da nomenclatura vinculada à ideia de pequenas hortas e passou a ser classificada como agricultura familiar. A expressão surgiu, no Brasil, para dar nome, voz e mercado a uma gama crescente de pequenos produtores agropecuários que está

21

obtendo cada vez mais enfoque em âmb âmbito nacional. Este interesse provém não de uma repres representatividade histórica ou ccultural, mas do fato de ccomo os pequenos cult cultivos vêm dominando o mercado interno de gê gênero alimentício e como, por consequência, exercem forte participação na economia brasileira, figurando como essenciais nas relações internas de mercado. Os estabelec estabelecimentos familiares, segundo dados do último censo agroário do d Instituto Instit pecuário Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2006, ocupam 24,3% da área agrária produtiva, aproximadamente 107 milhões de hectares, sendo que neles estão 84% de todos os estabelecimentos rurais. Por este cenário, são mais de 4,1 milhões de estabelecimentos familiares e mais de 12,3 milhões de agricultores em atividade. Estima-se que a produção dos estabelecimentos familiares represente aproximadamente 70% do total de alimentos produzidos no país, alimentos estes que inundam tabuleiros das pequenas feirinhas a prateleiras de redes de hipermercados. Esses números evidenciam a essencial participação da agricultura familiar na economia, correspondendo a 38% do Valor Bruto da Produção (VBP).

Incentivo do Poder Público O peso deste tipo de produção já começa a ser absorvido pela própria estrutura administrativa do poder público. A Prefeitura de Ouro Preto, por

exemplo, conta com a Secretaria Municipal de Agricultura Familiar, responsável por promover vários programas de incentivo a este tipo de produção, como a requisição de máquinas agrícolas e a vacinação de rebanhos, um avanço e um diferencial em relação à maioria das cidades brasileiras. “Hoje, aproximadamente, cinco mil pessoas que vivem no campo participam dos programas destinados à agricultura familiar. Para as inscrições das máquinas, são mais de 500 propriedades”, explica o secretário Alexandre Negreiros. Esta atenção especial é necessária, segundo Negreiros, porque a atividade é extremamente importante para a economia da região. “Alguns produtos nossos, como a batata, são revendidos até na Ceasa (Central de Abastecimento de Minas Gerais) de Belo Horizonte”, comemora. Este movimento entre campo e cidade é visto como positivo pelo gerente executivo do Sindicato de Produtores Rurais de Itabirito (MG), José Flávio Vitor. Para ele, a agricultura familiar sempre esteve ligada à subsistência, mas cada vez mais vem migrando deste espaço para a área comercial. “O pequeno agricultor vê a oportunidade de comercializar tudo aquilo que não é consumido pela família, a fim de gerar uma renda extra. A dificuldade deste tipo de produtor se encontra no mercado e no crédito, pois há certa relutância em relação à credibilidade na hora dos investimentos. Em contrapartida, o impacto financeiro referente à mão de obra é inferior ao dos grandes produtores, já que geralmente a família fica incumbida deste papel”, avalia.

Lei da Merenda Escolar O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), criado pelo Fundo de Desenvolvimento da Educação (FNDE), do Ministério da Educação (MEC), de acordo com a Lei Federal 11.947, assinada por José de Alencar, em junho de 2009, garante que, no mínimo, 30% dos gêneros alimentícios da merenda escolar sejam diretamente oriundos de produções agrícolas familiares e empreendedores familiares rurais, de preferência do próprio município. O programa visa à melhoria da qualidade alimentar dos alunos de escolas públicas e da vida do homem do campo, a quem é garantido maior mercado consumidor. Para quem produz alimentos, a iniciativa contribui para que a agricultura familiar se organize melhor e qualifique suas ações comerciais. Para quem adquire esses produtos, o resultado da Lei é a melhor qualidade da alimentação a ser servida. Além disso, a manutenção e a apropriação de hábitos alimentares saudáveis são combinadas a um maior desenvolvimento local de forma sustentável. Para participar do fornecimento agrícola escolar, o produtor deve estar filiado a uma associação de agricultores familiares e possuir a Declaração de Aptidão ao Pronaf – DAP (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar). Legislação e obstáculos “Para se discutir agricultura familiar no Brasil, é necessário inicialmente entender que existe pluralidade e diversidade de atores sociais e formas de se relacionar com terra, família, vizinhança, cultura e espaço. Além disso, a

agricultura familiar é um modo de vida e uma forma instituída que o agricultor familiar constrói ao longo de sua vida, produzindo e articulando vários aspectos técnicos, culturais, simbólicos e sociais em seus sistemas de produção”, explica o professor da Universidade Federal de Viçosa (UFV), Marcelo Romarco, especialista na área de extensão rural. Em esfera legal, o Governo Federal promulgou, em 2006, a Lei 11.326, definindo juridicamente a categoria agricultura familiar. Nesse sentido, no seu artigo terceiro, a Lei considera “o agricultor familiar e empreendedor familiar rural aquele que pratica atividades no meio rural, atendendo a requisitos específicos. Entre eles, que não detenha área maior do que quatro módulos fiscais; dirija e utilize predominantemente mão de obra da própria família nas atividades econômicas de seu estabelecimento ou empreendimento; e tenha renda familiar originada das atividades econômicas desenvolvidas em sua terra”. A classificação “familiar” não é tão simples de ser empregada. Analisar modo, objetivo e montante de produção é imprescindível para se chegar a uma conclusão. Não se trata apenas de uma questão culturológica ou de produtividade. Várias formas de produção vindas de diferentes culturas classificam um estabelecimento como rural, visto que é possível destacar no enquadramento da Lei da agricultura familiar categorias como agricultores “familiares”; “assentados da Reforma Agrária”; “pescadores artesanais”; “quilombolas”; “indígenas”; “seringueiros”; “ribeirinhos”; “extrativistas” e “atingidos por barragens”.


22

foto: Íris Zanetti

Economia

23

Entrevista:

Camilo Adalton Mariano da Silva

Sub-coordenador do Centro Colaborador em Alimentação e Nutrição Escolar (Cecane) e vice-diretor da Escola de Nutrição da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

O conceito de propriedade familiar surgiu apenas na década de 1990, quando a máquina estatal viu a necessidade da criação de políticas públicas que favorecessem os pequenos estabelecimentos rurais. A intenção era que houvesse um desenvolvimento em seus respectivos plantios, a fim de projetá-los mais efetivamente no mercado. Mais precisamente no governo de Fernando Henrique Cardoso, a expressão “agricultura familiar” passou a ser oficializada. A partir de 1996, após forte pressão dos movimentos sociais do campo, o Governo Federal deu início à criação de programas, ainda que tímidos, voltados para o já então agricultor familiar. O principal instrumento de aplicabilidade das políticas públicas foi e ainda é o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), cujo objetivo é fortalecer as atividades desenvolvidas pelo produtor familiar; buscar proporcionar o aumento da renda e agregar valor ao produto e à propriedade. Dessa forma, auxilia o agricultor familiar em relação à facilitação e à liberação de recursos para a modernização do sistema produtivo, a

valorização do produtor rural e a profissionalização dos produtores familiares. O processo de incentivar esta produção intensificou-se no governo Lula, quando, por meio do Ministério do Desenvolvimento Agrário, foram criados projetos e leis no intuito de fortalecer a agricultura familiar. Porém, apesar das políticas públicas criadas, ainda hoje os estabelecimentos rurais enfrentam dificuldades, como atraso na liberação dos recursos, falta de assistência técnica e extensão rural, instituições públicas ligadas aos serviços de extensão rural despreparadas para auxiliar os agricultores na inserção desses programas; a própria desorganização dos agricultores (falta de associações ou cooperativas de agricultores familiares); e o fato de que muitos municípios ainda preferem comprar os alimentos de grandes varejistas e atacadistas, prejudicando, assim, o fortalecimento da agricultura local.

Agricultura familiar é só na Roça? Um estabelecimento rural não necessita de um mínimo de produtividade

e nem uma metragem mínima de terreno. Qualquer área que propicie determinado cultivo pode vir a se configurar como um estabelecimento rural, desde que cumpra as normas estabelecidas no Código. Nas cidades, vem surgindo uma agricultura familiar urbana, em que os quintais das casas passam a ser potenciais fornecedores de produtos alimentícios. Ervas, legumes, frutas e aves sãos os produtos mais comumente encontrados nesses cultivos. Seja em canteiros ou em hortas mais bem abastadas, estas culturas são extremamente coerentes com a produção antes “rural”. Essas produções prospectam que a agricultura familiar possui vários caminhos para obter desenvolvimento; e um deles é o urbano. A opção pela sustentabilidade e pelo aproveitamento das áreas aptas para o plantio e a adequação às leis ambientais podem contribuir para impulsionar a agricultura familiar urbana.

A Lei da Merenda Escolar está em vigor? O Cecane é um dos responsáveis pela implementação da Lei em Minas Gerais e no Espírito Santo, prevendo, no mínimo, 30% dos recursos federais a serem inseridos nos municípios brasileiros. O desenvolvimento da Lei da Merenda Escolar, em Minas, segundo o FNDE, é o que mais tem avançado de forma satisfatória no Brasil. Apesar de recente, ela já apresenta bons resultados, embora alguns municípios ainda tenham dificuldades em entender essa mudança de paradigma. Quais são as principais dificuldades em implementar uma Lei de âmbito nacional como esta? O grande desafio é que somente o ente federal tem participado, em suma, com os recursos do município. Ou seja, os estados não têm investido nessa parte de alimentação escolar. Não há obediência legal por parte dos estados e dos municípios em fazer a parte que cabe a cada um deles. Contudo, mais de R$ 1 bilhão em recursos federais estão sendo investidos, gerando economia local. A alimentação escolar deixou de ser um programa simplesmente de suplementação, em que eram supridas parcialmente as necessidades alimentares, através da distribuição assistencialista, e passou a

ser um programa de desconcentração e direção de renda municipal. Houve alguma mudança para o agricultor depois da inserção da nova Lei? Sim. Com esta nova política, há um redesenho do perfil de produção do pequeno agricultor familiar. Como nutricionista responsável pelo programa, vejo na elaboração do cardápio escolar - que deve atender um padrão de adequação mínimo, como a alimentação variada - a mudança de perfil do agricultor, que, juntamente com o nutricionista, rediscute o foco da produção, saindo da monocultura e aumentando o leque de produção para atender à demanda da alimentação variada. Isso passa a fortalecer não só a alimentação escolar, mas também o próprio agricultor. Por outro lado, o produtor pode ir além da aliança escolar, aumentando a produção e abarcando outros mercados com esse incentivo, para não ficar restrito. Qual é o processo de inclusão do município? Quem faz a proposta? Normalmente o Cecane trabalha sobre uma demanda estabelecida pelo FNDE, através de municípios que apresentem problemas, que tenham alguma denúncia ou que ainda não

implantaram a Lei. Quem define a base de planejamento é o FNDE. Mas nada impede que o Cecane, mediante observações e demandas espontâneas, possa selecionar. Os próprios municípios entram em contato a fim de executarem a Lei e nós os convidamos a participarem de cursos de capacitação, mesmo não estando formalmente na lista que o FNDE definiu. Então é flexível. Quais os critérios que o município precisa atender para ingressar no projeto? Primeiramente, ter um nutricionista. Mas o principal é um Conselho de Alimentação Escolar atuante, uma vez que manterá o controle social e acompanhará no dia a dia a execução da política local. Se o Conselho não estiver implantado de forma adequada, existe uma possibilidade maior de o programa não atender o que a Lei define. Por isso, só irá funcionar se tiver uma série de outros fatores. Por se tratar de uma Lei recente, as pessoas estão começando a aprender efetivamente o papel da conduta social e que não existe política pública se o principal interessado, o cidadão, não se envolver. Além de todos os benefícios, a lei ainda batalha por uma frente de politização social.


Economia

24

Agricultura Patronal X Familiar Um dos pontos mais conflituosos na questão agrária é o embate entre a agricultura patronal e a agricultura familiar. A chamada agricultura patronal é aquela em que suas produções são em larga escala, com um número elevado de funcionários, fixos ou temporários, geralmente focados em monoculturas, e que se situam em grandes extensões de terra. Em suma, ela pode ser considerada o oposto da agricultura familiar. Na maioria dos casos, os produtos dos estabelecimentos patronais geralmente vão para o mercado externo; assim, a contribuição econômica da agricultura patronal é analisada em esfera macro. Pesquisador em sociologia e estudos estratégicos do campo, o professor Zander Navarro, pesquisador da Embrapa Estudos e Capacitação (Brasília) e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Extensão Rural da Universidade Federal de Viçosa (UFV), parte de uma analogia diferente para delimitar a agricultura patronal. Segundo Navarro, “se a racionalidade do produtor rural é maximizar lucros (mesmo que utilize outras frases da linguagem, para expressar este objetivo), sua racionalidade pertence, de fato, a um campo de classe social e de objetivos pessoais que situam-se no campo burguês, empresarial, capitalista, patronal, ou outro adjetivo similar, que expressa um agente social capaz de almejar o manejo de seus recursos visando à produção de lucro (portanto, pode continuar sendo “familiar”, em termos de gestão da atividade agrícola, mas sua administração o fará agir como um verdadeiro “dono dos meios de produção”, apenas supervisionando as atividades e buscando sempre a melhor combinação de recursos para produzir mais e melhor).” Sob a perspectiva de Navarro, a agricultura patronal independe do número de funcionários ou de sua extensão. Mais além, ele defende que qualquer produção que possua como objetivo o lucro (superando as perspectivas de sustentabilidade) pode vir a ser considerada patronal. Ainda segundo ele, deve-se aplicar uma análise que vá

fotos: Fundação Sorria / Divulgação

buscando o que a sociologia chamaria de ´reprodução social´, não muito mais do que isto”, conclui.

foto: Íris Zanetti

além de artigos ou teorias para classificar um estabelecimento. “Mas a racionalidade pode ser apenas ´maximizar renda´ dentro dos limites existentes de tamanho de área, capital e trabalho disponíveis, habilidades pessoais etc. Neste caso, estamos falando de um típico comportamento de classe média, que busca sempre ganhar certo resultado financeiro, dentro de um determinado período de tempo, mas com qual objetivo? Maximizar lucros? Claro que não, busca apenas repor seus instrumentos de trabalho, manter aberto o crédito para a produção (quando necessário), realizar alguma reforma de benfeitorias e equipamentos, comprar os insumos para a próxima safra e, depois de tudo isto, ainda sobrar algum dinheiro para as despesas da família (alimentação, lazer, estudo para os filhos, poupança para problemas de saúde etc.). Ou seja, este segundo produtor pode também falar, em sua linguagem do senso comum, em “buscar lucro” em sua atividade (e a maioria o dirá desta forma), mas sua prática social é outra, diferente do primeiro”, avalia. “O cotidiano deste produtor é aquele de classe média,

Novo código ambiental: Fim, recomeço ou adequação? A discussão em torno do novo Código Florestal para o país acirra opiniões e polêmicas. Na maioria dos casos, os pequenos agricultores não possuem conhecimento ou informações sobre as mudanças que virão a ocorrer se ele entrar em vigor. O temor por punições mais severas e uma inflexibilidade nas determinações legais acentuam a recusa destes produtores rurais. A proposta, porém, acena com a possibilidade de que multas acumuladas possam ser suspensas caso haja adequação às determinações. De acordo com Rui Daher, administrador de empresas, consultor da Biocampo Desenvolvimento Agrícola e colunista do Portal Terra, a nova legislação nunca foi uma ameaça ao produtor rural, e principalmente ao produtor familiar. Rui acredita que muitos usam a agricultura familiar para justificar décadas de desrespeito à preservação ambiental e impedir punições sobre malfeitos do passado. “Basta verificar que no crescimento da produção agropecuária predomina o aumento da produtividade e não da área plantada. Daí a necessidade de dar apoio técnico ao pequeno agricultor para aumentar a sua produtividade”, afirma, reiterando que as áreas dadas como de preservação pela nova proposta não influenciaram negativamente na produtividade da agricultura familiar. Em meio às polêmicas ideológicas e partidárias, a única certeza é de que o investimento qualificado em técnicas e tecnologias para incentivar a agricultura familiar a exoneraria de quaisquer punição ou deficit de produção e impulsionaria o desenvolvimento do mercado interno de alimentos em consonância com as exigências de defesa do meio ambiente.

Um case de sucesso na saúde bucal pública Projeto de assistência odontológica gratuita reduz 65% das cáries em crianças carentes Por Kíria Ribeiro


Terceiro Setor

26

Os turistas que visitam Ouro Preto para conhecer os casarões seculares e a riqueza colonial da região têm sua atenção voltada para os detalhes das igrejas barrocas, as peças da arte do Século XVIII e a beleza arquitetônica do município. Se o tempo destinado a passeios no museu aberto em que se transformou a cidade descortina um conjunto de obras imponentes, a estada em hotéis e pousadas pode revelar delicadezas e aromas de uma transformação social diferente. Produtos de higiene pessoal, como sabonetes, xampus e óleos de banho, disponibilizados em muitos destes lugares, trazem em seu perfume a fórmula invisível, recente e instigante de uma revolução voltada para a saúde e a auto-estima da comunidade local. Todo o lucro obtido com estes materiais é revertido para a Fundação

Sorria que, há mais de três décadas, é referência de tratamento odontológico gratuito voltado para as crianças da cidade, representando um case de sucesso na parceria entre terceiro setor, iniciativa privada e poder público. Em 1993, no primeiro inquérito epidemiológico do município, apenas 16% das crianças estavam livres de cáries. Em 2008, o índice subiu para mais de 50%. A Fábrica de Sabonetes Finos Ouro Preto, montada em 2005, a partir de uma cooperação técnica com a Escola de Farmácia da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) é mais um braço que visa a tornar o projeto autossustentável e diversificar alternativas de negócios, ampliando os investimentos na saúde bucal pública. Os produtos são oferecidos para salões de beleza, rede hoteleira e empresas. Além disso, a Fundação

conta com mais três lojas para a venda direta aos turistas e à comunidade. O Projeto Sorria teve início em 1978, com o objetivo de dar à população carente da cidade de Ouro Preto assistência odontológica gratuita e de boa qualidade. O trabalho começou com uma ação isolada do dentista Aluísio Drummond, hoje presidente da Fundação que leva o nome do projeto. Drummond decidiu subir os morros de Ouro Preto a fim de realizar palestras para a prevenção das cáries. Munido de um projetor de slides, alguns moldes de gesso, escovas, fio dental e evidenciador de placa bacteriana, ele ia às escolas, associações comunitárias, paróquias e fazendas de distritos para levar informações sobre os cuidados com as cáries e despertar as comunidades para a importância da saúde bucal. A primeira unidade do projeto foi inaugurada em 1991, no Bairro de Santa Efigênia. Desde então, com a criação de outras sedes, o número de crianças atendidas é multiplicado. A cada novo posto, experiências foram se acumulando e, hoje, a instituição atende oito mil crianças em dez centros equipados com aparelhagem moderna e localizados em pontos estratégicos de bairros de baixa condição socioeconômica. Além disso, a Fundação conta com uma unidade móvel, que fica na Santa Casa de Misericórdia, para o atendimento de casos mais delicados.

Conscientização dos pais Além de prestar assistência odontológica, a Fundação acompanha o

27

desenvolvimento da criança, por meio de revisões periódicas. Mais de 20 mil já foram tratadas. Segundo Drummond, “o projeto não visa somente o tratamento dentário. Busca levantar a auto-estima e recuperar a cidadania nas crianças. Não nos relacionamos apenas com elas, mas com os pais, que são instruídos sobre os cuidados necessários. As crianças passam a ter um comportamento diferente e fazem com que os responsáveis também mudem porque o exemplo fica enaltecido”. O atendimento odontológico é completo, incluindo ortodontia. As crianças recebem ainda orientação para aprender a cuidar da própria saúde bucal, por meio da escovação correta e do uso adequado do fio dental. “Os nossos objetivos são despertar a consciência sanitária nas crianças e em seus pais, atender a população mais pobre e devolver a elas o seu sorriso espontâneo. Esta consciência e o exercício da cidadania são, assim, os alicerces que solidificam as diretrizes da Fundação”, ressalta o dentista. O projeto funciona em diferentes etapas. A primeira envolve o controle de doenças já existentes e o

desenvolvimento de atividades preventivas e educativas. Na segunda, são reconstruídas as partes danificadas. Em seguida, ocorre a socialização de informações e, por último, a atenção se volta para problemas mais complexos e especializados.

Parcerias, prêmios e títulos O Projeto representa um caso raro que conseguiu mobilizar todos os setores da sociedade em prol da causa defendida. Para que funcione gratuitamente, conta com parcerias como prefeitura, instituições públicas, fundações mistas e mais de 60 empresas privadas, além de colaboradores individuais. A Fundação é ainda amparada por profissionais da área odontológica e artistas que apadrinharam a causa, como o músico João Bosco. Pelos bons resultados, a iniciativa coleciona prêmios. Na galeria do reconhecimento, Unicef, Abrinq, Movimento Negro Cultural de Ouro Preto, Procuradoria Geral de Justiça, Ministério Público e outros. Atualmente, o Projeto Sorria conta com 45 funcionários. Todos se dizem satisfeitos e até mesmo agraciados por fazerem parte de uma

equipe que não detém apenas as possibilidades técnicas de correção dentária, mas a própria perspectiva de transformar socialmente os indivíduos. “Há 19 anos, vim morar em Ouro Preto e, por acaso, o doutor Aluisio foi meu vizinho. Fiquei encantada com o projeto. Estou aqui desde 1993 e não pretendo sair tão cedo”, diz a técnica de higiene dental, Maria Dalva Freitas. Mesmo com dificuldades, a Fundação tem conseguido atingir metas de crescimento, mantendo índices de primeiro mundo no tratamento odontológico. Em muitos casos, os atendimentos vêm atingindo a terceira geração das famílias. Um exemplo é o de Aparecida de Cássia Lopes, que, depois de ter tido a filha tratada, agora acompanha sua neta. “O tratamento é excelente. Além de cuidarem da saúde bucal das crianças, eles entendem os problemas das famílias e tentam nos ajudar de todas as formas. Os funcionários, em geral, têm paciência, compreensão e muito carinho com os pacientes. Costumo dizer que a Fundação é uma das melhores coisas aqui de Ouro Preto”, avalia. Outro caso é o de Ternilane Gonzaga, que chegou ao Projeto em 1999,


Terceiro Setor

28

Entidades cobrem apenas 0,47% de atendimentos odontológicos no Brasil

aos 11 anos, com um desafio para a equipe: resolver seu problema na arcada dentária superior. Os seus dentes incisivos laterais estavam atrás dos incisivos centrais. Seu tratamento durou sete anos, entre procedimentos ortodônticos, ortopédicos e clínicos. O resultado refletiu em aspectos mastigatório, respiratório e estético. E aumentou a autoestima da jovem. “Não gostava dos meus dentes. Eram muito encavalados. Eu não podia nem fechar a boca. Hoje, não tenho mais vergonha de sorrir”, comemora.

Descoberta de novos talentos Além de cuidar de dentes e sorrisos, a equipe da Fundação encontrou uma nova perspectiva de atuação: a descoberta de talentos a serem desenvolvidos na comunidade. Foi estabelecida uma parceria com a UFOP para que profissionais dos cursos de música e de artes cênicas pudessem trabalhar com as crianças e desenvolver seu potencial criativo por meio de um coral e da arte de representar. O grupo teatral foi criado em 1996, com a peça ‘O Bom das Bocas’, e o coral, em 1999. Em seu repertório, estão incluídas canções do folclore e da música popular brasileira.

As apresentações acontecem em escolas e hospitais da cidade. O monólogo “Despertar da consciência – O peregrino da solidariedade” também é produzido pela Fundação, mais especificamente pelo seu presidente. Na peça, o doutor Aloísio Drummond comenta sobre textos de Pablo Neruda, Shakespeare, Aldir Blanc e Paulo Lemos. O monólogo fala da necessidade de cada um se aproximar mais do próximo, o que só é possível a partir de uma consciência social, condição básica de percepção e motivação para as iniciativas de solidariedade. O resultado é um espetáculo de elevada elaboração política e social. Mais do que mostrar ser possível promover a saúde bucal das crianças brasileiras em padrão de excelência mundial, o modelo implantado na Fundação é referência para a construção de um país com menos contrastes sociais. Comprometimento e solidariedade movem a ação. E a articulação entre comunidade, poder público e iniciativa privada representa base sólida para a consolidação de uma cidadania possível e com resultados efetivos.

O modelo de saúde bucal vigente no Brasil é ainda limitado. Dados do Governo Federal indicam que, no país, as instituições filantrópicas cobrem apenas 0,47% da demanda de assistência odontológica. Atualmente, a Fundação Sorria presta assistência completa e gratuita a crianças carentes, de zero a 18 anos, o que corresponde a 18% da população infantil de Ouro Preto. Este trabalho reduziu em mais da metade o índice de cárie nessa faixa da população e tem sido exemplo para outras cidades. Em Ouro Preto, o Índice de Cárie Dentária (média de dentes cariados, perdidos e obturados), aos 12 anos de idade, é de 1,27, número considerado excelente pelo Ministério da Saúde. A redução deste índice no período de 1993 (ano do primeiro inquérito epidemiológico na região) a 2008 (ano do último inquérito) foi de 65,67%. Segundo o diretor executivo da Fundação, Francisco Galdino, as crianças que estão no projeto desde os primeiros meses de vida atingem índices epidemiológicos inferiores aos estabelecidos. Para ele, são dados animadores, pois a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera como bom o índice entre 1,2 e 2,5, semelhante ao dos países mais desenvolvidos do mundo. “Importante ressaltar que os pais abraçaram a causa e vêm sendo parceiros dos procedimentos realizados, razão pela qual conseguimos baixar muito o índice de cárie”.

Para saber mais sobre a Fundação Sorria, basta acessar o seu site na Internet, através do endereço fundacaosorria.org.br

Exército invisível contra o câncer

29

O uso da nanotecnologia no Brasil foto: Mona Aragon, Carlee Ashley, Ph.D., e Jeffrey Brinker, Ph.D


Ciência

30

31

Vantagens do uso de nanopartículas para o tratamento do câncer - Proteção para que as drogas não sejam absorvidas pelo organismo antes de chegarem ao alvo; - Aumento de absorção das drogas em tumores e dentro das células cancerígenas; - Monitoramento sobre o tempo da distribuição de drogas pelos tecidos, tornando mais fácil para os oncologistas avaliarem a eficácia da aplicação; - Controle para medicamentos não interagirem com células normais, evitando efeitos colaterais; - Diagnóstico precoce, evitando metástase.

Por Mariana Petraglia e Renata Felício

O mercado internacional de nanotecnologia deverá atingir US$ 693 bilhões (mais de R$ 1,3 trilhões) até o final deste ano e US$ 2,95 trilhões (cerca de R$ 5,9 trilhões) até 2015, com o Brasil ocupando atualmente o 25º lugar no ranking mundial no setor, de acordo com a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI). Todas essas cifras podem representar conquistas importantes em várias áreas, principalmente na saúde, com o tratamento do câncer, por exemplo. A nanotecnologia é a ciência que possui a habilidade de construir, em laboratório, nanoestruturas que tenham tamanho variável de até 300 nanômetros. O

nanômetro é uma unidade de medida que equivale a um metro dividido por um bilhão. Quando comparado com o fio de cabelo humano, possui tamanho 50 mil vezes menor, invisível a microscópios comuns. Sua aplicação na saúde significa a possibilidade de algo muito pequeno carregar o fármaco (remédio) até uma célula especifica e tratá-la diretamente. Associada a diversas áreas, como odontologia, medicina, biologia, bioquimica, veterinária, física e computação, a nova tecnologia possibilita evolução no combate a doenças graves, reduzindo efeitos colaterais das práticas convencionais. O tratamento de um paciente com câncer, a partir da nanotecnologia, proporciona precisão cirúrgica para atingir as células afetadas. O fármaco é direcionado somente à célula cancerígena, preservando todo o organismo. A utilização de nanopartículas, segundo pesquisadores, permitirá o fim de consequências como queda de cabelo, imunidade baixa e anemia, otimizando resultados ou reduzindo a recorrência aos modelos atuais de tratamento, ligados a cirurgia, radioterapia e, principalmente, aplicações quimioterápicas,

métodos que apresentam alto risco aos pacientes.

Diagnóstico e monitoração De acordo com a coordenadora do programa de ciência do US National Cancer Institute NCI - Instituto Nacional do Câncer, dos Estados Unidos, Sonia Calcagno, “a nanotecnologia é essencial para o desenvolvimento de novas abordagens para a terapia, o diagnóstico e a monitoração”. Para os pesquisadores do NCI, o tratamento com nanopartículas oferecerá meios mais seguros e eficazes na batalha contra o câncer. A terapia convencional mais utilizada hoje, a quimioterapia, utiliza drogas que são conhecidas por matar as células doentes. No entanto, estas drogas também destróem as células saudáveis, provocando no paciente náusea, fadiga e outros efeitos que comprometem o sistema imunológico. Com a nova tecnologia, as nanopartículas serão capazes de transportar drogas, fornecendo medicação diretamente no tumor, poupando os tecidos saudáveis. Como numa guerra, o “exército” de fármacos deixa de usar armas de destruição em massa e ganha um artefato capaz de matar apenas os “inimigos”. Outro beneficio está na possibilidade de um diagnóstico precoce. O NCI trabalha para a descoberta da doença no seu estágio incial, uma vez que 90% dos casos de morte pelo câncer ocorrem em pacientes que desenvolveram metástases (disseminação da doença para outros orgãos, além do principal, onde ocorreu o tumor

inicial). Para os pesquisadores do Instituto, se a doença for detectada no estágio inicial, uma simples cirurgia pode significar cura total. Segundo o grupo, a nanotecnologia será capaz de oferecer técnicas e dispositivos de rastreamento por imagens e biomarcadores específicos para o câncer, encontrando a fonte da doença enquanto as células doentes não se espalharam pelo corpo. Os métodos atuais só conseguem captar o câncer quando este realiza uma visível mudança de tecido. E, mesmo quando visível, é necessário cirurgia para descobrir se o tumor é maligno ou benigno, por meio de biopsia. A maioria das terapias baseadas em nanotecnologia ainda está em fase experimental em diversos países. Mas, de acordo com Sonia Calcagno, existem algumas drogas aprovadas pelo Food and Drog Administration (FDA) - Adiministração de Drogas e Alimentos - em meados dos anos 1990, nos Estados Unidos, como o Doxil, medicamento com uma formulação lipossomal de doxorrubicina para o tratamento de Sarcoma de Kaposi, um tipo de tumor maligno. Atualmente, o Doxil é indicado para o combate ao câncer de ovário. Ela cita ainda a droga conhecida como Abraxane, aprovada pelo FDA, em 2005, e utilizada no tratamento do câncer de mama. “Ideias simples, porém inteligentes, demonstrando versatilidade no design de drogras com nanopartículas”, afirma a pesquisadora.

Pesquisa nos Estados Unidos Nos Estados Unidos, vários ensaios

Fonte: National Cancer Institute (NCI) - Instituto Nacional do Câncer, dos EUA clínicos utilizando nanopartículas estão sendo aprofundados, tornando os tratamentos mais sofisticados e direcionados. De acordo com a direção do NCI, um paciente em tratamento usando a terapia baseada em nanotecnologia será atendido de uma forma muito semelhante ao que é submetido à quimioterapia convencional, embora a expectativa seja de sensível redução ou desaparecimento dos efeitos colaterais. O projeto americano Translation of Nanotechnology in Cancer - TONIC (Tradução da Nanotecnologia no Câncer) -, realizado pelo NCI - é uma parceria público-privada para promover oportunidades de desenvolvimento de soluções baseadas em nanotecnologia no câncer. A aproximação do governo norte-americano com as empresas farmacêuticas, biotecnológicas e nanotecnológicas pretende avaliar plataformas promissoras e facilitar a tradução da pesquisa acadêmica para as clínicas. A busca é por diagnósticos seguros e eficazes, possibilitando ao paciente opções de tratamento. Junto com o TONIC, o Instituto conta com outros projetos. O ALLIANCE - Alliance for Nanotechnology in Cancer (Aliança para Nanotecnologia no Câncer), tem a missão de reunir pessoas com alto conhecimento em biotecnologia, produtos farmacêuticos e outros cuidados na área da saúde relacionados com empresas que apresentem interesse em estratégias na avaliação das plataformas de nanotecnologia ou

esforços para buscarem soluções para assistências oncológicas. Já o Nanotechnology Characterization Laboratory - NCL (Laboratorio de Caracterização Nanotecnológica) – busca testar a toxicidade das nanopartículas. A intenção é que o laboratório funcione como recurso nacional e base de conhecimento para todos os pesquisadores do câncer, facilitando, assim, a regulamentação do uso de nanotecnologia no tratamento e diagnóstico da doença.

Nanotecnologia no Brasil Programas e Parcerias Internacionais Segundo o vice-coordenador geral de Micro e Nanotecnologias do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), Alfredo Mendes, o Brasil ainda não tem uma bandeira de nanotecnologia, como o Japão, a Alemanha e os EUA, mas possui projetos importantes, com potencial, na área de cosméticos, no desenvolvimento de novos materiais a partir da biomassa, na produção em larga escala de nanotubos de carbono e em saúde. Recentemente, a Universidade de Brasília (UnB) apresentou um tratamento para a cura do câncer de pele, baseado em terapia fotodinâmica. “Comparado a outros países, estamos duas escalas abaixo. Eles investem bilhões por ano enquanto nós investimos menos de R$ 100 milhões/ano”, avalia Mendes. Os programas nacionais começaram a partir do lançamento da Iniciativa


Ciência

32

Nacional de Nanotecnologia dos EUA, em 2000. Neste mesmo ano, os primeiros passos foram dados no Brasil através da criação de redes de estudos sobre o assunto. De acordo o Governo Federal, entre 2002 e 2005 foram envolvidos em projetos da área 300 pesquisadores, 77 instituições de ensino e 13 empresas. Neste período, as publicações atingiram mais de mil artigos científicos, tendo sido depositadas aproximadamente 90 patentes pelo país. Em 2004, de acordo com o MCTI, a implementação das ações do Programa Desenvolvimento da Nanociência e Nanotecnologia, focadas na geração de patentes, produtos e processos na área, assegurou o apoio à pesquisa básica e fortaleceu as redes existentes e a infraestrutura laboratorial. Para o secretário substituto de Desenvolvimento Tecnológico e Inovação do MCTI, Adalberto Fazzio, a nanotecnologia é a plataforma tecnológica mais inovadora e, muitas vezes, disruptiva. “Como exemplo de sua importância, basta olhar a postura dos Estados Unidos. Em 2012, o governo norte-americano aprovou recursos de US$ 2,1 bilhões (mais de R$ 4 bilhões) e as empresas privadas investirão aproximadamente US$ 2,3 bilhões (mais de R$ 4,5 bilhões) para pesquisa e desenvolvimento (P&D) na área. É um dos maiores programas de P&D já realizado nos Estados Unidos”, observa Fazzio. Segundo ele, a transversalidade da nanotecnologia vem impactando todos os setores industriais: farmacêutico, têxtil, plástico, eletrônico, cosmético, agroprodutos etc. “Investir em nano é garantir

agregação de valores em nossos produtos industriais assim como em nossas commodities.” A partir dessa perspectiva, o governo brasileiro busca ampliar horizontes para as pesquisas neste campo. Em abril, foi publicada no Diário Oficial da União, assinada pelo ministro de Ciência, Tecnologia e Inovação, Marco Antônio Raupp, a criação do Sistema Nacional de Laboratórios em Nanotecnologia - SisNano - para aumentar a interação entre os pesquisadores brasileiros. O projeto propõe desenvolver um programa de mobilização de empresas instaladas no Brasil e de apoio às suas atividades e otimizar a infraestrutura de pesquisa de 16 institutos nacionais de ciência e tecnologia -INCTs- dedicados à área. Além disso, tem como objetivo “capacitar o País a desenvolver programas de cooperação internacional em condições de igualdade com os parceiros atualmente mais desenvolvidos no setor, sempre tendo em vista os grandes objetivos nacionais”. Segundo Mendes, o Brasil possui importantes parcerias em andamento com o Mercosul, Cuba, México, Canadá, Estados Unidos, União Européia e Ibas (India-BrasilÁfrica do Sul). Em fevereiro deste ano, outra importante parceria foi fechada. O MCTI instituiu o Centro Brasil-China de Pesquisa e Inovação em Nanotecnologia, a CBC Nano. Essa parceria visa, dentre outros pontos, “organizar cursos e encontros com o objetivo de promover ações cooperativas Brasil-China na área de Nanotecnologia; além de consolidar

e ampliar a pesquisa na área, expandindo a capacitação científica, com o objetivo de explorar os benefícios resultantes dos desenvolvimentos associados a implicações tecnológicas”, conforme informações publicadas no Diário Oficial, no dia 13 de fevereiro de 2012, também assinadas pelo ministro do MCTI.

Graduação e pós na área Para compreender o mundo das nanopartículas, é necessária base sólida em diversas áreas, como medicina, biologia, física, engenharia entre outras. Como consequência, o estudo em escala nanométrica está se tornando um campo multidisciplinar. A convergência de pesquisadores de campos diferentes possibilitou o desenvolvimento acelerado da nanociência. Em 2010, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) inovou ao criar o curso de graduação em nanotecnologia, até então inexistente no Brasil. São quatro anos voltados para um estudo aprofundado e específico. De acordo com a professora do curso e coordenadora de pós-graduação do IMA-UFRJ (Instituto de Macromoléculas Professora Eloísa Mano), Maria Inês Bruno Tavares, faltam profissionais no mercado com conhecimentos sólidos e diversificados. “Nas universidades, os grupos de pesquisas têm alta capacidade nos seus assuntos”, afirma. Segundo ela, uma das vantagens do curso está no estágio rotativo, em que os alunos passam pelos laboratórios de diferentes áreas que envolvem a

33 foto: Brenda Melendez e Rita Serda, Ph.D

nanotecnologia, como o IMA, o Instituto de Física e Química (CCMN), Engenharia de Materiais (COPPE - CT), a Escola de Química (EQ-CT) e a Biofísica (CCS). Para o vice-coordenador geral de Micro e Nanotecnologias do MCTI, Alfredo Mendes, “cursos de graduação e pós-graduação são importantes na medida em que formam profissionais com conhecimento multidisciplinar e transdisciplinar fundamentais para a utilização das amplas possibilidades proporcionadas pelas nanotecnologias”.

Pesquisas concentradas em SP De acordo com o Panorama da Nanotecnologia, publicado pela ABDI, a maior parte dos estudos em nanociência no Brasil está concentrada em São Paulo. Aproximadamente 70% dos artigos são de pesquisadores vinculados a universidades e institutos de pesquisa paulistas, com destaque para a Universidade de São Paulo (USP), com 204 publicações. Em 2010, foi criado o primeiro centro brasileiro de nanotecnologia e engenharia tecidual na área da saúde, localizado em Ribeirão Preto (SP). O centro visa ampliar a produção de medicamentos nanoestruturados para o tratamento de câncer de pele com a aplicação com laser (fármacos fotoativados), além da produção em escala da pele artificial, usada para recuperação de queimados e tratamentos de problemas cicatriciais em geral. Coordenado pelo professor Antônio Cláudio Tedesco, do Departamento de

Química, da USP, em Ribeirão Preto, o tratamento de câncer de pele com fármacos fotoativados já está consolidado em projetos de pesquisa em parceria com dois centros ambulatoriais no país: Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e Universidade de Brasília (UnB-HRAN). Segundo ele, ainda em 2012 os ambulatórios de Manaus e do Acre deverão receber o tratamento, estendendo o modelo para o norte e o nordeste brasileiro. Tedesco também desenvolve um sistema de veiculação de fármacos com nanotecnologia para medicamentos e princípios-ativos e fotoativos para tratamento de Parkinson, Alzheimer, desordens neuro-ortopétidicas e neurológicas, malária e dengue, além dos tratamentos para o câncer. Ele pretende, junto aos órgãos federais, Ministério da Saúde e Secretaria Estadual de Saúde, adotar um modelo público de tratamento, aberto a toda a população com um custo baixo. A USP ainda utiliza um creme, produzido com o auxílio da nanotecnologia e associado à aplicação de luz visível para ativá-lo. Desenvolvido há mais de 35 anos no mundo e utilizado há 13 pela equipe da Universidade, o produto demonstrou 95% de eficiência na cura do câncer de pele e lesões pré-cancerígenas, sendo testado desde o início dos estudos, em 500 pacientes, com tratamento gratuito. Coordenador do grupo de Fotobiologia e Fotomedicina da USP, Tedesco afirma, porém, que apenas o creme não é capaz de curar o câncer de pele. Segundo ele, é necessário

seu emprego conjunto com a luz visível (laser ou LED, na faixa vermelha). O novo método provoca menos efeitos colaterais que outros adotados atualmente, como quimioterapia e radioterapia. No entanto, ainda não é funcional para o tratamento de melanomas. Na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pesquisadores desenvolveram compostos com nanopartículas de prata explorando as propriedades antibacterianas do metal. A ideia é utilizar as nanopartículas nos tecidos, tintas e outros materiais com risco de contaminação, podendo ser bastante úteis em ambientes hospitalares, por exemplo. Outro estudo realizado pela Unicamp, coordenado pelos químicos Nelson Duran Caballero e Oswaldo Luiz Alves, propõe um sistema à base de nanopartículas de ouro de três a quatro nanômetros, para liberação de fármacos antitumorais, agindo somente contra as células cancerígenas. Testado para células leucêmicas, o composto ainda está em fase de experimentação.

Terapia pioneira em Minas Gerais O uso de fotopartículas na terapia fotodinâmica é um dos estudos científicos desenvolvidos na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), em Minas Gerais. Coordenada pela Dra. Vanessa Mosqueira, professora da Escola de Farmácia da Universidade, a pesquisa aborda a terapia que consiste em colocar uma substância não tóxica dentro de uma nanoparticula para que, quando irradiada por uma luz específica, esta mesma substância se torne


foto: R. J. Wilson, Ph.D.; C. M. Earhart, Ph.D.; e S. X. Wang, Ph.D

35

tóxica. O papel da substância depois de irradiada será barrar a célula procurada, impedindo o desenvolvimento da doença. A professora e sua equipe contam com a utilização de nanopartículas para que exista uma seletividade das células, ou seja, a garantia de que a substância com o fármaco somente atingirá as células pré-determinadas. As doenças que facilitam a ação das nanopartículas são aquelas em que as células causadoras não estão espalhadas por todo o organismo do paciente. Para Vanessa, a utilização da nanotecnologia só deverá ser válida para as doenças com grande dificuldade de cura, alto índice de morte e que acabam degenerando muito o organismo do doente. De acordo com a pesquisadora, o custo financeiro para a utilização desse recurso é bem elevado, pois contém uma estratégia científica complexa, uma busca pela substância correta para cada tipo de doença e a construção de uma partícula nanométrica, além de um laboratório com tecnologia muito avançada para o desenvolvimento e testes das partículas. A pesquisa realizada na UFOP é pioneira nos testes de nanocápsulas no tratamento de lesões pré-malignas que aparecem na região da boca e podem se transformar em um tipo de câncer. A pesquisa conta com o financiamento da Fundação de Amparo e Apoio à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapeming), Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoas de Nível Superior (Capes), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

(CNPq) e Organização Mundial da Saúde (OMS).

Falta de legislação Segundo Vanessa, no entanto, apesar do incentivo por parte do Governo Federal para o desenvolvimento e aprimoramento da nanotecnologia no País, até hoje não são encontrados no mercado produtos nacionais com o uso de nanopartículas. Para a professora, falta legislação específica da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) na área. Por enquanto, todos os produtos disponíveis para a comercialização no Brasil são importados, principalmente dos Estados Unidos e da Europa, aumentando o seu preço. A combinação de uma legislação moderna, aliada a investimentos quantitativos e qualitativos em estrutura para a pesquisa, incluindo laboratórios, equipamentos e materiais, formação e incentivo de pesquisadores, pode situar o país em nível de igualdade com centros avançados do mundo, considerando que a nanotecnologia é ainda uma ciência aberta, onde são embrionárias as novas descobertas e suas aplicações. O acesso público Para o médico Helder Yankous, superintendente geral do Complexo Hospitalar São Francisco, instituição filantrópica de Belo Horizonte, com 100% dos atendimentos voltados para pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS), a implantação de uma evolução tecnológica na área médica acaba passando por períodos de avaliação custo/

benefício, abrangência, factibilidade e, principalmente, pelos questionamentos éticos. “A nanotecnologia promoverá diagnósticos mais rápidos e precisos, além de tratamentos mais humanizados. No entanto, haverá uma primeira fase, a da novidade e do status, onde o acesso será para a população de maior poder econômico e o número de procedimentos muito maior do que o necessário. Depois, sua utilização será mais condizente com as melhores práticas e haverá uma melhor avaliação sobre sua real necessidade e possibilidade de uso no dia a dia das instituições”, prevê. Para Yankous, somente após haver uma massa crítica relevante para a implantação de protocolos nas instituições com rigor ético é que a população em geral começará a ter como se beneficiar das novas práticas através do serviço público. “Até lá, sempre se avalia também o fato de o orçamento ser finito, qual a abrangência com as práticas já utilizadas e qual será com as novas disponíveis”, diz. “Consideramos a nanotecnologia de suma importância para a evolução dos cuidados em saúde para todos nós, mas até que se tenha uma real efetividade e acessibilidade a todos que necessitarem teremos um longo caminho”, conclui.

Estratégia nutricional para aumentar a performance ilustração: Divulgação

Combinação de dietas qualificadas e treinos físicos contribuiem para equilíbrio emocional e potencializa rendimento no esporte. Por Kíria Ribeiro*

O rendimento dos atletas de alto nível apresenta melhora espantosa a cada nova disputa. As Olimpíadas constituem termômetro diferenciado e marcas históricas são devastadas na velocidade de um piscar de olhos. Os sucessivos recordes quebrados em todas as áreas mostram melhor preparo físico e resistência das equipes. Na esteira deste sucesso, o cuidado com a alimentação dos atletas ganha destaque e se consolida como base para que os protagonistas do esporte moderno possam extrair o máximo de suas potencialidades. A nutrição pode atender a pessoas comuns, freqüentadoras de academias de ginástica, e a atletas profissionais. O termo “nutrição esportiva” é usado mais especificamente no contexto do esporte de ponta, onde estratégias nutricionais têm o papel de otimizar a performance. Esta ramificação da ciência alimentar ajuda a compreender justamente o “como” e o “porquê” destes resultados. Através de pesquisas, os especialistas na área investigam os efeitos de dietas específicas e do uso de suplementos sobre a saúde, a recuperação e o desempenho. A falta de cuidado com o que se come pode interferir no rendimento

durante um campeonato e causar problemas de saúde decorrentes da prática esportiva. Treinos e competições constantes levam a desgaste e estresse para os quais o corpo muitas vezes não está preparado. “A nutrição esportiva não transforma um sedentário em um atleta, mas pode definir quem será o primeiro e o segundo colocado”, afirma a professora da Escola de Nutrição da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Simone Viana. Segundo Viana, uma dieta é feita, na medida do possível, respeitando os hábitos alimentares do atleta. “A idéia é tentar corrigir algum desvio alimentar existente ou que possa futuramente levar a alguma patologia. O objetivo primeiro deve ser a saúde e depois o desempenho”, explica. O cardápio do atleta não difere muito da refeição do amador. A grande diferença será a demanda energética, considerando que os competidores profissionais podem apresentar necessidades entre quatro mil e dez mil quilocalorias (kcal) por dia. No entanto, a refeição de ambos deve ter uma distribuição equilibrada de macronutrientes, com variedade de opções e controle no peso.

“Quando dizemos que um alimento tem ´x´ calorias, nos referimos à quantidade de energia que ele pode fornecer ao organismo. A caloria é, na verdade uma dose de energia retirada de proteínas, carboidratos e gorduras, que é processada pelas células e responde por funções vitais do corpo”, diz Viana. “O ideal é que o atleta e seu nutricionista tracem estratégias e testem alimentos que melhorem o rendimento esportivo e forneçam energia suficiente para as competições”, conclui.

No Minas, dieta para 900 atletas Na rotina das equipes de alto nível, ânimo e disposição não podem faltar. Intensos treinamentos, viagens e sucessivas competições compõem uma agenda de compromissos que mexem com o físico e o psicológico. O equilíbrio entre corpo e mente, porém, depende de uma base pouco mencionada: o correto funcionamento do organismo. É hora de entrar em campo a estratégia da nutrição esportiva moderna. A tarefa de Márcia Bernardes, por exemplo, não é das mais fáceis. A nutricionista do Minas Tênis Clube cuida da alimentação de mais de 900


36

atletas de diversas modalidades e faixas etárias, organiza cardápios de viagem e estabelece metas e dietas para o controle de peso de cada um. O restaurante do clube serve, em média, 600 refeições por dia. São consumidos 35kg de arroz, 35kg de feijão, 50kg de carne vermelha e 20kg de carne branca. Os pratos são montados de acordo com as necessidades individuais. Atletas que precisam controlar o peso devem dar preferência a fibras e diminuir os carboidratos. O inverso é feito para os que precisam ganhar massa. “Oriento os atletas individualmente nas consultas, mas faço muitos trabalhos coletivos de orientação geral sobre alimentação saudável e, especialmente, sobre a alimentação antes, durante e depois dos treinos e competições”, conta Bernardes. Segundo ela, os atletas ainda assistem palestras sobre educação nutricional e pirâmide alimentar. As equipes do Minas competem em modalidades de natação, vôlei, futsal e outras.

Atlético x Cruzeiro – A rivalidade a partir da cozinha No futebol, Atlético-MG e Cruzeiro também investem pesado na supervisão nutricional para seus jogadores. A alimentação equilibrada pode melhorar os depósitos de energia do organismo de cada atleta, reduzir o cansaço, aumentar o tempo de atividade, recuperar os músculos depois do treino e melhorar a saúde em geral. Os jogadores devem seguir dietas que contenham quantidade de calorias adequada, permitindo tanto a manutenção de peso

37

foto: Edwaldo Cordeiro

corporal quanto o fornecimento de energia suficiente para atender a demanda de treinos e jogos. Para Flávia de Almeida, nutricionista do Cruzeiro, o desempenho é ponto chave para o seu trabalho. Segundo ela, dois eixos são perseguidos no clube. “Na Toca da Raposa, nós visamos saúde conjugada à performance do atleta, nunca esquecendo, porém, que estamos tratando do indivíduo”, pondera. De acordo com Almeida, estudos mostram que se um atleta atua com baixa reserva de glicogênio muscular, não vai conseguir completar o seu treino ou jogo comparado com o que tem a reserva boa. A profissional trabalha sintonizada com toda a comissão técnica da equipe de futebol e se orienta a partir da definição da programação de cada semana. “Monto um cardápio mais variado possível e vou distribuindo os tipos de alimentos em suas refeições”, explica. Atuando no arqui-rival do Cruzeiro, a nutricionista do AtléticoMG, Patrícia Teixeira também é linha dura com seus atletas. “O principal é estar presente e orientando cada jogador com suas necessidades individuais, verificando o percentual de massa magra, fazendo exames de sangue, entre outros”, avalia, acrescentando que acompanha o dia-a-dia das refeições dos atletas antes e após cada jogo. Para Teixeira, a nutrição é muito importante, visto que influencia diretamente no rendimento do atleta em campo. “Uma alimentação orientada e bem qualificada proporciona ao atleta melhores condições

dentro das quatro linhas e reduz o risco de fadiga precoce”, diz.

Prevenção de lesões e doenças Para o professor do curso de Ciências da Atividade Física, da Universidade de São Paulo (USP), Marcelo Saldanha, o equilíbrio entre exercício físico e boa alimentação pode não apenas potencializar resultados, mas prevenir contusões. “Independente do nível de condicionamento ou do objetivo específico de cada indivíduo, a alimentação adequada pode ajudar a melhorar o desempenho, diminuir o tempo de recuperação do exercício extenuante e evitar lesões, entre outros”, explica. Segundo Saldanha, a combinação entre alimentação e exercícios também reduz o risco de inúmeras doenças crônicas, como diabetes, hipertensão, obesidade, osteoporose, câncer e outros. “A nutrição e a atividade física devem trabalhar juntos para promover a saúde e a qualidade de vida”, alerta. Quando os atletas não conseguem os resultados esperados com os treinos físicos e as refeições, eles precisam observar se a nutrição está satisfazendo adequadamente as necessidades do organismo. Alimentos ricos em gordura, como biscoitos recheados ou pizzas, acabam não reabastecendo os músculos com as quantidades ideais de carboidratos e o desempenho nos dias seguintes de treinos acaba caindo. “Combustíveis” adequados Durante a atividade física, há um aumento no consumo de energia e é preciso atenção para não faltar

foto: Assessoria de Comunicação - Atlético-MG. Bruno Cantini

o combustível certo. Caso esta falta ocorra, o organismo começa a usar a proteína de seus próprios músculos, causando perda de massa magra, o que é prejudicial ao atleta. O combustível preferido pelo corpo durante o exercício é o glicogênio, cujas principais fontes são os carboidratos. Por isso, é importante consumi-los antes e depois dos exercícios, uma vez que vão liberar energia rapidamente para o corpo. A hidratação é ainda mais essencial durante a realização de atividade física, pois o corpo perde água para regular a temperatura e, com ela, substâncias como potássio e sódio. “A hidratação é sempre muito importante, pois garante a circulação dos nutrientes pelo organismo. Sempre alerto meus alunos com relação à ingestão de água durante o exercício físico”, explica o professor do Departamento de Educação Física da UFOP, Kelerson Pinto. Outro componente destacado é um velho conhecido dos esportistas: as proteínas, presentes em alimentos como carnes, leite e soja. Sua utilidade está na regeneração das fibras

musculares após os esportes, através da ação dos aminoácidos nelas presentes. Existem oito aminoácidos essenciais que nosso organismo não produz e que precisam vir desses alimentos. Praticantes de atividade física e atletas querem manter a disposição no dia-a-dia para que possam ter melhor rendimento em suas atividades. A nutrição ajuda a manter o entusiasmo necessário para enfrentar a maratona da vida moderna. Mas não cometer exageros também é importante. Excesso de proteínas e gorduras, mais difíceis de serem digeridas, faz com que o sistema digestivo trabalhe mais, sobrecarregando o organismo e deixando o esportista extenuado.

Os suplementos Uma boa alimentação, hábitos saudáveis e a prática regular de esportes fazem parte da rotina de atletas amadores e profissionais. A inserção de suplementos alimentares tem como objetivo completar a dieta diária do esportista, auxiliar na reposição de vitaminas e sais minerais, aperfeiçoar os resultados dos treinos e aumentar o desempenho

no esporte. Mas é preciso cautela. Esses produtos não podem ser usados indiscriminadamente. De acordo com a professora do Departamento de Educação Física da UFOP, Lenice Becker, os suplementos são indicados para pessoas que necessitam de mais calorias, proteínas e vitaminas, além das que são consumidas nas refeições diárias. “Os atletas passam a maior parte do dia treinando e muitas vezes só as refeições comuns não conseguem oferecer todos os nutrientes necessários. Por isso, usamos os suplementos para complementar a alimentação base e atingir as quantidades de nutrientes que os atletas precisam”, explica. Ela alerta, no entanto, que os suplementos não devem ser utilizados como substitutos, pois não são capazes de repor as centenas de nutrientes necessários que são encontrados nos alimentos naturais. Hoje, o mercado apresenta diversos tipos de suplementos alimentares, cada um com a sua finalidade e dosagem. Entre os mais utilizados estão os repositores de minerais. Esses produtos possuem inúmeros compostos que podem alterar o metabolismo do atleta. Por isso, devem sempre ter o auxílio de um nutricionista na preparação da dieta e, consequentemente, na indicação do suplemento alimentar.

Os complementos Para a nutricionista Lucília Oliveira, da Academia Fórmula, de Belo Horizonte, estes produtos são necessários dependendo da dieta de cada um. “O suplemento, na verdade, não é utilizado na academia como suplemento, ele é um complemento. Porque, às vezes, a gente tem uma demanda de proteína mais alta, mas a pessoa não tem tempo de comer. Então vamos usar um composto destes para complementar aquela refeição, para o atleta ter um bom desempenho. Não temos restrição aos suplementos, mas tudo deve ser de acordo com a necessidade”, explica. As orientações de Lucília são seguidas pela triatleta Nathanaelle Mosca, 26 anos. Para ela, este acompanhamento


Esporte

38

Memória Oral

Histórias de um gandula de 1950 foto: Edwaldo Cordeiro

pode fazer a diferença no rendimento nos treinos. “A alimentação é fundamental e os suplementos podem ajudar sim porque acabam complementando minha nutrição cotidiana”, afirma.

As “bombas” e os amadores A vaidade excessiva, a busca pelo corpo perfeito e o desejo de conseguir músculos do dia para noite levam algumas pessoas a fazerem de tudo por essa conquista, inclusive arriscarem suas próprias vidas. Muitas vezes, essa busca é feita por meio dos anabolizantes, tomados ou aplicados diretamente nos músculos. De acordo com especialistas, estes produtos são medicamentos fabricados através de combinações bioquímicas da testosterona, o hormônio responsável pelo desenvolvimento das características masculinas. O efeito dos anabolizantes é muito rápido. Uma pessoa que faz exercício, por exemplo, três vezes por semana, com uma determinada carga, vai conseguir um crescimento muscular correspondente Usando anabolizantes,

porém, o crescimento muscular é duas vezes maior. As “bombas”, como são conhecidos os compostos anabolizantes entre os amadores de academias de credibilidade duvidosa, afetam o metabolismo do corpo e causam sérios efeitos colaterais, podendo levar o atleta à morte. Entre os efeitos colaterais, atrofia testicular, diminuição da capacidade sexual, esterilidade, aumento da agressividade e infarto. Por outro lado, um corpo definido e o aumento dos músculos podem ser conquistados de forma saudável, com nutrição apropriada combinada a exercícios adequados e repouso. “Treinamentos com resultados a médio e longo prazos, que levam de um a dois anos, são demorados, mas são para a vida inteira”, avalia a nutricionista Simone Viana.

Proteína para reduzir desgaste Uma pesquisa desenvolvida pela Escola de Nutrição da UFOP promete usar uma proteína de origem animal, extraída do soro do leite

durante o processo de fabricação do queijo, para potencializar o desempenho de um atleta em uma competição. O nome é Whey Protein. Durante as atividades físicas, principalmente nas de maior esforço, é gerado o chamado estresse oxidativo, situação de excesso de radicais livres (substâncias tóxicas produzidas pelo corpo). O estresse e a defesa do organismo devem estar em equilíbrio, caso contrário o esforço pode causar envelhecimento precoce, câncer e outras doenças, como o Mal de Parkinson. Aprovada em dezembro de 2011, pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a pesquisa, coordenada pelo professor Marcelo Eustáquio Silva, busca reduzir o desgaste e, conseqüentemente, os efeitos negativos sobre o atleta. *Colaboração: Roberta Nunes

Ele trabalhou em todos os jogos da Copa, em Belo Horizonte, viu um iugoslavo flutuar em campo, uruguaios baterem na bola e na força, e testemunhou, nada menos, do que a maior zebra da história da competição

39

foto: Edwaldo Cordeiro

Por Ady Carnevalli e Edwaldo Cordeiro

As escalações de cada seleção de 1950 saem como rimas fáceis de estrofes de 11 versos. A consulta é direta à memória e, em menos tempo que o Google, os nomes dos jogadores vão fazendo renascer Itália, Espanha, Paraguai e outras equipes que estiveram na primeira Copa do Mundo de Futebol disputada no Brasil. O senhor Elmo Cordeiro, hoje com 78 anos, conjuga passado e presente com lembranças coloridas de um tempo em preto e branco. Pela tela dos seus olhos, enxergamos o menino franzino de 16 anos que trabalhou como gandula em três jogos da competição e teve contato direto com os craques estrangeiros que pisaram no gramado do Estádio Independência, em Belo Horizonte. A função de apanhar e devolver as bolas que caíam fora do campo tinha ganhado o nome uma década antes, em 1939. Um jogador argentino, Bernardo Gandulla, contratado pelo Vasco, nunca chegou a atuar no time principal, mas sempre que a bola saía, lá ia ele correr para devolvê-la à partida, seja para o seu time ou para o adversário, praticando o chamado fair play. Mesmo sem jogar, o atleta acabou ganhando a simpatia das torcidas e, a partir de suas atitudes, os “apanhadores de bola” passaram a ser naturalmente chamados pelo sobrenome do argentino. Em geral, garotos, cuja principal recompensa era a proximidade com os craques do futebol. O gandula dos jogos em Minas tinha chegado ao Estado há quatro


foto: Divulgação

História

Jogos inesquecíveis Elmo trabalhou em três jogos: Suiça x Iugoslávia, Uruguai x Bolívia e Inglaterra x EUA, cada um com uma história especial. Entre as seis seleções, o futebol da Iugoslávia era o que mais encantava. “Ganharam de 3 a 0 da Suíça, jogando só no toque de bola. E olha que a Suiça não era ruim, pois empatou com o Brasil depois. A Iugoslávia tinha um meia, Mitic, que flutuava em campo”, lembra. Já o Uruguai goleou a fraca Bolívia por 8 a 0, mas o que chamou atenção não foi o futebol da azul celeste, que mais tarde calaria 180 mil pessoas no Maracanã. “Venceram batendo. Como eles bateram nos

A maior zebra de todas as Copas Nosso gandula também testemunhou a maior zebra da história de todas as Copas, quando os poderosos ingleses perderam para uma seleção inexpressiva dos EUA, formada não apenas por americanos, mas por jogadores de países da América Central e do Caribe. “A favorita para ganhar a Copa era a Itália, mas um ano antes, todos os jogadores do Torino, que era a base da seleção, morreram em um acidente de avião. A Inglaterra passou a ser a seleção mais indicada para o título. Mas, no jogo com os EUA, perderam como o Barcelona perdeu agora para o Chelsea. Tocaram bola o tempo todo dentro do campo adversário e tomaram o gol num bate-rebate na área”, lembra. “Os repórteres ficaram perdidos. Não tinha jeito de saber se estavam nervosos. Os dois times eram muito frios”. No gol dos EUA, a bola passou por debaixo do zagueiro Alf Ramsey, que 16 anos mais tarde, seria o técnico campeão do mundo, da Inglaterra, recebendo da Coroa a condecoração de Sir. “E os americanos nem ficaram sabendo do feito em 1950”.

fotografias dentro dos gramados, como artilheiro, pelas equipes do Aluminas, de Ouro Preto-MG, e do Taubaté-SP. Na mistura dos tempos, a impressionante lucidez para analisar cenários de épocas tão distantes. “O futebol evoluiu na preparação física e psicológica, mas a técnica não é a mesma. Outro dia tive pesadelo depois de assistir um jogo da Copa do Brasil, foi assombroso”, conta rindo. E rapidamente volta aos dias em que vestia bermuda e calçados de alparcata, quando devolvia as bolas nas mãos de verdadeiros heróis, não apenas do esporte, mas da cidadania mundial. “Em 1950, muitas delegações não vieram. Ainda existiam tensões devido ao período pós-guerra. Viajar de navio era arriscado. Os que vieram superaram também este medo. E foram recebidos com uma festa muito bonita dos brasileiros”. E lá vêm histórias dos locutores Jairo Anatólio Lima e Álvaro Celso Trindade, o Babaró, do melhor jogo que viu em sua vida (Flamengo 4x1 Racing, em 1958), do fantástico goleiro do Uruguai e do Atlético-MG, Mazurkievski, de Domingos da Guia e de Bob Shalton. E, lógico, a escalação do Brasil de 1950. Estrofes irregulares de 11 versos do menino que não conversava com o pai sisudo ao pai que adora uma boa prosa e não se intimida, mesmo quando um dos repórteres a entrevistá-lo é o próprio filho, Edwaldo Cordeiro.

“Os fios de microfones passavam por cima da cabeça dos torcedores”

Quando os tempos se misturam O jovem senhor Elmo, hoje funcionário público aposentado, voltou ao Independência na reinauguração, em abril. Ele continua apaixonado por futebol. Às memórias dos campos somam-se

Um olhar diferente sobre Roma antiga Grupo de pesquisadores brasileiros se especializa em estudos sobre o Império Romano e sugere novas visões sobre seus aspectos e personagens mais famosos Por Kamilla Abreu

A origem de Roma Segundo a mitologia, Roma foi fundada por Rômulo, irmão gêmeo de Remo. Os irmãos, filhos de Marte e Reia Sílvia, teriam sido abandonados em um cesto nas águas do Rio Tibre, na Itália, sendo então encontrados por uma loba que os amamentou em uma gruta e, posteriormente, criados por um casal de pastores. Após adulto, Rômulo mata Remo, funda a cidade de Roma e se proclama rei. Assim, por tradição, a data de fundação de Roma é indicada em 21 de abril do ano 753 antes de

Cristo (a.C). e, habitualmente, o nome da cidade é relacionado ao de Rômulo. Já para os historiadores, a formação e o povoamento de Roma é o resultado do encontro de três povos que habitavam a região da Península Itálica: gregos, italiotas e etruscos (de origem asiática). A sociedade nessa época era dividida entre duas classes: os patrícios, que eram nobres proprietários de terras; e os plebeus, que consistiam em artesãos, comerciantes e pequenos proprietários. A monarquia era o sistema político adotado; a economia, baseada

foto: Divulgação

anos, quando o pai, um comerciante de Niterói (RJ), decidiu tentar a sorte em terras mineiras. Elmo trabalhou de office-boy na Construtora responsável por erguer o Estádio Independência, feito especialmente para a Copa de 1950. Antes, na capital mineira, os jogos eram disputados no Estádio Alameda, no Bairro de Santa Efigênia, onde hoje funciona um hipermercado. O menino recebeu de um dos donos da empresa um pedido para ajudar na competição, apanhando as bolas na beira do gramado. Trabalho não remunerado, mas privilégio de poucos na época. “Repórteres, se muito, tinham dois atrás de cada gol”, lembra. “Era uma grande parafernália. As cabines de imprensa ficavam no alto e os fios de microfones e gravadores tinham que passar por cima da cabeça de torcedores, descendo pela arquibancada até o campo. Quando chovia, dava choque”, conta. E, para não perder o costume, desfia mais uma escalação, a da Suiça.

pobres bolivianos, na bola e na força”, diverte-se. E lá vêm prontos, como num clique na memória, todos os nomes dos uruguaios.

41

A Loba Capitolina, escultura etrusca do século V aC - Museu dos Conservadores - O Símbolo do Império Romano

na agricultura e em atividades pastoris; e a religião, politeísta – que era a crença em vários deuses. Nesse período, 753 a.C. a 509 a.C., Roma teve sete reis, sendo três de origem asiática, isto é, os etruscos constituíam a maioria. O governo era exercido por um rei vitalício e pelo Senado, composto apenas por patrícios. Devido à centralização do poder nas mãos dos etruscos, os patrícios derrubariam a Monarquia, instalando a República.

A República Instalada a República (509 a.C. a 27 a.C.), composta basicamente pela aristocracia, o Senado ganha grande poder político. As finanças públicas, a administração e a política externa passam a ser supervisionadas pelos seus membros. Já as atividades executivas são distribuídas para os cônsules e os tribunos da plebe. Duas conquistas relevantes neste período foram a “Lei das Doze Tábuas”, quando a legislação, até então transmitida apenas oralmente, deveria ser escrita e pública; e a “Lei Licínica”, que garantia a participação dos plebeus no Consulado. Com a República, os romanos passam a desenvolver uma política imperialista baseada na conquista de novas terras, atendendo assim aos interesses


História

42

43 Fotos: http://www.romansociety.org/imago/home.html / Divulgação

dos patrícios. Neste panorama, vencem os cartagineses nas Guerras Púnicas – séc. III a.C., o que garante a hegemonia romana no Mar Mediterrâneo e, posteriormente, o domino sobre Cartago. Roma expande suas conquistas dominando Egito, Macedônia, Grécia, Gália, Síria, Germânia, Trácia e Palestina. Assim, após sucessivas vitórias, consolida mudanças significativas e passa a ser o maior Império da Antiguidade.

O Império O político e general Júlio César forma uma aliança chamada “O Primeiro Triunvirato”, com os cônsules Pompeu e Crasso. Porém, depois da morte de Crasso, ele declara guerra a Pompeu, a fim de ter o poder absoluto de Roma. Mas acaba sendo assassinado ao se proclamar ditador. O herdeiro de César, Otaviano, permanece então em uma guerra civil, durante 14 anos, com Marco Antonio, que seria o segundo no poder. Assim, o Império Romano se inicia, segundo a periodização normalmente utilizada, em 31 a.C., quando o patrício Otaviano sai vitorioso sobre Marco Antônio e Cleópatra, na Batalha de Ácio, e se consolida como o homem mais poderoso de Roma; ou em 27 a.C., quando Otaviano recebe o título de Augusto e se torna o primeiro imperador romano. Em suma, o Império Romano designa a história de uma unidade política que dominou boa parte da Europa, o norte da África e largas parcelas do Oriente Próximo – região que compreende a Ásia, próxima ao mar Mediterrâneo, a oeste do Rio Eufrates, incluindo

Síria, Líbano, Israel, Palestina e Iraque. E o termo é utilizado, por convenção, como referência ao estado romano após a reorganização política efetuada pelo primeiro imperador.

Decadência e Fim A dissolução do Império Romano é dividida em dois momentos nas cronologias tradicionais. A derrota do imperador Romulus Augustus, em 476, que o levou a reconhecer a soberania do germânico Odoacro, marca o fim do Império Romano no Ocidente. Esta cronologia, que se fez de largo uso, sinaliza também a passagem do Mundo Antigo para a Idade Média. O Império Romano Oriental ou Bizantino teria permanecido ainda por cerca de um milênio, desintegrando-se em 1453, quando morre Constantino XI e ocorre a captura de Constantinopla por Mehmed II, comandante dos turcos otomanos. Este evento também marcaria na chamada História Geral a transição da Idade Média para a Idade Moderna. A reconstrução da história Em 2008, foi criado no Brasil o Laboratório de Estudos do Império Romano (LEIR). A iniciativa partiu dos professores Norberto Guarinello, da Universidade de São Paulo (USP), hoje coordenador geral da pesquisa, e Fábio Faversani, da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). O LEIR é um grupo nacional que abrange diversas universidades para a pesquisa especializada sobre o tema. Além de USP e UFOP, participam as federais de Goiás (UFG), do Espírito Santo (UFES), do

Mosaicos produzidos durante o Império Romano

Triângulo Mineiro (UFTM), de Campina Grande-PB (UFCG), do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e do Pampa (Unipampa), e a Estadual Paulista (Unesp-Franca). O LEIR também está vinculado à Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos (SBEC) e registrado como grupo de pesquisa do CNPq. A equipe é composta por professores e estudantes em seus diversos níveis de formação, de alunos de iniciação científica a pós-doutores. A atração pelo estudo do Império Romano nas universidades e nas instituições que cultivam o conhecimento histórico exerce um encanto diferenciado sobre os pesquisadores. Segundo Faversani, um dos coordenadores nacionais do grupo, a razão para isto está nos “diversos aspectos ligados a este

período que perpassam nossa existência e nos fascinam enormemente ainda nos tempos atuais”. Para ele, “o historiador é movido pelo presente; assim, os conflitos e as tensões do momento fazem com que olhe para o passado de uma forma diferente a cada período”. O historiador, explica o docente, pode encarar os acontecimentos de uma mesma época de diversas maneiras devido ao contexto em que cada um vive. Faversani avalia que consolidar a pesquisa sobre história antiga, no Brasil, deve levar à produção de um olhar original sobre este passado, pois os brasileiros vivem em uma realidade muito diferente da de colegas dos centros mais tradicionais de pesquisa, na Europa. “O que estamos produzindo, assim, são visões novas acerca de um passado


História

44

Busto de Julius Caesar

que é tomado por comum por todas aquelas culturas que compartilham o entendimento de que são herdeiras do Império Romano, o que se convencionou chamar de cultura ocidental”, complementa. Em cada uma das universidades componentes da pesquisa há um grupo do LEIR. Esses núcleos promovem encontros para debater os resultados em curso e estimular a sua publicação. Anualmente, as coordenações regionais se reúnem com o objetivo não apenas do intercâmbio entre os participantes, mas para o planejamento das atividades do grupo. O último encontro ocorreu em outubro de 2011, na UFOP, e teve como tema “O Império Romano e as fronteiras do tempo”.

Nero e a representação do monstro em cada pessoa Um dos nomes de destaque quando se pensa em Império Romano é Nero, cuja biografia é associada habitualmente a ter colocado fogo em Roma. Faversani estuda este personagem histórico com foco nas estratégias individuais e coletivas do Senado perante o poder imperial e nas representações que este grupo elabora sobre suas relações com o imperador. O professor baseia sua pesquisa principalmente nas

obras historiográficas de Cornélio Tácito e Sêneca. Neste cenário, a abordagem adotada parte do pressuposto de que Nero teria feito um governo considerado ruim e que se afastou do ideal senatorial. Assim, o estudo analisa o quanto as ações de Nero estariam distantes do modelo de Augusto e em que medida este juízo foi construído posteriormente. Busca, também, investigar qual a contribuição dada pelos senadores para que o governo de Nero divergisse deste ideal. Para o historiador, Nero representa, de alguma forma, um monstro que as pessoas seriam se tivessem oportunidade.

dos historiadores. Para ele, nesse sentido, “Antioquia é uma cidade muito interessante, pois nela vê-se a integração de pagãos, judeus e cristãos no dia a dia”. Sua pesquisa caminha no sentido de mostrar que, embora a elite eclesiástica (bispos, presbíteros, diáconos) tente regular as relações entre os adeptos de sistemas religiosos distintos, prevalece, nas termas, teatros, hipódromo e mercados um intenso convívio entre os

habitantes da cidade, o que contraria a lógica excludente de atuação dos cristãos, que repelem qualquer outra experiência religiosa.

Os escravos cidadãos A escravidão no Império Romano também é estudada no LEIR. Quem aborda esta vertente é Fábio Joly, um dos coordenadores do LEIR na UFOP.

Antioquia e a cristianização O professor Gilvan Ventura, coordenador do LEIR na UFES, estuda o processo de cristianização do Império Romano, isto é, como o credo cristão foi aos poucos obtendo a hegemonia ao longo do século IV. Para tanto, o seu estudo de caso é a cidade de Antioquia, capital da província da Síria. Ventura tenta demonstrar como essa cristianização é lenta e vacilante, ao contrário do que afirmam boa parte

45

Sua pesquisa abrange principalmente a história social de Roma. Segundo Joly, o seu interesse nos estudos recai nas relações entre manumissão e política na Roma antiga, sobretudo nos dois primeiros séculos da era cristã. Ele ainda explica que, em Roma, o escravo libertado por um cidadão podia se tornar também cidadão, fato que trazia conseqüências políticas e econômicas significativas. Neste contexto, o docente compara, na sua pesquisa, o escravismo no Império Romano com o sistema escravista no Brasil do séc. XIX, em que se observa um padrão semelhante de inclusão política do liberto. A análise ainda evoca questões como relações de dependência, organização familiar e maneiras de auto-representação através das inscrições funerárias de escravos e libertos achados em Roma.

Representações subjetivas A professora Juliana Marques, coordenadora do LEIR na Unirio, aborda, por sua vez, a historiografia, com ênfase nas questões estritamente teóricas do gênero literário sob uma perspectiva dos estudos históricos. Neste quadro, o trabalho é focado nos conceitos de mapa mental e espaço cognitivo, isto é, representações subjetivas do espaço no mundo antigo. O estudo é baseado primariamente Arco de Hadrian Jerash, na Jordânia

em Amiano Marcelino, mas, segundo a docente, a idéia é trabalhar o tema com outros historiadores romanos.

Publicações e outros estudos Outros aspectos do Império Romano e dos personagens históricos deste período também são foco de estudo entre os pesquisadores do LEIR. Os resultados estão sendo configurados em artigos e outros trabalhos acadêmicos. Entre as produções feitas pelo LEIR, destaca-se a Revista Maré Nostrum, produzida pelo LEIR-USP e acessada em: fflch.usp.br/dh/leir/marenostrum/home. Já o LEIR-UFOP está com o livro As formas do Império Romano, editado pelos professores Fábio Faversani e Fábio Joly, prestes a ser publicado pela Editora da Universidade. Mais informações a respeito das produções do LEIR podem ser acessadas através do site www.leir.ufop.br, onde é encontrado o conjunto da obra acadêmica brasileira sobre o Império Romano, publicado a partir de 2001, na área de bibliografia. Os interessados em participar e/ou contribuir para o LEIR podem acessar o site do grupo através do formulário da área de contato ou enviar um e-mail para leir@ufop.br.


46

“O teatro é o primeiro soro que o homem inventou para se proteger da doença da angústia.” A frase, dita no século passado pelo ator francês Jean-Louis Barrault, busca traduzir a essência da arte da representação cênica, que, desde as épocas mais remotas, teria a função de entreter e transportar o público para realidades distintas do cotidiano. Assim, com a intenção de transmitir diferentes temas e formas de expressão, surgiram seus gêneros característicos. No entanto, um estilo vem se sobressaindo: a comédia. Composta geralmente por cenas rotineiras, a especialidade encontrou, por um lado, espaço e importância como

Cultura

47

forma de manifestação crítica, mas, por outro, acabou se rendendo ao humor raso e de gosto duvidoso. Em ambos os casos, porém, deparou-se com um forte público consumidor da indústria do entretenimento. A crescente ascensão da comédia provoca um desequilíbrio em relação aos demais gêneros, como, por exemplo, o drama, e sugere algumas perguntas: O espectador atual, no Brasil, só consegue ter prazer com peças que fazem rir? Existe um círculo vicioso? As comédias geram grandes bilheterias e, em busca deste lucro, as produções teatrais especializam-se nesta área? O público está ficando com preguiça de pensar?

Vende mais porque é comédia ou é comédia porque vende mais?

foto: Cesar Trópia

Rir pra não chorar?


Cultura

49

Por Bruna Fontes e Kamilla Abreu

Os grupos teatrais estão presentes em 39,9% dos municípios brasileiros, movimentando juntamente com outras atividades da área cultural valores da ordem de R$ 156 milhões ao ano, o que indica uma participação no setor de 7,9%. São também os que mais recebem incentivos por parte do poder público municipal na área cultural (80,5%). Já os festivais de teatro ocorrem em 25,8% das cidades. Os dados são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de levantamentos realizados nos anos de 2003 e 2006. Os espetáculos e principalmente as campanhas de popularização sempre se caracterizaram como espaços de reflexão e de abertura à diversidade, capazes de proporcionar encontros de formas de expressão diferentes. Porém, apesar de não existirem dados nem fontes oficiais, não é difícil observar a predominância da comédia em relação aos demais gêneros. Seria uma ruptura com os valores dessa arte, caracterizada justamente pela pluralidade de formas de representar e de experimentar? Se há recursos, por que os investimentos são concentrados em um só tipo de estilo? A comédia parte não somente da preferência pública, mas também de uma nova tendência de quem a faz? A bilheteria

“O fato de uma comédia ruim apresentar bilheteria maior do que um bom drama é uma dura realidade” (Flávia Menezes – Grupo Armazém - RJ)

é mais atrativa? Estaríamos diante da concretização do pensamento do ícone do cinema italiano Alberto Sordi, em que “a vida é feita de três quartos de comédia e um de tragédia e, por isso, um cômico está em maior contato com a realidade”?

O cenário ontem e hoje A arte de representar surgiu em Atenas, durante os cultos ao deus grego Dionísio, conhecido como o deus da fertilidade, do vinho e, mais tarde, do teatro. A tragédia e a comédia foram primordialmente os dois gêneros que mais se sobressaíram. Em antigos festivais, a formação do júri se dava por categoria. A tragédia era composta pela nobreza, homens “superiores”, vistos como heróis na sociedade. A comédia, por sua vez, era constituída por pessoas comuns da pólis - modelo das antigas cidades gregas -, escolhidas aleatoriamente na plateia. A comédia estimava a possibilidade democrática da sátira a todas as ideologias, principalmente a política, e obteve rápida popularização. No Brasil, o padre Anchieta foi o precursor do teatro. Inspirado na Europa do séc. XVI, ele escrevia e encenava peças e atos medievais para a catequese dos índios. Assim, os jesuítas – padres da chamada Companhia de Jesus - perceberam na arte o método mais eficaz para a civilização dos nativos. Neste contexto, os autos possuíam um fundo religioso, didático e moral. Porém, o teatro nacional veio a se consolidar apenas em meados do séc. XIX, com o início do Romantismo, impulsionado por grandes nomes, como Martins Pena, com suas comédias de costumes, o empresário e ator João Caetano, o dramaturgo Artur Azevedo e os escritores Machado de Assis e José de Alencar. De acordo com a Fundação Nacional de Artes (Funarte), vinculada ao Ministério da Cultura, o Centro de Artes Cênicas aplicou, no ano passado,

em seus programas de circo, teatro e dança, valores da ordem de R$ 51,4 milhões. Segundo a coordenadora de teatro da Funarte, do Rio de Janeiro, Heloisa Vinadé, a produção teatral carece de incentivo e sua atividade pode ser distribuída, com foco na execução, em vários segmentos, desde grandes espetáculos, financiados pela captação da Lei Federal de Incentivo à Cultura, conhecida como Lei Rouanet, até as pequenas peças, montadas com recursos das leis municipais e estaduais de incentivo à cultura, passando por aqueles que se utilizam dos recursos financeiros dos editais do Ministério da Cultura.

A supremacia da comédia Basta uma rápida análise das peças em cartaz ou mesmo da programação dos festivais de popularização do teatro para apurar que, no Brasil, a comédia supera os demais gêneros em número de opções, embora, muitas vezes, a quantidade não está diretamente relacionada à qualidade. O grupo Armazém, fundado em 1987 em Londrina (PR) e radicado no Rio de Janeiro desde 1998, enfrenta as dificuldades desse difícil mercado da arte. Tendo o drama sobressaindo em seu repertório, consegue montar um espetáculo por ano. Segundo sua produtora executiva, Flávia Menezes, “a comédia é o caminho mais fácil para o público chegar ao teatro, até mesmo pela popularização na TV, dos programas de stand up comedy, o que possibilita a identificação do espectador com essa linha de dramaturgia”. Para ela, “o fato de uma comédia ruim apresentar bilheteria maior do que um bom drama é uma dura realidade”. Atriz, diretora e dramaturga da Cia. Pessoal de Teatro de Cuiabá (MT), Juliana Capilé Rivera observa que a preferência pelo humor acontece porque o público quer rir e esquecer os problemas. Neste panorama, ela faz uma analogia em relação à TV. “As pessoas

buscam no teatro o que encontram na TV, querem o que a mídia mostra, porém, com mais propriedade. A televisão, que é pautada por anunciantes e audiência, precisa censurar algumas cenas. O teatro não precisa disso, mas quer público; assim busca vender a mesma rosquinha saborosa, mas sem vitamina, que a TV vende”, diz. Já a artista, pesquisadora, performer e professora do Centro Teatro Universitário da Escola de Educação Básica e Profissional (EBAP) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Denise Pedron, faz uma análise por outro ângulo, e observa que a comédia sempre foi popular. “Na Poética (conjunto de anotações de aulas sobre o tema da poesia e da arte entre os anos 335 a.C. e 323 a.C.), Aristóteles fala que a comédia trata dos homens pobres, da vida comum, em contraposição à tragédia, que trata dos nobres e dos deuses. Isso não quer dizer, no entanto, que seja um gênero inferior e que não se pode trabalhar com esse modelo no campo cultural”, pontua. Ela cita movimentos, como o Armorial – ocorrido nos anos 1970, em Recife, com o objetivo de criar uma arte erudita a partir de elementos da

cultura popular do nordeste brasileiro -, e lembra toda a obra de Ariano Suassuna. Para Denise, “a comédia pode ter qualidade, pois não existe ´cultura inferior´ e ´cultura superior´; essa diferença corresponde a um paradigma de pensamento preconceituoso”, avalia. A pesquisadora afirma ainda que, para apreciar a arte, o espectador precisa minimamente estar familiarizado com seus códigos de construção de sentido, mas não necessariamente entender o que o artista quer dizer ou mesmo decifrar a mensagem da obra. “Para uma apreciação ou fruição estética satisfatória, ele precisa conhecer um pouco da linguagem com a qual está entrando em contato. Existem vários modos de fazer teatro na contemporaneidade. A comédia faz rir, alivia o fígado, traz alegria e, talvez, por isso, faça sucesso”, conclui.

“O teatro busca vender a mesma rosquinha saborosa, mas sem vitamina, que a TV vende” (Juliana Rivera – Cia. Pessoal de Teatro – MT) A massificação a preços populares Dramaturgo e diretor da Cia. D.Maria do Fulô, de Itabirito (MG), e integrante da Cia. As Medeias, de Ouro Preto (MG), Carlos Renatto também lembra que a comédia sempre foi tratada como um gênero menor. “A tragédia representava o homem que servia de exemplo para os outros; já a comédia ridicularizava este homem”, analisa. Segundo Renatto, o público tem

foto: Naty Torres

48


fotos: Cesar Trópia

capacidade de sentir prazer vendo outros gêneros. No entanto, atualmente, há muito mais divulgação de comédia a preços populares, causando uma massificação desse estilo. “Os subgêneros estão em alta, com grandes atores, mas peças fracas. Devido a essa formação do público, as comédias sobressaem financeiramente em relação a outros gêneros, o que é mais comum nas pequenas cidades. Felizmente, nas capitais, ainda existem dramas que fazem sucesso”, diz. Essa massificação notada pelo dramaturgo pode ser constatada nos festivais de teatro, com peças a preços populares. O maior do Brasil acontece, anualmente, nos meses de janeiro e fevereiro, em Belo Horizonte (MG), através da Campanha de Popularização do Teatro e Dança de Minas Gerais. A ideia surgiu em 1972, no Rio de Janeiro, e hoje a campanha é realizada também em São Paulo, Porto Alegre

“Os grupos teatrais estão facilitando muito o entendimento das peças para um público com preguiça de pensar” (Fátima Jorge – Grupo Ponto de Partida – MG)

e Pernambuco. Este ano, no evento mineiro, a comédia e suas vertentes mais uma vez foram o carro-chefe. No primeiro final de semana, de 13 espetáculos, 12 eram do gênero. A campanha apresentou 61 peças de comédia e apenas dez de drama. De acordo com a empreendedora cultural, filiada ao Sindicato dos Produtores de Artes Cênicas de Minas Gerais (Sinparc), Ana Nery, a programação se justifica porque a comédia é o gênero teatral mais popular no Brasil. Esse fenômeno acontece, segundo ela, devido ao estilo de vida e de costumes do brasileiro. “O cardápio de comédias na Campanha de Popularização é tão forte que o público se vê diante da encruzilhada: apostar no novo ou rever o que já deu certo?”, observa.

Peças ruins e público preguiçoso? O professor do curso de Artes Cênicas da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Ricardo Gomes, concorda que a preferência pela comédia está ligada ao temperamento do brasileiro e à própria personalidade cultural do País. “O público come o que é dado para ele”, diz. Para Gomes, a arte é uma necessidade fundamental e de grande valor na área educacional, já que proporciona maior sensibilidade ao ser humano. No entanto, segundo o professor, “o teatro é uma arte obsoleta e vive em uma posição ambígua, devido ao fato de precisar da presença física em um mundo hoje considerado virtual.” Este fato teria permitido então, conforme

Gomes, “que o teatro ganhasse em profundidade o que perdeu de amplitude.” Fátima Jorge, produtora do grupo teatral Ponto de Partida, de Barbacena (MG), observa que o público, em sua maioria, está em busca do entretenimento, puro e simplesmente. Desta forma, a fim de atender esta demanda, as companhias teatrais acabam recorrendo à comédia. Para ela, a maior dificuldade para quem produz é a qualidade das peças com a qual se deparam. “Às vezes noto que os grupos teatrais estão facilitando muito o entendimento das peças para um público com preguiça de pensar. Parece que o ser humano está esquecendo de aprender esta coisa linda que é ouvir a palavra”, reflete. Para a produtora, o bom profissional é aquele capaz de extrair do público risos e lágrimas, o que deve envolver 5% de talento e 95% de suor. “Para o sucesso de uma boa peça, independente do gênero, é preciso ter um bom ator, uma boa história e, claro, um bom ouvinte”, conclui.

O Festival de Inverno – Fórum das Artes, realizado em julho, nas cidades mineiras de Ouro Preto e Mariana, reuniu 315 atrações, entre música, artes visuais, exposições, gastronomia, oficinas e outros. O evento, que teve o tema Latinoamerica, atraiu cerca de 250 mil participantes, entre moradores, artistas e turistas.


Painel por Mariana Petraglia

52

53

Dica............................................................................cinema Lenda do Blues, B.B.King fará shows no Brasil:

José Cláudio Castanheira é doutor em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e sub-coordenador do curso de cinema da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Diretor, roteirista e sound designer para filmes, ele indica o filme Meu Tio (Mon Oncle, de 1958, de Jacques Tati), um dos mais conhecidos do cineasta francês. A obra exerce um fascínio sobre o espectador que talvez não tenha paralelo em outras cinematografias. Para Tati, que trabalhou em várias produções no período do cinema mudo, a palavra não consegue expressar com exatidão nossa experiência cotidiana. Seus filmes fazem muito pouco uso da voz, preferindo falar através de gags cômicas e situações inusitadas. O personagem principal, interpretado pelo próprio Tati, transita em um mundo que se modernizou rapidamente, mas preserva um olhar curioso e ingênuo sobre as coisas. A figura de Tati é também inspiração para filmes recentes, como a animação “O Mágico” (L’illusionniste, de 2010, de Silvain Chomet).

Rio de Janeiro: 29 de setembro (Vivo Rio) Curitiba: 02 de outubro (Teatro Guaira) São Paulo: 05 e 06 (Via Funchal) e 07 de outubro (Bourbon Street Music Club)

Dica....................................................literatura

Lançamento Literatura

JK e a ditadura (Editora Objetiva)

Vanilda Salignac de Sousa Mazzoni, doutora pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pós-doutora em Letras: Estudos literários, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) sugere o livro As aventuras de Teresa Margarida da Silva e Orta, em terras de Brasil e Portugal, de Conceição Flores. É a biografia de Teresa Orta, a primeira brasileira a ter um livro publicado em

Em edição revista e ampliada, Carlos Heitor Cony retoma a história recente do país que acompanhou de perto como jornalista e homem de confiança de Juscelino Kubitschek. Em 1964, JK tentou ao máximo evitar o golpe que depôs João Goulart, seu vice-presidente no período anterior. Diante do fato consumado, JK ainda acreditava que a eleição presidencial marcada para o ano seguinte, na qual seria candidato, ocorreria. No entanto, conforme o regime se fechava e eliminava o diálogo com a sociedade civil, inaugurando os “anos de chumbo”, ele se tornou uma das maiores vítimas da repressão. JK, que já havia sofrido infâmias por parte de Jânio Quadros, lutou contra a ditadura instalada. Cassado, exilado duas vezes, processado e preso, morreu em um acidente nunca inteiramente esclarecido em 1976, na Via Dutra. Cony mostra como JK tornou-se, à época, um dos maiores vultos da história brasileira.

Lançamento

Cinema

Somos tão Jovens No dia 11 de outubro, aniversário da morte do cantor Renato Russo, estreia o filme Somos tão Jovens, que conta a história do líder da banda Legião Urbana. Dirigido e produzido por Antônio Carlos da Fontoura, com roteiro de Marcos Bernstein, o filme será protagonizado pelo ator Thiago Mendonça, com participação de Sandra Corveloni, Marcos Breda, Laila Zaid, Bianca Comparato e Olivia Torres.

Entrevista: Breno Silveira Você tem relação antiga com o cinema, mas sua estreia como diretor foi em Dois filhos de Francisco, em 2005. Como é a experiência de dirigir um longa metragem? Sou um bicho de set. Desde os 18 anos, fotografava em set. Ganhei uma bolsa para estudar fotografia para cinema na França. Trabalhei com publicidade. Depois passei a fotografar filmes de amigos, como Carla Camurati e Andrucha Waddington. Participava de tudo, até me falarem que era hora de fazer meu próprio filme. Surgiu a oportunidade de Dois Filhos de Francisco. Recusei, mas, ao ouvir a história contada pelo próprio Sr. Francisco, encarei o desafio.

foto: Gabriela Barreto Foto: Divulgação

O filme À Beira do Caminho foi um sucesso na 16ª edição do Cine PE, com seis troféus. O que este filme tem de especial? O mais importante é o link emocional. Nos meus filmes, busco emocionar as pessoas. À Beira do Caminho conta a história de um homem que reaprende a amar depois de já ter desistido.

Portugal, no século XVIII. Sua importância está não somente por ser uma mulher e literata em um período de obscurantismo e cerceamento feminino, mas por preencher mais uma lacuna no enorme capítulo da história que ainda se escreve sobre a mulher.

(Cineasta)

Na fuga em um caminhão, que significa a fuga da sua própria vida, o personagem não tem contato com mais ninguém, até que dá carona para um menino que amolece o seu coração. O filme mostra a importância dos laços familiares, de se reconciliar com o passado, das pessoas que você deixou para trás, enfim, fala sobre a importância do amor. Posso dizer que este é o meu filme mais autoral, ele fala muito sobre o diretor. O prêmio Gilberto Freyre é dado ao filme que melhor representa a cultura brasileira. E eu sou um brasileiro apaixonado pela nossa cultura. Dentre as comemorações do centenário de nascimento de Luiz Gonzaga, está o lançamento do filme Gonzaga – de pai para filho (previsto para 25 de outubro). O que o público pode esperar? Mesmo sem querer fazer biografias, quando recebi as fitas cassete em que o Gonzaguinha entrevistava o pai, não pude recusar o trabalho. Porque o relacionamento dos dois era péssimo e, na entrevista, eles lavam a roupa suja. O filho pergunta para o pai por que ele o abandonou e coisas do tipo. E é a história de um dos artistas mais importantes da música brasileira. O Gonzagão era uma pessoa apaixonada pelo País e andou muito por aí. Por isso, o filme tem trechos em São Paulo, no Rio de Janeiro. Em Dois Filhos de Francisco, foi a história dos filhos contada pelo pai. Em Gonzaga, é a história do pai contada pelo filho.


Tecnologia por João Gabriel Nani

54

Entrevista

* Info – Da Editora Abril, não é em tese um blog, mas um conjunto de blogs. A linguagem adotada pelos blogueiros geralmente não é técnica, propor-

José Mariano Beltrame

Digital Drops – É um dos blogs mais conhecidos entre o público jovem que busca informações sobre aparatos eletrônicos e softwares. Também é referencia nacional entre os blogs de gadgets, tendo recebido links de blogs internacionais, como Engadget, Gizmodo e Neatorama. O endereço é http:// digitaldrops.com.br/drops.

Secretário de Estado de Segurança Pública do Rio de Janeiro

Conexões #acesse Blogs sobre tecnologia, que podem ser acessados por desktops ou pelos mais variados dispositivos móveis, como Smartphones e Tablets:

cionando fácil entendimento. O endereço é http://info.abril.com.br/blog/.

*

* GigaBlog – Notícias variadas sobre tecnologia, desde pizzarias que aceitam pedidos de entrega via Facebook até a criação de carros flutuantes. Sua

55

Por Ady Carnevalli e Mariana Petraglia

atualização varia de acordo com o fluxo de notícias. O endereço é uoltecnologia.blogosfera.uol.com.br.

Discovery – Você quis dizer Google? Não, Discovery mesmo. O blog criado há alguns anos oferece suporte para os produtos da Google. Dicas, ferramentas e notícias também são encontradas. O endereço é http://googlediscovery.com.

*

* Meio Bit – Muitas vezes, em um tom particular, o Meio Bit é um dos mais conhecidos blogs sobre tecnologia, com informações sobre hardwares e

softwares para desktops ou dispositivos móveis, além de inovações eletrônicas. Algumas crônicas sobre o mundo tecnológico também são disponibilizadas. O endereço é http://meiobit.com.

* How Stuff Works (como tudo funciona) – O HSW responde a qualquer pergunta que remeta ao funcionamento de algo, não só digital ou mecânico, mas qualquer coisa que funcione, ou não. Desde uma lamparina ou a um complexo acelerador de partículas. O endereço é http://www.hsw.uol.com.br.

Conexões #omundonobolso Cada vez mais os dispositivos de interação solidificam-se como peças essenciais na nova estrutura global e se tornam objetos de bolso. Tablets e Smartphones crescem mais que a população chinesa e invadem não só os mercados, mas também a vida dos indivíduos. O que essas tecnologias têm?

* Tablet - oferece agenda pessoal, leitor de textos e pacotes Office, softwares para edição de vídeos e fotos, além do acesso à internet, com possibilidade de conexão independente via Wi-fi.

Smartphone - Veio para tornar o celular uma tecnologia obsoleta. Oferecendo praticamente tudo que o tablet oferece, o aparelho também tem todas as funções de um celular, seja a de despertador ou a de telefone portátil. Com softwares simples e práticos, não depende de redes wi-fi para conectar-se à internet, já que a maioria das operadoras oferece planos 3G com acesso ilimitado à rede. O aparelho mais parece um computador de bolso, sendo que os mais modernos já possuem processadores dual core (dois núcleos, celeridade para processar informações).

*

Quando o caçula nasceu, há dois anos, ele prometeu que não ia repetir o erro de criá-lo no exterior, cometido com seus dois primeiros filhos (de outro casamento). A essa altura, o gaúcho de fala mansa e conversa fácil, já ocupava o cargo até então temido por muitos homens públicos. Há três anos e meio à frente da Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame colhe os frutos da coragem para enfrentar os traficantes “donos” dos morros cariocas, os policiais criminosos e as organizações de milícias. Formado em Direito, Administração de Empresas e Administração Pública, e especialista em Inteligência

Estratégica, Beltrame construiu carreira na Polícia Federal, chegando a integrar o quadro da Interpol. Responsável pela implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), no Rio de Janeiro, é tratado como herói pelos moradores das áreas “libertadas” e respeitado por toda a população. Embora confirme receber ameaças de morte, não esconde o orgulho dos resultados conquistados por sua equipe, ao lado de sua mulher, a secretária de segurança adjunta Rita Paes. “Ela é oriunda de área carente, professora do Estado e conhecedora da realidade do Rio. A gente conversa muito, ela é muito envolvida nisso comigo”, diz. Por trás do

secretário, um homem de hábitos comuns e recordações inesquecíveis, como de uma viagem à Turquia. Amante de biografias, está lendo a de Churchill. Mas não se descuida do corpo. Na agenda lotada, ainda encontra tempo para a ginástica na academia, “para fortalecer a carcaça”. Não dispensa um churrasco, como todo bom gaúcho, mas só o feito por gaúcho. A exigência, porém, não disfarça o jeito simples. “Estou inserido no costume carioca de comer petisco e salgadinho em boteco. Gosto de uma cervejinha e de passar na Feira dos Paraíbas, em São Cristóvão, na sexta ou sábado. Não tenho frescura não. Gosto de feijão com arroz e alguma coisa, assim como de comida mineira. Pode me convidar que não vou fazer feio”, brinca. Perguntado se agora é carioca, a resposta é imediata: “Não tenho dúvida disso. Foi uma cidade que me deu oportunidade de tentar fazer o que muito carioca não tinha conseguido”. O secretário José Mariano Beltrame é o convidado especial da Ett Alii. Ele fala sobre UPPs, milícias e segurança pública, com a visão de que a polícia deve interagir com as pessoas, prestar serviços e não apenas acionar armas.

• Muitos sites oferecem conteúdo específico para os Smartphones, desde a diagramação do próprio site até aplicativos e Gadjets. Para verificar se o site possui a visualização adaptada ao Smartphone, basta substituir o “www” do endereço do site por “m”e todo conteúdo buscado estará à sua disposição. • Os preços variam entre R$ 150, aparelhos de marcas desconhecidas ou chinesas, e R$ 3 mil, com os requintados IPhones, da Apple. Geralmente, os aparelhos vêm com aplicativos básicos e facilidade para downloads e softwares instalados, sejam eles próprios, como o Blackbarry Device, ou “livres”, como o Android.

fotos: Assessoria de Comunicação - Secretaria de Estado de Segurança Pública do Rio de Janeiro


56

Convidado Especial

Quando o senhor aceitou o cargo um grande início de projetos. Naquele O senhor não é político de carreira de secretário de Segurança, qual era almoço foi assim. Começamos a dise não tem um passado como policial sua principal meta? Combate ao trácutir que, como o Rio é uma cidade de repressão. Este perfil pode ajudar a fico, faxina de maus policiais, estrutupartida, pois tem áreas conflagradas, transformar o próprio quadro policial ração da polícia? precisávamos entrar nessas áreas. E aí do Rio, mesclando repressão aos crimiNunca pensei em ser secretário um dizia: Como vai entrar? Mas não nosos com integração com a sociedade ou em participar de governo nenhum. tem gente, não tem carro, equipamento civil? Não mexi uma palha blindado... vai só a polícia Esta é uma das propostas que enpara chegar aonde e não vai o resto? A partir cerra o conceito de UPP. No Rio e em “A Polícia daqui sabe cheguei, mas a opordessas perguntas, fomos lugares do Brasil que têm violência, de mais fazer guerra do tunidade apareceu. procurando respostas. ações mais fortes do crime, com áreas Vi que precisávamos Se passássemos a fazer conflagradas, em função da leniência que prestar serviço.” mostrar às pessoas concurso mensal para as do estado e da tolerância da sociedade, que é possível, que polícias, a gente podeos policiais foram jogados à guerra. O a gente é séria e que as nossas proposria fazer isso. Ah, mas se pedíssemos policial hoje aqui sabe muito bem subir tas são sérias. O carioca já está cheio de equipamentos para as Forças Armadas, morro, dar tiro, trocar tiro, matar, ferir, outras coisas que não propostas sérias, consegue fazer aquilo. E assim nasceu a morrer, ver policiais mortos. A Polícia compatíveis e objetivas. Precisávamos UPP. É um projeto made in Rio, carioca daqui sabe mais fazer guerra do que passar seriedade para a população e a da gema. Estava com os subsecretários prestar serviço. Então, o paradigma da ideia de que tínhamos uma proposta e a Assessoria de Comunicação, que UPP faz o seguinte: ela desarma esses lupossível de ser feita. sempre interage conosco e é importante gares e, por isso, faz com que o policial porque nos traz o que as pessoas estão trabalhe nesses lugares não com fuzil, A idéia das UPPs nasceu de uma falando, o que a própria imprensa está não totalmente armado. Claro que o conversa durante um almoço com sua pensando. Então, nessa discussão, cada policial vai ter sua arma de mão, como equipe. O senhor em todo lugar lembra detalhes do mundo, “Mudar a segurança pública, o serviço público, é como mudar o pneu com desse dia? Como mas não mais o carro andando. Você não pode parar a Polícia para fazer as mudanças.” as sugestões foram com aquela ganhando corpo carga, com e se encaixando? aquela energia, Como sua equipe passou a acreditar um saiu com uma missão. Vê quantos com aquela desconfiança e com aquele que poderia dar certo? homens precisa; como faz para formar; estresse de quem está num campo de O almoço... Estou convencido de como entrar na favela; qual a potenciaguerra. Então, se a Polícia tradicional que grandes decisões você toma em reulidade bélica que tem aquilo ali; como entra primeiro e debela armas, equipaniões informais, pouco convencionais, é o reflexo da comunidade dentro da mentos, prende pessoas, o policial que onde as pessoas estão mais à vontade e mancha criminal da cidade. Passamos chega numa segunda fase já entra em prontas para serem desafiadas. Porque a nos desafiar e a procurar respostas. E outro clima, numa outra ambiência, o clima de tranquilidade faz você dizer, aí nasceu o projeto que levamos quase aonde em vez de ser guerreiro, vai ser pensar e ousar mais do que em uma dois anos para fazer. um operador de Segurança Pública, vai reunião em que é cobrado, aonde tem desenvolver a arte de conversar com a que dar respostas racionais rápidas, nas O senhor acumula cursos e carcomunidade. Isso inverte o paradigma quais você fica muito na defensiva. Hoje gos voltados para a inteligência estrade que a Polícia é violenta, de que é tenho certeza de que esse brainstorming é tégica na área de segurança pública. muito dada às armas e à pouca conversa.

Entrevista

57

testar a polícia, para mostrar que não entram mais bem preparados. Isso vai As ocupações poderiam ter sido estão satisfeitos. Estamos contrariando cada vez mais se ajustar e funcionar memal recebidas. Como sua equipe se interesses de quem não estava acostulhor. Já temos policiais voltados para o preparou para isso? mado a ser contrariado. Mas a história cliente, que é a população. Temos aulas Eu nunca achei que seria mal rede três anos das UPPs nos mostra que de sociologia, antropologia, direitos hucebido. Temos que entender que os a presença do policial com a atitude e manos, toda uma inclinação pedagógica moradores dessas áreas voltada para prestar vivem sob o governo de serviço. “Há muito a se aprender em gestão de segurança. Muitas vezes, um tirano, sob a represcom poda de árvores, iluminação pública ou deslocamento de um são, sob a ponta de um O filme Tropa fuzil. Uma mãe que tem de Elite critica os ponto de ônibus você resolve questões de segurança sem precisar um filho que morre e não jovens da classe méda Polícia.” pode retomar o corpo. dia, tratados, com Muitos corpos eram queiironia, como “esmados no famoso ´microondas´. As a postura de interagir com a comunitudantes com consciência social”, empessoas passaram décadas sofrendo, dade vai mudar essa concepção. Isso é bora totalmente alienados da guerra presenciando tiro, granada, vendo um processo, não é produto de prateleira. do tráfico. Para o senhor, como as unicomando paralelo ali dentro. Duvido Não vai ficar pronto segunda-feira, mas versidades contribuem ou poderiam que elas não gostem e que não queios resultados são animadores. contribuir com os setores de inteligênram a ordem. A aceitação da população cia da polícia? existe, mas é normal que fique desconA UPP apresenta-se como uma Não sei, sinceramente. Não sei fiada e pergunte com razão: Essa polícia prática diferente de tudo o que já havia como a universidade vai fazer com essa que a vida inteira veio aqui trocar tiros sido tentado. É uma espécie de polícia questão da inteligência, da vigilância. A com marginais, entrava nas nossas casocial. Existe um treinamento especíuniversidade tem um papel muito bem sas, muitas vezes em porta errada, agora fico para os policiais das UPPs? Quais definido, que é o de despertar nas pesvem com esse ar totalmente diferente?. são as principais instruções e quais soas a consciência crítica. Ela ajuda a É claro que a população desconfia, mas, os diferenciais em relação ao preparo segurança pública e a polícia através de em contrapartida, não vê mais a guerra. convencional? ensinamentos, de aulas com professores Os seus filhos não estão mais expostos O projeto prevê essa preparação, tentando colaborar com as instituições à linha de fogo, à bala traçante e a ônimas mudar a Segurança Pública, o serde segurança pública no sentido de prebus incendiado. Há, sim, resistência no viço público, é como mudar o pneu parar seus efetivos, buscando formar ali trato entre o policial e a comunidade com o carro andando. Você não pode um nascedouro de ideias. num primeiro momento. Mas isso com parar a Polícia para fazer as mudanças. o tempo se acomoda. Vocês podem ver Então começamos a ocupar as áreas e, A precariedade dos cursos de foras UPPs que fizemos primeiro. Elas são no início, não tínhamos policiais recémmação de policiais é tida como um muito melhor recebidas do que as mais formados dentro do conceito que se essério problema na preparação dos eferecentes. Porque é um processo, onde o pera de UPP. Hoje já se tem uma grade tivos. Para o senhor, como estes cursos tempo vai absorver isso, assim como as curricular, carga horária, conteúdo prodeveriam ser? pessoas que vendiam droga. Quem vengramático e professores voltados para Precisamos mostrar a função de dia droga ali há 20 ou 30 anos não vai essa prática. Como eu disse, é um proprestação de serviços da Polícia. O nos entregar essa área de uma hora para cesso. Nas primeiras UPPs, você não viu policial precisa ser um operador de a outra. Eles vão, volta e meia, tentar isso, mas graças a Deus se venceu e elas segurança pública. Eu digo, na condifazer incursões, algumas tentativas para estão sedimentadas. Hoje os policiais ção de secretário de Segurança, e sem


58

Convidado Especial

generalizar todos os estados, que há mais nocivo: as milícias. Como combao processo, para recuperar o tempo muito a se aprender em gestão de seguter este novo inimigo? perdido. rança. Muitas vezes, por exemplo, com A milícia existe no Rio há 20 anos. poda de árvores, iluminação pública ou E durante pelo menos dez ela ficou O Estado começou a chegar às um deslocamento de um ponto de ônisem um combate efetivo. Em janeiro de áreas ocupadas, levando coleta de lixo, bus que aglomera muitas pessoas, você 2007, tinha sete ou oito presos. Hoje, obras de infraestrutura e outros serviresolve algumas questões de segurança são mais de 600 milicianos presos, inços. Especificamente em relação aos josem precisar da Polícia. É preciso tracluindo oito vereadores e um deputado vens, o que o senhor gostaria que fosse zer para cima das mesas dos delegados, estadual. Mas durante dez anos o que feito? comandantes e até de secretários (por aconteceu? A milícia não foi combatida Estado, Município e União estão que não?) os manuais de gestão pública. e adquiriu uma gordura grande. Em fazendo muita coisa, mas acho que a soDeixar um pouco os códigos de lado segundo lugar, não há uma tipificação ciedade precisa fazer mais. A sociedade porque os códigos são para os policiais nos códigos brasileiros do que é milíbate palma, mas não entra em campo. As que estão nas ruas. Gostaria que a precia. Não é como você ser preso com um pessoas acham bonito, mas não sobem paração tivesse um perío morro. As pessoas precisam “A milícia não foi combatida e adquiriu uma gordura odo maior de aulas. O conhecer o morro, têm que policial precisa, pelo mesubir lá e ver o que está acongrande. Como a policia não combateu, não atuou, ela não nos no Rio de Janeiro, tecendo, saber o que aquela criou expertise nenhuma nisso.” permanecer mais tempo sociedade quer. Têm que levar dentro da escola. Aqui a o filho lá em cima para ver gente tenta dar uma visão na prestação produto roubado. Pegou em flagrante, como é que é. Porque frequentando é de serviço, saindo um pouco daquele prendeu, pronto. A milícia é um crime que poderão ter boas ideias. É preciso clima de guerra, daquela visão de que o que precisa ser composto. É um quebracriar perspectivas para a juventude. Não policial tem que se preparar com armas. cabeça a ser montado. Tem que ter um cobrem isso do secretário de Segurança Ele tem que fazer isso também, mas tem servidor público, tem que ter um serviporque este tem que deixar nesses lugaque estar mais preparado para o século dor público de folga, tem que ter um res um ambiente propício para que os 21, onde se tem rede social, Internet. servidor público de folga armado. E esoutros serviços cheguem. A segurança Precisa interagir com as pessoas. Esse é tes três ingredientes têm que estar junto você não vai fazer com um policial agarum foco que as polícias devem ter: prescom outros, como venda de segurança, rado no fuzil numa escadaria de favela. tação de serviço. Somos servidores púde gás, de água e de serviços que são púEle não vai garantir a segurança se tem blicos e não apenas guerreiros. Temos blicos, mas o privado está fazendo. E a lá um filho com fome, uma senhora doque administrar isso como empresa. polícia? O que aconteceu? Como a poente, todo o lixo sem recolher, se não Precisamos ter bons administradores de licia não combateu, não atuou, ela não tem creche nem cultura. Isso tem que Recursos Humanos, bons gestores desse criou expertise nenhuma nisso. Temos chegar. E é isso que vai trazer perspecprocesso, uma preparação mais leve e aqui a DRACO (Delegacia de Represtiva para essa juventude, que acha que o mais racional para fazer a estrutura das são às Ações Criminosas Organizadas e mundo acaba ali onde termina o muro Polícias andar. Inquéritos Especiais), onde se faz funda favela. No Brasil, no Rio de Janeiro, damentalmente estas ações. Mas temos nas universidades, enfim, há milhões Com a demonstração de força muito que avançar. Agora mesmo esde pessoas que são especialistas. E esta, e inteligência do Estado, através das tou lutando para que se criminalize a sim, é uma necessidade. ocupações, ficou claro ser possível milícia, para que se tenha um tipo pecombater os traficantes. Veio à tona, nal de milícia, para que isso vá para a Muitos especialistas propõem a porém, um inimigo que parece ser lei, porque lei é ferramenta que agiliza descriminalização de drogas, como a

Entrevista

maconha. A descriminalização acaba com o problema da violência gerada pelo tráfico? Uma coisa interessante, capitaneada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, é o debate sobre esse tema. Pena que ele não fez isso quando era presidente. Isso tem que ser amplamente discutido. Precisamos desmistificar a questão. Não vai ser com um “canetaço” ou com uma coisa votada rapidamente. Não é só descriminalizar ou criminalizar. É preciso ter a questão da recuperação do drogado. Se o Estado libera, ele tem a obrigação de dar condições a essa pessoa de se tratar do vício. Oferecer os recursos para quem quiser se recuperar. Hoje como ela faz? Vai no SUS? É preciso toda uma discussão de saúde pública. Porque se o cara é viciado, é importante saber que o cidadão tem direito a querer se recuperar. Hoje só consegue isso quem tem muito dinheiro. Então, não podemos responder simplesmente: “Ah, sou contra ou a favor”.

59

especialistas, a Secretaria de Assistência Social, programas de inserção. É fundamental que essa pergunta seja respondida. O Sistema Penitenciário de hoje recupera? Se sim, ótimo, porque teríamos uma desaceleração de toda essa cadeia. Se isso não acontece, a pessoa volta lá pra baixo. A gente fala muito: tem que aumentar o efetivo policial. Mas se recuperássemos o preso, quem sabe a criminalidade diminuiria. Porém não vamos generalizar. Deve haver lugares melhores, embora temos muito que avançar. Porque aí, se o sistema melhora, o sistema descomprime. Em que pese o sucesso das UPPs, denúncias de práticas de abuso de policiais contra PPPs (pretos, pobres e prostitutas) ainda freqüentam os noticiários. A lei para policiais criminosos é muito branda? O senhor mudaria a lei se pudesse? Sem dúvida, historicamente neste País, a assertiva existe. Mas quero fazer um reparo: normalmente, nas ações policiais, você encontra esse perfil como praticante de crimes, até porque a exclusão social fez com que mais pretos e pobres se tornassem criminosos. Se bem que tem muita gente boa, estu-

Administrativo Disciplinar (PAD), que é único para o Brasil inteiro, tinha que ser sumário, por dois motivos: se o policial envolvido não tem culpa, ele quer logo se livrar do problema. E se for culpado, a sociedade quer que ele pague logo pelo que fez. O processo hoje tem várias medidas protelatórias. Aquele que comete o crime e é um mau servidor fica alguns anos ganhando salário. E quando sai a condenação, já se perdeu o caráter exemplar da punição. O senhor acredita em um modelo universal de segurança pública para o país? Não. Duas coisas: o Brasil é imenso, são 27 estados, 16 mil quilômetros de fronteira seca, 9 mil quilômetros de fronteira marítima, uns 5 mil quilômetros de um rio que corta de Leste a Oeste, uma floresta imensa, cerrado, caatinga, serra. Podemos ter uma espinha dorsal pequena, ter quatro, cinco, seis diretrizes. Mas você não pode vir com fórmulas aplicadas no Rio Grande do Sul, que tem toda uma questão de fronteira com Uruguai e Argentina. Aí você pula para a Floresta Amazônica, onde as pessoas transitam de barco. São culturas, etnias, peculiaridades diferen-

O sistema penitenciário, como é hoje no Brasil, recupera o cidadão ou é uma escola para criminosos? Se lhe fosse dada a tarefa de reestruturá-lo, o que o senhor proporia? A segurança pública deve “A sociedade bate palma, mas não entra em campo. As pessoas acham bonito, ser vista como um sistema formas não sobem o morro. As pessoas precisam conhecer o morro, têm que subir lá mado por polícias, Ministério e ver o que está acontecendo, saber o que aquela sociedade quer.” Público, Tribunal de Justiça e Sistema Penitenciário. Se você prender mal, se denunciar mal, vai julgar mal. Se uma casa de custódia dada e rica que não para de roubar e de tes. Cada Estado pode adaptar práticas. não recuperar o preso, o cara volta para cometer crime... As penas para os serMas a realidade de cada lugar tem que a parte de baixo da pirâmide e a polícia vidores públicos, na minha opinião, faser respeitada. acaba trabalhando duas, três vez mais. lando como servidor público, poderiam Como fazer isso? Não sei. Há estudos, ser modificadas. E mais, o Processo


Convidado Especial

60

A maioria dos crimes contra agenpega na esquina. Você tem no Rio a tes que defendem a segurança pública contravenção do Jogo do Bicho, a milíe a Justiça conta com cumplicidade cia, o tráfico de drogas, muitas vezes, ardentro da própria estrutura do Estado. raigados nas instituições. Se você quer Como é viver com se sentar aqui nessa ausência de rotina cadeira e fazer um “Se o Estado libera (o (é o que se imagina trabalho sério e consumo de droga), ele tem de um secretário de forte para combater a obrigação de dar condições segurança do Rio) e esses estigmas que a essa pessoa de se tratar do com o perigo de ser são representativos executado? na Segurança Púvício. (...) Hoje como ela faz? A corrupção blica do Rio, você Vai no SUS?” não é só na Polícia. tem que conviver Quando se fala em com a questão da corrupção, todo mundo pensa na Políameaça de morte, botar na conta e viver cia, mas ela está nas instituições. Corcom naturalidade. Porque, se você vem rupção não é os R$ 30 que o policial cá e põe a cabeça debaixo da mesa e não mexe com milícia, Jogo do Bicho, Corregedoria, retirada de território etc., então você não assumiu o desafio. As ameaças existem, mas se a gente veio para cá é para lutar contra essa situação e não para ficar aqui trocando seis por meia dúzia. A gente vê o resultado do trabalho. Esta é a alavanca que toca a gente para frente. Como o senhor vê, a longo prazo, os resultados das ações de sua equipe? O senhor teme que o trabalho seja comprometido com o decorrer do tempo, seja por gestores incompetentes ou pela falta de vontade política? Esse risco existe. Não dá para dizer que

A arte de Casamenor

está garantido. Esse risco não é só aqui, mas em qualquer lugar. Mas o grande agente transformador de tudo e garantidor das medidas é a sociedade. O projeto UPP, por exemplo, já passou por cima do secretário, não pertence mais à Secretaria, e nem eu quero. Ele já está lá na mão das pessoas. São elas que têm de se manifestar e cobrar a sua permanência. Temos um decreto que garante as UPPs até 2016, mas o que vai fixar isso é a manifestação popular. Se um político vier no meu lugar, ele não vai mexer nisso aí, sabe por quê? Porque ele vai estar perdendo voto, e voto é o que ele tem de mais importante na vida. Se um técnico vem pra cá, ele não vai mexer porque ele tem estatística, tem dados para trabalhar e vai ver o que está funcionando. Pode acabar? Pode, como

“Se um político vier no meu lugar, ele não vai mexer nisso aí, sabe por quê? Porque ele vai estar perdendo voto. Se um técnico vem pra cá, ele não vai mexer porque ele tem estatística, tem dados para trabalhar e vai ver o que está funcionando.”

tudo na vida. Mas no momento em que a sociedade pegar isso para si e tiver a rédea, as coisas ficam mais difíceis de serem alteradas.

Título: Ó inclemente divindade, sobre os cadáveres insepultos das outras, obsoletas, nós te inventamos!

Casamenor, natural de Contagem-MG, vem há seis anos pesquisando a adaptação das técnicas convencionais da gravura em metal à gravação sobre placas de circuito impresso, provenientes do lixo eletônico. A gravura aqui reproduzida trata-se de uma interpretação da “Alegoria da divindade”, presente no livro “Iconologia”, do italiano Cesare Ripa. contato: casamenor@yahoo.com




Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.