Tarsila do Amaral

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ABA PORU UMA OBRA DE AMOR

ABA PORU UMA OBRA DE AMOR


ABAPORU: UMA OBRA DE AMOR Tarsilinha do Amaral 2015

Direção de Arte: Carolina Andrade Assistente: Bruna Secco Projeto gráfico: Lili Tedde, Yana Parente Texto: Tarsila do Amaral (Tarsilinha) Copy desk: Revisão: Frank de Oliveira Tratamento de imagens: Bruna Secco Fotos: Rômulo Fialdini para Catálogo Raisonné Tarsila do Amaral




Com este livro, não quero mudar a brilhante ideia que Oswald de Andrade teve ao achar que o Abaporu era o homem plantado na terra. O importante é que fique também clara a inspiração da obra, a perspicácia de Tarsila do Amaral – sua capacidade de transformar uma cena do cotidiano, do acaso, no mais famoso quadro brasileiro de todos os tempos.



SEMPRE TIVE MUITO ORGULHO DE MEU NOME. Desde pequena eu sabia que meu nome era Tarsila do Amaral em homenagem à minha tia-avó. Sabia que ela era uma pintora importante e famosa. Ter esse nome sempre me fez sentir especial e me fazia ter uma ligação forte com ela. Eu gostava de ir a sua casa, ver os quadros, conversar com ela. Mesmo sendo pequena, aqueles quadros me fascinavam, não sabia por quê... gostava deles, achava tudo bonito. As telas de minha tia me fizeram gostar de arte. Não achava estranhos aqueles quadros antropofágicos; pelo contrário, meus olhos brilhavam ao contemplá-los, e até hoje me lembro onde eles ficavam expostos, no apartamento dela: o Antropofagia, na sala de estar; o Operários, também; Cidade ou A rua, que era um quadro estranho para os meus olhos de criança curiosa, no corredor que dava para o quarto... Muitas paisagens, o ateliê, os pincéis, as tintas... Tia Tarsila era uma mulher vaidosa. Não permitia que ninguém entrasse em seu quarto enquanto não estivesse bem-arrumada. Mesmo quando se locomovia numa cadeira de rodas (depois de uma operação na coluna, ela não pôde mais andar), era uma mulher altiva, sempre com um sorriso e uma palavra amável para com todos. Quando ela estava no hospital, eu conversava todos os dias com dona Anete, sua enfermeira, para saber do estado de saúde dela. Soube que antes de morrer Tarsila pediu-lhe que tirasse seu anel de brilhantes que usava desde os dezoito anos e o desse para mim. Tarsilinha era como ela me chamava. Na época em que eu estava na escola os professores queriam saber se eu era parente da pintora, e eu dizia que sim, que ela era minha tia-avó. Por esse motivo, sempre fui

muito cobrada, mas nunca senti o peso do nome; pelo contrário, tinha muito orgulho dele.


Considero-me uma pessoa privilegiada por ser parente de Tarsila: podia ver todos os dias, na casa de meu pai, suas obras, como Paisagem e Beatriz, bem como desenhos, gravuras, fotos e os objetos pessoais dela. Eu só comia com o garfo que era dela e que tinha suas iniciais: “T. do A.” Quando eu via o quadro Paisagem, que ela pintou em 1954, imaginava que a menina que estava sentada na beira do lago era Beatriz, neta dela, que morreu afogada quando tinha apenas treze anos. Perguntei a meu pai se era mesmo Beatriz aquela menina, mas ele não soube me dizer... achava que não. Um trabalho que me deixava extasiada, que ficava no hall de entrada de casa, era uma versão inacabada de A negra. O fato de estar inacabada aumentava o mistério que pairava em torno daquela figura forte. Tio Sérgio tinha em sua casa uma das minhas telas favoritas: O Lago, de 1928. Suas cores, as formas arredondadas bem antropofágicas, as montanhas azuis, tudo me fascinava. Minha madrinha guardava a Pont Neuf, que eu adorava. A primeira vez que estive em Paris fui correndo conhecer a ponte que inspirou minha tia. Na casa de minha avó (digo minha avó, pois meu avô, irmão de Tarsila, morreu quando eu tinha quatro anos), o meu quadro preferido era Fazenda, pintado em 1950, uma tela grande, que ficava na sala de estar. O tema era muito familiar para mim, pois fui criada na fazenda de meu avô e pude conviver com o colorido das casinhas, o verde do mato e o azul do céu que inspiraram Tarsila. Tudo isso numa das fazendas do pai dela (meu bisavô), que meu avô herdou. O casarão, o bosque de jaboticabeiras, os passeios de charrete e de trem, o cheiro adocicado da cana-de-açúcar, o piano, as longas conversas eruditas, os cava-


los... Além de ter tido uma criação parecida com a de Tarsila, vivi no mesmo ambiente em que ela viveu. Que privilégio! Convivi com Tarsila por oito anos e passei minha vida ouvindo suas histórias. Na minha casa, Tarsila era pessoa queridíssima: ajudou meus pais, tanto financeiramente como com sua presença e seus conselhos. Meu pai era seu advogado e sobrinho querido. Minha mãe dirigia a Kombi para levá-la de um lugar a outro, pois Tarsila só confiava nela ao volante. Foi essa fraternidade e proximidade que animaram meus pais a homenageá-la batizando-me com o nome de Tarsila. Agradeço a eles por isso. Meus pais contam que Tarsila se divertia com minhas travessuras. Na casa de minha avó ela também era adorada. Meu avô sempre esteve ao seu lado e minha avó era uma de suas melhores amigas. Aliás, minha avó Liloca era uma pessoa excepcional: boa, generosa, idealista. Mulher admirável, que sempre apoiou Tarsila. Minha madrinha Helena, irmã de meu pai, era como uma filha para Tarsila e conviveu intensamente em ela, especialmente nos últimos anos de sua vida. Tarsila foi se tornando uma celebridade, cada vez mais famosa e importante. Com o tempo, percebia que a vida dela despertava muito interesse, tanto os aspectos pessoais como os familiares. Foi isso que me levou a escrever um livro sobre ela, a biografia ‘Tarsila por Tarsila’, que lancei em 2004. Para ampliar meus conhecimentos sobre arte, matriculei-me em um curso no Museu de Arte de São Paulo (Masp) e me apaixonei ainda mais pelo tema. Fiz também o curso de Museologia na USP. Minha visão sobre a obra de Tarsila se aprofundou e percebi particularidades que levaram a admirar ainda mais o seu trabalho. São marcantes a suavidade, a delicadeza, a ingenuidade e a alegria


que povoam cada tela. E as cores... cores de Tarsila! Os temas, também tão característicos, mostram nosso povo, nosso folclore, nosso país. Foi maravilhoso constatar que, à medida que conhecia a personalidade de Tarsila e tinha uma visão mais aguda de suas obras, eu sentia exatamente aquilo por que ela passava no momento em que as pintava. Passei a entender melhor sua personalidade. Tarsila mostrava em seus quadros o momento que estava vivendo, com quem ela vivia, seu estado de espírito, sua enorme autoestima. Somente depois de conhecê-la tão bem pude observar esse traço de maneira tão clara. Com o tempo e os estudos, esta percepção foi ficando cada vez mais aguçada, e isso me permitiu intuir esta hipótese sobre o Abaporu, a sua obra mais importante. Tarsila está presente em tudo o que faço e tenho certeza de que ela está comigo neste livro.

Tarsila, sobrinha-neta

O LAGO 1928 Óleo sobre tela7 5,5 x 93 cm Coleção Hecilda e Sérgio Fadel, Rio de Janeiro, RJ




CAPÍTULO 1

TARSILA E OSWALD



Tarsila Aos seus argumentos d’outro dia, oponho a minha vontade de terminar com este estado de coisas. Quero casar-me com você. Será toda a minha felicidade e a sua. Autoriza-me você a agir nesse sentido? Pensei bem antes de lhe escrever esta carta. Posso considerar-me seu noivo com a necessária reserva? Irei buscar resposta amanhã à tarde. Seu, inteiramente seu, Oswald.

F

oi com este bilhete que, em 18 de dezembro de 1924, Oswald de Andrade pediu Tarsila do Amaral em casamento. O inquieto poeta, romancista, dramaturgo e agitador cultural, um dos principais organizadores da Semana de Arte Moderna de 1922, tinha

34 anos e havia publicado, poucos meses antes, o Manifesto da Poesia Pau-Brasil. Quatro anos mais velha, a pintora Tarsila do Amaral flertava com as ideias modernistas já há algum tempo – e, desde 1922, convivia intensamente com Anita Malfatti, Mário de Andrade, Menotti Del Picchia e o próprio Oswald. O grande problema era o tal “estado de coisas” que precisava ser terminado e justificava a “necessária reserva”: Tarsila era casada – com André Teixeira Pinto, primo de sua mãe, um homem bastante conservador, com quem tinha uma filha, Dulce. Esse casamento precisava ser anulado, a todo custo, para que a pintora e o escritor pudessem viver, juntos, seu amor e sua arte. Tarsila conheceu os modernistas porque primeiramente ficou amiga da pintora Anita Malfatti. Mas, ironia das ironias, a amizade nasceu apenas quando ambas se encontraram na contramão do modernismo. Em 1917, Anita realizou uma polêmica exposição em São Paulo, com quadros da escola expressionista. Era a segunda mostra individual da pintora, então com 28 anos. Sua arte ousada caiu como uma bomba na sociedade paulistana. O escritor Monteiro Lobato foi um dos que a achincalharam sem piedade. No artigo


A propósito da Exposição Malfatti –, publicado no jornal O Estado de S.Paulo, ele criticou duramente os trabalhos da pintora e questionou a exposição, perguntando: “paranoia ou mistificação?”. A repercussão foi péssima para a artista. Ela já havia vendido oito quadros, mas quase todos acabaram devolvidos. Só mesmo os amigos Mário e Oswald ficaram com as telas que tinham comprado. Um tanto traumatizada com o episódio, Anita voltou à pintura acadêmica. E foi estudar no ateliê de Pedro Alexandrino, frequentado por Tarsila. Ali nascia a amizade das duas pintoras, em 1918. Dois anos mais tarde, Tarsila foi a Paris. Passou uma temporada estudando pintura na Académie Julien e matriculou a filha e alguns sobrinhos em colégios internos. Nesse período, conviveu e estudou com o pintor Émile Renard, retratista de moda e acadêmico. Mesmo longe do Brasil, acompanhava as peripécias de Anita – elas trocavam cartas constantemente. Foi assim que, a distância, soube do movimento modernista e da Semana de Arte Moderna. Tarsila voltou ao Brasil em junho de 1922, quatro meses após o evento que marcou a arte brasileira. Somente então ela seria apresentada aos modernistas, por meio de sua amiga Anita. “Pintora?”, espantou-se Menotti Del Picchia, nesse primeiro encontro do grupo. “Tinha eu na frente uma das criaturas mais belas, mais harmoniosas e mais elegantes que me fora dado ver…”. Todos se apaixonaram por Tarsila. Principalmente Oswald – o mais entusiasmado, um sedutor inveterado. O inevitável não tardou a acontecer. Tarsila e Oswald engataram um romance intenso, recheado de interesses em comum, inspirações e arte. Amor proibido Empecilhos, entretanto, não faltavam. A começar pelo estado civil de Tarsila: que, ao menos no papel, continuava casada com o médico André. É importante frisar essa situação, pois ambos não viviam como marido e mulher desde 1913.

AUTORRETRATO (MANTEAU ROUGE) 1923 Óleo sobre tela 73 x 60,5 cm Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, RJ



Isso porque a pintora era uma mulher bastante moderna para a época – decidiu romper com o marido após ele a trair com a mulher de seu irmão, ou seja, concunhada de Tarsila. Apesar de hoje ser razão pertinente para uma separação, na época o mais comum era que as mulheres se conformassem e seguissem a vida, criando filhos e cuidando da casa. Outras infelicidades de seu casamento eram o abismo cultural e a diferença de mentalidade que havia entre eles. E Oswald, bem, Oswald era um conquistador nato, incorrigível. Colecionava namoros. Dentre os mais notáveis, a primeira foi Kamiá, uma estudante francesa com quem se uniu em uma viagem à Europa em 1912, e que dois anos mais tarde daria à luz a um filho dos dois, Nonê. Depois, o escritor se apaixonou pela bailarina Carmem Lídia, de apenas 13 anos de idade – chegou a pedi-la em casamento ao seu tutor, Amadeu Amaral, que recusou, justamente por causa da má fama de Oswald. Cortejou a bailarina Isadora Duncan, durante sua estada em São Paulo. E em 1919 casou-se, in extremis, com Daisy, uma estudante normalista morta em decorrência de aborto de um suposto filho do escritor. Oswald não foi o primeiro amor de Tarsila após seu marido. Ela havia vivido um tórrido romance com o poeta Corrêa Júnior. A pintora, entretanto, sempre contou com o apoio do pai, o advogado José Estanislau do Amaral, conhecido como Dr. Juca. Advogado, republicano e abolicionista, ele tinha mente aberta e permitiu a separação da filha, a despeito dos comentários maldosos propagados naquela São Paulo conservadora e tradicionalista. Filho do também José Estanislau do Amaral, fazendeiro apelidado de “O Milionário”, Dr. Juca apoiava as decisões da filha e, não raras vezes, dava dinheiro para ela estudar – como quando a artista passava temporadas em Paris. Um namoro modernista Tarsila, Oswald, Anita, Mário e Del Picchia tornaram-se inseparáveis naquele finzinho de 1922. O “Grupo dos Cinco” agitou culturalmente São Paulo. Liam

ESBOÇO DE A NEGRA I 1923 Grafite e aquarela sobre papel 23,4 x 18 cm Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros – USP São Paulo, SP


poemas no alto da Serra da Cantareira, andavam no Cadillac verde de Oswald, reuniam-se na garçonnière dele, na casa de Mário, no ateliê de Tarsila… “No largo ateliê de almofadões búlgaros, onde gritavam as cores dos mantons de Manilla, riquezas do bric-à-brac fidalgo dessa esgalgada e linda artista Tarsila do Amaral, o violão de Mário evocava toda a música da raça”, registrou Del Picchia sobre o recanto de Tarsila. Nessa época, aliás, embrenhada nas ideias vanguardistas, a pintora leu – e ficou perplexa – a Pauliceia Desvairada de Mário. A rotina paulistana, entretanto, durou poucos meses para Tarsila. No fim de 1922, embarcou de volta a Paris, a bordo do luxuoso navio Lutetia. Oswald iria logo em seguida – e durante a viagem, ambos trocaram cartas apaixonadas. “Embelezaste minha tristeza”, escreveu ela. “Que carta tão longa em três palavras”, rebateu ele. “O mar está lindo, hora de ouro, saudades infinitas”, foi a resposta da pintora. Em janeiro de 1923 eles já estavam juntos, em Paris. Tarsila montou um ateliê perto da Place de Clichy, onde passou a reunir intelectuais – para os quais servia feijoada e caipirinha. Eram assíduos convidados o poeta Blaise Cendrars, o escritor Jean Cocteau, o escultor Brancusi, os pintores Fernand Léger, Pablo Picasso, Albert Gleizes e André Lhote, os músicos Eric Satie, Darius Milhaud e Stravinsky, e o milionário sueco Rolf De Maré, patrocinador dos ballets suédois. Brasileiros compareciam ao ateliê de Tarsila, como os músicos Villa-Lobos e Souza Lima, os pintores Di Cavalcanti e Rego Monteiro, o crítico Sérgio Milliet, A NEGRA I 1923 Nanquim sobre papel 22 x 17 cm Coleção Gilberto Chateaubriand Rio de Janeiro, RJ

o fazendeiro Paulo Prado e a mecenas Olívia Guedes Penteado. A vida social agitada do casal Tarsila e Oswald não se resumia a tais recepções. Eles assistiam aos famosos balés suecos, iam a jantares oferecidos pelo embaixador brasileiro e frequentavam casas de amigos. Não deixavam de visitar exposições de arte e eram vistos nos melhores restaurantes parisienses.


FOTO DA CRIADA DA FAMÍLIA

A NEGRA 1923 Óleo sobre tela 100 x 80 cm Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, SP


Tarsila se vestia com Paul Poiret, o mais badalado costureiro da capital francesa, e com Patou, outro nome de destaque. Usava roupas exóticas e joias exclusivas. Causava frisson nos eventos sociais, pelo impacto de sua beleza e elegância. “Tarsila foi uma das maiores belezas que já vi”, disse Nonê, filho de Oswald. O crítico de arte Christian Zervos concordava, considerando-a “a mulher mais bela do mundo”. “A negra cabeleira lisa descobrindo e valorizando o rosto e os brincos extravagantes quase tocando-lhe os ombros suavemente amorenados”, descreveu o crítico Sérgio Milliet, quando Tarsila assistia a uma apresentação de balé no Théâtre des Champs-Élysées – nesse mesmo evento, aliás, Oswald usava um smoking roxo e uma gravata borboleta amarela. Intelectualmente, Paris fez bem aos dois. Tarsila estudou com Lhote, Gleizes e Léger – em cujo ateliê pintou A Negra, um marco em sua produção. Oswald estreitou contatos com escritores europeus e ministrou uma conferência na Universidade Sorbonne sob o título O Esforço Intelectual do Brasil Contemporâneo – o conteúdo seria depois publicado na Revue de l’Amérique Latine. O namoro progredia. Tinham química. Oswald era engraçado, carinhoso, sedutor. Tarsila se comportava como uma dama – elegante, sensível,

PONT NEUF 1923 Óleo sobre tela 33 x 41 cm Coleção Geneviève Rio de Janeiro, RJ


Rumo ao casamento Um dia uma senhora De rico parecer Entrou num velho parque A fim de espairecer Olhou todas as flores Era na Primavera E pensou nos amores Pois linda e moça ela era Eis que quando numa gaiola Depara subitamente Com feio e pelado bicho O pobre macaco Clemente ... Inútil, minha senhora, Seu macaquinho perdeu Não troca ele uma banana Por perfil de camafeu Tarsila, bela Tarsila Não vá entornar o caldo Não perca tempo não perca Case-se logo com o Oswaldo.


educada. Ambos eram talentosos, ricos, inteligentes e apaixonados um pelo outro. Não se cansavam de trocar cartas e bilhetes de amor. Voltando ao Brasil em 1924, Tarsila escreveu, no navio: “Não danço e não dançarei durante a viagem pensando no meu noivo querido… Penso no meu noivo constantemente. Estou sempre com lágrimas nos olhos e vou disfarçando para não chorar”. Após outra viagem, ela escreveu, logo que chegou à França: “Paris é horrível sem ti”. “O mundo é horrível sem ti”, responderia Oswald. “Olhe, vorte… e eu? Uma tristeza. Regresso ao catolicismo. Uma revolta contra a separação. A vida PAU-BRASIL – capa (1925) Pau-Brasil, livro de estreia em poesia do escritor Oswald de Andrade. Sem assinatura e sem data

já é tão curta”. O escritor costumava usar expressões como “nada faças contra nossa felicidade” e “beijo-te os olhos”. O bem-humorado poeminha O Macaco e a Senhora era mais um pedido de casamento de Oswald. O ano de 1925 marcaria uma parceria artística do casal: Tarsila ilustrou as poesias de Pau-Brasil, de Oswald, no qual há outro poema para ela:

Caipirinha vestida por Poiret

A verdura no azul klaxon

A preguiça paulista reside nos teus olhos

Cortada

Que não viram Paris nem Piccadilly

AUTORRETRATO II 1926 Óleo sobre tela 38 x 33 cm Coleção particular São Paulo, SP

Nem as exclamações dos homens

Sobre a poeira vermelha

Em Sevilha

Arranha-céus

À tua passagem entre brincos

Fordes

Locomotivas e bichos nacionais

Viadutos

Geometrizam as atmosferas nítidas

Um cheiro de café

Congonhas descora sob o pálio

No silêncio emoldurado

Das procissões de minas


VIAGEM Tarsila e Oswald na viagem de 1926

ALBUM DE VIAGEM Tarsila deixou vários álbuns de recordações de viagem


Ao fim da viagem, passaram pelo Vaticano. Conseguiram uma audiência com o Papa Pio XI em 1.º de maio de 1926, com a presença da amiga Olívia Guedes Penteado. Ao pontífice, pediram uma bênção especial para o casal. No mês seguinte, Tarsila realizaria sua primeira exposição individual em Paris, na Galerie Percier. Marice Raynal, Olaf Apollonius, Maxime Gauthier, Serge Romoff, Christian Zervos e Antônio Ferro publicaram críticas favoráveis. Já consagrado, Picasso foi um dos que visitaram a mostra. Tarsila e Oswald se casaram em 30 de outubro de 1926, em São Paulo, com uma festa na casa dos pais dela. Júlio Prestes, então governador de São Paulo, foi padrinho da noiva. Washington Luís, presidente da República, do noivo. Depois do casamento, eles passaram uma longa temporada na Fazenda Santa Teresa do Alto, propriedade de Tarsila no interior paulista. Ali costumavam receber amigos, como Lasar Segall, Manuel Bandeira e Mário de Andrade. Este último, aliás, escreveria que “depois da exposição de Paris, a grande pintora sentiu-se fatigada. Abandonou os pincéis e foi para o five-o-clock da existência… A inquietação desceu num crepúsculo… Quem chega à Fazenda Santa Tereza do Alto encontra uma sala de jantar decorada recentemente pela pintora”. Mas muita criatividade ainda estava por vir. Tarsila pintou, em 1927, obras como Manacá. As formas arredondadas da vegetação mostrando exuberância, sensualidade e cor anunciavam mudança em seu estilo. BICHO ANTROPOFÁGICO Nos anos 1929 e 1930, Tarsila desenhou uma série de “bichos abtropofágicos” com várias técnicas


FAZENDA SANTA TEREZA DO ALTO Foto do casal na rede da fazenda


AUTORRETRATO COM FLOR VERMELHA 1922 Pastel sobre papel 39 x 29 cm Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros, USP São Paulo, SP



CARTA 1931 Detalhe de uma carta de Tarsila dirigida à sua mãe

MANACÁ 1927 Óleo sobre tela 76 x 63,5 cm Coleção Simão Mendes Guss São Paulo, SP



CAPÍTULO 2.

O PRESENTE DE ANIVERSÁRIO



arsila e Oswald viviam em ebulição de amor e criação. Eram almas do movimento modernista, que nos anos 1920 colhia seus melhores e maiores frutos, conquistava a intelligentsia brasileira, era sucesso nos suplementos culturais e, superado o choque dos primeiros anos, se consolidava como suprassumo da vanguarda na opinião dos críticos. Com esse peso histórico e cultural às costas, no finzinho de 1927, Tarsila se encontrava em um mágico instante de fusão dos papéis de artista e de mulher. Queria surpreender o marido, que em 11 de janeiro completaria 38 anos, com um presente original. Mas como conseguir? Oswald era homem tão plural, tão irrequieto, tão ousado… A pintora passou dias e dias pensativa, matutando como seria um presente realmente capaz de mexer com ele. Era difícil impressionar alguém com personalidade envolvente, dotado de uma bagagem cultural assustadora e dono de uma criatividade que conseguia ocupar todo o ambiente onde ele estava. O poeta era capaz de provocar até em pequenos bilhetes: “Na Suíça, engordei 10 quilos em um dia e meio… Assinado: Jóquei Oswaldo”,escreveu, certa vez, tirando sarro de si mesmo. Ele usava as palavras com artimanha e desenvoltura. Mexia com as pessoas, inventava apelido para tudo e para todos. Gostava de se autodenominar Volor, muito provavelmente numa brincadeira com o verbo latino “acelerar”. Tarsila era Trolyr. Dulce, filha da pintora com o primeiro marido, ganhou o apelido de Dolur Tresor. Para Nonê, filho do poeta, escrevia Noner. RETRATO DE OSWALD DE ANDRADE 1922 Óleo sobre tela 51 x 42 cm Coleção particular São Paulo, SP

Pau-Brasil Para entender um pouco o estágio artístico em que o casal estava, é necessário voltar brevemente no tempo. Em 1924, Tarsila, Oswald e uma comitiva de artistas modernistas – da qual tomou parte o poeta franco-suíço Blaise Cendrars empreenderam uma viagem de “redescoberta do Brasil”. Eis o marco da fase


artística que ficou conhecida como Pau-Brasil, em que Tarsila lançou mão de cores e temas fortemente tropicais, com o aparecimento recorrente de formas nacionais, especialmente de fauna e flora, na companhia de trilhos, máquinas e outros símbolos da modernidade urbana. No mesmo ano, Oswald publica o Manifesto da Poesia Pau-Brasil, no qual defende uma literatura ingênua, não contaminada por formas cristalizadas de fazer arte e de pensar. Em tom de paródia e festa, o texto é de uma prosa poética envolvente, repleta de aforismos. Trata-se de um libelo da descolonização, da supremacia imediata da cultura nacional frente às criações vindas de outros países. Uma revolução. O paralelo com o pau-brasil é explícito: agora a arte brasileira também passava a ser produto de exportação. Eis um trecho: A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos. Não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há só fardas. Os futuristas e os outros. Uma única luta – a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de exportação. Cenário de criação Nessa época, fim de 1927, começo de 1928, o casal passava as noites no ateliê de Tarsila, que ficava na mansão do pai, na Alameda Barão de Piracicaba, região central de São Paulo. O sono de ambos era vigiado por quadros, muitos quadros. Não só de Tarsila. Havia exemplares assinados por nomes consagrados na época, como Pablo Picasso, Robert Delaunay, Constantin Brancusi, Fernand Léger, André Lhote, Amedeo Modigliani, entre tantos outros. Além da pinacoteca de fazer inveja a muito museu de arte moderna, o cenário era composto por móveis art déco, tapetes persas, lustres que eram verda-

ATELIER Atelier de Tarsila. local de trabalho e reuniões com os amigos



deiras joias de design, louças de Paul Poiret… Um mundo à parte, que mesclava riqueza e bom gosto, requinte e alta cultura. Não é difícil imaginar como seria a rotina do casal. Tarsila e Oswald deviam acordar e fazer juntos o café da manhã. Leriam os jornais diariamente e conversariam muito. Trocariam ideias sobre arte, literatura, mitologia, música, psicanálise… Afinal, tudo o que era cultura, tudo o que era conhecimento lhes interessava e cativava. Naqueles dias que antecederam a criação, ela parecia absorvida por suas ideias. Nos bate-papos com Oswald, estava sempre rabiscando desenhos, esboços. Rascunhando textos. Fazendo garatujas. No tempo livre, Tarsila lia alguns livros, anotava e observava, com especial atenção, as próprias obras. Era como se avaliasse o seu percurso. A Negra, Manacá, A Cuca…

A Cuca 1924 Óleo sobre tela 73 x 100 cm Musée de Grenoble, Grenoble, França




ANJOS 1924 Óleo sobre tela 85,5 x 72,5 cm Coleção Gilberto Chateaubriand MAM



CAPÍTULO.3

ABAPORU



que fazer de novidade? Como ser surpreendente? Como criar uma obra de amor? Todo esse contexto, cheio de ideias emaranhadas e pensamentos provocativos, desembocaria em um original presente de aniversário. Certo dia, estava Tarsila sentada no chão, pensando. Talvez nua – pois fazia muito calor. Ou com alguma roupa colada ao corpo. Provavelmente, como de hábito, usava os cabelos presos. Devia estar com a mão apoiada na cabeça, pernas juntas e pés descalços. Diante dela, havia um grande espelho. Por acaso. O espelho ficava apoiado, de forma inclinada, em uma parede – sobrinha da pintora, Helena do Amaral Galvão Bueno diz se lembrar perfeitamente da casa na Alameda Barão de Piracicaba; segundo ela, junto ao quarto-ateliê de Tarsila havia um corredor e, nele, um grande espelho, assim, posto no chão, apenas encostado na parede. O reflexo, distorcido por conta da posição inclinada do espelho, mexeu com a imaginação da artista. Foi um estalo. Ela sabia perceber a poesia nos detalhes, tinha o faro artístico aguçado de quem não enxerga o óbvio nas coisas, mas vai além. Tarsila viu na cena uma oportunidade de criação. No espelho, a cabeça da artista aparecia bem pequena. O pé, gigante. Seus olhos de pintora se encantaram com aquela visão inusitada, diferente, e por isso mesmo interessante. ABAPORU III 1928 Nanquim sobre papel 26 x 20 cm (passe-partout) Coleção particular Rio de Janeiro, RJ

Tarsila deve ter gastado muito tempo se observando. Horas talvez. O pé imenso… A cabeça minúscula… A boca e os olhos quase sumindo, a mão caída ao lado do pé grande… Que figura diferente! Aquela imagem lhe parecia provocativa, ousada, perfeita, bem-humorada. Ficou gravada em sua retina, grudada em seu pensamento. Tornou-se uma insistente obsessão.


Mãos à obra Se acaso existe, essa imagem veio a ela por acaso. Artista, Tarsila sentia uma missão pulsante: traduzir isso em uma obra, quiçá sua maior obra. Da ideia fixa vem a solução. Mas como usar aquela sugestão em sua pintura? Tarsila pensava em muitos detalhes. E o fundo? E as cores? A inspiração estava pronta, dentro, querendo virar tela. O começo havia, a coçar insistentemente seu cérebro, seus dedos, seus pincéis. Como em A Negra, a artista procurou alguma planta brasileira para compor o cenário. Nesse quadro, Tarsila colocara uma folha de bananeira, que fazia uma excelente composição com a figura principal. Até porque, na época, as negras costumavam cozinhar e servir a comida em folhas de bananeira. Daquela vez, é bem possível que a figura do cacto lhe tenha vindo naturalmente, por se tratar de uma planta do Brasil, recorrente em sua produção e presente em quadros como Morro da Favela, Fazenda com Cerca, Paisagem com Touro (I). Além disso, o cacto fazia parte da vegetação de sua fazenda em Itupeva. E a figura amarela que lembra um sol, será que não se trata da representação de Oswald? É bastante provável que o poeta estivesse com ela no momento em que houve a inspiração. Os círculos concêntricos amarelados seriam, portanto, um olho de seu marido – íris e pupila – observando-a atentamente ali no ateliê, nua. Pronto. Oswald tinha um belo presente de aniversário. ABAPORU

A entrega Onze de janeiro de 1928. Aniversário de Oswald. Tarsila acordou ansiosa para entregar o presente ao marido: um quadro de 85 cm de altura e 73 cm de largura, construído em segredo, feito de amor e arte, muito mais rapidamente do que o habitual – ela, que se autodenominava preguiçosa e demorava tanto para finalizar cada obra.

1928 Óleo sobre tela 85 x 73 cm Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires, Fundación Costantini Buenos Aires, Argentina



Quando recebeu o quadro, o aniversariante, com sua mente prolífera, começou a delirar nos comentários sobre aquela forma estranha. Atropelou Tarsila com um discurso exacerbado, febril, empolgado, verborrágico. Com toda a empáfia intelectual, Oswald dizia que estava ali a melhor obra que ela já tinha feito, definindo-a com frases grandiloquentes. “Este quadro é excepcional”, repetia. “É o homem plantado na terra”. Depois, quis chamar o amigo Raul Bopp, poeta. Que também achou o quadro maravilhoso. Os dois passaram a lançar teorias sobre a figura enigmática. Raul se animava: era preciso criar um novo movimento em torno do quadro. Tarsila, em sua ambivalência silenciosa, apenas observava o entusiasmo dos dois. Testemunhava o nascimento da antropofagia em nossa história cultural. Certamente, com a consciência de que as interpretações do marido e do amigo não eram apenas geniais como serviam para engrandecer ainda mais a sua obra. Raul e Oswald comentavam que a figura tinha alguma ligação com o indígena, parecia mesmo um antropófago. Tarsila então se lembrou do dicionário de tupi-guarani de seu pai, e lá encontrou as palavras “aba” – que quer dizer “homem” – e “poru” – “que come”. Os três concordaram: a ideia ótima era batizar a tela de Abaporu, o antropófago. Assim como a mãe que deixa o filho livre para ganhar o mundo, Tarsila não interferiu na explicação do quadro. Ela era generosa. E não contou a ninguém sobre o real significado, o estalo que teve diante do espelho. O Abaporu começou a seguir seu caminho. MORRO DA FAVELA

Filosofia da composição Tarsila foi uma artista extraordinária e à frente de seu tempo. Rompeu padrões, fez obras emblemáticas e produziu figuras que marcaram a arte brasileira. Abaporu foi um autorretrato extremamente criativo que ficou incógnito por

1924 Óleo sobre tela 64 x 74 cm Coleção particular, Brasil



todas estas décadas. A eternização, em quadro, da figura que ela viu no espelho inclinado, foi um lance de genialidade da artista. Uma solução armada de modo tão misterioso e bem-humorado que nem o próprio Oswald, sempre tão arguto, conseguiu perceber que era ela, sua amada, a retratada na tela. Além da teoria da imagem refletida no espelho, outros fatores levam a crer que o quadro é mesmo um autorretrato da artista. A cabeça do Abaporu lembra muito o Autorretrato, de 1924. Basta um olhar mais atento para perceber que a bilateralidade deste último é visível no quadro-presente. As sobrancelhas arredondadas e perfeitas e o cabelo colado e partido ao meio são semelhantes nas duas obras. A diferença é que a cabeça do Abaporu está de lado. Fica claro que se trata de uma cabeça feminina, muito similar a autorretratos e fotos da artista. Outra semelhança entre a pintura e a pintora está no pé. Assim como o Abaporu, familiares acreditam que Tarsila tinha o segundo pododáctilo maior do que o primeiro, o hálux. O detalhe anatômico teria sido percebido, na infância, por uma das sobrinhas-netas da pintora, Marília Estanislau do Amaral Powers – ela própria dotada dessa característica, o que, por ser hereditária, reforça a tese. Irmão de Tarsila, Milton Estanislau do Amaral era outro da família que tinha os dedos dos pés assim. Ávida leitora de grandes mestres da literatura, Tarsila andava, na época, bastante influenciada por um texto de Victor Hugo que dizia: “Deveria ser feito, em minha opinião, um livro bem novo sobre o emprego do grotesco nas artes”. O escritor francês defendeu a união harmoniosa de opostos: o feio ao lado do belo, o disforme com o gracioso, o grotesco com o sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz, o corpo com a alma, o animal com o espírito. Isso, segundo ele, faria com que a arte fosse elevada, fugindo do lugar-comum, seu inimigo. Victor Hugo sugere a rejeição do tradicionalismo e a adoção da inovação em todos os campos da arte.


Teorias de Freud eram fortemente discutidas pelos modernistas. Tarsila, por certo, se influenciou pelo pai da psicanálise. Em 1919, Freud publicou O Estranho, em que, entre outras coisas, relaciona o estranho com algo que assusta, que provoca medo. Ali, ele explica que o estranho seria “aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar”. Para Freud, se é verdade que sentimentos reprimidos se transformam em ansiedade, então o que causa medo deve ser algo que foi antes reprimido e depois retorna trazendo a sensação de estranheza. Ou seja, o estranho não é algo novo. É aquilo que já foi conhecido, e que desaparece somente por conta do processo de repressão. E ele admite que essa questão mereceria um estudo do ponto de vista da estética. O reflexo no espelho inclinado foi, portanto, o ponto de partida da artista em busca da investigação estética do belo – a sua própria figura – em contrapartida com o estranho – a imagem deformada, que acabou transformada em quadro. Conectando-nos com o texto de Victor Hugo sobre o grotesco, pode-se dizer que Tarsila, no quadro Abaporu, discutiu a união harmoniosa dos opostos, do grotesco como o reverso do sublime, mas com o objetivo de alcançar uma elevação da arte e fugir do comum, do tradicional. Mais que possível, uma leitura provável. Outra evidência: em sua primeira exposição, em 1928, em Paris, o quadro apareceu sob o título Nu. Claro que o nome indígena Abaporu não seria compreendido pelo público local. Mas qual o motivo para nomear a tela como Nu? Fazia muito calor em janeiro de 1928, e é bem provável que a pintora estivesse nua ou com pouquíssima roupa no momento de sua inspiração. No ano seguinte, quando pintou Antropofagia, Tarsila se inspirou nas obras ABAPORU 1928 Esboços e desenhos (nanquim sobre papel)

A Negra e Abaporu, praticamente sintetizando-as em um só quadro. Entretanto, o Abaporu aparece muito diferente do original – a figura está invertida, o pé com apenas quatro dedos, a cabeça sem cabelo, olhos ou nariz, e a mão posicionada de outra maneira.




Qual será o motivo dessa discrepância? Possivelmente, depois que Oswald escreveu o Manifesto Antropófago, Tarsila assumiu que aquela figura deveria ser mesmo a de um antropófago, um deglutidor de culturas. Conformada ou convencida, ciente de que o peso da obra aumentava com essa interpretação, ela refez a figura de acordo com o pensamento de Oswald. Afinal, de certa forma, a leitura feita pelo marido coincidia com o julgamento que ela própria fazia dela e de seus amigos. Afinal, o que a trupe modernista proclamava como necessário, senão deglutir culturas a partir do olhar brasileiro? Influências O Abaporu sintetiza um percurso estético que vinha sendo percorrido pela artista. Em sua idealização, houve a influência de outras obras de Tarsila, que prenunciavam a fase antropofágica, a recriação da imagem num processo artístico quase indomável. Um exemplo é A Negra, pintado em 1923. Esse quadro teria sido inspirado numa imagem contida no álbum de viagens de Tarsila. Pelo que observamos, a figura da negra – com a mão naquela posição e os olhos puxados para cima, grande boca e nariz achatado, sentada na escada da casa do pai de Tarsila – seria baseada na fotografia de uma pessoa que trabalhava para a família. No ano seguinte, a pintora criou A Cuca. “Estou fazendo uns quadros bem

ANTROPOFAGIA

brasileiros, que têm sido muito apreciados. Agora fiz um que se intitula A Cuca.

1929 Óleo sobre tela 126 x 142 cm Fundação José e Paulina Nemirosky São Paulo, SP

É um bicho esquisito, no mato com um sapo, um tatu e outro bicho inventado”, escreveu ela, em carta à filha Dulce. Nessa obra, observa-se a copa da árvore com as folhas em forma de coração – um detalhe singelo, mas que combina com o temperamento de Tarsila.



Detalhes do quadro Tarsila sempre fez questão de trazer para suas obras elementos de brasilidade. Assim, começou pintando Abaporu com o fundo azul do nosso céu, da nossa bandeira. A montanha apresenta o verde das matas. Elemento marcante da flora nacional, o cacto suscita outras interpretações. A planta estava presente em sua fazenda e, com seu formato fálico, é figura recorrente na obra de Tarsila desde que ela começou a se relacionar com Oswald – o que denota a intensidade erótica do amor vivido por eles. Um símbolo que, obviamente, não poderia deixar de aparecer em um quadro que serviria como presente para o marido. A figura do sol – um sol com forma parecida à de uma laranja, na visão de alguns historiadores da arte – pode muito bem ser a representação do olhar de Oswald. E aqui há outro ponto a ser considerado: se fosse realmente um sol, a sombra do Abaporu estaria certa, mas a do cacto invertida. Os tons claros e cítricos, amarelados, alaranjados, desse sol, bem podem ser uma livre releitura do verde dos olhos do poeta. Segundo Marília Andrade, sua filha, os olhos de Oswald eram verde-claros. Nas telas em que Tarsila retrata o marido, não é possível definir a tonalidade exata – mas eles, certamente, são claros. A imaginação vai além. Permite-nos então, dados esses elementos históricos, recriar a cena vivida por Tarsila para se inspirar. O marido estaria atrás dela, observando-a fixamente, de tal forma que o olhar dele a impressionou, e merecia ser eternizado no quadro. Pelo olhar de Oswald, Tarsila se via diferente. O olhar dele a estimulava a criar, a ousar, e o Abaporu talvez tenha sido a maior ousadia da artista.




SEGUNDA CLASSE 1933 Óleo sobre tela 110 x 151 cm Coleção Particular São Paulo, SP

OPERÁRIOS 1933 Óleo sobre tela 150 x 205 cm Acervo artístico-cultural dos palácios do Governo do Estado de São Paulo



CAPÍTULO.4

SILÊNCIO E ANTROPOFAGIA



Autorretratos Ao longo de sua carreira, Tarsila se retratou várias vezes. Em todos aparecia deslumbrante – o que mostra que tinha grande autoestima, apesar de ser pessoalmente muito introvertida. Somente em A Caipirinha ela aparece diferente, mas não menos bonita. Nesse quadro, é possível perceber a influência da técnica cubista, que Tarsila começava a aprender em Paris. Nas outras telas, sempre se retratou com aparência primorosa, sedutora e cheia de magnetismo pessoal. Não é para menos. Sua beleza marcou época. Ela sempre foi alvo de comentários – positivos – dos amigos e conhecidos. CAIPIRINHA (DETALHE) 1923 Óleo sobre tela 60 x 81 cm Coleção Salim Taufic Schahin, São Paulo, SP

Além dos autorretratos assumidos, há a história lançada por Mário de Andrade. Segundo o escritor, Tarsila teria pintado seu próprio rosto na tela Sagrado Coração de Jesus (I). É mesmo impressionante a semelhança – exceto, obviamente, a barba – entre essa figura e a do quadro Autorretrato, de 1924. Em Abaporu, entretanto, a abordagem foi diferente e única. Pela primeira vez, Tarsila se expunha de maneira singular e surpreendente. A artista conseguiu materializar, à sua maneira, uma versão genuinamente brasileira de todos os modos vanguardistas de retratar pessoas. Tal e qual um antropófago, ela digeriu de forma tão genial quanto seus mestres, o que havia visto – e aí vale lembrar os retratos das mulheres de Picasso, com aquelas formas tortuosas, oblíquas, aqueles corpos retorcidos, bizarros. Depois de Abaporu, Tarsila jamais pintou outro autorretrato.

AUTORRETRATO III 1924 Grafite e tinta ferrogálica sobre papel 17,8 x 14,5 cm Coleção Fábio Razuk São Paulo, SP



O LAGO 1928 Óleo sobre tela 75,7 x 93 cm Coleção Hecilda e Sérgio Fadel Rio de Janeiro, RJ


Tarsila cultivava postura reservada, e não gostava muito de explicar suas criações. Isso provavelmente responda por que ela se calou ali, sem revelar para o marido e para os amigos modernistas que Abaporu era, na verdade, um autorretrato. Por outro lado, o silêncio da artista permitiu que os ânimos de uma geração fossem mais uma vez abastecidos por uma provocação artística. Inteligente como era, obviamente percebeu que a leitura feita por seu marido tornava a obra ainda mais interessante. Depois da Semana de 22, do Manifesto da Poesia Pau-Brasil era chegada a vez de mais um documento ser publicado por Oswald para abalar o status quo literário: o Manifesto Antropófago (ou Movimento Antropofágico). Lido pela primeira vez na casa de Mário de Andrade, o texto foi todo redigido em prosa poética e tinha um teor mais político do que o da Poesia Pau-

FOTO Tarsila em Paris? CONFIRMAR FOTO!

-Brasil. Oswald clamava pelo uso de uma “língua literária” “não-catequizada”: Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi, or not tupi that is the question. (genial alusão ao “to be or not to be”, de Shakespeare).

O manifesto saiu na publicação criada pelo grupo, a Revista de Antropofagia. Ela circulou de maio de 1928 a fevereiro de 1929. Em seguida, passou a ser veiculada pelo jornal Diário de São Paulo. Entretanto, a irreverência sempre presente e os ataques à Igreja Católica acabaram por irritar os assinantes, que protestaram devolvendo os jornais. Estava decretado o fim da revista. Com a publicação do manifesto e a fundação do novo movimento, o quadro ganhou muita fama e significado no mundo das artes. Ficava ainda mais difícil para Tarsila contradizer a explicação de Oswald sobre Abaporu. Mas será que

CARTÃO POSTAL 1929 Óleo sobre tela 127,5 x 142,5 cm Coleção Particular Rio de Janeiro, RJ



ela gostaria mesmo de contradizer? Ou será até mesmo que contou isso para Oswald, mas ambos preferiram não falar nada porque, enfim, a festa do movimento estava a todo vapor? A agitação era grande entre os modernistas. Em sua fase antropofágica, Tarsila pintou obras monumentais, como O Lago, Urutu, A Lua – obra preferida por Oswald, Cartão-Postal, Sol Poente e Antropofagia. Todas as afirmações relativas a um ser que devorava outras culturas, que iria deglutir Shakespeare e recitar o famoso tupi or not tupi, do Manifesto Antropófago, se apoiavam na interpretação inicial de Oswald e Raul, naquele 11 de janeiro de 1928. A leitura que Oswald fizera da figura era de uma espécie de bicho canibal, que nada tinha a ver com a imagem delicada de Tarsila. Pode-se pensar que ela não quis mudar a teoria do marido por se tratar de um presente: afinal, se o quadro agora lhe pertencia, tinha ele o direito de interpretá-lo a seu bel-prazer. Mas o mais correto é entender que como toda obra de arte complexa, o Abaporu permite uma observação em várias camadas. Na essência, é o autorretrato de Tarsila. Mas o entorno, o contexto cultural ao qual pertence, possibilita uma leitura ampla e abrangente como a que foi feita por Oswald e outros modernistas. Anos mais tarde, em rara explicação concedida pela artista sobre sua obra-prima, alegou que Abaporu tinha a ver com imagens de seu subconsciente, figuras que evocavam histórias contadas a ela pelas negras filhas de escravos que trabalhavam na casa de seus pais, mesmo depois da abolição. Essas negras contavam às crianças histórias de medo e assombrações. De acordo com Tarsila, tais imagens teriam ficado gravadas em sua memória e, anos depois, acabou passando-as para as telas por simples inspiração. “A casa é assombrada, a voz do alto que gritava do forro do quarto, aberto no canto”, contou a artista. “‘Eu caio’, e deixava cair um pé (que me parecia imenso); ‘eu caio’, caía outro pé, e depois a mão, outra mão e o corpo inteiro, para terror das crianças apavoradas”.


Um novo olhar Recuperar a motivação que pode ter orientado a criação do quadro é importante porque permite um novo olhar sobre uma obra que revolucionou a arte brasileira e teve influências no exterior. É relevante e produtivo imaginar qual terá sido a inspiração de Tarsila para criar um presente para o marido – e como este resultou em algo tão inovador, capaz de se destacar mesmo num momento de ebulição da arte pictórica em todo o mundo. Abaporu foi um quadro poderoso, afinal, que balançou os padrões estéticos do Brasil na época, a ponto de ter sido por longo tempo parcialmente incompreendido. Apesar de intensamente criticada na época, a obra ganhou a admiração de intelectuais brasileiros que tinham espírito de vanguarda, como Mário de Andrade e Sérgio Milliet. Em Paris, entretanto, a crítica se desfez em elogios – a artista, que havia se consagrado em 1926 na capital francesa, retornava para lá em 1928 com o novo quadro, em exposição na mesma Galerie Percier. É possível mudar a história de uma das obras de arte mais importantes do Brasil? Seguramente não. O Abaporu será eternamente o “homem que come”, o antropófago, a figura que, assim como a própria Tarsila, deglutiu a cultura europeia, aproveitou suas virtudes e a usou para mostrar a cultura brasileira, valorizando nosso país – como sempre quiseram os modernistas. A tela permanecerá como a síntese do movimento modernista brasileiro. E muitos continuarão interpretando o pé e a mão grandes como a valorização do trabalho braçal em detrimento do intelectual, representado pela cabeça diminuta – numa crítica da pintora ao pensamento da época. Tarsila, a brasileira Com suas origens indígenas, o Abaporu se manteve com o pé fincado em nossa terra. Enraizado no solo nacional, conseguiu mudar a arte acadêmica vigente até o começo dos anos 1920, transformá-la e renová-la. O quadro absorveu a revolu-



ção das vanguardas artísticas originadas na Europa, a febre que tomava conta de Paris desde o começo do século. Abaporu valorizou nossa cultura. Com tudo isso, prevaleceu a visão de Oswald sobre a obra. O lugar em que ele colocou o quadro na história da arte brasileira jamais será contestado. Mas o modo de contar a história do quadro mais famoso do Brasil poderá ser revisto a partir de agora – quando há informações novas, que permitem observar camadas da obra antes inexploradas. A maneira como se enxerga a obra modifica-se com o tempo. Em diversas ocasiões, adultos e crianças hesitam em responder se a figura que aparece no quadro é a de um homem ou de uma mulher. Agora será mais natural as pessoas verem ali corpo, membros e rosto femininos. Nessa figura híbrida, os observadores reconhecerão tanto um bicho antropófago como uma singela mulher apaixonada, escondida e distorcida por um espelho. Há uma intrínseca e indissolúvel relação entre criatura e criadora. Tarsila sempre quis ser a pintora do Brasil. Mais do que isso, na arte ela era o símbolo do país. “Sinto-me cada vez mais brasileira: quero ser a pintora da minha terra… Quero, na arte, ser a caipirinha de São Bernardo”, escreveu ela, à família, logo que chegou a Paris, em 1923. Ela sempre valorizou, em suas telas, nossas paisagens urbanas e rurais, as cores caipiras, a nossa fauna e flora, as lendas e o folclore nacional. “Encontrei em Minas as cores que adorava em criança. Ensinaram-me depois que eram feias e caipiras… Mas depois vinguei-me da opressão, passando-as para A LUA 1928 Óleo sobre tela 110 x 110 cm Coleção Particular São Paulo, SP

as minhas telas: azul puríssimo, rosa, violáceo, amarelo vivo, verde cantante, pintura limpa, sobretudo, sem medo de cânones convencionais”, declarou Tarsila. Assim, Abaporu é um símbolo da cultura do nosso país, e Tarsila uma grande representante da arte brasileira. Mário de Andrade a chamou de sinônimo de brasilidade – logo ele, o intelectual que inventou o conceito.



CAPÍTULO.5

A SAGA DE UM QUADRO



m suas pinturas e andanças, Tarsila deglutiu a cultura europeia. Ela estudou o cubismo e usava a nova técnica em seus quadros. Nesse sentido foi, sim, uma antropófaga, utilizando tudo o que viu e aprendeu na Europa para se tornar uma artista mais pujante. Para muitos, aliás, ela foi a mais antropófaga entre os modernistas brasileiros: em sua obra sempre é possível observar o nosso país, porém com uma fisionomia nova, uma identidade diferente. Crianças Outro aspecto importante da obra da pintora é o forte apelo no imaginário infantil. Quando incitadas a interpretar o quadro, as crianças não enxergam um “homem que come”. Dizem que se trata de uma figura estranha, desengonçada e até engraçada – mas sem julgá-la má ou ruim. Tão forte é o Abaporu, tão presente nas publicações brasileiras, que os pequenos o veem como alguém familiar, quase um amigo. Muitas crianças são apresentadas ao mundo da arte pelo Abaporu. É grande a identidade entre elas e a personagem, ainda que a compreensão que têm da obra seja obviamente diferente da dos adultos. No universo infantil, por meio dos desenhos animados na televisão e no cinema, ou nas revistas em quadrinhos, figuras distorcidas como o Abaporu ILUSTRAÇÃO PARA A PARTITURA SUITE INFANTIL, CAPA

não são necessariamente personagens do mal. Podem ser divertidas e caris-

c. 1939 Grafite, guache e nanquim sobre cartão 34 x 26,5 cm Coleção particular, Rio de Janeiro, RJ

Em diversas releituras que observamos, é comum as crianças projetarem

máticas. a própria personalidade no Abaporu. Meninas o enfeitam com colares, lenços, sapatos e bolsas. Meninos o vestem com tênis, bonés e calções. Os mais radicais não pestanejam: colocam piercings e tatuagens na figura. Enfim, todos mostram preferências e gostos por meio da personagem central do quadro.


A brasilidade se apresenta na obra como um traço forte, e o sentimento de que ela tem intensa ligação com nosso país é presente entre as crianças. Seu significado mudou com o passar do tempo, e hoje é uma figura mais compreendida, que não assusta tanto. Depois da nova possibilidade de interpretação, a compreensão que se tem do quadro será modificada, principalmente entre crianças e pesquisadores do trabalho de Tarsila. Por trás da figura monstruosa, será possível enxergar a ternura de uma mulher apaixonada, a delicadeza do gesto de alguém que não contou a verdade sobre a obra para não decepcionar seu empolgado marido. Se o Abaporu foi um presente para Oswald, por que na separação do casal o quadro ficou com Tarsila, e não com ele? Podemos conjecturar que, por se tratar de uma pintura especial para ela, tão importante em sua carreira, quis continuar com a tela. Assim, na divisão dos bens, no início de 1930, Oswald acabou levando O Enigma de Um Dia, pintado em 1914 por Giorgio de Chirico – obra avaliada como bem mais cara, na época. O quadro originalmente pertencia à coleção pessoal de Tarsila, mas ficou com Oswald depois da partilha como compensação pelo Abaporu. Tarsila desejava ter o Abaporu. Era um presente muito especial que havia feito ao marido, a quem amava demais, em um momento em que a relação de ambos era maravilhosa. Seu autorretrato secreto. Justo, portanto, que ficasse com ela após a separação. No centro dessa dissolução, uma jovem mulher. Um furacão chamado Pagu. A nota dissonante No começo de 1929, Patrícia Redher Galvão foi apresentada ao casal e a todo o grupo antropofágico. Na flor dos seus 18 anos, recém-saída do curso normal, ela era linda, estonteante, inteligente. Com cabelos castanhos e olhos verdes,

PAGU Patrícia Redher Galvão


A brasilidade se apresenta na obra como um traço forte, e o sentimento de que ela tem intensa ligação com nosso país é presente entre as crianças. Seu significado mudou com o passar do tempo, e hoje é uma figura mais compreendida, que não assusta tanto. Depois da nova possibilidade de interpretação, a compreensão que se tem do quadro será modificada, principalmente entre crianças e pesquisadores do trabalho de Tarsila. Por trás da figura monstruosa, será possível enxergar a ternura de uma mulher apaixonada, a delicadeza do gesto de alguém que não contou a verdade sobre a obra para não decepcionar seu empolgado marido. Se o Abaporu foi um presente para Oswald, por que na separação do casal o quadro ficou com Tarsila, e não com ele? Podemos conjecturar que, por se tratar de uma pintura especial para ela, tão importante em sua carreira, quis continuar com a tela. Assim, na divisão dos bens, no início de 1930, Oswald acabou levando O Enigma de Um Dia, pintado em 1914 por Giorgio de Chirico – obra avaliada como bem mais cara, na época. O quadro originalmente pertencia à coleção pessoal de Tarsila, mas ficou com Oswald depois da partilha como compensação pelo Abaporu. Tarsila desejava ter o Abaporu. Era um presente muito especial que havia feito ao marido, a quem amava demais, em um momento em que a relação de ambos era maravilhosa. Seu autorretrato secreto. Justo, portanto, que ficasse com ela após a separação. No centro dessa dissolução, uma jovem mulher. Um furacão chamado Pagu. A nota dissonante No começo de 1929, Patrícia Redher Galvão foi apresentada ao casal e a todo o grupo antropofágico. Na flor dos seus 18 anos, recém-saída do curso normal, ela era linda, estonteante, inteligente. Com cabelos castanhos e olhos verdes,



impressionou a todos. Tarsila e Oswald praticamente a adotaram – de certo, não imaginavam que seria a nota dissonante a quebrar a harmonia do casal. Apelidada de Pagu, era uma menina pobre a quem Tarsila emprestava vestidos, sapatos e até joias para que os acompanhasse aos eventos. A jovem admirava a consagrada artista. “Com Tarsila fico romântica, dou por ela a última gota do meu sangue. Como artista, só admiro a superioridade dela”, chegou a declarar. “Pagu é a criatura mais bonita do mundo – depois de Tarsila”, disse a jovem. Mas, ao mesmo tempo, um triângulo amoroso se desenhava, digno de uma novela de TV. Logo no começo de 1929, Pagu e o poeta começaram a viver um romance às escondidas. No fim do ano, ela estava grávida. Como resolver a situação sem escandalizar a sociedade? Apaixonado por Pagu, um amigo da família de Tarsila, o pintor Waldemar Belisário, candidatou-se para assumir a gravidez. Tarsila e Oswald arranjaram o casamento. Depois da união sacramentada, partiram para a lua de mel. Mas, segundo a versão tradicionalmente veiculada, Oswald acabou interceptando os recém-casados na Serra do Mar, logo na saída da viagem, e foi ele próprio desfrutar das núpcias com a noiva, na Bahia. A volta da viagem resultou no basta de Tarsila. Inteirada da situação, não quis mais ficar com Oswald. Ele tentou de todas as maneiras uma reconciliação, até apelando para a intercessão da amiga Olívia Guedes Penteado, sem sucesso. Tarsila nem quis recebê-lo em casa. Colocou os pertences do lado de fora, para ele ir buscá-los. “Oswald errou, Tarsila castigou”, escreveria ele, mais tarde. A versão de Pagu foi publicada no livro Paixão Pagu – Autobiografia Precoce, O PESCADOR, 1925 Óleo sobre tela 66 x 75 cm Museu Hermitage São Petesburgo, Rússia

escrito por seu filho, Geraldo Galvão Ferraz: O meu casamento com Waldemar Belisário foi a forma planejada para que eu, de menor idade, pudesse sair de casa sem complicações. Falando um dia com Oswald e Tarsila, falei-lhes sobre essa necessidade e eles prometeram auxiliar-me. Foi quando


apareceu a sugestão Waldemar. Oswald informou-me que ele se prestaria a qualquer combinação se conseguisse com o Júlio Prestes um prêmio, ou custeio de viagem. Garantiu-me também que o Júlio se interessava por mim. E que faria o que lhe pedissem. Fui falar com o Júlio. Não sei como me prestei a isso. [...] Estabeleceu-se que o nosso casamento se realizaria dali a um mês. Devíamos nos separar imediatamente após o ato. Eu seguiria para o norte e o Waldemar para a Europa, depois de prepararmos a anulação. Tudo foi realizado assim. Logo que a anulação se fez, oito dias depois do meu casamento, segui para a Bahia, onde Anísio Teixeira me esperava para conseguir-me emprego. Um mês depois, quando tudo estava organizado para que eu permanecesse na Bahia, recebo um telegrama de Oswald chamando-me com urgência para evitar complicações na sentença de anulação de casamento. Havia também passagem comprada para o meu regresso. Eu não percebi que havia interesse maior na minha volta. E voltei. Oswald esperava-me no Rio. Tudo tinha sido pretexto para que eu voltasse para ele. Havia deixado Tarsila. Queria viver comigo. Ou seja: Pagu e Oswald teriam mentido para Tarsila, pois sabiam que esperavam um filho, e esconderam o fato – algo que o depoimento não admite. Soa estranha a afirmação de Pagu de que ela não percebera que havia interesse maior na sua volta da Bahia. Afinal, ela estava grávida de um filho de Oswald! E, apesar de Pagu dizer que o poeta havia deixado Tarsila e queria viver com ela, sabe-se que ele tentou reconciliar-se com Tarsila na volta da viagem. Pela versão de Pagu, Oswald não foi com ela até a Bahia. Primeiramente se separou de Tarsila e somente então partiu para encontrá-la, já no Rio de Janeiro. Em cartaz Fato é que, rompimento consolidado do casal, o Abaporu permaneceu no mesmo local onde fora pintado, no ateliê da artista. De lá, havia saído apenas para exposições – em 1928, em Paris; em 1929, nas primeiras mostras individuais da pintora no Brasil, uma em São Paulo, outra no Rio. Da passagem pelas terras cariocas, um parêntese que mostra como a obra não era bem compreendida pelo público. Alunos da Escola de Belas Artes chegaram a fazer um protesto, acenando com a possibilidade de danificar os quadros da pintora. Adeptos de uma linha acadêmica, eles ficaram chocados com as formas do Abaporu: aquilo não lhes parecia arte. A própria Tarsila fez questão de recebê-los, à porta da exposição, e levou os manifestantes para conferir os quadros, arrefecendo seus ânimos.


Abaporu voltaria a ser visto no Rio em 1933, em uma retrospectiva da pintora. Em 1950, a convite de Sérgio Milliet, então diretor da instituição, o quadro foi exibido no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo. Dois anos mais tarde, esteve novamente no MAM em exposição coletiva em homenagem à Semana de 22. O Abaporu participaria ainda de duas bieEDUARDO CONSTANTINI Ele reuniu uma das maiores coleções de arte latinoamericana, fundando, em 1997, o Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires (MALBA)

nais: a VII de São Paulo, em 1963, e a XXXII de Veneza, em 1964 – ambas em sala especial. Cinco anos mais tarde, a mostra Tarsila: 50 Anos de Pintura, sob curadoria da historiadora Aracy Amaral, contou com o Abaporu, em turnê que passou pelo MAM do Rio de Janeiro e pelo Museu de Arte Contemporânea (MAC) da Universidade de São Paulo. Em 1972, o quadro abrilhantaria a exposição coletiva em celebração aos 50 anos da Semana de Arte Moderna. A esperteza de Bardi Nos anos 1960, o Abaporu foi vendido por Tarsila para o colecionador Pietro Maria Bardi, fundador do Museu de Arte de São Paulo. A pintora nutria a expectativa de que o quadro passasse a integrar permanentemente o acervo de um museu, sem sair do Brasil. Helena do Amaral, sobrinha da pintora, confirma essa vontade. Segundo ela, Bardi teria prometido à artista, para convencê-la da venda, que “mais cedo ou mais tarde ele iria ficar em um museu”. Com base nisso, o acordo foi firmado por um valor muito abaixo do mercado. Segundo o colecionador Raul Forbes, apenas um mês depois a obra passou para as mãos do também colecionador Érico Stickel, por um preço bem mais alto do que o pago por Bardi a Tarsila. A pintora ficou sabendo e, claro, sentiu-se traída, deduzindo a esperteza de Bardi. A revelação foi feita a ela pelo pintor Antonio Carlos Rodrigues Tuneu,


amigo íntimo da família. “Tarsila, você vendeu o Abaporu para o Érico Stickel?”, comentou ele, em visita à pintora. Perplexa, ela passou mal e retirou-se para seu quarto, em silêncio. Sentiu-se apunhalada. Antes do quadro, Bardi havia adquirido joias e objetos pessoais da artista. Ele a iludia, dizendo que haveria de criar o “Museu Tarsila”. O quadro Antropofagia foi comprado por ele – que depois o revenderia ao colecionador José Nemirovsky. Em 1984, o Abaporu mudaria novamente de dono. Stickel vendeu a obra para Forbes por US$ 250 mil, alcançando, na ocasião, um recorde de preço para um quadro brasileiro. Onze anos mais tarde, precisando de dinheiro, o colecionador colocou a obra em leilão na famosa casa Christie’s, em Nova York. O Abaporu foi arrematado pelo empresário argentino Eduardo Constantini por US$ 1,35 milhão – com a comissão, o valor chegava a US$ 1,5 milhão, estabelecendo um novo recorde de preço, o mais alto pago por uma obra brasileira. Na época, Constantini já detinha a maior coleção de arte latino-americana do mundo. Ele pagou mais caro somente por uma obra da mexicana Frida Khalo, o Autorretrato com Macaco e Papagaio. O empresário criaria, mais tarde, o Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires (Malba), para o qual doaria sua coleção. O Abaporu e o quadro de Frida, embora fiquem expostos no Malba, ainda pertencem à sua pinacoteca particular. Essa trajetória do quadro, sem dúvida, conferiu caráter internacional à arte brasileira e elevou os preços das telas de Tarsila e de outros pintores nacionais. Antes do leilão, quando o Abaporu estava a caminho de Nova York, houve boatos de que a tela seria tombada pelos órgãos de proteção ao patrimônio histórico e cultural – o que amedrontou possíveis compradores brasileiros, e a obra acabou arrematada pelo lance mínimo estabelecido por Forbes. Símbolo de nossa pátria e considerado nossa obra de arte mais valiosa, o


quadro mobiliza até a presidente Dilma Roussef. Na exposição Mulheres, Pintoras e Brasileiras, realizada no Palácio do Planalto, em 2011, ficou claro que ela está empenhada em trazer o Abaporu de volta. Em 2011, Constantini renovou o seguro da obra. O preço total passou a ser, então, US$ 40 milhões. Novas vidas Depois do rompimento com Oswald, Tarsila namorou o médico comunista Osório César, e com ele foi para Moscou fazer uma exposição, em 1931. Como seu pai havia perdido muitos bens e quase ido à falência com a crise de 1929, ela teve de se desfazer de alguns quadros de sua coleção particular para bancar a viagem. Na Rússia, Tarsila vendeu para o governo daquele país a sua obra O Pescador – o quadro integra o acervo do Museu Hermitage, de São Petersburgo. Guiada por um velho amigo de Paris, Serge Romoff, ela se encantou com o país. “Agora é que estou vendo o que é a Rússia. Quanta fantasia sobre ela. Aqui as mães todas criam seus filhos… As crianças são bem cuidadas e alimentadas… A mocidade está alegre, trabalha e se diverte… Há uma grande campanha contra a prostituição… Aqui os rapazes não têm aquele ar malicioso que a gente vê nos outros países. É que todos estão ocupados pelo trabalho”, escreveu ela, em carta à família. “Muita gente pensa que a Rússia é comunista. É engano. Aqui se prepara a nova geração para o comunismo. Por enquanto é a ditadura do proletariado…” Na volta ao Brasil, Tarsila frequentou algumas reuniões do Partido Comunista. Acabou sendo presa por um mês – e, traumatizada, nunca mais se envolveu com política. A relação com Osório não durou muito. Mas sua influência ideológica está presente no célebre quadro Operários, de 1933. Trata-se da primeira tela de teor social na pintura brasileira.


TARSILA 1925 Retrato de Tarsila


Noite quente. Sentada no chão, a pintora, com os cabelos presos, quem sabe nua, se prepara para elaborar o presente de seu amor. Quando se vira para o espelho semi-inclinado, apoiado na parede, depara-se com uma forma instigante. Apoia a mão na cabeça e observa a imagem de si mesma ali refletida. Descobre na imagem estranha, meio deformada, o presente que procurava para impressionar o marido, ele próprio tão criativo e culto, e por isso mesmo difícil de impressionar. O que vê é uma figura diferente, transformada pela magia do espelho, uma outra mulher, que nem ela imaginara até então. Por estar em primeiro plano, o pé se agiganta, enquanto a cabeça, distante, se faz pequena, mínima. Quase só se veem os olhos e o cabelo. A figura marcante será depois emoldurada por plantas, símbolos do Brasil, do país da pintora, que ela tanto ama. Ganha vida então um autorretrato enigmático que teria um nome igualmente desafiador: Abaporu.



EPÍLOGO


ideia de que o quadro Abaporu seria um autorretrato de Tarsila do Amaral já havia me sido sugerida, mas a constatação de que poderia ser verdadeira surgiu como num estalo. A partir daí, cada detalhe lembrado contribuía para validar a hipótese de forma tão nítida e clara que chegava a me emocionar – e emocionar as pessoas envolvidas nesse processo. Consciente da grandeza da possibilidade, resolvi partilhar a visão em livro, como forma de colaborar para uma compreensão mais ampla da obra, um dos grandes patrimônios do Brasil, e sugerir outro ângulo pelo qual se observe a personalidade dessa pintora, tão plena de sentimentos e emoções. A verdade refletida Tudo começou há alguns anos, quando a artista plástica Cris Gimenes, amiga da vida toda, afirmou que o quadro Abaporu era um autorretrato de Tarsila do Amaral. A hipótese, que ela viria reforçar em outras ocasiões, ficou em minha mente, embora eu não conseguisse achar relação concreta que me permitisse validar a afirmação. Diria que ela permaneceu hibernando em meio a tantos outros fatos e revelações sobre a grande pintora com os quais tive e tenho contato a cada dia. Mas o assunto ganharia vida novamente, e dessa vez com força total. Em junho de 2011, a escritora Patrícia Secco e eu estávamos trabalhando num projeto de edição de um livro de arte que reuniria releituras do Abaporu, feitas por crianças de todo o Brasil. Aventamos a possibilidade de incluir na proposta releituras do quadro elaboradas por pessoas famosas e personalidades importantes. Entre essas pessoas, sugeri o nome de Cris Gimenes, justamente pelo fato de ela ter feito a peculiar interpretação do quadro. A ideia, nova para Patrícia, deixou-a bastante impressionada e imediatamente convencida. Ela lançou a possibilidade de que o quadro fosse a reprodução de uma imagem refletida num espelho, um espelho que estivesse levemente


inclinado, criando a “deformação” que caracteriza a obra. Da teoria à prática: fomos diretamente para a casa de Patrícia. Eu, que estava com uma roupa bege colada ao corpo e um rabo de cavalo, sentei-me diante de um espelho, após deixá-lo levemente inclinado. A seguir, coloquei o pé esquerdo descalço perto do espelho, a mão esquerda do mesmo modo próxima a ele, e a direita na cabeça. Ou seja, procurei imitar a provável pose que a artista teria assumido quando pensava no quadro que faria, naquele longínquo dia de 1928. A mágica se completou: a imagem que vi no espelho lembrava de maneira impressionante a figura do Abaporu, como se de repente tivéssemos nos deslocado no tempo e no espaço e, por um encantamento, encontrássemos a resposta de um enigma, uma chave nova para compreender uma obra por si tão cheia de mistério. Ficamos ali as duas, emudecidas diante daquela revelação, admirando a semelhança que se confirmou quando a comparamos com a tela. Sim, uma revelação. Fantástica até. Que fez com que nos perguntássemos: como nunca havíamos pensado nisso antes?! Estávamos diante de uma inédita explicação para um dos mais famosos quadros brasileiros. Confesso que fiquei assustada diante da nossa descoberta. Mas ainda teria um enorme percurso a percorrer a fim de encontrar as razões para Tarsila nunca ter revelado essa história, entender como isso passara despercebido durante 85 anos, e ainda como a artista, a partir de uma imagem refletida no espelho, conseguira fazer uma figura tão emblemática. O caminho era longo BATIZADO DE MACUNAÍMA 1956 (fiel à Antropogafia, uma artista coerente) Óleo sobre tela, 132,50 x 250 cm Coleção Particular, São Paulo, SP





POST-Fテ,IO

O ABAPORU EM NOVA CHAVE


quadro “Abaporu”, de Tarsila do Amaral, já foi objeto de muitas interpretações, mas a que se tornou hegemônica hoje em dia é a que o vê como representação alegórica do movimento antropofágico. Mais ainda, o personagem retratado no quadro não seria a mera ilustração a posteriori de um movimento já existente, mas estaria na origem mesma desse movimento. Foi o quadro que criou a antropofagia modernista, e não esta que se apropriou do quadro. Segundo o relato tradicional, com efeito, quando viu o quadro pela primeira vez Oswald de Andrade ficou impressionadíssimo, e comentou com o poeta Raul Bopp que a figura era a de um “homem plantado na terra”, um selvagem vindo do mato, um antropófago. Como chamar esse ser monstruoso? Consultando um dicionário tupi-guarani pertencente ao pai de Tarsila, chegaram a um nome composto de “aba”, homem, e “poru” , come : um homem que come carne humana. Pouco depois, no mesmo ano de 1928, Oswald publicou seu “Manifesto antropófago.” Ou seja, o movimento antropofágico foi construído depois do quadro e a partir dele. O Abaporu estava pronto para funcionar como a metáfora de uma modernização autêntica, concebida, antropofagicamente, como o processo pelo qual o homem brasileiro forma sua própria cultura pela digestão e assimilação seletiva da cultura alheia, expelindo os elementos que não lhe convêm. Mas essa interpretação deixou de ser exclusiva. Ela está sendo contestada por ninguém menos que a sobrinha neta da pintora, Tarsilinha do Amaral. Para ela, o quadro não é alegoria de coisa nenhuma, e sim o auto-retrato de Tarsila, que apaixonada pelo marido, Oswald de Andrade, trabalhara longamente no quadro, para oferecê-lo, como um ato de doação e de amor, no dia 11 de janeiro de 1928, aniversário de Oswald. Era um nu, sim, mas um nu feminino, e não masculino, como Tarsilinha demonstra pelo exame do cabelo, semelhante ao de outro auto-retrato pintado em 1924, em que as sobrancelhas


arredondadas e o cabelo repartido ao meio deixam claro que se trata de uma figura inequivocamente feminina. A autora reforça, a seguir, sua argumentação com um curioso detalhe anatômico, o fato de que o segundo artelho da figura é mais longo que o primeiro, traço de família que a artista tinha em comum com vários parentes seus. É uma obra erótica, como sugerem os cactus fálicos da paisagem. Tarsila se oferece ao voyeurismo de Oswald, representado por um sol de ouro, grande olho que não perde um só detalhe do espetáculo. Mas Tarsilinha não se contenta em pôr-se no lugar do observador – Oswald - ela põe-se também no lugar de Tarsila, a observada. Em junho de 2011, ela e uma amiga, a escritora Patricia Secco, resolveram testar a hipótese do auto-retrato, originalmente sugerida por outra amiga, a artista plástica Cris Gimenes. Tarsilinha veste uma roupa bege colada ao corpo, e senta-se diante de um espelho, depois de deixa-lo levemente inclinado. Em seguida, procura imitar a provável pose da artista, quando teve o “estalo” de 1928: pé esquerdo descalço perto do espelho, mão direita na cabeça. Ela se transforma, experimentalmente, em Tarsila do Amaral. A mágica esperada se produz: a imagem no espelho tem uma semelhança impressionante com a tela. Tarsilinha conclui: “estávamos diante de uma inédita explicação para um dos mais famosos quadros brasileiros.” Mas por que Tarsila teria aceito com tanta docilidade a interpretação de Oswald de Andrade, de Raul Bopp e de toda uma geração de intelectuais, em vez de revelar que o Abaporu era um auto-retrato? Segundo Tarsilinha, isso ocorreu porque Tarsila ficou fascinada pela torrencial verve interpretativa de Oswald, e percebeu perfeitamente que essa interpretação valorizaria sua obra, elevando-a ao estatuto de símbolo e ícone de todo um vasto movimento artísti-


co, intelectual e filosófico. Isso não significa que Tarsilinha negue de todo a validade das interpretações convencionais. Ela admite que como toda grande obra de arte, o Abaporu permite uma interpretação em várias camadas. O contexto cultural dentro do qual a obra foi produzida permite uma leitura ampliada, como a fizeram Oswald de Andrade e outros modernistas. Mas Tarsilhinha não abre mão da tese de que na essência se trata de um auto-retrato. Os especialistas podem não estar de acordo. Mas o que ela fez de original, e nisso não há contestação possível, foi desviar o foco da critica, transitando de uma interpretação objetivista, centrada na historia e na sociedade, para uma interpretação centrada no sujeito. Ela ajudou, com isso, a reintroduzir na critica e na exegese da arte a dimensão psicanalítica, que tanto impacto teve entre os modernistas e que foi tão negligenciada depois. Leia-se, por exemplo, o que ela escreveu sobre o conceito de “estranho”, o Unheimliche freudiano, horror provocado pelo reaparecimento de algo há muito familiar e há muito esquecido. E sse passado esquecido, que volta através do Unheimliche, pode ser ou um estágio cognitivo ultrapassado, como o animismo, ou uma vivência infantil reprimida. Tarsilinha conhece perfeitamente esse conceito, e o aplica com grande competência na análise do Abaporu. Recorrendo ao prefácio do “Cromwell,” de Victor Hugo, que recomenda ao artista, para evitar o clichê, a justaposição do belo e do feio, do sublime e do grotesco, da luz e da sombra, Tarsilinha atribui ao mecanismo do Unheimliche a deformação e desmembramento da figura feminina que aparece na tela. Essa deformação provém de memórias infantis reprimidas, e do retorno a crenças que ainda têm o poder de apavorar a mulher adulta. Eram as histórias contadas pelas negras da fazenda, quando por um buraco no teto do quarto uma voz dizia “eu


caio”, e um pé caía, “eu caio” , e uma mão caía. Registre-se que entre os objetos mais capazes de suscitar o Unheimliche, para Freud, estão membros humanos decepados. Deixando-se levar pelos automatismos do Unheimliche, Tarsila teria encontrado em seu passado animista os elementos heterogêneos de que ela necessitava para construir seu auto-retrato, fugindo a todos os estereótipos, segundo o conselho de Hugo. Afrodite nua contemplando-se no espelho, de Velasquez, é muito diferente da Tarsila nua captando seu reflexo no espelho, mas os dois quadros têm uma coisa em comum: na obra de Velasquez, é Eros, filho de Afrodite, que segura o espelho para a mãe, e é também Eros, invisível mas onipresente, que faz o Abaporu acontecer.

Sergio Paulo Rouanet


Este livro, composto em Trade Gothic e Farnham, foi impresso em papel offset 120g/m2 na Grรกfica Editora PROL, em Sรฃo Paulo. AGOSTO DE 2005.


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