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edição #4 e d i t o r i a l

2018

A VIDA E AS LUTAS DE MÃE BEATA DE YEMANJÁ 03 O QUE OS POVOS 1 AFRICANOS DERAM AO MUNDO CONHECIMENTO E TECNOLOGIA NEGRO-AFRICANA 10 ENTREVISTA

NOSSA FOME ANCESTRAL DE 400 ANOS:

O POETA E O SUJEITO NEGRO DE RICARDO ALEIXO: 04 ENTREVISTA

A MATEMÁTICA NO FAZER DAS TRANÇAS

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EDIÇÃO #4

CÓD.:180516

O ESTUDO DA ETNOMATEMÁTICA DE LUANNE SANTOS 12


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A quarta edição celebra o primeiro ano de existência, luta, denúncia e enfrentamento às múltiplas faces do racismo do Jornal Nuvem Negra. A quarta edição celebra o primeiro ano de existência, luta, denúncia e enfrentamento às múltiplas faces do racismo do Jornal Nuvem Negra. Também comemora um ano da construção de um espaço onde mais buscamos no decorrer desse primeiro ano: usar o jornal para protagonizarmos nossas próprias histórias. Neste sentido, fizemos uma edição para a comunidade negra, para que nós, cada vez mais, possamos resgatar nossas memórias e conhecimentos tradicionais. Nas três primeiras edições, escrevemos sobre as resistências negras em espaços educacionais e denunciamos o racismo 2 institucional. Nesta, queremos destacar o que os povos africanos deram ao mundo. Resgatamos as narrativas acerca da produção de conhecimento que nos foram negadas e o impacto das civilizações negras no mundo. Entendemos que descobrir a ancestralidade é o mesmo que conhecer a si mesmo, a própria existência. Por isso, queremos que o jornal alimente sua fome ancestral e provoque um desejo de buscar a ancestralidade que está em cada um de nós.

que se torna um imperativo para nós, negras e negros, destruirmos as máscaras brancas que ainda encarceram e adormecem nossa potência ancestral de subversão, libertação e instauração de nossa dignidade e centralidade negra. Que a edição seja como um portal de troca com a sua ancestralidade e que te ajude a recuperar os símbolos e valores negro-africanos que constituem a sua existência.

Jornal Nuvem Negra

Publicação semestral e gratuita Linha Editorial

Coletivo Nuvem Negra

Editores:

Gabriele Roza e Lucas Obalera de Deus

Projeto Gráfico, Ilustrações, Diagramação e Capa: Bruna Souza

Financeiro:

Carlos Eduardo Paschoal e Wellington Mendes

Desejamos uma ótima leitura,

Produção:

Gabriele Roza e Lucas Obalera de Deus Editores JNN

Jefferson Souza, Natany Ayodele Luiz e Wendel Anthuny

Gostou do jornal? Quer enviar sugestões, críticas ou elogios? Mande um e-mail pra gente! jornalnuvemnegra@gmail.com

Fellipe Ramos, Henrique Almeida e Leonne Gabriel

Comunicação e Coordenação de Distribuição:

Revisão:

Samira Marques

s u m á r i o A MÃE DO MUNDO

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NOSSA FOME ANCESTRAL DE 400 ANOS

04

Jefferson Barbosa Entrevista com Ricardo Aleixo / por Leonne Gabriel

JONGO: A VERDADEIRA HISTÓRIA DO POVO NEGRO

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Fatinha do Jongo

Nesta edição comemorativa, homenageamos Mãe Beata de Iemanjá, “semente da valorização e dignificação de uma afro-epistemologia de terreiro enquanto ferramenta e mecanismo de nossa resistência ancestral”. Detentora e transmissora de grandes saberes e conhecimentos negro-africanos, Mãe Beata dá o tom da edição. Conduzidos pela força dos mares, os textos nos levarão a sentir a riqueza e potência de nosso “complexo cultural negro-africano”.

SER-TÃO...

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MÃE BEATA, BEATA OU BEATRIZ, NÃO IMPORTA, MEU NOME É MULHER NEGRA!

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O QUE OS POVOS AFRICANOS DERAM AO MUNDO

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PALAVREAR

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A MATEMÁTICA NO FAZER DAS TRANÇAS AFRICANAS

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Somos a continuidade de uma raça, de um povo e de um paradigma cultural profundamente complexo em suas dimensões filosóficas, ontológicas, epistemológicas, éticas, tecnológicas e sociais. Dimensões incompreensíveis à mentalidade branca-cristã-ocidental dicotomizada e racista. É por isso

COMUNIDADES-TERREIRO

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NARRATIVAS NEGRAS IMPORTAM: A CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS NEGROAFRICANAS

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INDICAÇÃO NUVEM NEGRA

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Bruna Souza

Adailton Moreira Costa Natany Ayodele Luiz Ricardo Aleixo

Entrevista com Luanne Santos / por Mariana Moreira Jayro Pereira

Juliana Correia

Coletivo Nuvem Negra

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A Mãe do Mundo A vida e as lutas de Mãe Beata de Yemanjá, uma das mais importantes lideranças do Povo Negro Jefferson Barbosa* No dia 27 de maio de 2017, o Ayê perdia a presença física de Beatriz Moreira da Costa, a Mãe Beata de Yemanjá. Muito antes dessa partida, a ialorixá já havia deixado sua marca na história da sociedade brasileira. Nascida em Cachoeira do Paraguaçu, no Recôncavo Baiano, Mãe Beata dedicou os seus 86 anos à luta pelos direitos dos negros, das mulheres, dos LGBTs, da questão ambiental e pelo respeito à liberdade religiosa. Uma verdadeira griotte que preservou e compartilhou a história do povo afrobrasileiro e fez tudo o que pôde para garantir a dignidade da Baixada Fluminense. Mãe Beata de Yemanjá, nordestina e neta de africanos escravizados, foi iniciada no Candomblé em 1956 por Olga do Alaketu, em Salvador. Migrou para o Rio de Janeiro com os quatro filhos, Adailton, Aderbal, Ivete e Maria das Dores. Viveu os últimos 32 anos na Baixada Fluminense, onde fundou o Ilê Omiojuàrô que também é Ponto de Cultura declarado Patrimônio Cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 2015. Esteve à frente da ONG Criola, na defesa das mulheres negras, junto com Jurema Werneck e Lúcia Xavier; liderou ao lado de Frei David a luta pelas cotas; e protagonizou junto com Abdias Nascimento em Brasília diversas lutas antirracistas. Falava com presidentes, ministros de Estado de igual pra igual, com toda legitimidade de quem sabia o que estava falando. Foi homenageada na Rio+20 ao lado do Nobel de Literatura, Wole Soyinka. Em 2014, mandou uma mensagem de paz para os povos do mundo todo, a única mulher ao lado de outros representantes religiosos. Foi condecorada em 2017 com a Medalha Tiradentes - mais importante honraria do Rio de Janeiro.

Os 86 anos não a fragilizavam, tinha muito vigor e lucidez no que falava. Carregava a sabedoria dos ancestrais, dos orixás, a história de nosso povo. Saberes que devem ser preservados. Do seu quilombo contemporâneo liderou e transformou a realidade. Na última festa no terreiro de Mãe Beata, dia 22 de abril de 2017, a celebração foi até a madrugada. No meio da festa, Mãe Beata de Yemanjá surpreendeu a todos quando levantou de seu trono para dançar, a juventude daquela alma não se deixava impactar pelos anos vividos intensamente. No seu discurso, trazia a esperança de quem sabe que o novo sempre vem, a certeza de que podres poderes não podem com o poder do povo.

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No nosso último encontro, ela me contou alguns de seus planos, e assistia preocupada o jornal na tarde daquele 15 de maio. Menos de duas semanas depois ela voltaria a mobilizar milhares de pessoas, agora para sua despedida. Não havia ali um sentimento apenas de lamento e tristeza. Também existia a certeza de que todos ali tinham uma missão, uma missão que é nossa, a missão de continuar tocando as lutas de Mãe Beata de Yemanjá, a mãe do mundo.

* Aluno de Comunicação Social da PUC-Rio, mora em Caxias, é editor de Voz da Baixada.

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Ayê: Mundo físico na cultura iorubá. Griotte: Feminino de griot, sábio da história oral.

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Nossa fome ancestral de 400 anos O poeta e o sujeito negro de Ricardo Aleixo por Leonne Gabriel* Ricardo Aleixo é um poeta que ‘‘joga as palavras ao vento’’, é artista sonoro e visual, cantor, compositor, performador, ensaísta e editor. Publicou, entre outros, os livros ‘‘Impossível como nunca ter tido um rosto’’ (2016), ‘‘Mundo palavreado’’ (2013) e ‘‘Modelos vivos’’ (2010) e ‘‘Trívio’’ (2001). Concentra seus projetos de criação e pesquisa no Laboratório Interartes Ricardo Aleixo, em Belo Horizonte, cidade onde nasceu em 1960. Na entrevista, feita na cobertura da 15° edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) pelo Nuvem Negra, Aleixo fala sobre a definição e o rótulo de poeta negro e conta como a palavra se tornou fundamental na sua vida.

O que é ser um poeta negro?

Eu tenho ao longo da minha trajetória, que vai completar neste ano 40 anos, tentativas poéticas. Lido de forma aberta, tão livre quanto possível, com algumas questões 4 que se inter-relacionam quanto a presença de negros e negras na literatura brasileira. Eu, tendo nascido negro, de uma família negra, ao longo da juventude e desde então tenciono o espaço que ocupo buscando uma abrangência de diálogo e realização. É comum, pelo lugar que tenho ocupado, que as pessoas me definam automaticamente como um poeta negro. Eu faço questão de lembrar sempre que são coisas que se tocam, mas não automaticamente. O sujeito negro e o poeta não são necessariamente a mesma pessoa. Por mais que a minha temática cada vez mais se expanda e toque na estética-cultural da presença negra no Brasil e do enfrentamento do racismo, apenas quando eu me defino um poeta negro é que isso tem validade para mim. Caso contrário, me parece um ato fascista definir por mim quem eu sou. Exatamente por conta das contradições que organizam o modo de ser da vida brasileira é que hoje eu tenho menos preocupação em me autodefinir. Dada as circunstâncias não me vejo na obrigação de me definir como um poeta negro. Se me identificarem como poeta ao me ver já vão me levar pra esse canto. Hoje, eu lido à maneira de Exu

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e de todos os habitantes das encruzilhadas e jogo com isso. Aqui na Flip ainda que escolhesse falar sobre o sexo dos anjos ou do movimento das nuvens eu seria definido como poeta negro. Quando eu vejo o aumento do número de escritores negros, ainda somos a esmagadora minoria. Para além dos rótulos eu deixei de me preocupar com essa questão. Eu sou um homem que quer a juventude negra viva, eu sou pai. Não tenho saída com relação ao enfrentamento do racismo. Quero a juventude viva e tecendo um diálogo com pessoas de lugares e idades diferentes. Somos negros e diferentes entre nós. O que me parece é que estamos em um momento que conquistamos a possibilidade de definir quem somos nós, quando falamos e quando nos posicionamos.

Negro é uma invenção do branco?

Negro não é uma palavra negra. Nenhum povo do continente africano originalmente define a si próprio como negro, mas são Iorubás, Mandingas, Bantus... Essa leitura tanto do negro quanto do africano é externa, produzida a partir de balões de ensaio que vão chegar até o século XIX a formulação do racismo científico. Primeiro você classifica, isola e depois domina. O que eu faço não é a recusa do termo negro como auto-identificação. Eu sou negro, construí o direito e o prazer de ser negro. Essa é uma palavra que tive que roubar e ressignificar. O que todas as gerações de negros fazem

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secularmente no Brasil e nas Américas é reinventar o sentido de negro. Em síntese é pegar uma palavra usada para apequenar, dominar, invisibilizar e ressignificar dotando-a de potência e força revolucionária e transformadora. Essa é uma ação cotidiana. Negro é uma palavra que quando apropriada por nós deixa de ter um conceito fixo e passa a ter quantas camadas forem as pessoas que a utilizem. Quando associada a gênero se torna muito mais rica e complexa.

Qual é o poder da palavra na sua vida?

Eu venho de uma família de gente palavreira. Terminei a performance na Flip com o poema Palavrear com o qual eu sempre abro as apresentações. O meu início na poesia vem com a minha mãe que me deu ao mundo, é a história da escassez, de uma família pobre e leitora. Isso que fez a diferença toda. Vim de uma família que não tinha livros em casa. Meu pai completava o orçamento vendendo jornais velhos e alguns passaram lá por casa e eu lia e relia. A palavra pra mim tem o mesmo peso que para toda gente pobre e negra quando tem acesso a ela e não deveria ter. A palavra vira o tempero que faz o macarrão de domingo virar outra coisa. A consciência de que a palavra não só constroem mundos, mas é um mundo em si foi a grande revelação. Quando eu tinha 18 anos e vivi um acidente que me tirou de circulação por três anos, eu me vi às voltas com a palavra e com a possibilidade de criação de poesia, não como uma opção a mais, mas como a única alternativa. Hoje, eu posso dizer com toda nitidez que a poesia me inventou. Mais do que fazer poemas fui inventado pela poesia. Eu tenho duas mãe: Iris, que me pariu, e a poesia. Eu me lembro da frase de uma militante negra histórica chamada Teresa Santos que dizia que há sempre uma mulher negra no começo da história. Eu não


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sei que cor era essa poesia que ajudou minha mãe a me cuidar. A palavra tem força e poder de destruição, não só de construção. Ela é feminina. Por mais que eu tenha voz grave e cara de macho o feminino que se diz.

Qual é sua percepção sobre as novas roupagens da poesia no Brasil?

Eu comecei a ouvir rap nos anos 1990 quando fiz parte de um grupo de dança em Belo Horizonte (MG), eu era o único que não era da dança, mas da poesia e da música. Esse grupo fazia parte de um coletivo de hip-hop com DJ, MC e graffiti. Foi quando eu parei para ouvir A palavra pode dar ou tirar a vida? [A palavra tem o] Poder de reconhecer a vida onde ela existe e mui- Racionais obcecadamente, mas já conhecia muita coisa da ‘gringa’ tas vezes não é visível. Quantas vezes é preciso fazer o movimento também. A grande novidade era eu me abrir para aquilo a ponto de de reanimar uma pessoa e não só dizer uma palavra. A poesia para ouvir cinco vezes seguidas ‘Sobrevivendo no Inferno’ e ouvindo com mim tem um peso em dupla perspectiva, o de poiesis (todo fazer) e o mesmo amor e entrega os caras da canção como Gilberto Gil e Luiz o de autopoiesis (de auto fazer ou fazer-se por aquilo que se faz). Isso Melodia e também poetas de livros. Naquele momento caiu por terra me autoriza a dizer que não há um vínculo previsível para o que o qualquer desejo que eu tivesse de aceitar as fronteiras. Quando os poeta pretende, porque ele não tem condições, graças a Deus, de caras vem com a marra dizendo “rhythm and poetry” (ritmo e poesia) saber o impacto que a palavra vai gerar em quem ouve. Sabendo já tá dizendo tudo. Quem sou eu para dizer que não é, porque me bate que quem ouve não é só o outro, mas ele mesmo. Eu sou impactado como poesia. Ouvir rap me fez pensar que do lado da poesia de livro pelo que eu digo também. Poesia é uma forma de se ouvir, e de ouvir ou mesmo os saraus e recitais carecia de voz, de corpo e de presença. Eu comecei a achar tudo muito branco, mesmo coisas o outro até quando a gente está falando. Quantas pessoas estão falando na minha voz agora? Pessoas que Pessoas que já feitas por negros. Quando vem o rap, o slam, os saraus na periferia eu recebo com profunda alegria. já existiram, passaram por este mundo e pessoas que 5 existiram, pasnem nasceram. Isso é a nossa africana e afro-diassaram por este A palavra é uma extensão do corpo? pórica ancestralidade, grande contribuição poética mundo e pessoas A palavra é corpo também. Ouvir a minha própria voz, e filosófica pro mundo. A ancestralidade não é só o que já foi, mas também o que está por vir. que nem nasceram. girar olhando para as pessoas, ver gente negra na plaIsso é a nossa afri- téia, pensar na textura do pano que me cobre na hora da apresentação me influencia e volta pra mim com Quais são os poetas que te inspiram? cana e afro-diaspómuita força. Ao mesmo tempo parece que é uma perda Estudei. Mais do que ser inspirado, eu busquei muito como a poesia brasileira se desenvolveu desde seus iní- rica ancestralidade, de prestígio da palavra quando tantos elementos apacios. O que significa um Gregório de Matos e Guerra, na grande contribui- recem, mas é aí que a palavra se fortalece. Ela começa Bahia Colonial, escrevendo contra os poderes constituídos ção poética e filo- a se movimentar de outro modo por causa de outros elementos. Para nós, negros do Brasil e do mundo ine ao mesmo tempo se aliando a eles, fazendo uma poesófica pro mundo. teiro, a palavra é fundamental, porque somos aqueles sia com mescla do português com termos tupi, iorubás, que foram obrigados a fazer a travessia transatlântica Bantus, isso me interessou muito desde sempre. A minha primeira poesia foi experimental e muito nutrida pela poesia sem direito a cultivar os próprios idiomas e a ter que aprender o concreta. O que me deu a possibilidade de entender ela como uma idioma e a cultuar o deus do colonizador. Mesmo a experiência mais linguagem próxima da música e das artes visuais. Nos últimos tem- incipiente, pobrinha e inicial de uma menina ou menino negro dipos inclui, como uma radicalização, o uso do corpo. Eu não tive ne- zendo o seu poema é mais comovente que muitas bibliotecas. Temos nhuma proximidade com as experiências da textualidade negra seja uma fome ancestral de 400 anos. Quero que apareça coisas nossas ela brasileira, africana ou caribenha. Apenas depois da maturidade fui na periferia e aqui na igreja de Paraty (RJ) para o mundo inteiro entender que sempre gostei de coisas ligadas a texto, música, corpo, saber. movimento, que hoje eu posso tranquilamente chamar de poesia como Cartola, Nelson Cavaquinho e Paulinho da Viola. Mais do que * Estudante de Jornalismo pela PUC-Rio e integrante me orientar pela tentativa de imitar primeiro, depois de assimilar cri- do Coletivo Nuvem Negra. ticamente a linguagem desse ou daquele poeta, a poesia em todas as suas vertentes é que me inspira. Até aquilo que não é chamado de Leia o poema “Palavrear”, performado pelo poeta na FLIP poesia, uma fala de criança, uma conversa de rua, alguma coisa que 2017 na página 12 desta edição. me leva a pensar no fenômeno incrível que é a linguagem. Mais do que poetas eu prefiro falar do mundo como influenciador.

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Jongo: A verdadeira história do Povo Negro Fatinha do Jongo (Maria de Fátima da Silveira Santos)*

O Jongo de Pinheiral prima por sua originalidade e tradição. No período do Brasil Colônia, a maior fazenda de café do Vale do Paraíba Fluminense, Fazenda São José do Pinheiro, pertencente a família Breves, era localizada na cidade de Pinheiral. A fazenda escravizou mais de três mil negros trazidos de várias regiões da África. Mesmo depois de proibido o tráfico negreiro, a família Breves ainda continuou com a prática, desembarcando pessoas escravizadas em Marambaia ou em Angra dos Reis. Hoje, a base da população do Sul do Estado do Rio de Janeiro é negra. E o jongo de Pinheiral se manteve vivo desde a época da escravidão, sendo passado de geração em geração pelas famílias da cidade.

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Nos anos oitenta, o Movimento Negro da região Sul Fluminense se tornou muito forte na luta pela cultura, direitos e cidadania dos negros, era uma luta dos mais velhos e também de jovens. Passamos a militar e reforçar a prática e exemplos de família, no sentido do que é ser negro nesta sociedade e os direitos enquanto cidadãos brasileiros que somos. Exemplos estes de minha Avó Maria Barbara Silveira, seguidos de minha mãe Constancia da Silveira e tias, ‘‘nos passando’’ que o estudo era fundamental em nossas vidas, não mediram sacrifícios para nos ver formadas e com uma profissão. Através da militância, entendemos ainda mais o valor da nossa história e tradições históricas do povo negro e a relíquia que tínhamos em Pinheiral, jongueiros de raiz, que se orgulhavam de dançar e preservar naturalmente esta prática. Fizemos duas ações simultâneas no ano de 1985. Fundamos a União Jongueira e fomos para dentro das escolas falar de forma voluntária da importância da cultura Afro, em especial o jongo e trabalhar a autoestima das crianças negras. Aí não paramos mais, temos um grupo que está junto desde essa época, onde eu coordeno estes trabalhos há mais de 30 anos. Hoje, temos o Centro de Referência de Estudo Afro do Sul Fluminense - Jongo

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de Pinheiral (CREASF), onde trabalhamos a preservação da dança do jongo, a biblioteca Afro e a culinária Afro, através de ações junto às escolas da região, universidades, comunidades jongueiras, etc. O nosso objetivo principal é a educação, pois entendemos que só por este caminho é que faremos a transformação de vida de nossas crianças, principalmente as negras, com a vivência e o conhecimento da nossa história e cultura. O jongo é um elemento enriquecedor do nosso trabalho junto às escolas. A Lei 10.639 veio legitimar o que já fazíamos desde o final dos anos oitenta e continuamos fazendo.Tanto nas escolas quanto na casa de jongo, nosso ponto de cultura, trabalhamos a história desde que o Negro veio da África, passando por Palmares e a luta pela liberdade, fazendo um comparativo com os dias atuais. Falamos das comunidades jongueiras tradicionais e do jongo com seus elementos e magia, depois é que vamos para a prática da dança e a oficina de percussão. Para que a criança ou o jovem entenda que a dança do jongo foi, é e será sempre uma bandeira de luta do povo negro, para manter viva a memória de nossos ancestrais, nossa história de luta e nossas tradições. Modjumbá axé! (Aquele que é nossa força nos abençoe)

* Maria de Fátima da Silveira Santos, a Fatinha do Jongo, é professora, graduada em Educação Física. Griô, ativista e jongueira da Comunidade Jongueira de Pinheiral/RJ-Brasil.


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Ser-tão... Bruna Souza*

Meus primos mais novos passam lá para tomar café quentinho, pedir a “bença” e vão para a escola de lá sempre que podem. Para o café-da-manhã, beiju, que dona Antonieta faz em duas camadas grossas que se complementam em um farto sanduíche de goma de mandioca amanteigada. Quando conto das tapiocas do Rio, ela faz cara torta, a boca se retrai em ar de reprovação, sem entender quem coloca carne seca com queijo misturado à já auto-suficiente e saborosa goma. E se tão cedo acorda, tão cedo dorme, mas não sem antes pôr a cadeirinha enfileirada entre mais duas na porta de casa, para meu avô e quem mais se sentir à vontade para se sentar e tocar horas a fio conversas e silêncios sobre a cidade, sobre os visitantes, sobre as dores e sobre a vida, numa levada íntima, com a rua e os vizinhos, que assim como ela, desde sempre estiveram ali. Estar em Pilão Arcado, no interior da Bahia, às margens do São Francisco, quase no pé do Piauí, onde praticamente toda minha família mora, é voltar a sentir o sabor da vida integralmente. O terreiro que se mata a galinha a ser depenada para o almoço do

dia seguinte, é o mesmo que dá as ervas e árvores mais férteis, é o mesmo em que as crianças correm e sobem nas mangueiras e limoeiros e amendoeiras, é o mesmo cenário principal da surra que leva o mais levado dos filhos - ou todos eles juntos -, e é nele que tenho as memórias mais vivas de infância.

Mas uma das minhas primas mais novas me mostrou que onde há racismo, há resistência. Inspirada pelo que vê hoje nas redes sociais, em um movimento de se auto-conhecer enquanto negra e mulher, personifica em si a resistência de agir contra o racismo. Com seu afro majestoso, ela e outras duas amiguinhas afrontosas cruzam a praça, vão à escola juntas, se adoram em meio ao ambiente hostil. Quando as vi na rua, atravessadas por olhares tortos, ignorando-os e sendo elas mesmas, meu coração se encheu de esperança. Os únicos afros da cidade, ao lado do meu e do meu parceiro de viagem, se fortaleceram e ganharam pontes. Hoje ela sabe que, daqui 7 do Rio, ela tem uma amiga-prima que a admira e eu sei que Pilão tem hoje uma pequena pantera negra, que identifica e consegue quebrar tradicionalismos viciados e que não perde também seus rituais ancestrais. Certamente não andamos só.

* Bruna Souza é nordestina, formanda em Desenho Industrial pela PUC-Rio e designer do Coletivo Nuvem Negra. ilustração: Bruna Souza

Minha vó, descendente direta de índios, desde às 4h da manhã está acordada. Já varreu o quintal, e a água está no fogo para o chá. Colhe alguns galhos de planta, que podem ser boldo, aroeira, erva-cidreira, camomila, hortelã... Às vezes, diante de alguma demanda urgente, usa de sua vivência e sabedoria ancestral para combinar infusões com propriedades mais ativas. Casca de laranja para má digestão, quiabo seco para aliviar o catarro, folha de caju para disenteria, casca de bajão vira mata-vermes, umburana de cheiro para resfriados e inchaço por exagero de bebida ou comida. E assim ela começa o dia, durante anos, cotidianamente, sem jamais esquecer de adoçá-lo ainda na chaleira.

Em Pilão Arcado, a pele negra, os traços de preto e índio são tão abundantes quanto a riqueza cultural nordestina. Os cabelos são uma mistura, e quase não se vê cabelos crespos soltos, sendo alvos certos da diabrura dos meninos mais atentados. Transforma-se em negligência contra a filha mais escura, em mais surra, em abusos cotidianos.

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A editoria Escrevivência é uma homenagem do CNN para escritora Conceição Evaristo. Este é um conceito da autora que traz a vivência negra como alimento da escrita. No JNN, Escrevivência é um espaço onde as experiências vividas e pensadas por nós, negras e negros, são narradas na primeira pessoa. Como disse Conceição Evaristo, ‘’a nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para ‘ninar os da casa grande’ e sim para incomodá-los em seus sonos injustos’’. Envie a sua para jornalnuvemnegra@gmail.com.

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Mãe Beata, Beata ou Beatriz, não importa, meu nome é Mulher Negra! Adailton Moreira Costa (Ogun Odenan)*

Ter a incumbência de falar sobre essas várias mulheres presentes nas representações de minha mãe é uma tarefa extremamente desafiadora. Primeiro, por tê-la como mãe biológica e minha companheira de lutas ao longo da vida e, segundo, por ela ser essa mulher que, assim como os mares, se espraiou para além dos muros do seu terreiro Ile Omiojuaro. Assim, veio a se cons8 tituir e legitimar como a mãe de todos/ as em diversas arenas das lutas contra os preconceitos e discriminações. Sua contribuição no fortalecimento de um pensar e agir negro/a foi muito importante já que, dentro de seus saberes e fazeres ancestrais, cunhou e forjou dentro de nós, seus filhos e filhas, a semente da valorização e dignificação de uma afroepistemologia de terreiro enquanto ferramenta e mecanismo de nossa resistência ancestral. Sua forma peculiar de nos educar e criar em nossa comunidade de terreiro de Matriz e Motriz Africana nos possibilita continuar seu legado matriarcal ancestral de manutenção e preservação do maior conceito afro-iorubá que ela nos deixou: Iywa Pele (O Bom Caráter). Mesmo após alguns meses que ela voltou a sua massa de origem, 27 de maio de 2017, não nos sentimos apartados de sua presença física, muito ao contrário, sentimos que seu legado é um chamamento comprometido a sua e nossa trajetória para a luta contra o racismo e toda forma de violação dos direitos da pessoa humana, mais especificamente a população negra em sua afrodiasporidade neste mundo heteronormatizado e eurocentralizado.

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A sua história e memória não podem ser contadas como um conto em algum lugar do passado dessa guerreira, mas devem ser cotidianamente exercitadas na contemporaneidade, que se torna cada dia mais obscurantista, teocrática e fundamentalista. Nesse contexto, violentamente, sofremos ataques afroepistemicidas em nossas comunidades de tradição e cultura africana no Brasil escravocrata e machista. Essa pequena mulher negra em estatura, mas grande em espírito de luta e saberes, provoca nossas almas negras, todos os nossos dias, a reviver os seus ensinamentos de vida e reverter os estatutos dos conservadorismos do status quo brasileiro colonialista nos apresentando novos paradigmas de resistências. Esses paradigmas constituíam-se como formas de resistências por uma sociedade justa e equânime na qual não precisaremos buscar a igualdade, mas o respeito, a pluridiversidade em seus direitos nas diversas matrizes africanas que compõem o cenário afrobrasileiro. Utilizando para isso o saber ancestral matriarcal das mulheres

de terreiro como multirreferencialidades de nossa libertação dos Tumbeiros Contemporâneos que ousam despertar. Beata era senhora, mãe, diversa e, mais do que tudo, mulher negra. Sua forma doce de mãe às vezes se confundia com outras maneiras de se expressar nas várias mães que existiam em si, nos surpreendendo todos os dias. Ela tinha muitas manias que caracterizavam uma mulher da atualidade e sempre bem informada, fazendo com que ela lesse diariamente os jornais e suas matérias. Em sua cama, por exemplo, havia diversos livros com assuntos muito próximos e outro totalmente distinto em abordagem. Mãe Beata assistia televisão para saber o que acontecia no mundo e se incomodava com o desenrolar dos individualismos e egoísmos humanos frutos do avanço capitalista e do racismo. O mundo mítico e terreno se misturavam na forma de perceber o mundo de forma integral. Mãe Beata conversava muito com Baba mi Iroko (árvore sagrada ancestral) e Exu Elegbara (seu pai divinizado e marido por sua escolha) a quem contava os sonhos que tinha durante o sono e nos dava conselhos sobre as mensagens que havia recebido de seus ancestrais em sua ida ao encontro do mundo dos ancestrais, “Osun rere Kafire Pade” (tenha um bom sono e se encontre), onde ela sempre se encontrava com os/as seus/suas. Não havia dia em que ela não se preocupasse com seus filhos/as iniciados/as e biológicos. Beata falava com suas palavras doces e carinhosas que por vezes se transformavam numa fala dura e rígida de uma mãe que tem um papel de orientadora nas

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nossas vidas. Quando ela percebia que “o rio estava perdendo o curso”, nos chamava ao rumo com muita sabedoria como o leme de uma grande nau rumo aos mares da liberdade dentro do terreiro e da família extensiva. Gostava de sentar-se em roda e se fazer ouvir por todos/ as, fosse no espaço do salão do barracão ou embaixo da sombra de Baba mi Iroko (sob esta sombra ancestral ela voltava ao seu tempo de iyawo e ao tempo dos que não mais estavam em seu convívio no Aiye). Seu mundo não se restringia somente ao seu terreiro mas aos diversos mundos que a compunham na construção desta mulher, pessoa e humana. ilustração: Bruna Souza

Beata dividia solidariamente toda essa força matriz/motriz entre nós para que pudéssemos lutar e nos dignificar de seu/nosso legado de forma ímpar. O desafio é a superação nos momentos atuais em que sofremos reações violentas em cima de nossos valores civilizatórios (que apresentam boas novas), neste mundo fascista e racista. Ter seu semblante carinhoso ao me acordar (Osun rere Kafire Pade) é o que continua a me mover (motriz/matriz) nesses tempos de lutas por um Estado Democrático de Direitos construído na negação dos atores e atrizes negros/as enquanto sujeitos do saber e fazer deste país onde não somos contemplados com nossa participação e contribuição no seu pensar e não nos vê enquanto população a ser reparada em seus direitos Negros/as. UBUNTU! Não pode ser somente um conceito da intelectualidade acadêmica erudita, mas algo ampliado a partir das falas, saberes e fazeres do Quilombismo dos Terreiros e sua população que se mantém viva em seu projeto de resistência! Ogun Asiwaju (Ogun vem à Frente)

* Babalorixá do Ile Omiojuaro. Coordenador executivo do Instituto Cultural Ile Omiojuaro. Mestrando em Educação (Proped – UERJ), cientista social pela PUC-RIO e licenciatura em sociologia da educação pela PUC-RIO.

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A editoria Voz de Lélia é uma homenagem do CNN a antropóloga e militante do movimento negro e de mulheres negras Lélia Gonzalez (em memória). Seu legado teórico e político vive em nós! Com a Voz de Lélia soprando em nossos ouvidos, esse espaço escreveremos em “pretoguês” sobre as lutas, sabedorias e existências de mulheres negras. Como disse Lélia Gonzalez: “a gente nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha dentre outras, mas tornar-se negra é uma conquista. Envie a sua para jornalnuvemnegra@gmail.com.

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O que os povos africanos deram ao mundo Natany Ayodele Luiz* A história dos africanos trazidos as Américas pouco os evidência para além da condição de trabalhadores forçados. Sob essa ótica, perpetua-se a noção criada pelas ciências europeias e norte americanas de que esses indivíduos pouco ou nada teriam a oferecer às outras sociedades existentes no mundo, por serem selvagens e pertencerem a comunidades tribais primitivas. Essa é apenas mais uma face das constantes tentativas de apagamento da contribuição negra africana para o erigir do mundo, tal qual conhecemos hoje. A essa expressão do racismo, denominamos, a partir do que defendeu Sueli 10 Carneiro (2005), de epistemicídio: o mecanismo da educação, sob visões de mundo centralizados na Europa, que reproduz uma única versão sobre a construção de saberes, perpetuando a atual estrutura de poder, que tem uma ideologia racialmente orientada. Contudo, é preciso que o conhecimento europeu também seja visto como passível de provincialização, seja enxergado como apenas uma forma de entender o mundo, com suas mitologias, filosofias e valores próprios, que não são universalizáveis ou aplicáveis a todos os povos humanos.

conhecimento e também sobre o impacto das civilizações negras no mundo. Kemet, o começo de tudo O berço da civilização mundial, primeiro lugar a registrar a presença do Homo sapiens, é o que conhecemos atualmente como Egito. Os primeiros humanos a habitarem a terra chamavam a si mesmos de kammiu, ‘‘os negros’’, e sua terra de origem de Kamit, “a Terra Negra’’ (FINCH, 2009), hoje grafada Kemet. O estudo de evidências linguísticas e históricas indica que as culturas africanas em geral se baseiam na herança da civilização clássica egípcia (NASCIMENTO, 2007). O desenvolvimento da sociedade kemética só foi possível graças ao estabelecimento das antigas comunidades nô-

mades às margens do rio Nilo e ao seu gradual conhecimento acerca das técnicas de irrigação e manutenção de produções agrícolas. Há quatro milênios, os keméticos identificaram a estrela Sirius, que quando nascia a leste, anunciava a enchente do rio, cujo lodo fertilizava os campos e assegurava farta colheita. Heródoto IV a.C, filósofo grego, afirmou que ‘‘os egípcios foram os primeiros a estabelecer a noção de ano, dividindo este em doze partes, segundo o conhecimento que possuíam dos astros’’. Isso era extremamente importante para definir as estações e a época certa de plantar, colher e produzir. O conhecimento de Sirius também

ilustração: Bruna Souza

Em vistas de mudarmos a forma sobre a qual enxergamos as milenares sociedades africanas, trazemos aqui algumas pequenas áreas do conhecimento e da tecnologia que os negros já desenvolviam no continente africano antes do processo de escravização. E como grandes oportunistas, os escravizadores europeus utilizaram-se de alguns desses conhecimentos para alocar os negros nas regiões brasileiras que desejavam desenvolver tal tecnologia para seu enriquecimento. Para tanto, apresentamos alguns elementos da nossa verdadeira história como apenas um gatilho para que você pesquise sobre outras narrativas acerca da produção de

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Africano da Nação Dogon

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Imhotep: a“Aquele que vem em paz”

se fez presente no atual território de Mali e Burkina Faso, uma vez que os africanos da nação Dogon já sabiam da existência do satélite da estrela Sirius, o “Sirius B”, antes da descoberta pela astronomia moderna, no século XIX. No período de um ano, Sirius B roda uma vez em torno de seu próprio eixo, evento celebrado pelos Dogon com o Festival Bado. Uma outra grande contribuição se dá pela medicina, com o cientista e clínico egípcio Imhotep que, quase três mil anos antes de Cristo, praticava quase todas as técnicas básicas da área. Recentes descobertas mostram que os cientistas egípcios conheciam substâncias cicatrizantes, anestésicos e tiveram a capacidade de promover cirurgias complexas como as cerebrais, de catarata ou o engessamento de membros com ossos quebrados. Outra ilustração: Bruna Souza característica da medicina desenvolvida pelos egípcios foi a odontologia que, naquela época, já usava brocas e praticava os procedimentos de colocação de prótese e drenagem de abscessos. Os métodos contraceptivos também já eram do conhecimento dos egípcios. Os kammiu já desenvolviam o comércio marítimo há milênios e desde 2600 a.C. construíam navios de grande porte. Desenvolveram técnicas de navegação mais sofisticadas e eficazes para atravessar o Saara, pois os navegadores das caravelas não conheciam a longitude, referência utilizada na Antigüidade por africanos, chineses e árabes. Tal tecnologia foi fundamental para a travessia do oceano atlântico rumo às Américas antes de Cristóvão Colombo. Além de uma riqueza enorme de testemunhos visíveis na cerâmica e escultura dos países da América pré-colombiana, as evidências incluem os restos mortais de pessoas negras e um conjunto de semelhanças entre as culturas indígenas e africanas, como por exemplo, as técnicas de engenharia e arquitetura das pirâmides egípcias e mexicanas. Talvez o testemunho mais eloqüente da presença africana nas Américas se encontre nas gigantescas cabeças esculpidas em pedra pelos olmecas, primeiro povo pré-colombiano do México e da América Central. Localizadas no centro do território sagrado desse povo, em San Lorenzo, atual território mexicano, as esculturas pesam quarenta toneladas, cada uma, e são feitas de um só pedaço de basalto. Elas reproduzem com exatidão o fenótipo do povo da Núbia.

As cabeças gigantes aparecem ladeadas por pirâmides em praças cerimoniais, com as laterais em forma de escada. O período de elaboração das esculturas olmecas coincide com a 25a dinastia do Egito, em 760 a.C., quando reinava soberana no mundo a poderosa marinha mercante e bélica núbia. As cabeças negras do México portam o mesmo elmo usado por esses marinheiros e podem ser vistas como representando eles próprios, já que pertencem à matriz das populações de pele negra que primeiro povoaram as Américas. O metal utilizado na confecção dos elmos núbios e das próteses dentárias mostra o avanço africano na siderurgia, presente na produção do povo Haya, que habita o que hoje conhecemos como Tanzânia. Entre 1500-2000 anos atrás, para produzirem aço, utilizavam-se de fornos que atingiam temperaturas mais altas que os fornos europeus fossem capazes (200ºC a 400ºC de diferença) até o século XIX. Outras investigações constataram que essa 11 tecnologia metalúrgica apresentava-se também em outras regiões, chegando a produção siderúrgica de Angola. O maior obstáculo à credibilidade desses estudos está na crença ideológica na suposta incapacidade dos africanos antigos de atravessar o mar na qualidade de portadores de conhecimentos e valores civilizatórios. Essa manipulação histórica é mais uma expressão do racismo, que aliena o ensino da construção tecnológica e filosófica mundial, encobrindo a real contribuição dos povos africanos para o mundo: o emi, fundamental sopro da vida.

*Graduada em Relações Internacionais pela PUC-Rio, integrante do Coletivo Nuvem Negra e educadora popular pelo projeto Nuvem nas Escolas. Pesquisa encarceramento feminino, educação, história e cultura africana na diáspora. Referências bibliográficas CUNHA, Lázaro. Contribuição dos povos africanos para o conhecimento científico e tecnológico universal. Prefeitura de Salvador, 2014. FINCH III, Charles S. Cheikh Anta Diop confirmado. In NASCIMENTO, Elisa Larkin (Org.). Afrocentricidade, uma abordagem epistemológica inovadora. Coleção Sankofa, Matrizes Africanas da Cultura Brasileira, v. 4. São Paulo: Selo Negro, 2009. NASCIMENTO, Elisa Larkin. O TEMPO DOS POVOS AFRICANOS suplemento didático da linha do tempo dos povos africanos. IPEAFRO, SECAD/MEC, UNESCO, 2007.

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p o e s i a

Palavrear Ricardo Aleixo

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Minha mãe me deu ao mundo e, sem ter mais o que me dar,

com as minhas duas meninas e desatei a lembrar

me ensinou a jogar palavra no vento pra ela voar.

de casos que a minha mãe se esmerava em contar

Dizia: “Filho, palavra tem que saber como usar.

com luz de lua nos olhos enquanto fazia o jantar.

Aquilo é que nem remédio: cura, mas pode matar.

Não era bem pelo assunto que eu gostava de escutar

binário e teorema de Tales no fazer das

Cuide de pedir licença, antes de palavrear,

aquela voz que nasceu com o dom de se desdobrar

Sociais pela UERJ e em Biblioteconomia

ao dono da fala que é quem pode lhe abençoar

em vozes de outras eras que voltarão a pulsar

e transformar sua língua em flecha que chispa no ar

sempre que alguém, no vento, uma palavra jogar.

se o tempo for de guerra e você for guerrear

Gostava era de poder ver a voz dela criar

ou em pétala de rosa se o tempo for de amar.

mundos inteiros sem quase nem parar pra respirar

Palavra é que nem veneno: mata, mas pode curar.

e ganhar corpo e fazer minha cabeça rodar,

Dedique a ela o respeito que se deve dedicar

como roda ainda hoje, quando, pra me sustentar,

Eu trançava cabelos dos outros e, quando comecei a tirar a química do meu, minha mãe fazia em mim. Meus amigos do movimento negro falavam que eu devia trançar, pela questão da estética que começou a tomar espaço na discussão, ligada à identidade. Então, eu trançava por ser militante e para obter renda.

às forças da natureza (o animal, a planta, o ar),

eu jogo palavra no vento e fico vendo ela voar

E em qual momento você percebeu a ligação entre tranças e Matemática?

mesmo sabendo que a dita foi feita pra se gastar,

(jogo palavra no vento e fico vendo ela voar)

que acaba uma, vem outra e voa no seu lugar.” Ainda ontem, lá em casa, me sentei pra conversar

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A Matemática no fazer das tranças africanas

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Luanne Santos, mestre em Relações Étnico - Raciais pelo CEFET, desenvolveu uma pesquisa sobre os conhecimentos matemáticos produzidos por mulheres trançadeiras. No estudo, ela percebeu a presença de conceitos como código tranças. Luanne é formada em Ciências pela UFF, onde ingressou pela primeira turma de cotas. Ela conta na entrevista sobre a importância da identificação para o aprendizado e da valorização do conhecimento negro-africano nas escolas.

Qual o seu envolvimento com as tranças?

Quando você faz tranças para fora, é obrigada a pensar técnicas porque as pessoas querem modelos diferentes. Um dia, assisti um clipe da Alicia Keys e perguntei a uma amiga, que também trançava, como fazia o penteado que a cantora usava. Ela começou a mostrar, fazendo repartições e colunas. Tudo isso desenhando o esquema no papel. Naquele momento, percebi que o jogo de trançar tinha conhecimentos matemáticos que aprendi no 7º ano. Fiquei muito assombrada. Tinha ponto médio, reta, diagonal e desenhos geométricos. Posteriormente, na minha pesquisa, falo


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por Mariana Moreira*

da presença de conceitos como código binário, teorema de tales, altura de triângulo equilátero. Eu já tinha certo incômodo pela forma que a história africana era narrada. É uma narrativa brusca, que mostra indivíduos sem conhecimentos. Quando percebi a matemática no fazer de tranças, foi uma grande resposta.

Por que o ensino brasileiro ainda é tão preso ao pensamento colonizado?

O Programa de pesquisa que tive como eixo teórico, a etnomatemática, diz que nenhum conhecimento é desvinculado da cultura. Esse currículo eurocentrado, de não identificação não é à toa. É um projeto político e uma das razões da evasão escolar. Além do ‘‘fracasso escolar’’ ser determinado por um capital cultural, eurocentrado, tem a questão da identificação com o conteúdo. Mesmo que algum de nós tenha sucesso, porque existem estratégias para alcançar o sucesso nas camadas populares e negras, a gente chega sem perceber a contribuição dos nossos antepassados na construção do Brasil. É um êxito desprovido de identificação. A visão colonialista de história e conhecimento se mantém. Na minha 6ºsérie, aprendi MDC. Existia uma facilidade da minha parte, mas achava estranho não saber de onde vinha. Depois, descobri que em Moçambique existem uns desenhos Sona que você aplica a lógica do MDC. Se soubesse disso, de toda a lenda moçambicana para chegar ao saber matemático, existiria identificação. Veria o africano como um sujeito de conhecimento. Assim como os africanos não são vistos, os povos nativos brasileiros também não. Sabemos da contribuição deles para a Língua, por exemplo, mas só a estudamos do ponto de vista europeu.

De que forma podemos entender a importância da estética nesse contexto de afirmação de identidade?

O movimento negro contribuiu muito para que as pessoas pudessem assumir sua estética. Não começou hoje, foi na década de 60/70, com os panteras negras. Houve a discussão da estética do corpo que é considerado inferior. O cabelo sempre foi um elemento muito

importante na diáspora africana e no continente, antes da escravização. Percebo uma questão de valores que são ressignificados e positivados em relação ao cabelo afro Black, quadrado, cortado... A cabeça para vários povos africanos é sagrada. No continente, não era qualquer pessoa que era trançada. O livro “Cidade das Mulheres’’ fala até que lá existia um tabu em relação ao uso de química nos cabelos. Quando a gente pega a historiografia, percebe que os africanos, mesmo em situação de escravização, usavam adornos e penteados, porque sempre houve essa atenção. Mas no momento de diáspora, existe o racismo e a negativação dessa estética, então, é uma questão política.

Como os conhecimentos ancestrais estão presentes no dia a dia?

Sou uma mulher de Axé. Muita gente trança e dá um sentido espiritual à prática. Muitas pessoas da minha família foram do Candomblé e Umbanda e aprendi com a minha mãe a pedir licença e estar bem antes de trançar. Sempre ouvi falar que cabeça tem dono. Podemos pensar por outro lado também, os africanos ajudaram a fundar o Brasil. Eles tinham conhecimentos de agricultura, no semear da terra e de achar o ouro, favorecendo a mineração. Sem isso, não teríamos as Minas Gerais e nem o plantio de cana – de - açúcar. Nossa língua é extremamente Bantu, como mostra Ney Lopes. Isso de continuar lutando é porque, internamente, a gente busca resposta para tentar se encontrar nessa diáspora e o que sobrou dos segmentos das culturas.

A ancestralidade tá em muitas práticas, óbvio que normalmente falamos em ritos religiosos, mas o cuidado e a estética são muito africanos. Ir à escola de samba, por mais que exista a questão da hipersexualização, trançar a filha para ir à escola, cuidar da cabeça do outro e o contato com a natureza são exemplos. Acontece que sabemos muito pouco sobre nossa história e, em geral, não lemos muito sobre isso. O Brasil com o projeto eugenista, que só parou com a 2º Guerra, tentou apagar toda a contribuição negra. Sem essas populações vindas pra cá, não teríamos conhecimentos ancestrais ligados à botânica, engenharia, matemática, química.

*Estudante de jornalismo na FACHA e roteirista na TV Escola, acredita no conhecimento como o mais potente instrumento de transformação.

Registro do impresso Padrões Matemáticos em Penteados Afro-Americanos, de 1998, de Gloria Ford Gilmer, matemática e educadora.

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c o r p o s

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l u t a

Comunidades-Terreiro1:

Lugar de cosmologização iniciática e reordenação existencial Jayro Pereira / Ògìyán Kàlàfó* O racismo colonial introjetou pela violência e pelos mais variados meios e formas o ideário de humanidade como uma concessão a negras e negros, a ponto de existencialmente compor uma “agência pós-colonial subalterna” onde subjetividade, subjetivação, desejo e livre arbítrio se inscrevem numa ideia de humanidade como adereço e alegoria ou como uma transmutação negativa de Ser. Nesse sentido, vale salientar que o colonialismo procedeu ao que denomino de deseontolização do ideário da existência negro-africana, isto é, processo de esvaziamento de sentidos que desestruturaram interioridades bioances14 trálicas e/ou biomíticas consubstanciadoras do projeto holístico ancestrálico e/ou social, se assim preferirem. Para não restar nenhuma dúvida, estamos dizendo, portanto, que a visão de mundo negro-africana se constitui como outra forma de conceber e estar no mundo. Uma visão de mundo antagônica à judaico-cristã e ocidental. Diametralmente oposta ao ideário da filosofia cartesiana do “penso, logo existo” localiza-se a filosofia Ubuntu. Importa aqui salientar que dos ‘‘povos originários da África” veio à tona, recentemente, “uma concepção ética que desafia o estilo de vida da sociedade contemporânea”. Para os povos de língua bantu, mas não só para eles, esse termo significa “eu sou porque nós somos”. Trata-se de uma ‘‘filosofia do Nós”, que pensa “a comunidade, em seu sentido mais pleno, como todos os seres do universo”, concebendo toda a humanidade como uma família, clã, etc. Com a preocupação de não estar, direta ou indiretamente, retroalimentando as arapucas e as armadilhas do colonialismo e da colonialidade como um continuum, vale explicitar o que nos diz Dalene Swanson (2010, p. 11):

“ubuntu tem sido uma expressão vivida de uma filosofia coletiva ética entre os povos sul-africanos há séculos e que ele tem expressões linguísticas e vividas em outros povos africanos mais ao norte. Nesse sentido, é uma das normas culturais mais poderosas e universais que vinculam as pessoas em todo o continente e transcende línguas, tribos e locais como uma ética humana coletiva”.

Valores culturais africanos das Comunidades-Terreiro Insisto em reafirmar que o racismo colonial e/ ou o colonialismo operacionalizou arapucas e armadilhas abissais: descivilizacionou o complexo cultural negro-africano, de maneira a esfacelar estruturalmente sua visão de mundo, reduzindo essa a um fator meramente religioso, introduzindo assim a dualidade, o maniqueísmo e a dicotomia da Existência. Essa realidade se verifica tanto em África contemporânea, como, sobretudo, na diáspora das Américas, aonde o complexo cultural negro-africano foi reduzido a culto, a reminiscência e a incorporação, funcionando como apêndice, adereço e/ou alegoria da Existência. Percebendo essa incompletude civilizatória, encontramos assertiva ao que diz Joana Henriques (2016, p.15) ao constatar que: “o racismo colonial foi um apagão e arrastão ideológico: apagão da cultura africana, obrigando as populações a despi-

De acordo com Juana dos Santos (2012, p.38) “o ‘terreiro’ é um espaço onde se organiza uma comunidade - cujo integrantes podem ou não habitá-lo permanentemente no qual são transferidos e recriados os conteúdos específicos que caracterizam a religião tradicional negro-africana”. 1

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rem-se de sua identidade; e um arrastão ideológico, porque contaminou mentalidades de todos os quadrantes e durante séculos, de tal forma que até hoje se verificam os seus efeitos”. Trata-se, portanto, de existencialmente perguntarmo-nos (tratando-se da população negra): o que fomos ou éramos em África pré-colonial; o que fizeram de nós e/ou nos tornaram no processo do racismo colonial e que poderemos voltar a ser ou vir a Ser? Os terreiros guardam, em que pese a tônica de natureza religiosa, valores civilizatórios espraiados e/ou abscondidos que através de uma “endoperspectiva” precisam ser desvelados, e desse modo, a desmarginalizar-se no contexto da sociedade, igualmente revitalizando pressupostos filosóficos e teológicos afrocentrados pulverizados, sendo imprescindível uma espécie de renascimento civilizatório afrodiaspórico. Importa aqui ressaltar que na cosmologização iniciática reside à base fundamental de possível reconstrução e/ou reordenação existencial de forma a incidir a subjetividade e subjetivação que deseocidentaliza, desmaniqueiza e desaliena, pois tal processo civilizacional operando no inverso da deseontologização operacionalizada pelo colonialismo e que de certa forma prossegue no vigor da colonialidade. Outro valor que persiste nas Comunidades-Terreiros, inerente aos ditames da filosofia africana como algo que permeia a cognicência e a práxis no contexto da Visão de Mundo Africana e/ou da Cosmovisão Africana e que o colonialismo não destroçou visceralmente e tão pouco a colonialidade conseguirá, é o inter-laço com a diversidade que Cheikn Anta Diop, filosoficamente denomina de xenofilia, ou seja, aspecto cultural que concebe o Outro positivamente, em detrimento da xenofobia.

* Teólogo e filósofo afrocentrado. Coordenador da Escola Livre Ubuntu de Filosofia e Teologia Afrocentrada.


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Narrativas Negras Importam: a contação de histórias negroafricanas Juliana Correia* A relevância das narrativas negroafricanas está em apresentar positivamente a África e os seus sujeitos - estejam no continente ou em diáspora. Não se propõe aqui a didatização de contos e mitos até porque o ato de contar histórias também é arte e a arte toca a subjetividade de cada um de maneira muito particular. Contar histórias negroafricanas no espaço escolar é uma das formas de combater a desumanização física e simbólica imposta ao povo preto ao longo dos séculos. É promover outras possibilidades de visão de mundo uma vez que, entre as estratégias de dominação arquitetadas pela supremacia branca ao longo dos séculos, sempre vigorou a marginalização ou mesmo o apagamento dos saberes, das práticas, das memórias africanas. Inno Sorsy, contadora de histórias e diretora teatral nascida entre Gana e Togo, afirma que a contação de histórias é também arte visual. Isto porque o ouvinte cria em seu imaginário todas as cenas de acordo com a narrativa. Em entrevista concedida1 em 2016, relatou experiência em Londres, onde vivia, na década de 1990. Por lá, trabalhou contando histórias em escolas. Disse que era frequente a chegada de crianças somalianas, refugiadas de guerras, e, conhecendo os contos da região, compartilhava-os com as turmas. As histórias viravam atalhos. É que as narrativas sobre reis e rainhas da Somália fomentavam representação positiva do Leste da África. Tais histórias repercutiam nas famílias pois as crianças recontavam tudo em casa. Os estudantes londrinos, curiosos, queriam conhecer ainda mais sobre a cultura de africanas/os recém-chegadas/os e a auto-estima das/os pequenas/os imigrantes era elevada por terem sua origem apresentada de maneira poética. As crianças passavam a se relacionar de outra maneira pois as histórias instauravam uma

possibilidade mais humana de se verem. Compreender a criança como sujeito produtor de cultura não nos permite esquecer que um complexo de fatores a integra, como a etnia, por exemplo, refletindo, consequentemente, na sua produção cultural. Um repertório afrocentrado, ou seja, que tenha como ponto de partida as narrativas negras (dos contos da tradição oral africana às histórias escritas por sujeitos negros, a partir das suas próprias experiências e visões de mundo) é de extrema importância para fomentar uma perspectiva positiva da criança negra sobre si mesma e da criança não negra diante as demais. Um repertório negroafricano potencializa o combate ao racismo por “deseuropeizar” referenciais. A afroperspectividade, linha filosófica pluralista, reconhece a existência de várias perspectivas em detrimento ao que é imposto como universal e nos orienta nesta transgressão ao modelo epistemológico ocidental. Sua base é demarcada por referenciais africanos, afrodiaspóricos e ameríndios. Não nivela, nem recusa a validade dos saberes, inclusive os saberes das crianças. Logo, além de um repertório afrocentrado, potente por reverberar a história, a cultura e a ancestralidade negra, urge que ouçamos também o que as próprias crianças contam, especialmente as crianças negras e indígenas, para a construção de outros tempos e espaços para a infância e para a educação.

*Jornalista. Mestranda em Educação pela Universidade Federal Rural do RJ. Linha de pesquisa: Educação e Diversidades Étnico-raciais.

Indicação Nuvem Negra Coletivo Nuvem Negra Indicamos nesta edição livros da literatura infanto-juvenil com enfoque no protagonismo negro para que nossas crianças possam resgatar símbolos e histórias afro-brasileiras para a construção e afirmação da identidade e da auto-estima. Segue nossa lista:

3. 1. 4.

2.

1. ONDJAKI • Ynari – a menina das cinco tranças (juvenil) • Os vivos, o morto e o peixe frito (juvenil) • Ombela (infantil) 2. EDIMILSON ALMEIDA PEREIRA • Reizinho do Congo

3. JÚLIO EMÍLIO BRAZ • Sikulume • Outros Contos Africanos 4. NARCIMÁRIA DO PATROCÍNIO DE LUZ • Obá Nijô

CORREIA, Juliana. A Contação de Histórias Negras como Ferramenta Antirracista na Escola. São Gonçalo, 2016. Trabalho de conclusão de curso (Especialização em Ensino de Histórias e Culturas Africanas e Afrobrasileiras) - Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia. 1

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CAMPANHA #QUADROBRANCO

fonte dos dados: SGU PUC-Rio

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O Nuvem Negra é uma potência autônoma de estudantes e ex-alunas e ex-alunos negros da PUC-Rio que reconhecem em si a necessidade de uma articulação comum, que compartilha resistência, afeto e fortalecimento negro. O coletivo é um espaço de troca, afirmação da identidade negra, acolhimento e luta antirracista. Realizamos seminários, debates e encontros que possibilitam o enegrecer do pensamento e das nossas reflexões. O CNN é aberto à participação de todas e todos negras e negros. Junte-se a nós!

O p ro j e to N u v e m n a s E s c o l a s te m o objetivo de compartilhar com estudantes e professores de colégios públicos e particulares do Rio de Janeiro nossos saberes, histórias, cultura e ancestralidade. Através de contação de histórias, oficinas, rodas de conversa e cines-debate, questionamos a reprodução de práticas racistas vivenciadas no cotidiano escolar e buscamos ressaltar a importância da Lei 10.639 no espaço educacional. Quer o Nuvem na sua escola? Envie um e-mail para nuvemnasescolas@gmail.com ou pela página no Facebook

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