ESPAÇOS CONTEMPORÂNEOS DE INTERFACE COM A MORTE Introdução ao Trabalho de Conclusão de Curso Universidade Federal de Santa Catarina Departamento de Arquitetura e Urbanismo 2013.1 Bruno Cordeiro da Fonseca Or. Luiz Eduardo Fontoura Teixeira
1. Introdução t A Morte A Morte e o homem ocidental A Morte e a Cidade A Morte e o Brasil A Morte e Florianópolis Espaço Espaços da morte Espaços da morte em Florianópolis O Desenho Referências Bibliográficas
1. Introdução t 8 16 22 25 30 33 41 45
AS CIDADES E OS MORTOS 5 Laudômia, como todas as cidades, tem a seu lado uma outra cidade em que os habitantes possuem os mesmos nomes: é a Laudômia dos mortos, o cemitério. Mas a característica particular de Laudômia é a de ser, mais do que dupla, tripla; isto é, de compreender uma terceira Laudômia, que é a dos não nascidos. As prosperidades da cidade dupla são conhecidas. Quanto mais a Laudômia dos vivos se povoa e se dilata, mais aumenta a quantidade de tumbas do lado de fora da muralha. As ruas da Laudômia dos mortos são largas apenas o bastante para que transite o carro fúnebre, e são ladeadas por edifícios desprovidos de janelas; mas o traçado das ruas e a sequência das moradias repetem os da Laudômia viva e, assim como nesta, as famílias são cada vez mais comprimidas em compactos nichos sobrepostos. Nas tardes ensolaradas, a população vivente visita os mortos e decifra os próprios nomes nas lajes de pedra: da mesma forma que a cidade dos vivos, esta comunica uma história de sofrimentos, irritações, ilusões, sentimentos; só que aqui tudo se tornou necessário, livre do acaso, arquivado, posto em ordem. E, para se sentir segura, a Laudômia viva precisa procurar na Laudômia dos mortos a explicação de si própria, não obstante o risco de encontrar explicações a mais ou a menos: explicações para mais de uma Laudômia, para cidades diferentes que poderiam ter existido mas não existiram, ou razões parciais, contraditórias, enganosas. Muito justa, Laudômia concede um domicílio igualmente vasto àqueles que ainda vão nascer; claro que o espaço não é proporcional ao seu número, que se supões infinito, mas sendo um lugar vazio, circundado por uma arquitetura repleta de nichos e reentrâncias e cavidades e podendo-se atribuir aos não-nascidos a dimensão que se deseja, imaginá-los do tamanho de um rato ou de um bicho-de-seda, ou de uma formiga, ou de um ovo de formiga, nada impede de visualizá-los eretos ou agachados em cada um dos suportes ou estantes que ressaem das paredes, em cada um dos capitéis ou plintos, em fila ou esparralhados, atentos às incumbências de suas vidas futuras, e de contemplar numa veia do mármore Laudômia inteira daqui a cem ou mil anos, apinhada de multidões vestidas de modo jamais visto, todos, por exemplo, com barregans cor de beringela, ou todos com plumas de peru no turbantes, e de reconhecer os próprios descendentes e das famílias aliadas ou inimigas, dos devedores e credores, que vão e vem perpetuando os negócios, as vinganças, os matrimônios por amor ou por interesse. Os viventes de Laudômia frequentam a casa dos não nascidos, interrogando-os; os passos ressoam sob os
tetos vazios; as questões são formuladas em silêncio: e é sempre deles próprios que perguntam os vivos, não daquelesvirão; alguns se preocupam em deixar uma ilustre memória de si,outros em encobrir as suas vergonhas; todos gostariam de seguir o fio das consequências, dos próprios atos, mas, quanto mais aguçam o olhar, menos reconhecem um traço contínuo; os nacituros de Laudômia aparecem pontilhados como grãos de poeira, afastados do antes e do depois. A Laudômia dos não nascidos não transmite, como a dos mortos, qualquer segurança aos habitantes da Laudômia viva, só apreensão. Nos pensamentos dos visitantes, acabam por se abrir dois caminhos e não se sabe qual reserva maior angústia: ou se pensa que o número de nacituros supera grandemente o de todos os vivos e de todos os mortos, e, nesse caso, em cada poro de pedra cumulam-se multidões invisíveis, amontoadas nas encostas do funil como arquibancadas de um estádio, e, uma vez que cada geração a descendência de Laudômia se multiplica, em cada funil se abrem centenas de funis, cada qual com milhões de pessoas que devem nascer e esticam os pescoços e abrem a boca para não sufocar; ou então se pensa que Laudômia também desaparecerá, não se sabe quando, e todos os seus habitantes desaparecerão com ela, isto é, as gerações se sucederão até uma certa cifra e desta não passarão, e por isso a Laudômia dos mortos e a dos não-nascidos são como as duas ampolas de uma ampulheta que não se vira, cada passagem entre o nascimento e a morte é um grão de areia que atravessa o estreitamento, e nascerá um último habitante de Laudômia, um último grão a cair que, no momento, está aguardando no alto da pilha.
CALVINO, Ítalo. As Cidades Invisíveis. Companhia das Letras, 1990. 1ª ed.
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INTRODUÇÃO
Introdução
Chega o momento em que nos encontramos frente à necessidade de apresentar à sociedade que estamos prontos para desempenhar a função que escolhemos, por vontade própria, arquiteto e urbanista. Para tanto, aqui, reuniu-se um resultado provisório acerca das pesquisas realizadas em um semestre de busca por conhecimento que se possa usar de base ao desenho de um equipamento de fins funerários, tema esolhido para o presente trabalho. Tema que não surge ao acaso, surge inicialmente por um reconhecimento de qualidades arquitetônicas nos equipamentos funerários, e uma consequente inquietação sobre a necessidade dos mesmos e sua função dentro da cidade. Ao se estudar a morte, podemos nos reconhecer como mortais e, como nossos ancestrais, saber viver. O interesse sobre o assunto tem sua confirmação em um semestre passado, quando foi realizado um trabalho de pesquisa sobre o Cemitério Sáo Francisco de Assis, no bairro Itacorubi em Florianópolis [trabalho disponível em: http://interfacepinduca.wordpress.com/2013/05/06/a-cidade-de-saofrancisco-de-assis/].
cemitério vertical em São João Del Rey datado de 1836, Minas Gerais Fonte: acervo pessoal
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A pesquisa se fundamentou em duas entradas principais: um percurso histórico sobre a relação que o homem ocidental tem com seus mortos e, consequentemente, com a sua morte, e o resultado que essa relação consolidou nas cidades. Entendese que, ao escolher o caminho adotado, muitas lacunas permanecem abertas a respeito da temática da morte. Difícil é não associar o contúdo da morte à preceitos religiosos, justifico que a presença constante de referências à uma religião das parte de ideologias do autor, mas sim da influëncia que esta institui;áo teve na forma;áo da cultura e dos costumes no Brasil, mesmo para aqueles que náo adotaram a mesma. Não objetivou-se chegar a qualquer conclusão final sobre o assunto, pretende-se manter o mesmo aberto, a fim de que o trabalho possa ser continuado ou, mesmo, questionado. Uma parte do processo durante o semestre foi registrado em um blog [http://interfacepinduca.wordpress.com/]. Durante o semestre ocorreram algumas mudanças nas intenções iniciais do trabalho, principalmente por um aprofundamento no tema. O material a seguir se desenvolve em 3 campos, correspondendo a 3 entradas no desenvolvimento do trabalho. O primeiro, A MORTE trata do desenvolvimento histórico da relação do homem com a morte dos seus e com sua morte e dos resultados que essa relação construiu na cidade. O ESPAÇO discorre, ainda que sucintamente, as tipologias dos espaços da morte na cidade contemporânea e na cidade de Florianópolis, escolhida como campor de trabalho. Finalizando, O DESENHO vem em uma tentativa de marcar um gancho entre o trabalho desenvolvido nesse semestre e o que virá, descrevendo as intenções e diretrizes do desenho, de um certo modo superficialmente, já que as reflexões que resultarão no desenho final ainda estão em desenvolvimento. Declaro, ainda, que este caderno não é um produto final, ou mesmo parcial, posi não se pretender em algum momento findar o processo de pesquisa.
Introdução
Por fim, gostaria de agradecer a todas as pessoas que diretamente ou indiretamente puderam dar contribuições ao trabalho. Obrigado.
Bruno Cordeiro da Fonseca Florianópolis, Julho de 2013
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morte
“Aproximo-me suavemente do momento em que os filósofos e os imbecis têm o mesmo destino.” Voltaire
A MORTE E AS SOCIEDADES OCIDENTAIS Os cuidados com o sepultamento dos seres humanos e o culto aos mortos , um pouco enfraquecidos na nossa sociedade contemporânea, não tem sua origem na história recente. Há indícios que podem nos levar a crer que mesmo o homem dito “pré-histórico” já possuía um sentimento de respeito e temor e preocupação com seus mortos. Há, mesmo, indícios de que as primeiras aglomerações ocorrem, se não a uma proximidade física, com uma facilidade de acesso aos locais de sepultamento dos membros do grupo, lugares estes, sagrados, onde o grupo retornaria a fim de realizar rituais. Algo como é costume em algumas religiões, de se considerar certos lugares como sagrados: Meca, Roma, Jerusalem, Pequim. “Em meio às andanças inquietas do homem paleolítico, os mortos foram os primeiros a ter uma morada permanente: uma caverna, uma cova assinalada por um monte de pedras, um túmulo coletivo. Constituíam marcos aos quais provavelmente retornavam os vivos a intervalos, a fim de comungar com os espíritos ancestrais ou de aplacá-los.”
a Morte e o homem ocidental
(MUMFORD, 1998)
“de fato, o destino do homem e do animal são idênticos, do mesmo modo que morrem estes, morrem também aqueles. Uns e outros têm mesmo sopro vital, sem que o homem tenha vantagem alguma sobre o animal porque tudo é fugaz. Uns e outro têm o mesmo princípio e o mesmo fim, vem do pó e voltam para o pó” (Ecl 3, 19-20)
urnas funerárias, Segóvia, Espanha. Fonte: corbis.com
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Em nosso pensamento contemporâneo, a morte pode ter vários significados, porém, na sociedade ocidental, talvez, a idéia mais profundamente enraizada seja a de um fim, por isso pode parecer estranho escrever sobre uma História da Morte. Diferentemente do que seria facilmente aceito, a morte e seus rituais, como ocorrem hoje não são tradições de milhares de anos, mas o contrário, as atitudes perante a morte sofreram modificações profundas em muito pouco tempo, que se deve à uma “capacidade de criar mitos” da sociedade moderna, ao passo de cerca de um ou dois séculos termos uma revolução nos costumes fúnebres. O livro “História da Morte no Ocidente” de Philippe Ariès nos apresenta uma breve cronologia nos mostrando as mudanças do pensamento sobre e das atitudes perante a morte na sociedade ocidental, fundamentalmente na França, nação de origem do autor. Os estudos são baseados em fatos, testamentos e túmulos, e a linha do tempo parte de meados do séc.V.
Leonardo da Vinci em seu leito de morte. Fonte: corbis.com
“Uma rápida investigação levou-me a descobrir a antiga prática funerária, tão diferente da nossa: a exiguidade e o anonimato das sepulturas, o amontoamento dos corpos, o reemprego das fossas, o acúmulo dos ossos nos ossários - signos que interpretei como marcas de indiferençca em relação aos corpos” (ARIÈS, 2012)
Por centenas de anos a sociedade tinha uma relação muito próxima da morte, ao qual Ariès denomina de uma morte domesticada. Mas porque uma morte doméstica? Primeiramente podemos nos lembrar que a espectativa de vida no período era expressivamente mais baixa do que temos hoje, se pensarmos que aos 40 anos um homem ja poderia estar em idade bem avançada e encaminhando sua vida para seu fim, veremos que a presença da morte na sociedade era bem maior do que temos hoje. Era fundamental que se pensasse na morte, nesse período “não se morre sem ter tido tempo de saber que vai morrer”, mortes súbitas eram casos de excepcionalidade, mesmo doenças e peidemias já seriam avisos de que a morte se aproximava e, assim, haveria um certo tempo a se reservar na preparação para sua morte. “O rei Ban teve uma queda grave. Quando voltou a si, percebe que o sangue escarlate lhe saía pela boca, pelo nariz, pelas orelhas: Olhou o céu e pronunciou como pôde... ‘Ah, Senhor Deus, socorrei-me, pois vejo e sei que meu fim é chegado’” (ARIÈS, 2012)
Diversos são os relatos de pessoas que sentiram a morte se aproximar, como o relato do rei Ban ou Trsitão que ”sentiu que sua vida se perdia, compreendeu que ia morrer”. Esse aviso, ou sentimento, da aproximação da morte era dado por signos naturais ou mesmo por uma convicção íntima, menos do que por fatores sobrenaturais ou místicos, algo que se perdeu nas sociedades industriais, um certo reconhecimento espontâneo. Ao se reconhecer como moribundo, próximo de seu adeus, havia tempo suficiente para que se tomasse as devidas providências para que se efetuasse a salvação de sua alma e pudesse adentrar ao reino do céu (É necessário lembrarmos que a Igreja Católica poderia ser a mais influente instituição vigente no período, podendo superar, talvez, os poderes dos reis, antes mesmo de Lutero e das reformas religiosas, então temos aqui uma sociedade dominada pelo pensamento da Igreja Católica). A idéia da existência de uma dualidade corpo/alma foi adotada pela Igreja Católica desde seus primórdios, com Santo Agostinho (354 - 430).
a Morte e o homem ocidental
Essa prática de sepultamentos é um dos mais antigos costumes realizados pelo ser humano, adotado por diferentes práticas religiosas e que permanece até o presente e demonstra que a preocupação com o destino final dos membros do grupo, e de si mesmo, sempre estiveram presentes nas atitudes humanas, diferenciando-nos de outros seres.
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Dentre as providências a serem tomadas, haveriam a necessidade de se cumprir os últimos atos de uma cerimônia pública, quase teatral, presidida pelo próprio moribundo em seu leito e com o máximo de pessoas ao seu redor, familiares, padres, amigos, vizinho e, mesmo, pessoas desconhecidas. Cada indivíduo exercia seu papel, e finalmente o moribundo se colocaria a esperar sua morte. “No Cristianismo primitivo, o morto era representado de braços estendidos em atitude de oração. Espera-se a morte deitado, jacente. Esta atitude ritual é prescrita pelos liturgistas do século XIII. ‘ O moribundo’, diz o bispo Guillaume Durand de Mende, ‘deve estar deitado de costas a fim de que seu rosto olhe sempre para o Céu’. [...] Assim disposte, o moribundo pode cumprir os últimos atos do cerimonial tradicional.” (ARIÈS, 2012)
Desse primeiro recorte histórico a respeito da morte, pode-se concluir, basicamente, duas coisas: primeiro é que a morte era esperada, no leito; e segundo é que a morte, por um longo período histórico, é uma cerimônia pública. Mas do que se tratava essa cerimônia pública? Fundamentalmente era uma cerimônia onde o morimbundo deveria tratar dos encaminhamentos para que sua alma fosse salva, lembrando, novamente, da força de influência da Igreja Católica na sociedade. A Cerimônia da morte começava com um “lamento da vida”, onde se evoca lembranças agradáveis da vida do morimbundo, porem é um momento triste e nostálgico. Após o lamento, ocorre o momento do perdão aos companheiros, familiares e todos que rodeiam o moribundo no momento da cerimônia. O terceiro ato é religioso e divide-se em duas partes, onde a primeira parte é uma confissão dos pecados e a segunda parte é a commendatio animae, que seriam preces dirigidas à Deus. Finalizando o ritual, há o ato eclesiástico onde o padre (ou os padres, pois era muito comum, e prestigioso, que houvesse mais de um padre durante a cerimonia) executava a “absolvição de corpo presente”. Por se tratar de uma cerimônia pública, o quarto onde o moribundo à presidia tornava-se um local aberto de acesso livre.Era comum, por exemplo, acompanhar um cortejo até o quarto do agonizante caso o cidadão passasse pelo mesmo, independente de se conhecer ou não o dono do quarto a que se adentraria,
Dois exemplos de alegorias, datadas do séc.XV, das Ars Moriendi. Os homens são tentados, em seu leito, às vistas do exército do céu e dos demônios. Fonte: wga.hu
esse costume era, inclusive, incentivado pelo moribundo pois a presença de muita gente traria prestígio à sua morte. Algumas presenças eram essenciais à uma boa cerimônia, que seriam os familiares, amigos, vizinhos, crianças (não há nenhuma representação de um quarto de moribundo sem que houvesse crianças no mesmo). “Não apenas não retardavam o momento de prestar contas, como também se preparavam calma e antecipadamente” (A. Soljenítsin, 1968 apud ARIÈS, 2012)
Essa morte, que por séculos permaneceu praticamente imutável, a partir da fase de declínio da Idade Média sofre algumas transformações sutis e o homem ocidental se defrontará com a morte de si mesmo. A primeira modificação é percebida na representação, pelos artífices, do Juízo Final. Nos fins da Idade Media, o homem gradativamente vira o seu olhar para si e para a busca de um auto-conhecimento, essa mudança se reflete nas artes de representação da morte, as Ars Moriendi (arte da boa morte), onde o momento do Juízo Final passa de um destino coletivo da humanidade e adquire características individualistas e chegará a um ponto onde cada ser é julgado individualmente no momento de sua morte. Esse Juízo Final individual aconteceria não mais no fim dos tempos, onde toda a humanidade seria
a Morte e o homem ocidental
Os atos cerimoniais se modificam sutilmente com o tempo, mas essa atitude de entrega espontânea permanece por longo período, basicamente até os períodos da modernindade, quando há mudanças significativas na sociedade e passa a não mais representar a principal atitude perante a morte na sociedade ocidental.
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julgada coletivamente, mas durante a cerimônia de entrega do moribundo, onde de um lado estão os seres celestes e de outro as criaturas do inferno em um guerra pela alma do moribundo. “o moribundo verá sua vida inteira [...] e será tentado pelo desespero por suas faltas, pela ‘glória vã’ de suas boas ações, ou pelo amor apaixonado por seres e coisas. Sua atitude, no lampejo deste momento fugido, apagará de uma vez por todas os pecados de sua vida inteira, caso repudie todas as tentações ou, ao contrário, anulará todas as essas boas ações, caso a elas venha a ceder” (ARIÈS, 2012)
As Ars Moriendi também trazem a figura do corpo em decomposição, não esqueletos e ossos, mas carne, sendo comida pelos vermes, liberando líquidos da decomposição. Essas representações não chegam a ser grandemente difundidas, mas rapidamente o homem adota uma posição de repulsa à esses corpos, repulsa à ideia de que seu corpo irá se decompor, como representado no poema do sécXV: “O CHAROIGNE, QUI N’ES MAS HON, QUI TEMRA LORS COMPAIGNÉE? CE QUI ISTRA (SORTIRA) DE TA LIQUEUR VERS ENGRNDRÉS DE LA PUEUR DE TA VILLE CHAIR ENCHAROIGNÉE” * (P de Nesson apud ARIÈS, 2012)
Gradualmente, o horror dos corpos post-mortem passará, também, para os corpos * Ó carniça, que não és senão vergonha, o que ter-te-á então acompanhado? O que sairá do teu licor, vermes engendrados do fedor de tua carne vil, carniça formada
“Last Judgement”, painel de Angelico em Florença, Itália. Fonte: wga.hu
intra-vitam que estão em estado de degradação, ou seja, os corpos dos idosos e dos enfermos, o corpo daquele que se aproxima de sua morte. Seu corpo em decomposição é um sinal de fracasso do homem que, do fim da Idade Média, ao contrário dos nossos dias, tinha plena consciência de sua mortalidade, e de que sua vida era curta, portanto possuia um amor à vida e um apego ao seu corpo intacto (a idéia de fracasso no período é bem diferente da que temos hoje, talvez por termos uma vida mais prolongada e uma menor consciência da nossa mortalidade). Podemos agora somar os fatos: a representação do Juízo Final individual , o reconhecimento pelo indivíduo de sua biografia e o apego à vida e às coisas possuídas durante ela; como resultado, teremos um homem que toma consciência de si mesmo, e a atitude que tomará frente a essa tomada de consciência é a da individualização das sepulturas e o desejo de se conservar a memória do ser desaparecido. Devido ao ato de se entregar o corpo do defunto à Igreja a fim de que ela cuidasse até o dia do Juízo dispensava a necessidade de sepulturas individualizadas, porém a nova atitude do homem pede que sua memória seja preservada. Inicialmente as pessoas mais importantes, nobres, membros do clero, recebiam uma pequena inscrição. Difundindo-se para a população mais humilde, as paredes externas e internas das igrejas passam a ser forradas por essas pequenas inscrições que trazem o nome, data de sepultamento, função, e algumas, até, contendo cenas do defunto com seu santo padroeiro, ou Cristo, ou algum passagem bíblica, ou então algumas vontades testamentais do defunto como celebração de missas, doação de bens à Igreja.
a Morte e o homem ocidental
É apresentada toda a vida ao moribundo a fim de que seja definido o destino de sua alma conforme o “balanço de sua vida”. Os dois exércitos, celeste e infernal, se posicionam como testemunhas da apresentação da última tentação. Essa idéia se desvirtuará, entre os séculos XVII e XVIII, ao ponto da crença popular dizer que não seria mais necessário esforçar-se durante a vida, pois ao fim dela todos os erros poderiam ser perdoados conforme a conduta do moribundo nos seus últimos momentos, e é somente em meados do séc.XX essa crença perde forças. Essa primeira modificação nas atitudes frente a morte estabelece uma relação mais estreita entre a morte e a biografia de cada indivíduo, aparentemente insignificante, mas uma mudança que introduz um caráter dramático ao ritual da morte.
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A partir do séc.XVIII, o homem das sociedades ocidentais tende a dar à morte um sentido novo, exaltando-a e dramatizando-a, ao mesmo tempo, o homem já não se ocupa tanto da sua própria morte, mas da morte do outro. Paralelamente, no campo das artes, a morte passa associar a morte ao amor, Romeu e Julieta, de Shakespeare, data do fim do séc.XVI e Goethe, importante escritor romântico, escreve suas obras no fim do séc.XVIII. Gradativamente, a morte será considerada conjunta com atos eróticos, sexuais, e a morte passará a ser considerada como uma transgressão social, é o primeiro ato de uma peça que culminará no séc.XIX e XX na ruptura do discurso sobre a morte, da morte interdita. Voltando ao período romântico, a morte não é desejada, mas antes de tudo, admirada pela sua beleza, pela beleza dos corpos enrijecidos pela falta de vida. O ritual, presidido pelo moribundo permanece, mas algo se modificou, além dos atos de responsabilidade do moribundo já mencionados, a multidão de amigos e parentes tem, agora, um papel mais ativo no ritual, é de responsabilidade dos assistentes a comoção.
Túmulos datados de 1613 com representações dos cavaleiros sepultados , capela-mor de St.Mary, Inglaterra. Fonte: corbis,com
“Ora, no século XIX, uma nova paixão arrebatou a assitência. Ela é agitada pela emoção, chora, suplica, e gesticula. Não recusa os gestos ditados pelo uso. Pelo contrário, cumpre-os, eliminando-lhes o caráter banal e costumeiro. [...] Naturalmente, a expressão da dor dos sobreviventes é devida a uma intolerância nova com a separação. Mas não é somente diante da cabeceira dos agonizantes e da lembrança dos desaparecidos que se fica perturbado. A simples ideia da morte comove” (ARIÈS, 2012)
a Morte e o homem ocidental
“Contudo, essas placas tumulares não eram o único meio, nem talvez o mais difundido, de perpetuar a lembrança. Os defuntos previam em seu testamento serviços religiosos perpétuos para a salvação de sua alma. Do século XIII ao séuclo XVII, os testadores (quando ainda em vida) ou seus herdeiros mandavam gravar numa placa de pedra (ou de cobre) os termos da doação e os compromissos do padre e da paróquia. Essas placas de fundação eram, pelo menos, tão significativas quanto as inscrições ‘aqui jaz’. Às vezes os dois se combinavam; outras, a placa de fundação bastava, não havendo a inscrição ‘aqui jaz’. O que importava era a evocação da identidade do defunto e não o reconhecimento do lugar exato da colocação do corpo” (ARIÈS, 2012)
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morte de Trotsky, em um hospital na Cidade do México. Fonte: corbis.com
de luto pede que se possa visitar o local exato do corpo do ente, a fim de amenizar a saudade, e esse local precisa ser privado, exclusivo à família do falecido. Os mortos passam a ter seu local próprio na cidade, disputando espaço com os vivos. As mudanças de atitude frente a morte, na sociedade ocidental ocorreram, até o séc.XIX em um ritmo tão desacelerado, que seus conterrâneos não puderam sentir efetivamente essas mudanças. No séc.XX temos mudanças ocorrendo muito rápidas em vários setores da sociedade, e as atitudes frente a morte não são exceção. Essa última atitude do homem ocidental frente à morte é denominada como morte interdita. Os papéis na encenação da morte se alteram, não se morre em casa, rodeado por parentes e amigos, morre-se no hospital, onde a equipe médica, agora, é quem preside o ritual.
“The American Way of Life”, fotografia de Margaret Bourke-White, 1937. Fonte: corbis.com
— [...] Mas sabe, eles não pensam da mesma forma que nós. Para o americano, pensar em alguma coisa que aborrece consiste em fazer o possível para não pensar nela. O barman trouxe os copos. O velho pegou o dele e se levantou. — Pois bem, à sua saúde! — disse. — À sua — disse Gomez. O velho sorriu tristemente. (SARTRE, 2012)
a Morte e o homem ocidental
Uma segunda grande mudança em meados do séc.XVIII é o sentido novo dado aos testamentos. Inicialmente, o testamento era o documento oficial onde o moribundo garantia que seu legado e suas vontades fossem atendidas. Agora, que os assistentes do ritual fúnebre passam a exercer papel mais importante na encenação da morte, as vontades do moribundo podem ser transmitidas oralmente à seus parentes e amigos e o testamento deixa de tratar dos assuntos relativos à religião como da instituição de missas e escolha da sepultura e passa a ser o documento oficial de transmissão de bens aos herdeiros. O testamento se torna um documento laico e jurídico, apenas, pois a família, a partir de meados do séc.XVIII, tem maior importância na vida e nas decisões do homem ocidental. O período de luto também sofre ligeiras modificações e não mais é necessário limitar as emoções do luto, por um breve período de tempo, os sobreviventes tem a liberdade de expressarem suas emoções, chegando ao um exagero, luto, esse, socialmente incentivado, pois ajuda a superar a perda do ente querido. Esse exagero no luto se dá pois, aos sobreviventes, que possuem maior papel na passagem da morte, resta a dor e a saudade do outro, o temor da morte passa de si próprio para o medo da morte do outro. O Medo da morte do outro, da falta que ele fará, traz consigo a origem do culto moderno aos túmulos e das mudanças ocorridas nas sepulturas, da monumentalização das sepulturas. O período
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“[...] como a morte tornou-se um tabu e como, no século XX, substituiu o sexo como principal interdito. Antigamente, diziase às crianças que se nascia dentro de um repolho, mas elas assistiam à grande cena das despedidas, à cabeceira do moribundo. Hoje, são iniciadas desde a mais tenra idade na fisiologia do amos, mas quando não veem mais o avô e se surpreendem, alguém lhes diz que ele repousa num belo jardim por entre as flores.” (ARIÈS, 2012)
Essas mudanças surgem, originalmente, na America, estendendo à Inglaterra, Países Baixos e Europa Industrial, ou seja, países onde o Cristianismo não tem raízes tão profundas como na França, Espanha ou Itália. Consiste no desejo de poupar o enfermo de assumir sua provação, a verdade passa a ser um problema social. A sociedade moderna é feliz e deve combater qualquer elemento que possa vir a causar um desequilíbrio nessa felicidade, ou ao menos, a sociedade deve aparentar ser feliz, transparecer felicidade. A morte causa um desequilíbrio na felicidade, portanto a morte deve ser negada, esquecida. O hospital é onde as pessoas morrem, pois em casa poderia trazer sofrimento à família. As pessoas morrem no hospital não por ser natural morrer, mas porque os médicos não souberam curar o enfermo. Não existe mais um ritual da morte, morrer passa a ser um assunto técnico, uma decisão declarada da equipe médica não sabemos mais se a morte ocorre quando perdemos a consciência, ou quando os órgãos vitais param de funcionar, a equipe hospitalar é quem decreta a morte do indivíduo. Também se morre no hospital, pois é um local, até certo ponto, público, e as regras da felicidade da sociedade moderna ditam que não se sofre em público, as emoções devem ser reservadas ao particular, Geoffrey Gorer, sociólogo inglês autor de The pornography of death, compara o luto à masturbação: envergonhada, solitária, quando ninguém vê ou escuta. Ariès conclui, estudando Gorer, que a interdição da manifestação pública da emoção agrava o sofrimento dos sobreviventes, que não podem liberar livremente suas emoções.
“Não temos mais experiência da morte dos outros. A experiência espetacular e televisada nada tem que ver com ela. A maioria das pessoas jamais teve ocasião de ver alguém morrer. Trata-se de uma coisa impensável em qualquer outro tipo de sociedade. Ficamos a cargo do hospital e da medicina – a extrema-unção técnica substituiu todos os outros sacramentos. O homem deixa a companhia dos entes queridos antes de morrer. É por outro lado disso que ele morre.” (BAUDRILARD, 1996)
No séc.XX a morte passa de pública à proibida. A sociedade reprime a morte e as manifestações de luto. A ferida causada pelo interdito da morte ainda não está cicatrizada totalmente em nossa sociedade. Apesar de não termos aumentado significativamente nossa expectativa de vida, o homem hoje nega sua mortalidade e mente pra si e para os outros que pode morrer e quando o momento chega à algum próximo, e a morte sempre chegará, é acometido por uma profunda tristeza pois é
a Morte e o homem ocidental
mãe italiana passa pelo luto sozinho, chorando ao túmulo do filho morto na guerra, . Fonte: corbis.com
Nos Estados Unidos, não houve grande influência, como na Europa, de um Romantismo e a morte foi rapidamente transformada em produto de mercado. Inicialmente os terrenos dos cemitérios eram das Igrejas, como no restante das sociedades ocidentais, porém logo surgiram cemitérios em terrenos de associações privadas desvinculadas de qualquer religião. O sistema capitalista americano rapidamente absorve as necessidades de luto e trata de torná-lo cada vez mais atraente à venda e garantir uma permanência de seus serviços. Logo surge a figura dos agentes funerários, responsáveis por tirar os que estão afetados por em estado de luto e restituí-los à sociedade, é necessário maquiar a morte, mas sem fazê-la desaparecer. Os novos ritos americanos trouxeram de volta a possibilidade do luto público, desde que essa morte esteja “bela” o suficiente para ser exposta à sociedade.
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nessa hora que ele se lembra que é mortal. O grande sofrimento do luto não está, exclusivamente, na falta que sentirá do ente falecido, mas, também, na percepção de sua mortalidade. Tanto a sociedade quanto os espaços destinados ao luto não são, hoje, preparados para receber o indivíduo em luto e ao invés de amenizar o sofrimento, acabam por agravá-lo e assim, afastar mais ainda a morte do cotidiano e da natureza humana.
a Morte e o homem ocidental
“A morte é a maior certeza corpórea e é coroada como a rainha das incertezas humanas” (SILVA, 2002)
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A MORTE E A CIDADE Assim como as atitudes perante a morte, o destino dado aos corpos após a morte também sofreu fortes modificações até os dias de hoje. Apesar da familiaridade e do respeito que se havia para com as sepulturas e com a morte, os primeiros grupos sociais do ocidente que se preocuparam e dar algum destino à seus mortos o fizeram, basicamente, através da inumação em áreas afastadas de suas habitações ou através da cremação dos corpos, que significaria um fim definitivo da presença do indivíduo. O decoro proíbe toda referência da morte. A incineração é o ponto limite dessa discreta liquidação e do mínimo de vestígios. Nada de vestígios da morte: desamparo. (BAUDRILARD, 1996)
No começo da era cristã, houve uma série de leis que proibiam os enterros in urbe a fim de que fosse preservada a higiene e a santidade da casa dos habitantes. Apesar do esforço dos governantes e mesmo da Igreja Católica, começa a surgir nos primeiros séculos de cristianismo um hábito novo, que posteriormente será aceito e incentivado pela própria Igreja e, mais recente, novamente proibido, que é o dos enterros dentro das igrejas. João Crisóstomo (349-407 d.C.) exprime essa repulsa por essa nova atitude em uma homilia:
“a cidade dos mortos antecede a cidade dos vivos” Lewis Mumford, A cidade na história
“Cuide de nunca erguer um túmulo dentro da cidade. Se alguém deixasse um cadáver no lugar em que dormes e comes, o que não farias? Entretanto deixas os cadáveres não onde dormes ou comes, mas nos membros do Cristo” (são João Crisóstomo, Opera… Paris, Ed. Montfaucon, 1718-1738, volVIII, p. 71, homilia 74. apud ARIÈS, 2012)
A MORTE E A CIDADE
Havia, inicialmente, um sentimento de repulsa por seus cadáveres e esses povos “primitivos” os mantinham longe o quanto fosse possível, fora das cidades ou à beira das estradas. havia, ainda, o medo de que esses corpos pudessem voltar e uma repulsa pela decomposição dos mesmos e suas consequências. Assim, o homem ocidental, mesmo que por motivos negativos, tinha um sentimento de preocupação com o local do destino final dos seus.
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que proviam dos próprios corpos sepultados no interior das mesmas, nos carneiros, mas principalmente nas grandes fossas destinadas aos “pobres e pessoas de menor importancia social”, os mais ricos eram sepultados no interior das igrejas e um dia também seriam destinados aos ossários. Mais do que o destino último dos restos, era importante que se estivesse “em terreno santo”, a fim de que a alma fosse salva. “ fossa dos pobres, largas e com vários metros de profundidade, onde os cadáveres eram amontoados, simplesmente cosidos em seus sudários, sem caixão. Quando uma fossa estava cheia, era fechada, reabrindo-se uma mais antiga e levando-se os ossos secos para os carneiros” (ARIÈS, 2012)
ilustração de cadáveres sendo jogados na “fossa comum”, Londres, Inglaterra. Fonte: corbis.com
A MORTE E A CIDADE
Membros do Cristo, ou seja, dentro das igrejas. Chegava um ponto onde as cidades cresciam e os cemitérios ja não eram mais extra-urbem, e as populações periféricas passam desenvolver suas habitações em torno dos cemitérios. Não havendo mais um distanciamento das igrejas e dos seus cemitérios, alguns membros do clero, inicialmente, começam a serem sepultados, em críptas subterrâneas (denominados carneiros), dentro das igrejas onde exerciam seus ofícios. Esse costume é inicialmente negado pela Igreja, pois tem sua origem nos cultos dos mártires africanos. Os locais de sepultamento dos mártires eram venerados e visitados pelos vivos, que almejavam serem enterrados próximos a esses “santos” a fim de que a proximidade com eles favorecessem quem fosse enterrado próximo, adaptando à suas crenças, os seguidores da Igreja Católica almejavam serem enterrados próximos aos seus santos. “cuidarão de nós enquanto vivemos com nossos corpos e se encarregarão de nós quando tivermos deixado nossos corpos” [Patologia Latina, volLVII, col. 427-428 apud ARIÈS, 2012]
Basicamente, até o período do Renascimento, as igrejas se tornam o local principal de deposição dos corpos. Essas igrejas, tambem, eram decoradas com ossos humanos
Lawrence Olivier interpretando Hamlet ao encontrar o crânio de Yorick. Fonte: corbis.com
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O aspecto público da morte ainda é forte, os cemitérios eram fortemento habitados, tornando-se um local de encontro e comércio, danças, festas, música, trocas, serviços, enfim, um espaço público de intensa vida urbana. Essa vida nas áreas cemiteriais não dura muit até que as administrações criam leis a fim de proibir essas práticas. Ato V, Cena 1 Elsinore. Um cemitério. [...] Hamlet. - Quanto tempo um homem jaz na terra antes de apodrecer? Primeiro Palhaço [coveiro]. - D’boa fé, se ele não estiver podre antes de morrer, como temos muitos corpos hoje-em-dia, que mal suportarão o enterro, ele te durará uns oito anos ou nove anos. Um curtidor te durará nove anos. Hamlet. - Por que ele mais que outro? Primeiro Palhaço [coveiro]. - Ora, senhor, seu couro é tão curtido com sua ocupação, que ele manterá a água de fora um tempo maior e tua água é um sério corruptor de teu corpo filhode-meretriz. Ele é um crânio agora. Este crânio jazeu na terra por três e vinte anos.
Podemos afirmar que o crescimento de uma cidade não se da de forma aleatória, ao acaso. Há diversos fatores que podem influenciar o crescimento de uma cidade em direção à determinadas áreas, os planos diretores são exemplos de direcionadores de crescimento urbano. “Instrumento básico de um processo de planejamento municipal para a implantação da política de desenvolvimento urbano, norteando a ação dos agentes públicos e privados. (ABNT, 1991) “O Plano Diretor pode ser definido como um conjunto de princípios e regras orientadoras da ação dos agentes que constroem e utilizam o espaço urbano.” (BRASIL, 2002).
Para o prof. Flávio Villaça, a expansão territorial de uma cidade se dá altamente influenciada pelas infra-estruturas existentes, fundamentalmente as infra-estruturas que viabilizem os transportes de pessoas. Ao mesmo tempo, a configuração atual da maioria dos equipamentos cemiteriais, no Brasil, são considerados como equipamentos desvalorizadores do solo urbano. Temos, então, uma dualidade
A MORTE E A CIDADE
Hamlet. - De quem era ele? Primeiro Palhaço [coveiro]. - De um filho-de-meretriz louco, ele era. De quem você pensa que ele era? Hamlet. - Não, eu não sei. Primeiro Palhaço [coveiro]. - Uma pestilência nele por um bandido louco! Ele despejou uma jarra de Reno em minha cabeça uma vez. Este mesmo crânio, senhor, foi o crânio de Yorick, o bobo do rei. (SHAKESPEARE)
Litografia de 1550 representado o Cemitério dos Inocentes em Paris, França. Fonte: corbis.com
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de atração x repulsão provocada pela instalação e viabilização dos acesso aos equipamentos cemiteriais. O aspecto repulsivo não se dá exclusivamente por questões simbólicas da proximidade à corpos, mas tambem por aspectos de higiene. Os processos de industrialização ocasionam um grande crescimento da população urbana e, juntamente, ficam mais evidentes seus problemas por falta de planejamento, como áreas insalubres dentro do território urbano, falta de saneamento básico. Logo surgem problemas de saúde pública, causadores de doenças, e a necessidade de uma ação por parte dos governantes e planejadores da cidade. Dentre esses causadores de doenças há um que chama atenção, muito citado por médicos no Brasil no séc.XIX, os miasmas, supostamente provocados pela disseminação de gases da decomposição dos corpos humanos. Nesse período, no Brasil, as pessoas eram, fundamentalmente, inumadas dentro das igrejas, no interior das grossas paredes ou abaixo do assoalho, dentro das mesmas, também, eram realizadas, além das celebrações religiosas, reuniões, aulas e mais atividades relacionadas à aglomeração de pessoas dentro das igrejas. “Muitas vezes ares maléficos, os “miasmas” (emanações fétidas da decomposição dos corpos) que saiam das igrejas, foram acusados como fator de disseminação de várias epidemias que assolaram a cidade” (CABRAL, 1972)
A co-presença dos vivos e mortos no mesmo ambiente, juntamente com os discursos dos médicos a respeito dos miasmas causadores de doenças, gradativamente causará um desconforto e medo dos corpos em decomposição. Focault, cita o exemplo do Cemitério dos Inocentes, em Paris no séc.XVII:
Litografia de 1885 representado os miasmas, Nova York, EUA. Fonte: corbis.com
“[...] no espírito das pessoas da época, a infecção causada pelo cemitério era tão forte que, segundo elas, por causa da proximidade dos mortos, o leite talhava imediatamente, a água apodrecia, etc. Este pânico urbano é característico deste cuidado, desta inquietude político-sanitária que se forma a medida que se desenvolve o tecido urbano.” (FOCAULT, 1985)
Eis que as primeiras reformas urbanas higienístas, no Brasil, ocorrem na capital Rio de Janeiro, como abertura de largas vias de circulação, instalação de esgoto sanitário, melhoria no abastecimento de água. A partir da segunda metade do séc. XIX, no Brasil, essas idéias tornam-se consenso entre as autoridades das cidades mais importantes e a necessidade da exclusão dos cemitérios de dentro do perímetro
A MORTE E A CIDADE
“[...]os mortos vieram a ocupar os mesmos templos que frequentavam em vida, onde haviam recebido o batismo, o matrimônio, e onde agora testemunhariam as cerimônias e negócios corriqueiros da comunidade pois, naquela época as igrejas serviam de recinto para reuniões, sala de aula e auditório para as mais diversas finalidades. Enquanto houvesse espaço físico, todos os mortos seriam sepultados no interior das igrejas. No início, fora das igrejas somente eram sepultados os escravos, os acatólicos, judeus, protestantes e sentenciados.” (SILVA, 2002)”
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Sabemos, hoje, que esses miasmas não seriam os reais, ou principais, causadores das epidemias urbanas do séc.XVIII, o que não significa que não se deve ter um cuidado especial com o destino dos corpos humanos no que se refere à higiene pública. Os cemitérios são como “laboratórios de decomposição” (ROSA, 2003), onde há diversas transformações nos cadáveres. A decomposição se daria em duas fases: Uma primeira fase de duração aproximada de 6 meses. Nessa fase desenvolvem-se microrganismos anaeróbicos, concentrados principalmente nas cavidades intestinais, e são liberados diversos gases e um líquido levemente mais viscoso que a água com alta capacidade de poluição do lençol freático, caso não tratado corretamente. É neste período que se exalam os gases malcheirosos. Na segunda fase, de longa duração, cerca de 3 anos, microrganismos aeróbicos se desenvolvem, e ao final da mesma restarão somente os ossos e uma pequena quantidade de húmus.Os microrganismos que se desenvolvem com a decomposição dos cadáveres podem ser extremamente nocívos aos seres humanos, e podem se espalhar pelo ambiente pela contaminação das águas. Há, ainda, a possibilidade de contaminação por indivíduos cuja “causa mortis” seja uma doença com contágio via aérea ou, mesmo, que foram tratados com elementos radioativos, que deverão ter um tratamento adequado que possa acelerar a decomposição do corpo ou que, ao menos, não permita que seus resíduos tenham contato com o ambiente externo. Os cuidados que se deve ter com o destino dos corpos são tão importantes para a saúde pública que RIGOTTI (apud ROSA) aconselha que a a desativação de um cemitério, que só deve ocorrer por motivos de higiene ou de ordem pública, obriga durante 10 (dez) anos, pelo menos, a manter o terreno em estado de descanso, sem nenhum sepultamento, e por um espaço de 20 (vinte) anos não se deve permitir o erguimento de qualquer edificação ou destinar o solo ao cultivo. Em contrapartida, esses equipamentos podem ser como ativadores de urbanidade. Sobre uma sociedade baseada na economia pré-industrial, poderíamos dizer que era mais importante estar próximo, fisicamente, dos recursos naturais (matéria prima para construção, fontes de água potável, terras agricultáveis) a fim de se ter uma boa localidade para instalação de um povoado ou vila. O desenvolvimento dos meios de comunicação e transportes de matéria prima e energia fez com que a urbanização
fosse facilitada, mas poderíamos dizer que quanto maiores as facilidades de acesso à infra-estrutura de transporte de pessoas, maior será a capacidade de urbanização de determinada localidade. É nesse princípio que se fundamenta Villaça para defender que uma cidade crescerá em direção às áreas com melhores possibilidades de deslocamento de pessoas. Sposito ainda reafirma enfatizando que a distância física é menos importante, hoje, do que a distância temporal. “A difusão do uso do automóvel e o desenvolvimento do sistema de transporte coletivo sobre trilho permitiram a extensão do tecido urbano e a revolução nos parâmetros de quantificação das distâncias, pois os deslocamentos não são mais avaliados pelo sistema métricos ou equivalente, mas pelo tempo necessário para tal. (...) A generalização da informática e das comunicações por satélite rompem a necessidade da proximidade, ou da continuidade reforçando a possibilidade da cidade descontinua e fragmentada” (SPOSITO, 1996, p.81).
E onde entram os cemitérios nisso tudo? As reformas higienistas, como já foi dito, retiraram os cemitérios das áreas urbanas e foram instalados fora do perímetro da área urbanizada na cidade, na época. Para que fosse realizados os cortejos fúnebres e uma manutenção adequada das áreas cemiteriais pudesse ser feita, as autoridades municipais foram obrigadas a garantir facilidades de acesso à essas áreas. Em grande parte dos cemitérios municipais hoje, vemos seu entorno bem densificado com
A MORTE E A CIDADE
urbano torna-se prioridade das prefeituras, dentro dessas prioridades podemos colocar a instalação do cemitério no Morro do Vieira (atual cabeceira insular da ponte Hercílio Luz) e posterior transferência do mesmo para o bairro do Itacorubi.
as distâncias são medidas de acorco com o tempo que se gasta em seu deslocamento. Na foto, skyline à noite em Shangai, China Fonte: corbis.com
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pouca, ou nenhuma, área disponível à expansão, isso nos leva a crer que apesar dos aspectos simbólicos e de higiene da proximidade aos cemitérios, a população soube aceitar essas negatividades em favor de uma facilidade de deslocamento territorial.
mais justificada pelos argumentos iniciais à sua instalação. CORRÊA destaca alguns pontos que seriam determinantes para a manutenção dos cemitérios nesse processo de inércia:
Temos, então, os cemitérios simultaneamente como equipamentos atratores e repulsores de urbanização, mas, contraditoriamente, o assunto não é tratado em planos diretores ou planejamentos urbanos. Por que?
- Custos elevados para uma relocação em relação à uma baixa margem de lucro na readequação das terras - Serviços diretamente relacionados ao prestado pelo equipamento que poderiam perder as vantagens na localização próxima ao equipamento cemiterial. - A possibilidade de conflitos com outros usuários do solo urbano frente ao atual consentimento do usuários que já habitam no entorno de um cemitério - Força simbólica atribuída ao local ROSA ao analisar Corrêa conclui que:
As áreas próximas à cemitérios públicos, inicialmente, não apresentam valor que seja atrativo ao mercado investidor, por se tratar de áreas distantes do perímetro urbano e com baixa infra-estrutura mas, como vimos, a infra-estrutura viária instalada para se dar acesso a esses cemitérios facilita a urbanização na direção dos mesmos e gradativamente a área de entorno ao cemitério pode vir a tornar-se interessante ao mercado imobiliário. Por se tratar de um equipamento sensível, os cemitérios acabam por sofrer um processo de inércia até o ponto onde sua localização não é
- seria extremamente oneroso ao poder público municipal adquirir novos terrenos para fins de cemitérios, além do descontentamento que provocaria na população da região escolhida para ter um equipamento urbano desse tipo próximo de suas residências. - há inexistência de conflitos em torno dos cemitérios, já que os moradores se habituaram a conviver com uma vizinhança tão incomum. Ao mesmo tempo seria difícil, pelo misticismo atribuído a essas áreas, encontrar pretendentes, pelo menos residenciais, a essas porções do espaço. O fato de que os outros usuários não detêm poder para forçar a remoção dessas unidades é também um fator para a permanência do processo de inércia; (ROSA, 2003, p96) É preciso que dentro da cidade os cemitérios sejam considerados um equipamento urbano tão essencial como outro qualquer e recebam mais atenção do planejamento, o que hoje não lhe é dispensado, ainda que sejam o símbolo mais inexorável da finitude humana dentro do espaço urbano. (ROSA, 2003, p97)
A MORTE E A CIDADE
Por mais de um milênio, estava-se perfeitamente acomodado a convivencia de vivos e mortos até que no fim do séc. XVII começa a se achar um tanto constrangedor a a coexistência dos vivos no então local de deposição dos mortos. De repente, os enterros dentro das igrejas se tornaram insuportáveis, a saúde publica ataca ferozmente os “miasmas” emanados pelos corpos em decomposição que, segundo os médicos higienistas, eram as grandes causas de doenças e mortes. As primeiras reformas urbanas surgem com as preocupações higienístas, ainda sem a presença de urbanístas, nesta fase se torna consenso, por estarem associados à propagação de doenças, à exclusão dos cemitérios do perímetro urbano. Mais tardar, idéias modernistas chegam ao Brasil, propagandeadas, principalmente, por Le Corbusier com objetivo de fundir princípios filosóficos, sociais e de racionalidade técnica. As cidades seriam adequadas aos quatro princípios do urbanismo modernista: habitação, trabalho, lazer e circulação, os cemitérios, por não se enquadrar em nenhum dos quatro princípios, são deixados de lado nas prioridades dos planejamentos urbanos. Com o processo de industrialização no Brasil, milagre econômico e consequente êxodo rural, as cidade se incham e surgem seus efeitos colaterais, pois as cidades não receberam um planejamento necessário para receber as pessoas vindas do campo. A partir de então, as transformações urbanas se focam no sentido de minimizar os efeitos do inchaço provocado pela rápida expansão, com propostas imediatístas, mais focadas em uma propaganda política do que numa real transformação do território urbano, os grandes projetos urbanos acabam sendo deixados à iniciativa privada ou vão ao encontro dos interesses da mesma.
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A MORTE E O BRASIL No Brasil, assim como nas colônias espanholas da América, o que prevalecia era um “desejo de ser Europa”, refletido em toda carga cultural trazida diretamente pelos navios colonizadores, como posteriormente sendo “atualizado culturalmente” em relação à Europa nos trajes, costumes, danças, músicas, religião, sistemas construtivos, estilos arquitetônicos e, inclusive, nas atitudes do homem perante sua morte e no jeito de tratar seus mortos, havendo um certo atraso quando de algumas modificações nessa relação, devido à lenta comunicação entre os continentes. É consenso, até meados do séc. XVIII, o costume de sepultar os seus dentro das igrejas, ou no entorno delas, assim como na Europa cristã, era necessário que o corpo fosse mantido sob proteção da Igreja até que chegasse o dia de uma outra vida.
A Morte e o Brasil
“A morte não era então vista como o fim do corpo apenas, pois o morto seguiria em espírito rumo a um outro mundo, a uma outra vida. A rigor não havia morte, ja que se vivia em profundidade a crença ma imortalidade da alma” (ALENCASTRO, 1997, p96)
“Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.” Oswald de Andrade, Manifesto Antropofágico
“Enterro de um negro na Bahia”, Johann Moritz Rugenda, 1833, Brasil. Fonte: people.ufpr.br
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uma mescla da cultura predominante católica do europeu colonizador. Porém, predominante não era a cor branca na pele da população, a grande maioria de origem negra e mestiça trouxeram, de seus costumes originais, contribuições que refletem em particularidades em relação ao comportamento europeu, em toda a população, branca ou negra. Os descendentes dos africanos faziam seus rituais e cortejo fúnebres em clima de grande festa, danças de forte expressão corporal , som de percussão de atabaques. Uma tradição de origem africana que tomou força no séc.XIX e permanece na nossa sociedade até os dias de hoje é a do culto aos mortos. “Todos viam os espíritos ancestrais como forças poderosas que os ajudavam a viver o cotidiano e asseguravam-lhes uma boa morte. [...] a falta de ritos fúnebres e sepultura adequados conturbavam a travessia do africano para o Além” (ALENCASTRO, 1997, p99) “Funeral do filho de um rei negro”, Jean Baptiste Debret, 1834, Brasil. Fonte: people.ufpr.br
Em meados do séc.XIX, as relações tanto do homem com sua própria morte, quanto da relação dele com a morte do outro começam a sofrer algumas mudanças que terão certo reflexo na composição das necrópoles na cidade. A morte era como um “evento social”, todo o ritual fúnebre deveria ser realizado e o cidadão não deveria morrer sozinho, isolado, mas com seus amigos e parentes participando da sua morte. Após constatada a morte, haveria o cortejo do morto enrolado em mortalhas, da casa do morto ao local a ser sepultado, preferencialmente na igreja de seu santo protetor. Era necessário, ao morto, ser visto, adquirir uma certa visibilidade, muita gente, muitos padres, crianças, amigos, mendigos e mesmo desconhecidos, todos eram convidados à celebração da morte.
“Se nos pusermos a procurar as origens das relações entre vivos e mortos nas cidades paulistas, acredito que não poderemos sequer afirmar que os vivos chegaram antes” (CYMBALISTA, 2002, p27)
“Além de muitos padres, todo funeral respeitável deveria ter orquestra. Nada mais espetacular e saudável do que morrer com música” (ALENCASTRO, 1997, p120)
“Juntamente com o pároco, viriam os encontros, as trocas, a possibilidade de instalação de casas, comércio, serviços no patrimônio da capela solicitada” (CYMBALISTA, 2002, p28)
“Talvez mais do que em qualquer outro aspécto da existência, na morte explicitavam-se de maneira espetacular as distinções sociais” (CYMBALISTA, 2002, p33)
Do contato com povos indígenas nativos e povos africanos escravizados, há
Gradativamente a celebração da morte se torna mais individualísta e mais próxima
A Morte e o Brasil
No entanto, no Brasil havia poucas cidades, ou vilas, e a grande maioria da população vivia nas no campo e áreas rurais onde nem sempre havia a disponibilidade de igrejas ou capelas onde se pudesse inumar seus mortos. A designação de terrenos como “santos”, nas áreas rurais, a fim de se permitir a inumação no mesmo e, principalmente, da população aceitar ser inumada fora das paredes de uma igreja. Era comum, então, que ricos senhores de terras destinassem boa parte de suas heranças para a edificação de capelas e igrejas no local onde seriam sepultados, a fim de que suas almas fossem salvas. Algumas cidades puderam ser fundadas a partir dessas capelas, como é o caso de Itu, Campinas e Limeira, descritos por Cymbalista na obra Cidade dos Vivos.
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“A Cemiterada é um exemplo do conflito entre tradição e reforma [...] Mais especificamente, ela pode ser entendida à luz das mudanças de atitudes frente a morte e aos mortos, em parte do mundo católico, entre meados do século XVIII e meados do XIX, aproximadamente.” (REIS, 2006, p. 229)
Reccém auto-declarado independente do Reino de Portugal, o país se encontrava em situação financeira muito desfavorecida, sem dinheiro para bancar por conta própria os investimentos para instalação das novas necrópoles fora da cidade, dependendo da iniciativa privada, Igreja e associações de caridade para doação de terras e donativos para a instalação de tais equipamentos. Portanto, o séc.XIX é o primeiro, e único, momento em que o planejamento urbano das cidade leva em conta a necessidade de locais para o destino final de seus cidadãos, mas coube ao capital privado a resolução do problema. Em algumas cidades já existiam cemitérios fora das igrejas, normalmente destinados a pessoas de outras religiões que não a católica, estes que eram proibidos de serem enterrados dentro das igrejas ou, em alguns casos, do lado de fora das mesmas. Isso facilitou que, em algumas cidades, como é o caso, Florianópolis, já houvesse uma possibilidade de local a se instalar o novo cemitério, mas a população ainda relutava a aceitar esses novos espaços, distantes de suas casas. Apesar de fortes, os esforços das administrações municipais na composição de leis proibindo sepultamentos in-situ, a criação de altas taxas, multas e mesmo prisão a quem realizasse tais sepultamentos, são as epidemias o principal
fator para que essa população aceitasse os novos cemitérios. “A febre Amarela fêz, no séc.XIX, pelo menos cinco indesejáveis visitas ao Desterro. [...] Diagnosticado o mal em dezembro, em janeiro de 1850 os casos já somavam 24, notificados pela Santa Casa. [...] Em dois meses, toda a cidade estava tomada. A devastação foi completa – e só os que fugiram da cidade, para fora ou para os seus pontos mais elevados, tinham possibilidade de escapar. [...] nas igrejas não cabiam mais cadáveres; foi proibida a divulgação estatística dos mortos.” (CABRAL, 1972, p468) “Dentro do movimento de higienização que toma conta da recémconquistada urbanidade brasileira, nada mais restava senão separar a riqueza da pobreza, o centro da periferia e os mortos dos vivos. Fronteiras delimitadas, espaçoes estabelecidos.” (CYMBALISTA, 2002)
O séc.XX traz consigo as idéias de modernidade e o Brasil é pioneiro no pensamento modernista, tanto nas artes como na arquitetura e urbanismo (Semana de Arte Moderna, 1922; Edifício Gustavo Capanema, 1947). Encabeçados por Le Corbusier e a Carta de Atenas, buscam a construção de uma cidade viva, para um homem ideal, fundada em 4 princípios básicos de espaço: espaços para o habitar, trabalhar, recrear e circular. A morte não se encaixaria nos princípios de uma cidade moderna, a morte é triste, anti-higiênica, e assim a morte é banida do planejamento de uma cidade, mesmo a Carta de Atenas, de 1933, náo chega a citar a necessidade de necrópoles na cidade. Contraditoriamente, a morte se ausenta da vida das pessoas. No mesmo século, vemos um desenvolvimento dos meios de comunicação e um pareamento entre as atitudes perante a morte aqui no Brasil e na Europa. Desde então, a morte não é mais discutida em urbanidade e volta a ser discutida em nossos dias, quando os cemitérios estão em sua total capacidade e sem espaço para expansão, pois a cidade ja tomou conta de todo seu entorno.
A Morte e o Brasil
de representar na morte as hierarquias da vida. Paralelamente, vão surgindo as idéias dos médicos higienístas, que propõem “limpar” a cidade de agentes causadores de doenças e epidemias. Um dos pontos fortemente atacados eram os “miasmas”emanados pelos cadáveres em decomposição, e a forma mais rápida de eliminá-los era por meio da retirada dos mortos do mundo dos vivos, retirá-los dos limites das cidades, em lugares altos, arejados, longe de fontes de água potável. Mas, em algum momento a saúde física dos vivos sobrepujaria a saúde espiritual dos mortos. Por todo o território nacional, leis foram sendo criadas, terrenos reservados à implantação de necrópoles. Porém a transição dos cemitérios de dentro das igrejas para fora dos limites municipais não foi rápida e nem pacífica. O processo que durou várias décadas na Europa é forçado a ocorrer em bem menos tempo aqui no Brasil e diversos são os relatos de cidadãos que se revoltam por se oporem às idéias desses médicos, como a Revolta da Cemiterada de 1836, na Bahia, onde a população se revolta frente à lei que proibia os enterros no interior das igrejas de Salvador.
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A MORTE E FLORIANÓPOLIS Os primeiros habitantes de nossa cidade, que temos conhecimento, são os povos indígenas “carijós”, povos de lígua tupi-guarani que denominavam nossa ilha de Meiembipe e Jurerê Mirim. Já esses povos primitivos conheciam técnicas de cerâmica que seria utilizada na confecção de “urnas funerárias”, onde se depositavam ,além de restos mortais, objetos de pedra ou cerâmica. Quando mortos, eram sepultados embaixo de terra e uma mistura de cascas de moluscos, ossos e outros objetos, esses locais foram denominados “sambaquis”.
Othon D’Eça, Homens e Algas
“Nessa época, face aos deficientes hábitos e condições de higiene, ausência de recursos médicos e doenças contagiosas, eram frequentes casos de óbitos.” (SILVA, 2002)
Assim, o primeiro local de deposição de corpos foi junto à capelinha (atual catedral), pois já era de costume trazido pelos colonizadores a inumação dentro das igrejas ou seus arredores. “em Desterro, os mortos vieram a ocupar os mesmos templos que frequentavam em vida, [...] e onde agora testemunhariam as cerimônias e negócios corriqueiros da comunidade pois, naquela época as igrejas serviam de recinto para reuniões, sala de aula e auditório para as mais diversas finalidades.” (SILVA, 2002) “Desde os primeiros tempos que foi prática supersticiosa, aceita por tôda coletividade, fazerem-se inumações dentro das igrejas, fôssem na espessura das grossas paredes, fôssem abaixo de seu piso. [...] Rico ou pobre, ninguém admitia outra forma de ser enterrado” (CABRAL, 1972)
a morte e florianópolis
“Certo, das outras vezes não houvera aquele despropósito de vento e chuvas; uma tormenta de águas como há muito não se via em Coqueiros, embora para um pescador ficar debaixo da canoa, roído pela corcoroca, não careça de ventos nem temporais. O Bento Silva não fora tirado já morto, à vista da casa, com a mulher e o povo clamando na praia¿ e o Dimbo Pierre não se afogou no rio da Palhoça, com a tarrafa enroscada nas pernas¿ E o mar não estava que nem uma poça de tão liso e tão quieto¿ - Deus está no céu e vê tudo o que se passa na terra. - Mamão, papai vem hoje¿ - Vem sim… que a Nossa Senhora dos Navegantes assim quer. - Mas cala a boca que podes acordar o Ricardinho, que está doente. *** O sudeste calmou, o Cruzeiro cintila muito baixo e a lua nova parece um C de giz que a noite riscou na lousa negra do céu. - O tempo vai mudar pra bom… - Lua nova em pé… marinheiro deitado. - Disque toparam um corpo… - Aonde¿ - No Massiambu. o José Lino… Os outros não se sabe por onde bóiam! - Sem uma cruz!… Talvez até no bucho dos peixes, credo!”
A fundação do povoado de Nossa Senhora do Desterro na ilha se dá no séc.XVII, por iniciativa do bandeirante Francisco Dias Velho, que dá inicio à lavouras e algumas construções, no local onde hoje se situa a Praça XV de Novembro e imediações. O povoado não chega a ter expressão frente à nação pos se resume a poucos moradores, cerca de 100 pessoas, até meados do séc.XVIII.
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“Em 1750, na direção do norte da Ilha, os açorianos se instalaram em Santo Antonio de Lisboa, de onde avançaram para o Rio Ratones, Canasvieiras e Rio Vermelho. Ao sul, estabeleceramse no Ribeirão da Ilha e na época das armações de pesca baleeira, parte deles deslocaram-se para o local conhecido atualmente como Armação da Lagoinha.” (IPHAN, 2011)
Essas freguesias eram destacadas fisicamente do distrito sede, porém se comunicavam aos mesmos através de embarcações pelo mar, os caminhos por terra eram inexistentes ou de péssima qualidade, tornando inviável a comunicação por terra entre essas populações. Essa configuração faz com que essas freguesias se consolidem como núcleos habitacionais quase independentes, possuíam suas igrejas ou capelass, sobreviviam da agricultura e pesca, realizavam algumas trocas comerciais no mercado central da cidade, translocando-se por barco.
descoberta de ossadas abaixo do assoalho da catedral de Florianópolis. Fonte: globo.com
a morte e florianópolis
Uma coisa deve ser destacada: assim como outras cidades brasileiras, ou povoados, vilas, em Desterro a preocupação com a higiente era mínima, se não inexistente, e esse fato se manterá por muitos anos, até, pelo menos, as primeiras reformas urbanas no séc.XIX. As inumações continuariam sendo praticadas dentro das igrejas, os recursos de saúde pública são escassos e os óbitos são parte do cotidiano dos habitantes. O séc.XVIII trouxe à ilha, pelo mar, além das diversas epidemias, imigrantes vindos do Arquipelago dos Açores. Esses imigrantes fundaram as freguesias, com a finalidade, entre outras, de ocupar as terras do sul do Brasil para que os espanhóis não tomassem posse desses territórios. Se instalaram na região do distrito sede, encaminhando-se ao Morro da Cruz e atravessando até a região da Trindade e Corrego Grande, na porção continental na Enseada do Brito, Laguna, São Jose da Terra Firme e São Miguel da Terra Firme (atual Biguaçu); além das freguesias no interior da ilha ao norte e sul. mapa de Florianópolis, datado de 1832. Fonte: google.com
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O início do séc.XIX é marcado por diversas epidemias e a co-presença dos mortos nos espaços dos vivos começa a se tornar um inconveniente. Em 1830 são implantados os caixões ou urnas para o trasnporte dos cadáveres, abertos, pertencentes às inrmandades ou à municipalidade, eram emprestados, ou alugados a fim de se transportar o defundo da casa do falecido ao local de sua inumação, e logo depois seriam lavados para serem usado pelo próximo morto. Apesar de tomados com muito respeito pelos cidadãos, os cortejos fúnebres acabavam por espalhavam o mal cheiro pela cidade. Na mesma década, a administração minucipal já começa a se preocupar
com a questão da saúde pública e os efeitos dos sepultamentos dentro da cidade. “Com o aumento da população, é óbvio, o obituário também aumentou e o sagrado viu-se a contingência de sair das igrejas portas afora, ocupando os seus flancos e os seus fundos, muitas vêzes até a sua frente, onde se instalaram os cemitérios” (CABRAL, 1972) “Em 1832, surge a idéia de criar-se um cemitério “extra-muros”, fora do perímetro urbano, apresentada por Jerônimo Coelho. Contudo, a idéia não se materializa” (ROSA, 2003) Desde o tempo em que eu me acho empregado, que será de cinco meses, na qualidade de Parocho (sic) desta Matriz, um fétido dos corpos ali sepultados, e agora vendo que se argumenta, a ponto de não poder-se entrar na Igreja sem grave incomodo (sic), e que todos já se queixão(sic), participo a V. Exa para dar providências necessárias, em quanto é tempo, para o público não sofrer este ar corrupto e pestífero assaz danoso (sic) à sua saúde. (Livro de Arciprestes e Vigários, nº 243, 1849 apud ROSA, 2003).
Frente à grande quantidade de pedidos, a municipalidade irá demandar esforços para edificar nova localidade, fora dos limites da cidade para o destino final dos cadáveres. Deposi de muito debatido, o local escolhido é o Morro do Vieira (atual Parque da Luz), devido ao distanciamento da sede municipal e já se preticavam alguns sepultamentos de animais, escravos, indigentes, fato crucial à escolha da localidade para a necrópole municipal. As instalações de infra-estrutura de acesso ao local proporcionaram um avanço da urbanidade na direção noroeste (em direção ao cemitério) a partir do centro da cidade. Ao lado do cemitério público, foi destinada uma área para cemitérios particulares de irmandades e à Congregação Luterana. No entanto, logo se verificaram críticas ao local escolhido.
cemitério no Morro do Vieira. Fonte: google.com
“O novo cemitério. O problema mais palpitante de nossa urbs, é sem dúvida alguma o cemitério. O actual horrivelmente alcandorado no local mais alto da cidade, e dependurado em pendores e declives, nunca se prestou a uma verdadeira casa dos mortos, tal como exige
a morte e florianópolis
“Atenção especial nestas freguesisa, logo no início, face a forte religiosidade destes imigrantes, foi dada à construção das igrejas, as quais a exemplo da área central da cidade, também foram transformadas nos primeiros locais para assentamentos funerários” (SILVA, 2002)
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o urbanismo moderno: amplo, ajardinado com largas ruas e avenidas macadamisadas com muita sombra e frescura.” (40BPESC: O Estado, Florianópolis, 10/07/1915, n.50. p.1. apud CASTRO, 2004)
A cidade cresce em tamanho e importância, e intensificam as críticas ao cemitério que estaria prejudicando a imagem da cidade que se pretendia crescer e modernizar-se. É criada, então, uma lei que permite sepultamentos em uma nova localidade, distante da cidade, no bairro do Itacorubi, porém se matém o costume de sepultamentos no Morro do Vieira. A cidade, então, passará por reformas de caráter higienísta, como a canalização do Rio da Bulha e inalguração da Avenina Hercílio Luz, inspiradas nas reformas no centro do Rio de Janeiro, Porém é somente devivo à construção da nova ligação com o continente, a Ponte Hercílio Luz, que se deu, definitivamente, as exumações e a transferência da principal necrópole da cidade.
esgotamento” (SILVA, 2002) “ilha conta ainda com os seguintes cemitérios municipais distritais [...]: Canasvieiras, Lagoa da Conceição, Ribeirão da Ilha, Santo Antônio de Lisboa, Ratones, Campeche, Armação do Pântano do Sul, São João do Rio Vermelho, Ingleses, Pântano do Sul e Barra da Lagoa. Tratam-se de cemitérios pequenos, esgotados ou em vias de seu esgotamento. Como a exemplo do cemitério do Itacorubi, a maioria deles não tem mais por onde expandir-se pois, foram cercados pela urbanização.” (SILVA, 2002)
“Os restos mortais existentes no cemitério, [...] foram transferidos para o Itacorubi, onde foi inalgurado em 26.11.1925, o maior Cemitério Público da cidade, o São Francisco de Assis. (ROSA, 2003)
“O cemitério que antes parecia ficar tão longe do centro acaba por ser cercado pela urbanização. Com a melhoria do sistema viário e meios de transportes a noção de distância modifica-se e o mesmo passa a ficar de fácil acesso. [...] Não tem mais para onde expandir-se e, em 1990 já falava-se em seu completo
a morte e florianópolis
As décadas seguintes serão de obras facilitando acesso por terra à localidades mais distantes da região central, obras de saneamento e abastecimento de água, abertura de novas ligações ilha-continente e sucessivos aterros. A política de desenvolvimento e crescimento imboliário cria melhorias nos acessos ao norte da ilha, como a rodovia SC-401, facilitando, assim, os investimentos aos bairros do norte da ilha e seu consequente crescimento. Quando da sua inalguração, pensava-se que o Cemitério de São Francisco de Assis jamais se esgotaria, mas o que vemos, hoje é a falta de planejamento das áreas de necópole e a quase totalidade de ocupação das vagas. Segundo dados apresentados por ROSA (2003), ao ser inalgurado o Cemitério São Francisco de Assis, em 1925, a população de Florianópolis era de cerca de 40.000 habitantes, em 2000 a população alcança a marca de mais de 340.000, entre o mesmo período, nenhuma nova necrópole pública foi intalada na cidade.
situação atual do Cemitério São Francisco de Assis no bairro Itacorubi, Florianópolis. Fonte: acervo pessoal
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espaço
““Não se encontra o espaço, é sempre necessário construí-lo.” Gaston Bachelard, O Novo Espírito Científico
ESPAÇOS DA MORTE “As populações urbanas crescem sem parar e, os óbitos também, vindo a exigir soluções adequadas ao seu trato, de forma ética, moral, técnica e ambientalmente aceitáveis.” (SILVA, 2002)
espaços da morte
É aceito, na sociedade, dois tipos básicos de destinação final aos corpos de nosso mortos: sepultamento e cremação. Os sepultamentos acabam por ocasionar a edificação de cemitérios convencionais ou verticais.
“un objeto arquitectónico que sea una ampliación del paisaje, que se disuelva tranquilamente en la naturaleza, casi como si no existier” César Portela
Exemplo de cemitério convencional do tipo parque. Arlington Cemetery, Washington, EUA. Fonte: acervo pessoal
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cemitério vertical de São Miguel e Almas, Porto Alegre. Fonte: acervo pessoal
Os cemitérios convencionais sáo desqualificados arquitetônicamente, com informações em excesso, ambientalmente questionáveis, apesar disso, representam a grande maioria das soluções adotadas pelas cidades brasileiras para suas disposições funerárias. Ao mesmo tempo, poderíamos dizer que o produto mais valioso da nossa sociedade é o solo e, principalmente, o solo urbano. A guerra por espaços dentro da cidade já afeta significativamente as cidades dos mortos, nesse sentido, as tipologias de cemitérios convencionais poderiam ser fortemente atacadas por críticas. Ocupam grandes porções do solo urbano, estão sujeitos à acidentes ambientais que poderiam contaminar o lençol freático com necrochorume (líquido preto, viscoso, rico em minerais pesados, altamente tóxico) e poderiam ser classificados, também, como uma certa poluição visual. Uma alternativa que mantém, quase a mesma tipologia são os cemitérios parques. Surgem, aproximadamente, ao fim da Segunda Guerra, o período da guerra deixou cicatrizes profundas na sociedadem principalemente na Europa, e essa tipologia aparece a fim de suavizar essas feridas, criando os ambientes de necrópole mais “limpos”. A alternativa adquire uma certa aceitabilidade e, a partir das ultimas décadas, começa-se a internacionalizar a ideia, mesmo nos países que não sentiram tão fortemente as marcas da guerra, como é o caso do Brasil. Temos, com essa disposição funerária um ganho por parte do impacto na
paisagem e do tratamento ambiental, porém a questão da alta demanda de solo urbano não é solucionada, em adição, a grande parte desses cemitérios, se não a totalidade, são privados, restringindo o acesso da população à essas disposições. A outra tipologia que utiliza do sepultamento como técnica seriam os cemitérios verticais, seguem a premissa básica da multiplicação do solo urbano, a replicação do mesmo. Há, por parte dessa tipologia, um significativo ganho em relação aos cemitérios convencionais. Pode-se trabalhar adequadamente a qualidade arquitetônica e o impacto na paisagem urbana, tratar os resíduos poluentes consequentes da decomposição dos corpos e ainda ocupam, relativamente, uma porção de solo muito menor que os cemitérios convencionáis, além do fato de manterer o costume mais aceito pela população ou religiões, o de sepultamento. Os lóculos, devidamente selados, não mantém contato com o solo, isolam os resíduos nocívos ao ambiente e ainda aceleram o processo de decomposição dos cadáveres, aponta-se um período médio de 5 anos para a decomposição dos corpos sob a terra, e, nas gavetas (lóculos) das necópoles verticais, decompõem-se em cerca de 2 anos, ao final de ambos, o que resta são ossos e um pó acinzentado com, basicamente, a mesma composição química das cinzas resultantes da cremação.
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cemitério vertical em Finisterre na Galicia, Espanha. Fonte: cesarportela.com
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vêm crescendo no Brasil, ganhando aceitabilidade, principalmente porque é um processo que não gera resíduos tóxicos (as cinzas finais não são poluentes), não ocupa espaço dentro da cidade e, até mesmo, é mais barato financeiramente, em um levantamento feito (SILVA, 2002) encontramos valores entre 450 até 3.000 reais para o processo todo da cremação, enquanto inumações podem chegar a 10.000 reais. Apesar de possuírem alta complexidade, os equipamentos de crematório podem ser implantados em qualquer local da cidade pos não poluem o ambiente, caso seja instalados filtros nas chaminés.
A terceira tipologia, que utiliza de técnica diferente das anteriores, é a cremação, o fim absoluto dos corpos. As técnicas de cremação, apesar de pouco adotadas no Brasil, são bem mais antigas do que se pensaria, e teriam sua origem nas primeiras civilizações, na Idade do Bronze. Muitos povos primitivos adotavam a cremação como destino final de seus membros como alguns gregos, tribos primitivas brasileiras, vikings, hunos, babilônios e povos germânicos. A falta de aceitabilidade por parte da população brasileira pode se dar graças à grande influência que a Igreja Católica teve na formação dos costumes da nossa sociedade, pois a mesma, por um bom tempo, se posicionava contra essa prática. Os povos tradicionais reservavam as cinzas em urnas e as enterravam, a modernidade traz de diferente à cremação é o ato da aspersão das cinzas, convertendo-se, assim, na eliminação total da memória dos mortos (ou, ao menos, a memória física). O processo da cremação
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Crematorium Baumschulenweg, Berlim, Alemanha. Fonte: archdaily.com
Pintura de cremação na Índia, datada do séc.XIX. Fonte: corbis.com
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ESPAÇOS DA MORTE EM FLORIANÓPOLIS
Segundo pesquisas anteriores e levantamento de dados recente, praticamente não há vagas para os mortos, tanto nos cemitérios edificados pela municipalidade quanto nos cemitérios das freguesias. A resposta das últimas gestões municipais se encaminhou para pequenas ampliações da área das necrópoles, sem o devido planejamento, às vezes com dificuldades de acesso; ou ampliações com gaveteiros verticais, desqualificados; ou autorizando sepultamento nas áreas de circulação das atuais necrópoles. A atual gestão da prefeitura se encaminha no sentido de realizar um concurso público de projeto para uma nova necrópole, verticalizada, ao lado do Cemitério São Francisco de Assis. Há uma total inexistência de planejamento das áreas de necópole nos planos urbanos da cidade, ambos planos diretores, Plano diretor do distrito sede, Plano diretor dos balneários e, até mesmo, o anteprojeto do Plano diretor participativo não prevêem áreas destinadas à necrópoles ou qualquer outra disposição sobre o destino que se dará aos mortos da cidade.
“[...] a política que me perdoe mas esta “madame” é muito perigosa, é uma bruxa muito tarasca, porque ela está infelicitando os seus filhos.“ Franklin Cascaes
gaveteiros verticais no Cemitério São Francisco de Assis, Florianópolis. Fonte: acervo pessoal
espaços da morte em florianópolis
A cidade de Florianópolis dispões de 15 necrópoles, sendo 14 na Ilha de Santa Catarina: Canasvieiras, Ingleses, Ratones, Rio Vermelho, Santo Antonio de Lisboa, Itacorubi, Hospital de Caridade, Lagoa da Conceição. Barra da Lagoa, Campeche, Ribeirão da Ilha, Armação e Pântano do Sul como cemitérios públicos, e o Parque da Paz no bairro João Paulo, particular; há, ainda, um cemitério municipal na área continental do município, no bairro de Coqueiros.
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Das 15 necrópoles, foram realizados levantamentos in-situ de 4 delas: , Campeche, Ribeirão da Ilha, Armação e Pântano do Sul. Optou-se por focar o levantamento de dados no sul da Ilha de Santa Catarina por entender que esses bairros, ainda não se encontram em situação de um certo inchaço urbano, possuindo grandes porções de terra livre não edificada, e ainda possuem fortes relações de afeto de seus moradores com as particularidades do local, em contraponto ao norte e centro da ilha que, na maioria dos casos, perderam suas características locais, tornando-se como uma cidade padrão contemporânea. “A Freguesia do Ribeirão da Ilha é sem dúvida um dos bairros mais antigos da cidade, fundado por colonos açorianos em meados do século XVIII, e tem sua importância para a cidade justamente por ser um dos poucos locais onde ainda restam muitas manifestações culturais identificadas com este povo, cuja imigração marcou a feição não só da Ilha, como de todo o litoral catarinense” (RAZEIRA, 2002)
O conjunto da Freguesia do Ribeirão se configura como um dos últimos, se não o último, exemplar das freguesias açorianas para colonização do sul do país que se mantem íntegra enquanto paisagem cultural e urbana, um dos fatores que contribuiu para tanto foi a dificuldade de uma melhor mobilidade urbana, por muito tempo, somente por embarações se chegava ou saía do Ribeirão. Com a
as 15 necrópoles da Florianópolis. Fonte: google.com (modificado)
vista aos fundos do cemitério do Riberão da Ilha. Fonte: acervo pessoal
espaços da morte em florianópolis
Ribeirão da Ilha
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situação atual do cemitério do Riberão da Ilha. Fonte: acervo pessoal
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equipamentos de interesse no entorno do cemitério Riberão da Ilha. Fonte: google.com (modificado)
O Cemitério da Freguesia do Ribeirão da Ilha [1] era anexo à Igreja Nossa Senhora da Lapa [3], porém, hoje, é administrado pela Prefeitura Municipal de Florianópolis e vizinho ao Posto de Saúde do Ribeirão da Ilha [2], atravéz da Praça Hermínio Silva [4], o conjunto igreja e Cemitério ainda mantem uma certa conexão com o mar, configuração típica na colonização Luso-Brasileira, ainda próximo ao conjunto, encontramos o Horto Municipal[5]. O terreno em que o cemitério está inserido é formado por patamares consecutivos, formados por sequências de ampliações de áre para sepultamento, em aclive na direção de leste para oeste (morro do Ribeirão), em sua cota mais alta (aproximadamente 30m), aos fundos do terreno, temos uma visão privilegiada, acima das edificações, de um interessante conjunto paisagístico formado pelo mar da Baía Sul e ao fundo a cadeia do Morro do Cambirela. No entorno do atual cemitério há uma grande porção de terra pertencente à prefeitura, , referente aos fundos do posto de saúde e área verde ao lado do cemitério, há parcelas desse terreno com alta declividade, mas com possibilidade de instalação de um equipamento no mesmo. O plano diretor vigente caracteriza a área como ACI-3 (Área Comunitária Institucional – Áreas de Saúde, Assistência Social e Culto Religioso e Cemitérios) na parte norte, ARE-5 (Área Residencial Exclusiva) na parte sul, o conjunto da Igreja de Nossa Senhora da Lapa e praça adjacente se configuram como APC-1 (Área de Paisagem Cultural – Área histórica) à oeste APL (Área de Preservação com Uso Limitado). E no Anteprojeto para o novo plano diretor, a área aparece como ZMC (Zona Mista Central) das bordas d’água até o conjunto da igreja e cemitério e ZR (Zona Residencial) na área onde está instalado o conjunto, inclusive com os terrenos da prefeitura municipal, desaparecendo as áreas comunitárias, e a APL (Área de Preservação com Uso Limitado) permanece, mas uma parte dessa área ja transformada em área para uso residencial.
espaços da morte em florianópolis
conexão ao restante da ilha, por meio de estradas, inicialmente a população mais jovem pode sair para estudar/trabalhar com mais facilidade e o bairro torna-se um bairro-dormitório. Posteriormente, já com uma população residente mais reduzida, a freguesia começa a adquirir um certo status turístico/gastronômico. Mas os habitantes que permaneceram residentes no Ribeirão ainda mantêm fortes laços com o lugar, as festividades continuam sendo organizadas, algumas delas perderam suas caracteríscas e transformaram-se em grandes festas que reúnem habitantes de toda ilha, outras, como o Terno-de-Reis, continuam íntegras e testemunho do que foi a vida no início da povoação da Freguesia.
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Campeche Devido, principalmente, ao distanciamento, em relação ao distrito sede da cidade, a região do Campeche, assim como outros balneários de Florianópolis, sobrevivia da agricultura e pesca, basicamente, e não se desenvolve muito até o séc.XX. Inicialmente de exclusividade das elites e classes médias, os balneários possuíam dificuldade de acesso e eram compostos por propriedades privadas, mas ainda muito pouco utilizados, é entre as décadas de 50 a 70 que a utilização dos balneários para fins de lazer começa a se efetivar, com implantação de infra-estruturas de acesso aos locais, e consequentemente, começam os loteamentos litorâneos.
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“Nos anos 60, a atividade balneária para a população local se amplia para a classe média alta devido à implantação de um novo sistema de estradas, e esta começa a adquirir lotes para construção de residências secundárias nas praias da Ilha. Portanto, ao longo das décadas de 50, 60 e 70 têmse a conformação dos loteamentos junto à costa, os quais
conjunto da Capela São Sebastião, entrada do cemitério à esquerda nos fundos . Fonte: acervo pessoal
acessos ao cemitério do Campeche . Fonte: google.com (modficado)
espaços da morte em florianópolis
“As praias, no entanto, devido à distância em relação ao centro urbano e também pela deficiência do sistema viário, se mantiveram, até meados do século XX, e especialmente até a década de 70, fora deste processo rápido de urbanização, caracterizando-se como comunidades pesqueiras e rurais nas quais se preservava uma cultura de matriz luso-brasileira que começava a se afirmar na Ilha de Santa Catarina.” (CASTRO, 2008)
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Marcado por belezas naturais, Lagoinha Pequena e a Lagoa da Chica, Ilha do Campeche, personagens históricos como o francês Antoine de Saint-Exupéry, e uma forte urbanização recente, o Campeche é uma importante localidade dentro do município de Florianópolis. Os principais acessos ao bairro, e ao Cemitério do Campeche[1] são realizados pela Avenida Pequeno Príncipe[3] e a Avenida Campeche[2]. O cemitério fica anexo à Capela São Sebastião[4], datada de 1826 e protegida pelo patrimônio histórico (IPUF, 2012), há, ainda uma escola de educação básica[6] bem próxima ao cemitério. Apesar de alocada em um bairro predominantemente residencial, o entorno da necrópole, assim como, basicamente, todo o restante do bairro do Campeche, não possui áreas de praças e espaços públicos de lazer, descanso, ou mesmo contemplativo. Há, apenas, as praias, que não são espaços públicos, mas áreas livres, que podem ser acessadas por caminhos[5] que passam rente ao cemitério apesar de não parecer haver conflito nessa relação. O terreno do cemitério, aos fundos da capela, se apresenta como uma área de fragilidade ambiental, há uma extensa porção de terra entre o equipamento e a Praia do Campeche que apresenta vegetação de restinga com alto risco à alagamentos,
segundo dados do Geoprocessamento do município de Florianópolis, devido, também, ao relevo baixo e plano. O acesso ao terreno é feito por uma pequena entrada ao lado da capela, ou por uma rua chegando ao fundo do cemitério, onde se pode ser feito o acesso de serviços. A administração municipal não dispõe de terrenos próximos ao equipamento, porém há as áreas livres, particulares, propícias à instalação de uma nova necrópole próxima. Um fator muito marcante no local é a paisagem natural, afastado da área mais urbanizada e movimentada do bairro, como na Avenida Pequeno Príncipe, os elementos naturais se fazem muito presentes: a paisagem do horizonte no oceano e a Ilha do Campeche, o som das ondas se chegando às areias da praia, a brisa vinda do mar que faz os galhos das árvores se chocarem. A análise do plano diretor vigente nos aponta que a área se apresenta como um misto de ARE (área residencial exclusiva), ARP (área residencial predominante) e ATR (área turística residencial), enfatizando o caráter à implantação de moradias. E o anteprojeto de plano diretor reserva uma porção maior como área verde, referente ás terras alagadiças, mantém o caráter residencial e prevê como zona mista as vias de maior circulação no bairro.
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ocuparam as áreas de campos comuns, predominantemente planos, no limiar da orla marítima, e configurando malhas preponderantemente xadrez” (CASTRO, 2008)
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entorno do cemitério do Campeche. Fonte: google.com (modificado)
situação atual do cemitério do Campeche. Fonte: acervo pessoal
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“Em 1750, na direção do norte da Ilha, os açorianos se instalaram em Santo Antonio de Lisboa, de onde avançaram para o Rio Ratones, Canasvieiras e Rio Vermelho. Ao sul, estabeleceramse no Ribeirão da Ilha e na época das armações de pesca baleeira, parte deles deslocaram-se para o local conhecido atualmente como Armação da Lagoinha.” (IPHAN, 2011) “As armações localizadas no litoral do Brasil foram empreendimentos coloniais dedicados à pesca da baleia e ao beneficiamento das partes econômicas deste cetáceo. O nome “armação’, presente na toponímia em muitas regiões do litoral brasileiro, advêm na instalação destas unidades produtivas ou simplesmente da realização da pesca da baleia, em que era necessário ‘armar-se’ para o confronto com o ‘grande peixe do mar’” (COMERLATO, 2009).
Os cidadão que se abrigaram na praia da armação, basicamente esses pescadores de baleias, tinham acesso à igreja de Santana , onde sepultavam os seus. Com a necessidade de retirada dos mortos de dentro das igrejas, separou-se uma porção de terra ao lado da igreja onde se poderiam ser inumados os corpos. Com a evolução urbana, a igreja permaneceu em uma posição privilegiada, de frente à praia, porém com seu cemitério não se teve o mesmo cuidado, um ponto de ônibus alocado na frente do portão de entrada e algumas edificações tapam sua visibilidade e, talvez até mesmo, um fator que possa ter sido uma das determinantes de sua localização, uma constante circulação dos ares, que podem ter sido um pouco bloqueados por essas edificações. Assim como as demais necrópoles do município, o cemitério da armação está lotado e com uma agravante, a urbanização foi tamanha em seu entorno que não há área disponível à sua expansão. O tratamento dado ao equipamento não foi diferente dos demais cemitérios mas, dada à sua boa localização territorial, os terrenos próximos foram cobiçados em um nível onde não houvesse como se reservar solo. Da Armação em direção ao sul, encontra-se a localidade do Pântano do Sul. À esquerda da praia, junto ao pé do morro encontrava-se a povoação inicial da área [2], local onde os habitantes podiam se abrigar dos fortes ventos vindos do sul. 3
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portão de entrada do cemitério da Armação. Fonte: acervo pessoal
entorno do cemitério do Pântano do Sul. Fonte: google.com (modificado)
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Armação e Pântano do Sul A oupação da praia da armação não entrava no plano das freguesias açorianas, apesar de ser uma consequência de tal.
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vista da praia do Pântano do Sul. Fonte: acervo pessoal
O cemitério do Pântano do Sul possui características que podem levar a uma possibilidade de expansão de suas vagas. A região, ainda pouco habitada, interesse turístico e residencial e uma forte capacidade de expansão em suas terras planas, próximo ao local do cemitério há uma escola e um centro de saúde [3]. Em conjunto, possui um núcleo urbanizado na porção oeste, utilizado mais como residências de veraneio, um pouco distante do assentamento inicial e no anteprojeto para plano diretor de Florianópolis, grande parte da área está definida, no Anteprojeto de Plano diretor participativo, como Áreas Prioritárias para Operação Urbana Consorciada-I, onde os moradores e investidores da área de intervenção indireta custeiam a intervenção na área direta, e por ela são beneficiados, demonstrando interesse tanto da administração pública quanto do capital privado em urbanizar o bairro, o que irá aumentar a demanda por espaços de cemitério em um curto prazo de tempo. As atuais instalações do cemitérios são muito restritas, o terreno é curto, inclinado em direção aos fundos do terreno, e estreito, limitado à direita por uma residência e à
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Para que não se precisasse fazer o caminho até a povoação localizada na Praia da Armação, foi separado uma pequena porção de terra para a inumação de corpos [1], na extremidade norte a fim de que os ventos não soprassem os ares fétidos às residências. A dificuldade de edificação na alta declividade da porção inicialmente habitada do Pântano do Sul fez com que o povoado não se expandisse ao ponto de sufocar o cemitério, como ocorreu na Armação, em adição ao fato, mais recentemente, a planície foi loteada e reservada à especulação, havendo ainda, portanto, porção demasiadamente grande de terras urbanizáveis, apesar da maioria das terras se localizar em terrenos alagáveis.
planície do Pântano do Sul. Fonte: google.com (modificado)
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vista a partir do cemitério do Pântano do Sulv. Fonte: acervo pessoal
O local onde está inserido o cemitério possui, também, um forte potencial paisagístico, de frente e parcialmente livre de edificações entre o equipamento e a praia do Pântano do Sul. Há, um terreno à esquerda do cemitério,destinado ao uso comercial, segundo cadastro da prefeitura, porém a visita ao local indica uma pequena residência, possibilitando-se assim, que pudesse executar uma desapropriação da terra para fins de ampliação do cemitério. O acesso ao equipamento é um pouco dificultado pela inclinação da rua. O atual plano diretor define a área, incluindo onde já existem outras edificações e o terreno vizinho citado, como APL (Área de Preservação com Uso Limitado) e no anteprojeto o uso limitado permanece, em ambos os casos o uso cemiterial não é levado em conta.
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esquerda livre para um terreno particular com uma pequena edificação.
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“Qualidade arquitectónica só pode significar que sou tocado por uma obra” Peter Zumthor, Atmosferas
A pesquisa histórica acerca da relação do homem com a chegada da morte e suas transformações sofridas no tempo, o desenvolvimento das tipologias funerárias, a história do município e sua relação coma a vida e morte de seus cidadãos, visitas à cemitérios. Enfim, todo processo de pesquisa realizado até o momento objetiva o entendimeto do processo da morte contemporânea e suas consequências na cidade, a fim formar uma base conceitual para a elaboração de um projeto de espaços de necrópole. Não por acaso, as reflexões se fundamentaram em pesquisas históricas a respeito das atitudes do homem frente a sua morte e da morte dos seus próximos e suas consequencias na conformação da cidade e ds espaços edificados para o destino final dos homens. Não é objetivo do presente trabalho questionar o porquê dessas atitudes ou se estas seriam as melhores alternativas. Entendendo o papel do arquiteto e urbanista na sociedade, buscou-se entender o contexto contemporâneo a fim de se dar uma resposta adequada à situação em que se encontra o município de Florianópolis, ainda que, ao se tomar essa atitude, aceita-se várias lacunas na pesquisa do tema da “morte”.
“o ‘espaço público’ é tomado em seu sentido corrente, ou seja, no sentido de espaço público ‘urbano’, que carrega sempre consigo a ideia de espaço ‘privado’, enquanto categoria a ele oposta. O conceito de espaço público urbano envolve os lugares abertos da cidade, os lugares acessíveis à livre frequentação, à passagem de cidadãos e pessoas desconhecidas. Do ponto de vista das relações de sociabilidade, são esses os lugares onde ocorrem as mais diversas modalidades de interação face a face em público.” (PIMENTA, 2005)
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O trabalho busca, porém, ir além da simplificação do objeto a um “depósito de cadáveres”, pretende-se dar o tratamento adequado ao espaço do “entre”, ou seja, o espaço público do equipamento. A arquitetura da morte deve se abrir à cidade dos vivos e recebê-los para além da função de memória, mas como um espaço de convivência.
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A morte, que por séculos era um ritual social, foi confinada, nas últimas décadas, ao âmbito do privado, condenando os enlutados a sofrerem sozinhos. O devido tratamento ao enlutado através de espaços que incentivem a reflexão saudável e aceitação da perda. Deve-se ter cuidados com a maneira como o luto é tratado, posi o luto “mal vivido” pode ocasionar patologias, desde dificuldades de concentração, passando por agressividade ou insanidade, como relatados pela psicóloga Maria Helena Bromberg em uma entrevista à revista ISTOÉ. “Por conta das ocorrências psicossomáticas. As manifestações mais frequentes são os distúrbios de sono e de alimentação. Depende do grau de enlutamento. Do que afeta no cotidiano. Alguns enlutados não conseguem mais trabalhar. Outros, apresentam distúrbios de atenção e memória. Há pessoas que ficam suscetíveis a acidentes. Crianças podem apresentar problemas na escola.” (REVISTA ISTOÉ, 1999)
Ainda como proposta de trabalho, desenhar uma necrópole numa tipologia de cemitério vertical e crematório no bairro do Campeche. Porque o Campeche? A região de Florianópolis se forma com belíssimas paisagens ao mesmo tempo que se constroi sobre um ecossistema frágil com expressiva maioria das áreas municipais como áreas que deveriam ser destinadas à preservação ambiental. Porém é uma cidade que cresce, além da média das cidades nacionais, e estima-se que um ponto de “saturação” da cidade tenha em torno de 800.000 habitantes, quase o dobro do que há atualmente (420.000 no CENSO 2010). Pra onde irão esses mais de 300.000 habitantes que ainda virão? As áreas centrais urbanizaveis, no Distrito-Sede, Trindade, Itacorubi, já estão em vias de seu esgotamento e em direção ao leste temos o frágil ecossistema da Lagoa da Conceição. O norte da Ilha já se configura,
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A fim de se trazer qualidade ao espaço público criado e contribuir no tratamento do luto dos vivos, pretende apropriar-se da paisagem e as belezas naturais providas pela Ilha de Santa Catarina. Trabalhar como as “atmosferas” de Peter Zumthor. Trazer o exterior para dentro do desenho. Ao se ver na necessidade de enfrentar o luto, muitas vezes, voltamos nosso olhar para nossas origens, portanto, juntamente com a paisagem, pretende-se reforças as relações de afeto com o lugar.
A atual gestão da prefeitura municipal se encamnha a propor uma nova necrópole para a cidade de Florianópolis, central, ao lado do cemitério municipal no bairro Itacorubi, e de grandes proporções, a fim de suprir as demandas de todo o município e poder, até mesmo, atender a região (que, assim como Florianópolis, possui uma carência nos serviços funerários). O presente trabalho vai de encontro com a proposta da administração municipal. Criar diretrizes de implantação de pequenos equipamentos funerários, dispostos como ampliação aos atuais cemitérios de bairro, aqueles que surgiram das freguesias, onde, em vários casos, ainda há resquícios de uma cidade mais ligada ao mar, ao local.
vista a partir do cemitério do Campeche. Fonte: acervo pessoal
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praticamente, como uma cidade autônoma, com algumas áreas ainda disponíveis à expansão, como o Rio Vermelho e Ratones. O sul da Ilha, apesar de possuir grandes áreas de morros, locais de impossibilidade de expansão como o Ribeirão da Ilha, com sua paisagem protegida como patrimônio nacional, ainda possui algumas porções generosas de área disponível à expansão urbana. A planície do Campeche tende a se tornar a principal centralidade do sul da Ilha, podendo atender às demandas do próprio bairro e suprir os bairros vizinhos com equipamentos centrais maiores, supermercados, instituições de ensino, saúde, serviços públicos.
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Para tanto, busca-se alternativas de terreno que possam ser utilizadas para a instalação do equipamento. Quatro áreas se destacam como possibilidades. A primeira [1] é o entorno do atual cemitério do bairro, como já foi visto, a instalação de um equipamento funerários traz consigo alguns aspectos que podem causar uma repulsão à urbanização. Ao já existir uma necrópole no local, há uma facilidade de aceitação por parte da vizinhança à convivência com um equipamento da morte, facilitando, assim a instalação de um novo em seu entorno. Possui uma relativa facilidade de acesso ao local, podendo ser acessado mesmo pelo transporte público. As áreas [2] e [3] têm como grande vantagem a disponibilidade de terras e a facilidade de acesso, à beira da rodovia SC-405. Entretanto, a facilidade de já confirgura o local como um atrativo à urbanização do mesmo, não precisando de um equipamento público nas proximidades para que investidores se interessem por urbanizar esses pontos. A mesma facilidade de acesso nos leva a pensar que seria mais válido a esses pontos a instalação de equipamentos centrais, de maior uso para a população do bairro e bairros vizinhos, aceitando a perspectiva de que o Campeche virá se tornar uma centralidade ao sul da Ilha de Santa Catarina. O local destacado como [4] é uma grande porção de terra imersa em uma porção do bairro formada, basicamente, por residências unifamiliares, e sua maior vantagem à implantação de um equipamento é a disposição de terra, contudo, há pouca disponibilidade de acesso, apenas por vias de trânsito leve, local. Finalizarei essa exposição do trabalho que me permiti denominar “Espaços contemporâneos de interface com a morte” com um pensamento de Sartre.
Campeche. Fonte: google.com (modificado)
“Por mim, creio que estamos mortos há muito tempo: morremos no exacto momento em que deixamos de ser úteis.” Jean-Paul Sartre, Mortos sem sepultura
o desenho
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