RIBAMAR – Uma revista sobre poder

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UMA REVISTA SOBRE PODER



R Ribamar: s.f. Etim. (latim) riba + mar. 1. Margem do mar; beira-mar. 2. Local, sítio etc., à beira do mar. 3. Como nome próprio, aquele que vê o mar. 4. Litorânea e localizada a 32 quilômetros de São Luís, São José de Ribamar é a terceira maior cidade do Maranhão, cuja lenda de fundação menciona a suposta história de um navegante que, em meio à tempestade, teria suplicado ajuda a São José e prometido construir uma capela no lugar seguro em que aportasse à beira-mar. 5. Santo padroeiro do Maranhão. 6. Por devoção religiosa, é comum aplicar Ribamar como segundo nome de quem nasce no Maranhão. 7. José Ribamar Ferreira de Araújo, nome de batismo do político maranhense que, em 1965, quando concorreu e elegeu-se governador, passou a ser oficialmente conhecido como José Sarney de Araújo Costa, em homenagem ao pai. 8. Eleito vice-presidente da República no colégio eleitoral de 1985 que pôs fim à ditadura militar (1964-1985), José Sarney assumiu o comando do país

com a morte surpreendente de Tancredo Neves antes da posse e governou o Brasil por um mandato especial de cinco anos, expandido no Congresso sob a acusação de compra de votos, usando como moeda concessões de rádio e televisão. 9. Patriarca da família que construiu um império de poder no Maranhão. 10. Símbolo de longevidade e influência na política, José Sarney exerceu cargos públicos ao longo de 59 anos, atravessando a vigência de quatro constituições. Atuou por 13 legislaturas, sendo cinco períodos como senador. Transferiu o seu domicílio eleitoral para o Amapá, em 1990, para dar continuidade à carreira, depois de deixar o Palácio do Planalto. Presidiu o Senado Federal e, por consequência, o Congresso Nacional, por cinco vezes, até decidir se aposentar no final de 2014. 11. Criticado como símbolo de fisiologismo e clientelismo, o oligarca teve sua história retratada no livro Honoráveis Bandidos: Um Retrato do Brasil na Era Sarney, de Palmério Dória.


Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Faculdade de Comunicação Social (Famecos) Reitor Joaquim Clotet Vice-reitor Evilázio Teixeira Pró-reitora Acadêmica Mágda Rodrigues da Cunha Diretor da Famecos João Guilherme Barone Reis e Silva Coordenador do curso de Jornalismo Fábian Chelkanoff Thier Realização da disciplina Projeto Experimental IV – Jornal Livre Professores responsáveis Alexandre Elmi e Vitor Necchi

Exp edie nte

Edição Ágatha Donini Louise Bragado Reportagem Ágatha Donini, Alysson Mainieri, Bibiana Dihl, Bruna Reis, Caroline Escobar, Cristiano Oliveira, Douglas Roehrs, Gabriel Campos, Gabriel Palma, Gabriel Prates, Jaqueline Acosta, Jessica Laine Andrade, Leandro Duarte, Matheus Cabral, Natália Borges, Paola Pasquale, Renata Fernandes, Roberta Fofonka Rômulo Fernandes e Vanessa Schramm.

Equipe fotográfica Giovanna Pozzer e Luiza Menezes Projeto gráfico Bruno Ibaldo e Daniele Souza Capa Imagem: Giovanna Pozzer Design: Bruno Ibaldo Apoio: Nomedeiro (www.nomedeiro.com) Diagramação Bruno Ibaldo, Daniele Souza e Louise Bragado Endereço Avenida Ipiranga, 6.681 Prédio 7 – Porto Alegre (RS) – Brasil

www.pucrs.br/famecos Dezembro de 2014


Prezado leitor, este projeto é o próprio cartão de visitas, dispensa introduções. É o resultado de um planejamento executado sem pré-conceitos. Tentamos partir de poucos – ou quase nenhum – paradigma e contamos apenas com a experiência acumulada de um grupo de aspirantes a jornalistas. A experimentação está presente em toda a publicação: o desenvolvimento da proposta editorial foi desenvolvida em grupo, e a definição do tema, discutida durante três ou quatro encontros, levou-se à temática do poder. A dominação está em pauta. Em algumas reportagens, a relação de poder é explícita. Em outras narrativas, a presença do poder é sutil, mas inevitável. Partiu-se de uma concepção que entende o poder como força que permeia todas as relações na sociedade, e as norteia, enrola, confunde e as faz convergir ou divergir para diferentes pontos. O poder não é necessariamente exercido por uma pessoa, instituição, governo ou empresa, mas pode ser operado por meio de abstrações da sociedade. No caso da Ocidental, o dinheiro talvez seja a maior expressão dessa autoridade abstrata. A religião, em alguns casos, também desempenha esse papel. O poder emerge de muitas direções e acaba entrelaçando e determinando as relações no corpo social. Falar sobre poder, encontrar histórias sobre poder e achar indivíduos que personifiquem as relações de poder é a proposta dessa revista. O projeto gráfico também tenta refletir a dominação, a sensação de ser submetido. A sobreposição de letras tensiona e faz lembrar a opressão. Em alguns casos, até se trabalhou com elementos que dificultam a leitura, para causar a sensação de (falta de) poder. As cores escolhidas refletem a ideia de contraste. Em todo o trabalho, o que permaneceu tradicional foi o fazer jornalístico: não se abriu mão da apuração e da checagem das informações e do detalhamento na hora de redigir os textos e editar as páginas. O resultado começa na página ao lado. Leitura obrigatória.


De muitas formas, em todos os lugares

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Ágatha Donini

Poderes invisíveis

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Bruna Reis, Douglas Roehrs e Vanessa Schenkel

Sobre um velho lugar

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Giovanna Pozzer

Deuses da política

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Renata Fernandes

Paredes lúcidas

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Roberta Fofonka

Atrás da linha das grades

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Cristiano Oliveira e Gabriel Prates

Embate com a lei

61

Alysson Mainieri

Força digital

68

Rômulo Fernandes

De Paris à Voluntários Paola Pasquale

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Luxo aos olhos e ao paladar

84

Bibiana Dihl

Faces da insegurança

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Jaqueline Acosta e Jéssica Laine Andrade

Obras da transformação

99

Caroline Ecobar e Natália Rodrigues

O peso da utopia

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Gabriel Palma

Prisão a céu aberto

118

Leandro Duarte

Abuso vertical

126

Matheus Cabral

Patrão 2.0 Gabriel Campos

132

Su má rio


De muitas formas, em todos os lugares


por Ágatha Donini

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icolau Maquiavel ao lançar-se à frente de seu tempo e ousar falar da política como ela realmente era; Tomas Hobbes quando criou a genial ideia do Leviatã; Pierre Bourdieu ao dizer que mesmo a subjetividade em cada um de nós é socialmente estruturada. Intelectuais que viveram em diferentes períodos da história se dedicaram ao estudo do poder e, apesar da natureza pouco capturável do fenômeno em si, eles deixaram um legado de conhecimento sobre a sua essência e as suas características. Limitado ao campo de estudo das Ciências Sociais, podemos afirmar que o poder é sempre de exercer, nunca de tornar-se. Ou seja, é sempre de um sobre o outro, ou de um sobre muitos. Como afirmou o filósofo francês Michel Foucault, o poder não existe, o que temos são relações de poder que se constituem em todo o tecido social. Com diferentes facetas e em todas as relações e organizações, elas estão sempre presentes. Em uma obra sobre o assunto, intitulada O Que é Poder, Gerárd Lebrun reúne conceitos de diversos pensadores a fim de encontrar denominadores comuns entre diferentes linhas de pensamento. Logo no início do livro, ele diz que compreende que “uns queiram conquistar o poder ou combatê-lo, ou que se resignem a ele, ou o temam, ou o detestem”. O que ele não com-

preende “é que alguém possa subestimar o poder”, pois se trata de um fator social tanto abrangente quanto profundo. O que podemos encontrar em todas as linhas de pensamento sobre o poder é que ele precisa de um elemento de validação de sua existência. Alguns autores falam em potência, outros em força ou ainda em capital. Sabemos, por certo, que ele precisa de uma ferramenta para se exercer em uma relação, que pode ter diferentes apresentações – força física, bélica, política, econômica – e varia de acordo com as características de cada sociedade. Quem deu as bases para a noção de poder mais utilizada hoje em dia foi o intelectual alemão Max Weber, pioneiro em identificar e classificar sistematicamente a multiplicidade de poderes que coexistem em uma sociedade. Segundo o professor Emil Sobottka, mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e doutor em Sociologia e Ciência Política pela Universidade de Muenster, Weber distanciou o conceito de poder da pessoa ou da figura que o exercia e o trouxe para o campo das relações, lançando-se sobre as características de cada tipo de dominação. Ele diferenciou o poder legalmente instituído daquele ligado a uma autoridade moral ou ainda do carismático, baseado na influência. Quase 60 anos depois de Weber, surgiu


outra importante contribuição na literatura a respeito do poder: Michel Foucault. Ele retoma de uma maneira muito mais forte e historicamente estruturada a relação entre poder e saber. Voltando à ideia de Francis Bacon, um dos filósofos inaugurais da modernidade, de que saber é poder, Foucault desmistifica e lança um olhar crítico sobre a relação entre esses dois campos. O que distingue, então, a análise de Foucault é a premissa de que o poder não é hostil ao saber, mas que esses dois processos se interligam de diferentes maneiras, de acordo com circunstâncias específicas. “Em geral, se pensava que o saber era algo puro e bom, que era algo ingênuo na medida em que não seria comprometido por outros interesses. Foucault rompeu com essa ideia”, explica Francisco Rüdiger, doutor em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo e mestre em Filosofia pela UFRGS. Ele salienta que o saber tem efeitos de poder e que o poder, por sua vez, precisa do saber para se basear e se estruturar. Ou seja, esses dois fatores vão se sedimentando com o apoio mútuo e se consolidando como estrutururas de dominação e organização da sociedade, nas suas mais diferentes formas, seja como poder político, econômico, médico, familiar ou burocrático. Para Rüdiger, na sociedade atual, nos modelos de economia capitalista, o poder dominante, sobre todos os outros, é o econômico, materializado na figura do dinheiro. “Ele é o que faz todos os outros poderes acontecerem. Sem a presença do dinheiro, que é uma forma de expressão do poder social, todos esses outros poderes têm uma ação muito limitada”, explica Ele destaca ainda que o poder político e o econômico estão intimamente ligados, quando trazemos o recorte para a sociedade brasileira. A

luta pelo poder político é também a busca por recursos, que vêm por meio de cargos institucionalizados ou de vantagens econômicas acessórias, que mantêm uma comunhão entre esses dois poderes. Para Sobottka, é difícil afirmar qual força no Brasil é dominante, já que se tratam de poderes tanto dependentes quanto cúmplices. A esfera política depende do dinheiro para alcançar e manter a sua dominação, enquanto os grandes detentores do poderio econômico precisam do apoio político para se sustentar no mercado. Assim, a relação entre esses poderes é o que dá origem à corrupção. O Brasil, enquanto Estado democrático de direito, tem, em teoria, essas esferas organizadas separadamente com mecanismos instituídos para mediar a comunicação entre os poderes, através de leis que incidem sobre o poder econômico e político. A corrupção se dá na medida em que esses mecanismos são pervertidos através de caminhos alternativos ao legalmente instituído, que é então substituído pela influência. “Há quem diga que, no Brasil, o maior poder está nas relações sociais que possuímos”, finaliza Sobottka.


O poder sem abuso perde o encanto.

— Paul Valéry



Poderes invisíveis por Bruna Reis Douglas Roehrs Vanessa Schenkel

T

alvez você seja o tipo de pessoa que sente aquela vontade incontrolável de arrumar todas as camisetas por cores diferentes, até mesmo as que não são suas, ou de alinhar todos os pares de sapatos que encontrar em seu caminho. Ou então tenha o desejo de fumar, beber ou comer compulsivamente mesmo tendo certeza de que isso atrapalharia a sua vida. Ainda, pode tomar atitudes que nem você, nem qualquer pessoa reconheceria como sua, apenas para se sentir parte de um grupo. Todas essas ações involuntárias, características do Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC), do vício e do conformismo, são de autoria do órgão que controla o seu corpo: o cérebro. Ele tem vontades e tendências próprias que, quanto antes constatadas, mais facilmente podem ser controladas e impedidas de afetar negativamente sua vida. Entenda nas próximas páginas o funcionamento dessas tendências no cerébro e descubra os mecanismos para burlá-las.

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Escravos do prazer

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m um ano, foram quatro celulares perdidos. Diversas ligações de madrugada do pronto-socorro, perguntando se a pessoa que estava lá machucada e bêbada era a minha filha. Não era. Não a que conheci por 46 anos”, diz André* em uma reunião para familiares de dependentes de drogas em Porto Alegre. Aos 81 anos, nunca achou que passaria por esta situação na sua aposentadoria. “Minha filha sempre teve tudo. Ganhei um bom dinheiro trabalhando, e ela se casou com um bom rapaz. Dois anos atrás, seu marido começou a sentir dor nas pernas. Morreu na mesa de ressonância, dentro do hospital. Foi um baque muito grande, ela voltou a morar na minha casa e começou a usar álcool e cocaína”, conta. A falta de reconhecimento de pais, mães, filhos, maridos ou esposas, aparece em todas as histórias compartilhadas no grupo. O vício já não é mais encarado como uma fraqueza de caráter, mas como um distúrbio cerebral. O grande responsável pela dependência não é a droga – muito menos o dependente –, mas o que acontece em seu cérebro. Segundo um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) divulgado em 2013, o consumo de drogas atinge 243 milhões de pessoas no mundo. Desses, 27 milhões são usuários que apresentam distúrbios e dependência. “O problema da drogadição não é a droga. Ou é uma doença mental ou é uma neurose maníaca (pessoas que reagem a situações rotineiras

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com anormal nível de angústia). A droga é apenas o objeto externo que utilizam para aliviar a estrutura psicológica naquele momento”, esclarece o psicanalista e presidente da Comunidade Terapêutica Fazenda Novos Rumos, Carlos Alberto Santetti. De acordo com o National Institute on Drug Abuse, dos Estados Unidos, 15,2% dos jovens que começaram a consumir bebidas alcoólicas antes dos 14 anos podem virar alcoólatras. Essa porcentagem baixa para 2,1% para os que esperaram até os 21 anos ou mais. A média brasileira é de 13 anos, revela o Levantamento Nacional de Álcool e Drogas, realizado em 2012. “O primeiro fator do vício é a sensação de prazer. O segundo é que normalmente, quando as pessoas usam drogas, como álcool ou maconha ou até drogas mais pesadas, a primeira vez em que se usa é em situações recreativas, felizes. Ninguém tomou o primeiro porre no velório do tio, por exemplo. Isso faz com que a pessoa crie o condicionamento de associar a droga, seja ela qual for, a um momento feliz”, defende o psiquiatra e doutor em Ciência da Saúde da Universidade de Brasília (UnB) Raphael Boechat. O aposentado José Amâncio Neto, 70 anos, foi dependente do álcool e do cigarro por 50 anos. “Minha relação com a bebida começou muito jovem, aos 16 anos, mas se aprofundou quando me tornei bancário em uma cidade do Interior onde não tinha mais nada o que fazer, a não ser beber”, conta. Foi apenas após a implantação da Lei Seca que admitiu seu vício. “O álcool era muito poderoso comigo. Não ia para nenhum canto onde não pudesse beber. Quando foi feita a lei senti receio, pois costumava beber e dirigir. Foi aí que


percebi que precisava de ajuda”, revela. Ao completar um ano de abstinência, José começou a se exercitar e criou um blog sobre corrida na terceira idade. Hoje corre meias-maratonas na Bahia, onde vive. “Eu costumava brincar que troquei o vício de bebida por vício em corrida. Mas não é assim, corrida é um prazer apenas”, salienta. Segundo o psiquiatra Boechat, o principal elemento químico da dependência é a dopamina, um neurotransmissor relacionado à sensação de prazer. Ela é liberada no cérebro quando se come uma comida saborosa ou se abraça alguém que amamos. Com o uso das substâncias químicas, quantidades de duas a 10 vezes maiores do que por processos naturais são liberadas. Apesar de se estender a outras áreas do cérebro, como o sistema límbico, o principal afetado é o córtex pré-frontal, responsável pela área de fluência do pensamento e de respostas afetivas. “Elas condicionam o organismo a funcionar de uma forma enquanto a pessoa está usando. Quando para de usar, o organismo sente falta desta substância, então ele cria o que a gente chama de abstinência, e isso condiciona o vício. O indivíduo para de usar, e o organismo sente falta imediatamente, não em questão de horas ou dias. Para não se sentir mal, usa a droga de novo. Cria um ciclo”, descreve. O gráfico Pedro*, 52 anos, garante que nunca teve abstinência. “Para isso, precisa parar, né? Eu não paro”, fala em tom de piada. Ele revela que bebe todos os dias no horário de almoço. “No começo fui percebendo que estava demais. Acordava e pensava que não ia mais beber. Mas agora já não. Nem estou pensando mais (em interromper o uso do álcool)”, diz. As pessoas então não se viciam nas

drogas que usam, mas na liberação da dopamina. Pesquisadores da Universidade de Pequim concluiu em pesquisa que a genética corresponde a 60% da vulnerabilidade ao vício. Para isso, analisaram mais de 1 mil artigos científicos, publicados nos últimos 30 anos. Após a identificação de 1,5 mil genes, os cientistas mapearam o caminho que a droga percorria e concluíram que 396 podem dar origem à dependência. Quando há um desequilíbrio na recepção de dopamina ou deficiência do gene associado à síntese da enzima monoaminoxidase A, responsável pelo equilíbrio da substância, a experiência se torna mais prazerosa, deixando quem a utiliza mais suscetível a se tornar dependente. “Os meninos roubam, mas não são ladrões. As meninas se prostitutem, mas não são prostitutas. A droga é direcionada ao sistema nervoso central: quando ela entra no nosso corpo, ela determina ao cérebro uma energia drogativa”, defende Santetti. Qualquer situação prazerosa, então, pode se tornar viciante. “Estudos que mostram que até mesmo o celular ou a internet podem causar dependência. As pessoas ficam irritadas e têm um comportamento de abstinência. Essa é a grande diferença entre compulsão e vício. O vício causa abstinência”, afirma Boechat. Juliana Rocha Antunes, 29 anos, descobriu seu vício em comida após fazer cirurgia para redução de estômago. Com o tratamento psicológico obrigatório para a operação, a estudante de engenharia percebeu porque, não estava perdendo peso. “De imediato não quis aceitar essa situação. Quando vi um vídeo de um rapaz que era viciado em drogas, minha ficha começou a cair. Eu também já roubei a carteira

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da minha mãe para pegar dinheiro para comprar comida”, conta. Juliana não conseguia mais trabalhar, nem se concentrar na faculdade sem comer os doces. “Naquela época, não entendia, achava que comia demais porque eu era uma gorda relaxada. Mas não é isso, é uma doença, é um vício. Não é fácil porque é uma necessidade básica. Para o drogado, é só não ir ali e comprar, é difícil chegar até a droga. Agora eu não, é só abrir a geladeira que tem um monte de comida ali”, relata. A compulsão alimentar está presente em 30% dos obesos que procuram tratamento para perder peso, de acordo com o Programa de Orientação aos Pacientes com Transtornos Alimentares (Proata) da Universidade Federal de São Paulo. Mas destes, apenas 4% são considerados viciados em comida. A diferença é que a compulsão é caracterizada quando a pessoa não consegue frear um impulso, mesmo sabendo que está lhe trazendo prejuízos. Já o abuso, que leva ao vício, é caracterizado pela falta total de controle. “É aquela pessoa que diz ‘ah, hoje eu vou beber três chopes e bebe 30’, que começa a faltar o trabalho ou a faculdade frequentemente para sair ou por estar de ressaca, que não sai mais com os amigos”, relata o psiquiatra Boechat. Perceber que convive com um problema é o primeiro passo para se recuperar. A admissão em uma clínica e a transformação no núcleo familiar faz parte do processo. “A gente busca a desintoxicação completa e a reestruturação do núcleo familiar. Depois disso é na rua, através do exercício da vida. Grupo de apoio não é tratamento, é uma reunião de pessoas com um objetivo único. Para os parentes, não é o drogado que está lá em casa. É a droga

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que entrou”, assegura Santetti. A quantidade e a droga utilizada influenciam na recuperação do cérebro. “Algumas são irreversíveis, mas, antigamente, tínhamos a informação de que, quando se lesionava o cérebro, os neurônios morriam e ponto final. Hoje sabemos que é como nos acidentes, com traumatismo craniano. O cérebro tem uma grande capacidade de adaptação; mesmo se você destruir uma área, outras áreas assumem a função daquela que foi destruída. O importante é procurar ajuda”, explica Boechat. Foi o que fez a filha de André*. Em dezembro de 2013, pediu para ser internada no centro do psicanalista Santetti, a Comunidade Terapêutica Fazenda Novos Rumos. Em tratamento desde janeiro, recebe visitas do pai mensalmente. “Ainda não sabemos a previsão de saída da clínica, mas já temos muitos planos. Minha filha fala em estudar, em trabalhar. Aos poucos vamos nos readaptando. Para melhor agora”, conta. * Nomes trocados a pedido dos entrevistados

Seu cérebro quer pertencer

I

magine a seguinte situação: você e mais seis pessoas sentadas em uma sala, e um teste é entregue, com três linhas desenhadas. É solicitado que você indique qual linha da figura 1 é do mesmo tamanho da figura 2. Você já sabe sua resposta, pois as linhas têm tamanhos visivelmente diferentes, mas é o último a responder. Todos os outros indicam uma opção diferente da escolhida por você. Pa-


rece estranho, pois você está vendo que a linha que escolheu é muito maior e sabe que não tem problemas de visão, mas começa a duvidar disso. Acaba dando a mesma resposta. Essa foi a experiência realizada pelo psicólogo Solomon Asch, nos anos 1940, para comprovar a teoria do conformismo dentro da psicologia social: por conta da pressão social, o indivíduo é capaz até de fingir que concorda com a maioria, ultrapassando inclusive seus valores morais, muitas vezes sem nem perceber. Isso poderia explicar, por exemplo, um caso recente e notório de conformidade, no qual a torcedora do Grêmio Patrícia Moreira, mesmo dizendo não ser uma pessoa racista, gritou a palavra macaco para o goleiro do Santos em uma partida ca Copa do Brasil de 2014. Ela queria pertencer ao grupo de seu time, e a multidão estava agindo desse modo. A chave da conformidade está na influência social, que nada mais é do que o conjunto de regras de relacionamento ou padrões de conduta social em grupo – na torcida do Grêmio, chamar o adversário de macaco. Em seu experimento, Asch orientou seis dos sete participantes a dar a resposta errada na maioria dos testes aplicados com as linhas. O objetivo era investigar de que forma a pressão de um grupo em uma situação não ambígua, ou seja, em que a resposta correta era óbvia, poderia influenciar as decisões de um sujeito. No estudo principal, 32% dos participantes erraram a resposta em um terço das questões e 75% erraram pelo menos um tópico. Mas em nenhum grupo os participantes cederam em todos os testes. Ao serem questionados sobre os motivos de terem dado a resposta errada,

alguns afirmaram que não queriam perturbar o curso da experiência. Outros acharam que poderiam estar com problemas de visão ou vendo o ângulo errado. Nem todos admitiram saber ter dado respostas erradas, mas alguns confessaram saber que estavam errados e ter falado mesmo assim, para serem aceitos no grupo. Asch também descobriu que, quanto menor o número de aliados, menor o índice de conformidade da minoria. Assim como era menor quando os sujeitos podiam entregar suas respostas em papéis, sem se expor. O conformismo vem sendo objeto de pesquisas de neurocientistas, que tentam entender qual é o poder do cérebro sobre as atitudes das pessoas (e ele tem poder!). O comportamento pode muito bem descrever aquele “Maria vai com as outras” da escola, que faz coisas que não quer para pertencer a panelinhas. A verdade é que todos têm essa inclinação, apesar das diferenças individuais – genéticas ou ambientais – que tornam uma pessoa mais ou menos suscetível à conformidade. Isso porque o convívio social e a vontade de ser aceito são inerentes ao ser humano desde nossos ancestrais: aqueles que conseguiam se adaptar melhor em grupos sobreviviam. Nosso cérebro é social – feito para se dar bem com o grupo. Noam Shpancer, psicólogo israelense e pesquisador de Psicologia Cognitiva na Universidade de Columbus, nos Estados Unidos, afirma que todos os seres humanos são conformistas. Para ele, só sobrevivem em grupos coordenados. Individualmente, são designados a escolher deixas sociais dos que estão a sua volta e alinhar seu comportamento a elas. “Conformidade é concordar com o grupo, e esse

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processo afeta certos processos cerebrais temporariamente. Por exemplo, reduz o nível de hormônios do estresse. A conformidade nos ajuda a cooperar, crescer e sobreviver, mas não necessariamente nos transforma em zumbis”, ponderou em entrevista exclusiva à Ribamar. O psicólogo e mestrando em Cognição Humana, também membro da Sociedade Brasileira de Neuropsicologia (SBNp), Bruno Kluwe-Schiavon explica que, dentro da neurobiologia, o conformismo é entendido como a representação de um comportamento adaptativo a um grupo. No momento em que se adapta, o cérebro avalia os ganhos e as perdas para tomar uma ação, depois age e logo recebe respostas do ambiente externo sobre a atitude que tomou. Essas informações voltam para o cérebro, e ele reavalia se o balanço de perdas e ganhos estava correto – ou seja, se você realmente saiu ganhando quando tomou uma determinada decisão. Na neurociência, esse é o processo da tomada de decisão. Basicamente, ele acontece no córtex pré-frontal, estrutura do cérebro considerada mais adaptativa e uma das últimas a se formar na evolução, há milhares de anos. Outras estruturas, como a amígdala, relacionada à emoção de perigo, por exemplo, vem se aperfeiçoando há milhões de anos. Para entender melhor, imagine que você está tentando se enturmar no novo trabalho e seus colegas resolvem matar o serviço, indo tomar um café. É seu primeiro dia, você sabe que não deveria ir, mas quer fazer amigos. Em seu cérebro, a amígdala é a estrutura que recebe as informações de perigo, que, na tomada de decisão, são as perdas (se for, ficará mal na foto com o chefe), e o núcleo accumbens

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recebe a estimativa de ganhos (se for, será bem visto pelos colegas de trabalho). Isso acontece ainda fora do córtex pré-frontal, que recebe as informações desses mecanismos. Após receber as informações, estruturas dentro dessa região cerebral funcionam como uma calculadora das perdas e dos ganhos e iniciam a ação. No caso do exemplo, as perdas seriam maiores, pois precisa se dar bem no emprego, e quem manda é o chefe. Você diz que não vai, ou seja, toma a ação. Seus colegas reagem com caras de desaprovação, e seu cérebro recebe essas informações. O córtex frontal medial posterior vai reavaliar se você tomou a decisão certa. Aqui entra o conformismo – você e seu cérebro querem se enturmar, então ele entende que não ir seria a decisão errada. E você acaba indo – sem nem perceber, foi convencido por seu cérebro a ir contra seu senso do que é correto para pertencer a um grupo. Para pesquisadores de universidades russas, essa é a principal estrutura ativada quando o indivíduo passa por situações de influência social e adaptação ao grupo. Apesar de não ser a única, pois nada no cérebro funciona sozinho. No estudo Eletrophysiological Precursors of Social Conformity (sem tradução para o português), o grupo neuronal do córtex frontal medial posterior estava sendo avaliado. Para isso, foi pedido a mulheres que avaliassem fotos de rostos femininos, em uma escala de um a oito, sendo oito muito atrativo. Após dar sua nota, elas eram informadas de uma média fictícia do grupo. Depois de um tempo, elas tinham de avaliar as mesmas fotos novamente. Como eram muitas, não havia maneira de memorizar os dados. Os especialistas viram que


as mulheres mudaram suas avaliações, que agora se aproximavam da média do grupo mostrada. Quanto mais a resposta mudava para bater com a do grupo, mais atividade neuronal era encontra no córtex frontal medial posterior. Os especialistas também mediram a velocidade com que a ativação da área acontecia. Duzentos milisegundos – praticamente em nível implícito para os neurocientistas, inconsciente para a psicologia. Em estudo semelhante, do pesquisador russo Vasily Klucharev, intitulado Downregulation of the Posterial Medial Frontal Cortex Prevents Social Conformity, por meio da estimulação elétrica da área, se tentou descobrir o que aconteceria se a região fosse desincentivada ou excitada. Antes de avaliarem as fotos, receberem a média do grupo e reavaliarem suas notas, algumas mulheres receberam um pequeno choque que diminuiu a atividade da área, outras tiveram o córtex estimulado e um terceiro grupo teve uma outra área qualquer estimulada. Os três grupos mudaram suas médias após receber a nota fictícia. No primeiro, as pessoas mudavam menos de ideia; no segundo, com a área mais excitada, suas notas eram mais parecidas ainda com as do grupo, concluindo que a ativação dessa estrutura cerebral nos direciona a um comportamento adaptativo. Se todos temos essas estruturas cerebrais, por que algumas pessoas são mais influenciáveis que outras? O mestre em Cognição Humana, especialista em Terapia Cognitiva e também membro da SBNp Breno Sanvicente Vieira explica que, além da atividade cerebral, outros fatores podem induzir as decisões do indivíduo. Ele cita estudos que descobriram a capacidade da memória pesar na hora de

mudarmos de ideia para nos adaptarmos socialmente, além de alterações genéticas descobertas no cromossomo 22. “Estamos falando das normas descritivas da sociedade (baseadas na observação do comportamento da maioria das pessoas), isso pode incluir a expressão facial dos outros membros do grupo, o humor da pessoa. Se está deprimida, por exemplo, o lado da perda para o cerébro pesa mais do que os ganhos”, lembra. Segundo o professor de Psicologia Social da Universidade de Brasília Ronaldo Pilati, boa parte de nosso comportamento é fruto de influência social, associada ao contexto cultural em que vivemos. “As culturas consideradas mais individualistas, como a norte-americana e as do norte da Europa, apresentam um percentual de conformismo um pouco mais baixo do que as coletivistas, como as asiáticas. Nas individualistas, a independência é mais valorizada; nas coletivistas, é o pertencimento a um grupo. Mas ambas apresentam níveis de conformismo”, explica. As culturas latinas – aqui está o Brasil – são o meio termo. É por isso que, ao mesmo tempo em que as manifestações contra a Copa do Mundo ocorriam, você olhava a sacada do vizinho, via que estava cheia de bandeiras e queria enfeitar a sua também – é a dica comportamental, o padrão social para quem mora no país do futebol, onde, a princípio, se ama o esporte. A conformidade pode influenciar para o bem ou para o mal. O psicólogo Stanley Milgram fez uma experiência cujos resultados demonstraram que as pessoas podem ser cruéis com as outras se receberem ordens para tal. O pesquisador queria entender como uma nação inteira com noções de certo e errado, como a alemã, apoiou o Holocausto.

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Milgram criou uma situação em que voluntários eram colocados em frente a uma máquina de choque, que ia de zero a 450 volts, e parecia real, com botões identificados por mensagens como “choque leve” e “perigo: choque grave”. Eles seriam os professores e eram orientados a castigar o aprendiz (que sabia do experimento) com os choques, aumentando a voltagem a cada resposta errada. Se o voluntário se recusasse a continuar, o cientista o incentivava. Se mesmo assim não fosse adiante, o experimento terminava. Muitos participantes mostravam sinal de tensão e nervosismo, três deles até convulsionaram. Outros questionavam o processo, o que deixava claro que estavam indo contra seus princípios morais porque não conseguiam desobedecer. Mas todos os participantes aplicaram os choques de 300V – intensidade em que o aprendiz começava a gritar, demonstrando sofrimento. Choques até 375V foram aplicados por 35% dos participantes e 65% foram até o final, aplicando choques de 450V. Milgram concluiu que o indivíduo, quando depara com ordens de uma autoridade, é mais suscetível a cometer atos atrozes, tirando a responsabilidade de si e a colocando em quem o mandou. Generais nazistas, por exemplo, utilizaram esse argumento em seus julgamentos, com a justificativa de que apenas estavam seguindo ordens. Foi o caso de Adolf Eichmann, nazista responsável pela identificação, deportação e eliminação de milhões de judeus em campos de concentração, na chamada “solução final”. Quando foi encontrado na Argentina e levado a julgamento em Israel, em 1961, alegou que não havia matado nenhum judeu com as próprias mãos.

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A filósofa alemã de origem judaica Hannah Arendt, uma das mais influentes do século 20, cunhou a expressão “a banalidade do mal”, após realizar uma reportagem para a revista The New Yorker e escrever um livro sobre o julgamento do nazista em 1963, intitulado Eichmann em Jerusalém: Uma Reportagem Sobre a Banalidade do Mal. Na obra, ela argumenta que as atrocidades cometidas no Holocausto pelos nazistas não eram causadas por milhares de psicopatas (se referindo à sociedade alemã inteira), mas por pessoas comuns, colocadas sob extraordinária pressão para se conformar e obedecer, além de não refletirem sobre suas ações. Hannah inclusive cita que, durante o julgamento, Eichmann não deixou “nenhuma dúvida que teria assassinado o seu próprio pai caso tivesse recebido uma ordem nesse sentido”. Ela concluiu que “sob condições de terror, a maioria das pessoas obedece, mas algumas não”. Se você não entrasse na onda macabra dos nazistas, poderia ser punido. Você pode se perguntar: se existe o conformismo, como ocorrem as mudanças sociais? O poder do cérebro sobre suas decisões também é confrontado. Segundo Shpancer, existem múltiplos processos acontecendo a todo tempo e eles frequentemente competem por influência. “Cooperar com o grupo estimula algumas partes que controlam o prazer no cérebro; mas outras partes, que estão engajadas na avaliação moral de minhas ações, podem trabalhar para me dissuadir da conformidade. É melhor pensar no cérebro como uma sociedade, com diversos distritos eleitorais e grupos de interesse competindo por poder e influência”, brinca. A sociedade sempre apresenta contradições.


Pilati lembra que ao mesmo tempo em que o desejo de mudar o mundo está cada vez mais escasso, demonstrado por estudos de um ramo da psicologia social que investiga por que os jovens não são mais incentivados a enfrentar adversidades, o que acaba fomentando o conformismo na geração atual, o clima cultural também produz pessoas inconformadas, engajadas em movimentos sociais e de reivindicações. “É possível convencer um grande número de pessoas, até mesmo a maior parte delas, se houver uma minoria organizada que apresente evidências de que algo precisa mudar. É o que acontece na maioria das revoluções ou em movimentos sociais, como as manifestações brasileiras de junho (de 2013) e a luta dos homossexuais pelo casamento, que ao redor do mundo estão conseguindo mudar normas sociais”, cita Pilati. Para Shpancer, revoltas políticas acontecem quando a identidade e as aflições de um certo grupo ganham força enquanto outros grupos se deterioram, levando a mudanças no comportamento. “As pessoas que foram às ruas no Brasil provavelmente não são ‘não conformistas’, eles apenas substituíram o grupo que queriam se adaptar. Talvez eles tenham percebido que, pelo que o grupo nas ruas estava lutando – digamos que justiça pelos pobres –, era mais urgente que o que os outros grupos defendiam. Falando genericamente, a briga contra a conformidade é geralmente uma luta contra regras de grupos diferentes. Lutar contra o grupo apenas e sozinho é uma luta muito difícil de vencer”. Seu cérebro tem poder sobre suas decisões, antes mesmo de você refletir

sobre elas, segundo a ciência. Não quer dizer que você não possa tentar burlar esse poder, agora que tem consciência dele, para se tornar um cidadão mais consciente de seus atos.

O poder do TOC

S

uas unhas estão devidamente cortadas. Seus dedos, levemente avermelhados. Sua obsessão por limpeza e o medo de ser infectado por alguma doença são costumeiramente retratados. Ao visitar a vizinha, Penny, cumpre o ritual de bater três vezes na porta e falar o nome dela, três vezes seguidas. Sheldon, personagem da série The Big Bang Theory interpretado pelo ator Jim Parsons, costuma fazer o público rir. No entanto, alguns dos aspectos de sua personalidade, como os citados acima, são sintomas característicos do Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC), que afeta a qualidade de vida das pessoas e pode ser até mesmo incapacitante. Esse transtorno mental é caracterizado por obsessões que exercem poder sobre a pessoa, geram grande ansiedade e, por fim, levam-nas a realizarem atos físicos ou mentais para ficarem aliviadas. Estima-se que, no mundo, uma a cada 50 pessoas seja portadora de TOC. Conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS), o TOC é o quarto transtorno psiquiátrico mais comum, precedido por depressão, fobia social e abuso de substâncias. Entre os sintomas mais frequentes, estão o medo de contaminação, que faz com que, por exemplo, o indivíduo lave exces-

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sivamente as mãos, se preocupe com ordem e simetria ou exatidão, tenha dúvidas seguidas de repetidas verificações, medo de cometer atos violentos, compulsão por guardar objetos sem utilidade e superstição, habitualmente ligada a números. Geralmente há um sintoma que predomina, por mais que os pacientes possam apresentar vários deles e, durante a vida, mudar a obsessão que prevalece. As obsessões (pensamentos, impulsos ou imagens indesejáveis) têm o caráter involuntário e provocam aflição. “O TOC é um dos transtornos que causam mais sofrimento”, ressalta a psicóloga Rossana Andriola, que trata portadores de TOC. No mínimo 40% dos pacientes acabam desenvolvendo depressão, conforme o psiquiatra Aristides Volpato Cordioli, que, durante duas décadas, pesquisou sobre o tema na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O transtorno tem causa desconhecida e é multifatorial – além dos fatores biológicos, há os psicológicos e os ambientais. Além disso, é comum a ocorrência de comorbidades – presença de mais doenças –, tornando a situação mais complicada. “As obsessões são pensamentos involuntários. Já as compulsões são atos voluntários, ela pode fazer ou não fazer. Então ela (portadora de TOC) pode retomar o controle de toda a situação se decidir mudar o rumo das coisas”, destaca Cordioli. O tratamento mais indicado é a terapia cognitivo-comportamental, que apresenta eficácia em 70% dos pacientes. Pessoas com grau leve e moderado costumam perder suas compulsões. Durante a terapia, são trabalhadas as chamadas evitações (atos que a pessoa deixa de fazer por medo). “No TOC, tem medos que são

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adquiridos em razão de, em vez de enfrentar (o seu medo), o paciente evitar”, explica Cordioli. Por mais que não se fale de uma cura da doença, Cordioli dá ênfase à possibilidade de cura das evitações: “Muitos pacientes ficam completamente sem sintomas”. Dos pacientes tratados, cerca de 30% têm um grau mais elevado do transtorno e não respondem nem à terapia nem ao tratamento medicamentoso. Cordioli conta que ainda não se descobriu o motivo para que o tratamento não surta efeito. Um dos problemas, conforme Rossana, é que as pessoas, em média, demoram cerca de oito anos para buscar ajuda. Segundo pesquisas da UFRGS com participação de Cordioli, o tempo médio para a procura é de 18 anos. Um destes casos é o de Lucimar de Abreu, mais conhecida como Lúcia, que demorou mais de duas décadas para ser diagnosticada. O dia em que isso ocorreu não é esquecido por ela. Enquanto estava atendendo no balcão da loja, Lúcia sentia fortes dores estomacais. Ao avistar algum cliente se aproximando, sentia um certo pânico inexplicável. Quando ia ao banheiro, ficava sentada por longos períodos “apagada”, sem se dar conta disso, até que alguém batia na porta e a “despertava”. À época, ainda guardava resquícios da hiperatividade que a acompanhou por boa parte da vida – gostava de fazer muitas coisas ao mesmo tempo, mas dificilmente se detinha a acabar alguma delas. No entanto, um dia ela parou. Simplesmente parou no meio da rua. Seu corpo, sem que ela se desse conta, estava completamente exausto e ela ficou fraca demais para pegar o ônibus até sua casa. Por mais que não gostasse de ir ao médi-


co, forçou-se a buscar ajuda. A queimação estomacal sentida, alimentando-se ou não, deixava-a temerosa, fazia-a pensar que talvez tivesse câncer. Era, em verdade, gastrite, quase úlcera. Era também TOC, associado à depressão ansiosa grave e ataque de pânico. Desde a adolescência, Lúcia apresentava sintomas como compulsão por limpeza e simetria dos objetos. No entanto, por desconhecimento e vergonha, nunca procurou ajuda. “Acho que piorou porque eu não fui ao médico antes”, desabafa. A crise que fez com que buscasse ajuda ocorreu em 2006, quando tinha 38 anos. Hoje, aos 46, ela está reapreendendo a viver. Desde então, aposentou-se, toma medicamentos e faz terapia – no começo, eram dois encontros por semana, passaram para um por semana, um a cada 15 dias e hoje é um por mês. Lúcia já foi casada, mas o marido mudou-se para Natal (RN) há cerca de 15 anos, e ela tem medo de ir para um lugar desconhecido. Sua rotina diária consiste em ir de casa para o curso de línguas, pertencente a uma prima, onde assiste a aulas de inglês, espanhol e francês e ajuda com as tarefas diárias, três ou quatro vezes por semana. Para ela, esta rotina é terapêutica. Foi-lhe recomendado ter distrações, como jogos de computador e palavras cruzadas, para não pensar em suas obsessões. Por algum tempo, tentou o tratamento para se livrar de suas evitações, mas abandonou porque isso a irritava. Já morou sozinha, mas lhe foi aconselhado que ficasse com outras pessoas, então passou a morar com dois primos e suas esposas. Por vezes, enquanto eles dormem, ela fica acordada limpando a casa para deixar tudo em ordem. Sabe

que não deve fazer isso e fica feliz quando consegue deitar e dormir. “Ele (o TOC) interfere no meu relacionamento com as pessoas”, ressalta. Sobre sua hiperatividade, sorri com os avanços: “Estou aprendendo a fazer uma coisa e terminar. E depois começar outra”. Após dar o seu depoimento, Lúcia se mostra contente por ter falado, pois isso a deixa um pouco mais aliviada. Ao sair da sala, diz que não mexerá no quadro que está torto na parede, por mais que em diversos momentos isso tenha roubado a sua atenção. As compulsões dela, contudo, são apenas algumas de uma vasta gama. E muitas delas deixam as pessoas portadoras amedrontadas. Enquanto vai para o seu trabalho, o motorista começa a ficar nervoso. Ele acha que atropelou alguém durante o caminho. Mesmo que não tenha nenhum indício, resolve dar a volta e refazer parte do trajeto para se certificar de que não fez nada de errado. Este exemplo demonstra uma das formas de TOC, na qual o indivíduo é acometido por um medo irracional. “Racionalmente eles sabem que é impossível ele ter atropelado alguém sem ter visto. Mas o conteúdo das obsessões é irracional. Por mais que você saiba que não é lógico isso, não consegue não pensar nisso”, salienta Andriola. A psicóloga fala que o teor das obsessões não reflete a personalidade da pessoa. Ou seja, no caso acima, por exemplo, o motorista não tem vontade de atropelar alguém, muito pelo contrário. Imaginar algo que para ele seja inconcebível o deixa ansioso. Isso faz com que muitos tenham medo de tocar em crianças, por exemplo, pois não toleram a pedofilia.

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Se por um momento os portadores do transtorno pensam em alguma coisa ruim, acabam atribuindo muita importância para algo que seria ignorado pelas demais pessoas. Elas acham que poderiam fazer determinada ação devido ao fato de brevemente pensar nela. Esta ansiedade, que causa tanto desconforto, pode mudar dependendo do local. Ambientes mais rígidos, como o familiar, onde os filhos são constantemente repreendidos, geram muita ansiedade e isso pode ser um dos fatores que desencadeiam o TOC. Dependendo da cultura em que se vive, pode ocorrer uma influência nos sintomas. Se há muita religiosidade, é comum o TOC ser relacionado a ela. O indivíduo pode temer a atração física por santidades, por exemplo. O transtorno é causador de problemas emocionais e sociais, porém, se tratado, permite uma vida mais saudável. “Você terá que estar sempre enfrentando isso. Pode ser que em algum momento da sua vida você tenha uma recaída”, enfatiza Andriola. Para que isso não ocorra, ela dá uma dica: “A gente recomenda para muitos transtornos mentais que façam exercícios, porque, por exemplo no TOC, dá uma aliviada na ansiedade. Para qualquer transtorno que tenha ansiedade, ajuda”.

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A influência do córtex

Veja as regiões do cérebro responsáveis por comandar o comportamento conformista, o vício e o Transtorno Obssessivo-Compulsivo (TOC):

Pré-frontal O córtex pré-frontal é a principal região afetada no vício, ativada também no conformismo. Mas dentro dessa área, é o córtex pré-frontal medial posterior a principal estrutura envolvida na conformidade, localizada na parte mais interna do cérebro. No vício, há ainda ativação no sistema límbico.

Orbifrontal As zonas dos cérebros que são mais ativas em pessoas com TOC são analisadas em exames de ressonância magnética funcional. Uma comparação do metabolismo cerebral entre indivíduos com e sem TOC (no caso dos portadores, antes e depois do tratamento), aponta para um aumento do fluxo sanguíneo, ou seja, a atividade cerebral, no córtex orbito-frontal (OFC) e nos gânglios basais (região inferior-central cérebro, não identificada na imagem) em indivíduos com sintomas de TOC. Contudo, nem todos os pacientes apresentam essa hiperatividade e ela, quando ocorre, nem sempre diminui com o tratamento.


Conhecer os outros é inteligência, conhecer-se a si próprio é verdadeira sabedoria.


Controlar os outros é força, controlar-se a si próprio é verdadeiro poder.

— Lao-Tsé


Sobre um velho lugar por Giovanna Pozzer

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nquanto a Capital nascia e era povoada em torno deste local, seu nome acompanhava os acontecimentos da jovem província. Ainda no século 18, foi denominada Praça do Novo Lugar e, em seguida, os oficialismos do governo trocaram seu nome para Praça do Palácio da Presidência. Já em 1858, em homenagem à visita do imperador, virou Praça Dom Pedro II. E só se tornou Praça Marechal Deodoro após um decreto, no final daquele século. Mas de que adiantam tantas nomenclaturas pomposas se o local sempre foi reconhecido por seu primeiro apelido, Praça da Matriz. O ostentoso Poder Executivo divide a vizinhança com o agitado Legislativo. Bem ao lado desses prédios, a imponente catedral marca a presença do poder religioso. Às margens do mesmo quadrilátero, também está o Judiciário. A praça serve, assim, como um elo entre essas quatro realidades. O cidadão passa por lá sem perceber que aquela não é somente uma bela praça, com bancos sombreados por árvores, escadarias e estátuas. É justamente ali, no coração da cidade, que nascem e se relacionam os poderes do Estado.

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Todo o grande poder é perigoso para um debutante.

— Epiteto


Deuses da política por Renata Fernandes

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de outubro de 1988. Exatos 26 anos e seis eleições antes da mais recente disputa para presidente no Brasil definia-se, de forma legal, o Brasil como um Estado laico. Ficava marcado, na época, com a nova Constituição do país, que era vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, assim como subvencioná-los ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança. Instrumento de organização e união de culturas antigas, a religião é uma experiência histórico-social, resultado do descobrimento do homem de si mesmo, do seu entorno e dos fenômenos do universo. Nas sociedades clássicas, segundo o sociólogo Émile Durkheim, no livro As Formas Elementares da Vida Religiosa, a religião tinha o poder de conferir unidade aos grupos e integrar os homens. No Império Romano, por exemplo, já se percebia o poder de atuação e submissão que a religião poderia exercer. Considerados verdadeiros deuses pelos súditos, os imperadores tinham total controle sobre as pessoas, que chegavam a morrer pelo Estado. Nas sociedades modernas, esse poder mudou. Segundo o último Censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010, menos de 8% da população, cerca de 15 milhões de pessoas, consideram-se sem religião alguma. Ainda conforme o levantamento, o catolicismo continua sendo predominante no país, mesmo que tenha caído expressivamente nas últimas décadas. O número de católicos hoje no

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Brasil é de mais de 120 milhões de pessoas, ou 64% da população – uma redução de pouco mais de 10% nos últimos 10 anos. Ao mesmo tempo, o que vem ganhando força é o evangelismo, que hoje tem mais de 42 milhões de seguidores, o que representa cerca de 22% dos brasileiros. Se nas sociedades antigas a religião buscava representar o coletivo, hoje ela abre debates sobre até que ponto a proximidade com a política é saudável para o progresso de uma nação. Para o teólogo Valdeci Cardoso, esse fenômeno retarda a reflexão da ética social no Brasil. “Penso a sociedade como algo com capacidade de refletir sobre todos os pontos da vida, com liberdade, responsabilidade e criatividade. A bancada religiosa que temos atualmente me parece ser profundamente fundamentalista e isso é um atraso para qualquer cultura. Inclusive, para a economia de um país”, opina Cardoso. Com 80 deputados federais eleitos, a bancada dos que se assumem evangélicos na Câmara vai crescer 14% a partir de janeiro de 2015. No pleito de 2010, foram eleitos 70 representantes, entre bispos, pastores e seguidores de igrejas. O número representa 15% do total de deputados escolhidos. Para Cardoso, esse aumento poderá significar uma dificuldade ainda maior na aprovação de projetos ligados a direitos igualitários ou em defesa do aborto. “Fazer esse consenso é abrir mão de critérios que os fizeram poderosos. Esse fundamentalismo os alimenta e, portanto, não vai haver abertura para qualquer mudança de comportamento”, acredita. Liziane Bayer está incluída nessa estatística crescente. Candidata a deputada estadual pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), a pastora da Igreja Internacional da

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Graça de Deus foi eleita no Rio Grande do Sul com quase 30 mil votos. Na propaganda eleitoral obrigatória da TV, a participante da religião cristã evangélica neopentecostal assumiu o compromisso com a fé, a família, a vida, o Reino e o próximo. Na sua página em uma rede social, ela costuma citar versos da Bíblia. Diante disso, a sacerdotisa afirma que, como é uma seguidora dos passos de Deus, a religião tem, sim, poder sobre as decisões que ela toma – como a opinião contrária a descriminalização do aborto, por exemplo. “Sou contra o aborto. Ninguém pode escolher quem vive e quem morre”, defende. Ela afirma também que os projetos propostos por ela na última eleição buscavam trabalhar a favor da sociedade. A popularização das religiões e do desejo de alguns devotos de se tornarem políticos aconteceu, principalmente, a partir do aparecimento desse fenômeno na mídia, como explica o doutor em Ciências Sociais José Rogério Lopes. No final dos anos 1980, quando a emissora de televisão Record foi comprada por Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, a exposição do evangelismo – soberana nas bancadas religiosas – cresceu consideravelmente. Além disso, segundo o especialista, criou-se no Brasil uma nova forma de organização da vida religiosa, que fortalece as relações entre chefes das mais diferentes crenças, aumentando ainda mais o seu campo de influência e atuação. Entretanto, os presidenciáveis seguidores de alguma crença não tiveram muita força na eleição deste ano. Somando os votos dos três candidatos, Pastor Everaldo, do Partido Social Cristão (PSC), Levy Fidelix, do Partido Renovador Trabalhista


No Brasil, a fé tem se misturado a outras razões para definir quem serão os responsáveis por governar o país Foto: Giovanna Pozzer

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Brasileiro (PRTB), e Eymael, do Partido Social Democrata Cristão (PSDC), chega-se perto dos 2% dos votos válidos, o que representa cerca de 1,2 milhão de pessoas. Os candidatos Luciana Genro, do Partido Socialismo Liberdade (PSOL), e Eduardo Jorge, do Partido Verde (PV), que defenderam a laicidade, somaram aproximadamente 2,3 milhões de votos. Conforme o pensamento do ,outor em Teologia Moral e autor do artigo Células-Tronco: Progresso Biomédico e Desafios éticos, Wilmar Luiz Barth, essa baixa adesão pode se explicar pelo fato de as propostas desses candidatos basearem-se na religião e somente nela, aproximando apenas uma parcela da população e resultando em um afastamento do restante dos brasileiros. “Quando candidatos vinculados a uma religião procuram ocupar cargos políticos só para os interesses dos seus grupos, não podemos considerar como atividade política, pois um político precisa pensar no bem da sociedade. Neste caso, estamos diante de maus governantes. O verdadeiro político é aquele que administra e trabalha em prol do bem de todos”, afirma. Mesmo sem declarar publicamente

que pertenciam a algum grupo religioso, os candidatos que ocuparam as primeiras posições na última eleição também buscaram os votos dos seguidores de alguma crença, que são maioria esmagadora no país. Para isso, contrariaram – ou somente deixaram de lado – alguns assuntos polêmicos. Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB), que seguiram na disputa do segundo turno, se disseram contra a descriminalização do aborto, por exemplo. Marina Silva, que concorreu pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) e entrou na disputa após a morte do candidato Eduardo Campos no início de agosto, afirmou que “não defende” a legalização, mas se dizia favorável a um plebiscito sobre o tema, mesmo sendo evangélica. A candidata chegou a dizer, no início de setembro, que a Bíblia é fonte de inspiração para as decisões que ela toma. Para Barth, os três candidatos do topo das votações representavam muito bem o povo brasileiro, na medida em que também partilhavam de valores e crenças no exercício político. Segundo o teólogo, isso acontece porque a religião está enraizada na cultura brasileira, algo impossível de se modificar a curto prazo. “Somos um Estado laico, ou pelo menos estamos tentando

“A BANCADA RELIGIOSA QUE TEMOS ATUALMENTE ME PARECE SER PROFUNDAMENTE FUNDAMENTALISTA E ISSO É UM ATRASO PARA QUALQUER CULTURA.”

Valdeci Cardoso Teólogo

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ser. Isso ainda é um ensaio. Isso porque não se consegue mudar a cultura de um povo com uma lei”, reconhece. Nesse sentido, os ateus – que não creem em divindades religiosas – acabam não se identificando com os candidatos na disputa. Pensando nisso, a Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (ATEA) criou uma campanha de outdoors em seis cidades brasileiras com os slogans “Não vote com a fé. Use a razão” e “Sua religião não é a nossa lei”. A ação tinha como objetivo defender a laicidade do Estado e lutar pelo fim do preconceito contra ateus. Mesmo assim, Barth vê a religião sendo representada na política como algo bastante natural e interessante. Para ele, a grande maioria dos brasileiros, incluindo os candidatos e os governantes, ainda não consegue se separar das suas crenças e valores baseados em princípios religiosos. “Os candidatos e os que ocupam cargos que afirmam pertencer a alguma religião estão defendendo os seus valores e interesses. É isso que todos os setores da sociedade brasileira têm que fazer. Se você quer ter leis e voz, você precisa de candidatos. As pessoas acabam escolhendo um candidato que vá lhe representar no Legislativo”, afirma Barth, que acredita que, dentro das discussões de leis e projetos, uma visão diferente vindo de outros setores da sociedade é muito positiva. Lopes compartilha da mesma opinião, mas ressalta que a união entre religião e política precisa seguir o progresso cultural e social de uma nação. “Precisamos atentar para que essa composição na política seja coerente com o modelo de desenvolvimento que a sociedade vem criando. Ela precisa se estabelecer de forma aberta às mudanças”, comenta, relembrando que,

ainda hoje, órgãos públicos carregam crucifixos nas paredes para selar essa poderosa união. Dessa relação, discute-se que a mais atingida possa ser a liberdade individual de expressão. Unidas, religião e política podem impedir que mulheres e homossexuais tenham os mesmos direitos que o restante da população. Nesse sentido, o pensamento dos três especialistas é unânime, mesmo beirando a utopia: é preciso chegar a um consenso. Um acordo entre o que seria a “ética religiosa” e a “ética laica”, no que diz respeito ao comprometimento com a vida e com a organização da sociedade atual. “Afinal, qual é a ética do Estado laico? Qual é a ética da religião? São duas coisas diferentes? Acredito que, em uma sociedade democrática, a religião deva ser ouvida. E nós não temos que ficar discutindo quem é a favor e quem é contra. Temos que discutir amplamente a questão do aborto, por exemplo. As religiões têm o que dizer e poderiam ajudar nesse debate”, crê Barth.

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Querer n茫o 茅 poder. Quem p么de, quis antes de poder s贸 depois de poder. Quem quer nunca


há-de poder, porque se perde em querer.

— Fernando Pessoa


Paredes lĂşcidas 44


por Roberta Fofonka

A

loucura já teve muitos sinônimos. E, nesse sentido, o poder esteve por muito tempo contra aqueles que estivessem fora do eixo normativo da sociedade, sofrendo talvez de doença, doidice ou demência. O Estado e a medicina decidiam os limites de convívio e de exclusão social dos cidadãos. A fundação de instituições médicas exclusivamente voltadas para os loucos delimitou o livre arbítrio, o que estabeleceu o caráter opressor dessas entidades. Muitas pessoas passaram a maior parte da vida em hospitais psiquiátricos durante o último século. Heloísa Baraci é uma delas. Ela tem 60 anos e há 15 deixou o Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP), em Porto Alegre. Ela não tem certeza da data exata de ingresso. “Não sei por que fui parar lá, eu era muito pequena”, esclarece. Helô, como é chamada, fugiu de casa e passou a morar na rua ainda criança, porque era maltratada pela madrasta, com quem seu pai teve outros 11 filhos. De tantas idas e vindas do posto de saúde para casa, por causa dos maus tratos, foi afastada da família e internada no São Pedro, onde ficou por 36 anos. Não fosse pela promulgação da Lei Estadual Nº 9.716, da Reforma Psiquiátrica no Rio Grande do Sul, em 1992, talvez até hoje Helô estivesse lá. Isso porque o projeto de lei, proposto pelos deputados estaduais à época Marcos Rolim e Beto Grill, foi pioneiro no país. A ideia central da Reforma Psiquiátrica é justamente desconstruir o poder vigente no sistema de saúde mental, com o processo de desinstitucionalização. O panorama brasileiro das dependências psiquiátricas no século 20 era de abuso e superlotação. “A gente não era tratado igual gente. Estavam sempre me xingando. E tudo muito sujo. Além do mais, tínhamos que fazer os serviços, porque eram muitos pacientes”, explica. Eram mandadas para os manicômios pessoas com depressão, opositores do governo, homossexuais, grávidas, deficientes físicos, mendigos, sifilíticos e tuberculosos. Quem, por algum motivo específico, não era desejado para transitar em sociedade, independentemente de ter um diagnóstico de doença mental. “Com o tempo, estes lugares foram ficando lotados, pois era muito fácil jogar as pessoas lá, fazer quem estava incomodando desaparecer, ficar calado, eliminar o problema”, expõe Luiza Petry, residente de Psicologia da Divisão de Saúde Mental da Secretaria da Saúde do Rio Grande do Sul. A superlotação levou à escassez de recursos em muitos hospitais do Brasil. Um dos exemplos de abuso mais conhecido é o Hospital Colônia, na cidade de Barbacena, interior de Minas Gerais. O local, inaugurado em 1903, tinha capacidade para 200 leitos, porém, entre as décadas de 1960 e 1970, chegou a abrigar cerca de 5 mil pacientes ao

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mesmo tempo. Conforme informações do Museu da Psiquiatria Brasileira, estima-se que mais de 60 mil pessoas internadas como loucas morreram na instituição, sem nenhuma assistência. Os internos conviviam nus, com privações de alimentação, higiene e água potável. “Nos hospitais psiquiátricos, tu não existes enquanto pessoa. Se tiver dor de dente, arrancam teus dentes. Para saber se alguém passou por manicômio, é só olhar os dentes”, ilustra Heloísa. Com a aparência tradicional de casarão imponente, o São Pedro foi a sexta casa fundada no Brasil, ainda durante o Segundo Reinado, em 1874, época em que era natural chamar este tipo de local de hospício – a nomenclatura Hospício São Pedro foi trocada para hospital somente em 1925. O esvaziamento gradativo das instalações passou a acontecer somente a partir dos anos 1990, quando a criação de residenciais terapêuticos substituiu a ideia vigente, de encarceramento. Em termos legais, a ampliação do debate sobre desinstitucionalização das estruturas de saúde mental levou tempo para se transformar em medidas de maior visibilidade no país. O ano de 1989 ficou

marcado pelo fechamento da Clínica Anchieta (conhecida como Casa dos Horrores, em Santos, em São Paulo) e pela revisão legislativa do Projeto de Lei Nº 3.657, de autoria do deputado federal Paulo Delgado, que propunha a extinção dos hospitais de psiquiatria. Em 1990, o Brasil assinou a Declaração de Caracas, que definia a reorganização do modelo de assistência. No entanto, a cidadania de quem tem transtornos mentais foi assegurada apenas em 2001, com a aprovação da Lei Federal 10.216. Ela delibera sobre a proteção e os direitos das pessoas e redireciona o modelo de assistência. Há pouco mais de dez anos, o poder começou a voltar-se a favor. A Reforma Psiquiátrica trabalha com outra lógica de tratamento, baseada numa estrutura intersetorial dos profissionais. Isto é: a autoridade e a decisão sobre o tratamento de um usuário do sistema de saúde não são feitas apenas pelo médico, o que afrouxa a perspectiva de poder – principalmente após a instituição da Lei do Ato Médico, em junho de 2013, que não restringe a autorização de diagnóstico somente a profissionais da medicina. O paciente participa do processo de escolha do tratamento, que pode ser acompanha-

“PARA SABER SE ALGUÉM PASSOU POR UM MANICÔMIO, É SÓ OLHAR OS DENTES.”

Heloísa Baraci Ex-interna

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Fotos: Giovanna Pozzer




do por profissionais das artes, da psicologia e da fisioterapia. “O laudo é legalmente assinado por um médico, mas a avaliação em si é feita por vários profissionais, que compreendem as diferentes necessidades do usuário”, explica Mateus Daitx, também residente de psicologia da divisão de Saúde Mental do Estado. “A desinstitucionalização é uma mudança de lógica. Não se pode participar dela e ter a mentalidade de que um especialista tem um poder soberano”, complementa Luiza. Hoje existe a Morada São Pedro, uma comunidade de pequenas casas, onde vivem ex-pacientes que moraram muito tempo no hospital, sendo agora desinstitucionalizados. Na região metropolitana de Porto Alegre, localiza-se o Hospital Colônia Itapuã, instituição estadual que também funciona sob o conceito de moradia. Heloísa conta que “lutou muito para sair”, pois não queria ser realocada nas residências. Queria morar sozinha. “Fui a primeira a sair, em 1996. Diziam para eu esperar as casas ficarem prontas, mas, quando saí, mal tinham começado a construir”, recorda. Antes de viver sozinha, Helô foi preparada para sair do hospital. Passou quatro meses em um local de passagem, mantido pelo governo, para aprender a tomar os remédios por sua conta e desenvolver atividades triviais, como cozinhar e fazer compras no supermercado, ações às quais, até então, nunca esteve exposta na vida. Alguns médicos, que eram contrários, diziam que ela não teria condições de levar uma vida normal. Há cinco anos, Heloísa tem uma casa própria, obtida com auxílio do governo. Ela se mantém com o salário de funcionária da Secretaria de Saúde do Estado e o benefício De Volta Para Casa, do Ministé-

rio da Saúde, voltado à reintegração social de pessoas com longa internação hospitalar por razões psiquiátricas. “Quando recebi a conta de luz, fiquei muito feliz, não sabia se ria ou se chorava. Olhei bem se era para mim e vi meu nome escrito na conta. Naquele dia, eu era como outra pessoa da sociedade”, rememora.

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Em qualquer magistratura, ĂŠ indispensĂĄvel compensar a grandeza do


poder pela brevidade da duração.

— Montesquieu


Atrรกs da linha das grades 52


por Cristiano Oliveira e Gabriel Prates

H

ierarquias de influências estão presentes até mesmo no local definido como a pior penitenciária do Brasil, classificada pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Sistema Carcerário como a “masmorra do século 21”: o Presídio Central de Porto Alegre. Um lugar onde seres humanos se misturam em cubículos mal cheirosos com ratos, baratas e doenças graves como tuberculose e aids. Airton Michels, secretário da Segurança Pública do Estado até o final de 2014, admite que este contexto faz do Presídio Central “um exemplo internacional daquilo que não deve ser feito”. No principal cárcere do Estado, o poder é dividido entre cinco organizações criminosas que, segundo a advogada criminalista Ingrid Rossana, têm plena liberdade para tomar decisões, o que demonstraria um completo controle interno delas sobre o local. Esses bandos são chamados de facções, que, segundo Ingrid, “são grupos de bandidos organizados dentro da cadeia e que criam suas próprias relações de influência e convivência”. O jornalista Renato Dornelles, especializado na área policial, afirma que todos sabem, inclusive o Estado, que o Presídio Central é controlado por esses grupos. Estas facções têm nome: Os Manos, Os Brasas, Bala na Cara, Conceição e Unidos pela Paz. O poder paralelo dentro do cárcere é nítido a partir do momento em que o preso ingressa na penitenciária. Dornelles conta que quando alguém é detido, logo é perguntado se pertence a alguma facção para ser encaminhado à devida galeria. “Tudo isso com plena aceitação do Estado”, critica o jornalista. O relato vai ao encontro do que afirma o assistente social Guilherme Gomes: “A administração prisional tem uma preocupação em não colocar num mesmo local presos de duas facções distintas, pois sabe que ao menos um deles fatalmente seria assassinado”. A comprovação vem por quem viveu dentro “daquele inferno”, definição do ex-presidiário João Silveira. Ele recorda os momentos sombrios que viveu na prisão: “Assim que cheguei, me perguntaram se eu conhecia alguém e eu disse que não. Aí me encaminharam para uma cela qualquer”. Mesmo assim, segundo ele, “é preciso pagar pelas coisas, entrar em alguma facção e dever favores para os caras”. A galeria dos travestis e homossexuais é a única que não sofre influência direta de nenhum grupo criminoso. A consciência e a passividade do Estado em relação ao forte poder das facções dentro da penitenciária revoltam Ingrid. “O abandono por parte do poder público acabou aceitando as facções criminosas dentro do presídio, o que acarretou fo-

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mento e fortalecimento desses grupos”, explica a advogada. Ela detalha que os seguranças apenas cuidam dos corredores, deixando o controle das celas por conta desses grupos. Tal visão é corroborada por Sidinei Brzuska, juiz da Vara de Execuções Criminais. Ele reclama que as mortes cometidas pelas facções dentro da penitenciária são camufladas para que pareçam naturais diante das autoridades. Segundo ele, “a regra de convivência no Presídio Central é rígida e não é quebrada porque todos ganham com ela, desde o Estado até o mais perigoso dos presos”. O comando compartilhado do Presídio Central entre as facções e o Estado é bastante claro para o advogado criminalista Flávio Cruz. Sua conclusão é a de que se chegou a essa situação por desinteresse do governo e por conta de uma política criminal equivocada, que acredita exclusivamente na punição e não oferece a possibilidade de ressocialização do apenado. Brzuska afirma que “as facções devem ser combatidas com o cumprimento das leis, inclusive na parte que assegura direitos, tais como trabalho remunerado, estudo técnico, saúde e assistência jurí-

dica”. O relatório da CPI do Sistema Carcerário já apontava tais falhas em 2009, ano de sua divulgação, quando fulminou as condições da prisão gaúcha. Nele consta que “cabe responsabilizar o Rio Grande do Sul pela omissão no cumprimento da legislação aplicável à espécie e pelas históricas e continuadas violações aos direitos humanos dos encarcerados”. O descaso das autoridades, que fez com que o poder das facções criminosas tomasse conta das galerias do Presídio Central, também fica nítido quanto às condições precárias do local. O ex-detento Silveira informa que “em celas onde cabem quatro, eles amontoam sete ou até oito pessoas”. As páginas do relatório da CPI do Sistema Carcerário definem essas celas como “buracos de um metro por um metro e meio, onde os encarcerados dormem no cimento e convivem com sujeira, mofo e mau cheiro insuportável”. É, segundo o relato, “um descaso, uma visão dantesca, grotesca, surreal, absurda e desumana”. Silveira concorda com as conclusões da CPI: “Aquilo lá fede a esgoto, é infestado de ratos, cheio de doenças e está caindo aos pedaços”.

“É PRECISO PAGAR PELAS COISAS, ENTRAR EM ALGUMA FACÇÃO E DEVER FAVORES PARA OS CARAS.”

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João Silveira Ex-detento

Considerado a “masmorra do século 21”, o Presídio Central de Porto Alegre tem 2.069 vagas para uma população carcerária de 3.990 detentos Fotos: Sidinei Brzuska


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Superlotação e higiene precária são problemas constantes enfrentados pelos detentos. Em 2009, data da visita da comissão parlamentar à penitenciária, apenas um médico cuidava dos internos, sendo que 123 deles estavam infectados pelo vírus HIV e outros 56 pela tuberculose. Brzuska classifica a situação como periclitante: “Muitas pessoas acreditam que o sistema está bom do jeito que está, em uma espécie de vingança social, para impor sofrimento maior que a simples perda da liberdade”, diz. Gilmar Bortolotto, promotor de Justiça do Ministério Público, admite que o Estado “tem um déficit de civilidade com o sistema carcerário”. A CPI do Sistema Carcerário não teve acesso aos detalhes do poder paralelo adquirido pelas facções dentro do cárcere. O relatório informa que “quando a CPI visitou a parte superior do presídio, não havia presos, pois todos foram liberados para o pátio”. Assim, segundo as páginas da investigação, “na CPI nada consta sobre o poder paralelo existente por parte das facções dentro da penitenciária”. A sigla PCC (Primeiro Comando da Capital), principal facção criminosa dos presídios brasileiros, foi observada pelos membros da investigação. Segundo eles, foram encontradas até geladeiras com as iniciais do PCC em celas que pertenciam a integrantes da facção, responsáveis pela venda de produtos a outros presos. Para Dornelles, a chegada do PCC ao Rio Grande do Sul é antiga: “Isso se deu em meados dos anos 1980, quando os detentos do Presídio Central criaram a Falange Gaúcha, uma espécie de organização criminosa, um braço sob o comando do PCC dentro de Porto Alegre”. A ideia embrionária era o controle total

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das penitenciárias do Estado, o que acabou não acontecendo. Dornelles afirma que “o PCC teve problemas de estrutura e não conseguiu manter um braço forte, à época, longe de Rio e São Paulo”. Assim a Falange Gaúcha acabou se subdividindo e perdendo força. Os poucos remanescentes hoje fazem parte da facção Unidos pela Paz. O Estado, por ordem da CPI de 2009, precisa remover ou deslocar boa parte dos apenados. O Presídio Central tem 2.069 vagas para uma população carcerária de 3.990 detentos – conforme dados fornecidos pela Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) em agosto de 2014. No mesmo período, o governo do Rio Grande do Sul, com o aval do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), começou a executar as transferências de presos com o objetivo de reduzir o número de detentos. O esvaziamento se dará por pavilhões, ou seja, uma facção criminosa por vez. O advogado criminalista Flávio Cruz classifica a iniciativa como insuficiente e paliativa. “Não mais do que uma forma simplista de dar a entender que algo está sendo feito”, acrescenta. O major Dagoberto Costa, diretor do Presídio Central, tem outra visão. Ele define a demolição dos pavilhões mais sucateados como “o início de uma nova era do sistema prisional gaúcho”. O ex-secretário da Segurança Pública, Airton Michels, entende que “as pessoas que entram aqui acabam saindo piores”, visão que é compartilhada pelo ex-apenado João Silveira. Ele define seu período no Presídio Central como “a pior parte da minha vida, momentos que não desejo nem para meus piores inimigos”.


Superlotação e higiene precária são problemas constantes, enfrentados pelos detentos. Em 2009, data da visita da comissão parlamentar ao Presído Central, apenas um médico cuidava dos internos

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O poder não satisfaz, ou melhor, é como a droga e exige sempre doses maiores.

— Crescenzo


Embate com a lei por Alysson Mainieri

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Vila Cruzeiro foi vítima do poder do tráfico de drogas e de armas no fim do primeiro trimestre de 2014. O barulho de tiros a qualquer hora do dia colocou o local em alerta, pois a violência e a disputa entre gangues de traficantes rivais impunha o medo na rotina dos moradores da comunidade na zona sul de Porto Alegre. O perigo agravou-se e, em abril, toques de recolher foram impostos diariamente. Além do limite de horário de circulação determinado pelos bandidos, estabelecimentos comerciais, escolas e postos de saúde evitavam abrir as portas em virtude dos homicídios e dos disparos de armas de fogo. Embora estivessem cientes, as polícias Militar e Civil não confirmavam a versão dos moradores a respeito da limitação forçada. Mesmo assim, a Brigada Militar (BM) agiu no fim daquele mês: prendeu 35 pessoas e, temporariamente, amenizou a situação. O cenário já era acompanhado pela Polícia Civil (PC), que passou a apurar os casos locais após o registro de homicídios. A ação da BM não foi suficiente para acabar com as atividades criminosas e a guerra entre lados opostos do tráfico na Cruzeiro. Em maio, uma atuação conjunta entre BM e PC prendeu quatro pessoas e apreendeu um adolescente, além de uma arma, munições e 2,2 quilos de cocaína. A Polícia Civil investigou esse período em que houve o acirramento entre as gangues e o aumento no registro de homicídios. Na manhã de 23 de julho, uma

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operação coordenada pelo delegado Rodrigo Garcia, à época lotado na 4ª Delegacia de Polícia de Homicídios e Proteção à Pessoa (4ª DPHPP), realizou prisões preventivas e mandados de busca e apreensão. A ação desarticulou uma das quadrilhas envolvidas na guerrilha entre facções. De acordo com Garcia, a operação mobilizou cerca de 90 policiais civis para atender a 32 mandados de busca e apreensão e sete de prisões preventivas, ligados a pelo menos 12 procedimentos, todos relacionados a homicídios consumados ou tentados. Foram efetivadas 11 prisões, sendo oito em flagrante e três preventivas. Também apreenderam uma pistola calibre 380, um revólver calibre 38 e uma garrucha calibre 22, além de munição, maconha, dinheiro e celulares. Dos 11 presos, seis foram liberados na manhã do dia seguinte, menos de 24 horas após a intervenção policial na comunidade. Coube ao juiz plantonista do Foro Central Luís Alberto Rotta decidir sobre o destino dos presos. Seis ele considerou que não atendiam a requisitos para ho-

Policiais investigaram durante alguns meses e fizeram prisões na Vila Cruzeiro...


mologar prisões preventivas. Entre eles, François Antônio Charão de Oliveira, o França, que tinha mandado de prisão preventiva, acusado de assassinar um jovem em abril. O não atendimento aos itens quer dizer que eles vão responder a um processo judicial, mas em liberdade. A reportagem procurou Rotta para ouvi-lo sobre a decisão que gerou um choque entre o Judiciário e a Polícia Civil e contrapor aos argumentos do delegado Garcia, mas o juiz não quis comentar o assunto. De acordo com a secretaria de comunicação do Tribunal de Justiça, é comum os magistrados falarem apenas através de sentenças. Por isso, recorreu-se à sentença para expor os argumentos e servir de base para exposição de justificativas de Garcia e do coordenador do plantão do Foro Central de Porto Alegre, juiz Vanderlei Deolindo, que falou sobre a rotina dos plantonistas, o costume de decidirem casos de forma semelhante e o caso da Cruzeiro de forma superficial. Uma forma de ilustrar o embate de poder entre polícia e Judiciário.

... e Judiciário determinou a soltura de pessoas ligadas ao tráfico de drogas na região Fotos: Giovanna Pozzer


A polêmica sentença Para ilustrar o disputa legal que se estabeleceu entre o Poder Judiciário e a polícia em relação à soltura de um homem acusado de cometer crimes, a Ribamar explica, no esquema abaixo, os principais itens da decisão judicial controversa:

VISTOS EM PLANTÃO. Atendidas as formalidades legais, HOMOLOGO o presente auto de prisão em flagrante. Afinal, não bastassem os indícios de autoria e materialidade delitiva colhidos pela autoridade policial, o auto de prisão em flagrante observou os ditames constitucionais e infraconstitucionais, especialmente os artigos 301 e seguintes do Código de Processo Penal e o art. 5º, incisos LXI, LXII, LXIII e LXIV, da Constituição Federal de 1988. No mais, não há como passar despercebido a primariedade do autuado, que não exibe contra si nenhuma condenação transitada em julgado, tratando-se de crime praticado sem violência ou grave ameaça contra a pessoa, justa causa não havendo à decretação da sua custódia cautelar, sobretudo quando incomprovadas as condições do art. 312 do Código de Processo Penal. Não custa lembrar que com o advento das medidas cautelares previstas no art. 319 e seguintes do Código de Processo Penal, introduzidas pela Lei no. 12.403/2011, a prisão preventiva passou a revestir-se de maior excepcionalidade, sendo admitida, apenas, na hipótese de não ser recomendável a sua substituição por alguma medida cautelar específica, nos precisos termos do art. 282, § 6º, do Estatuto Processual Civil. Assim, CONCEDO LIBERDADE PROVISÓRIA a FRANÇOIS ANTÔNIO CHARÃO DE OLIVEIRA, mediante o compromisso de comparecer mensalmente em juízo, mais precisamente na Vara para onde for distribuído o presente APF, durante o trâmite do inquérito/processo criminal, pelo menos, para justificar as suas atividades, devendo manter, ainda, endereço atualizado nos autos e apresentar-se em juízo, sempre que for intimado, tudo sob pena de revogação da liberdade provisória, do que deverá ter inequívoca ciência o autuado, colhendo-se a assinatura do autuado no alvará, com posterior remessa a juízo. Expeça-se alvará de soltura, mediante as condições estabelecidas, se por outra razão não estiver preso o flagrado. Luís Alberto Rotta, Juiz de Direito. Processo nº 001/2.14.0051935-5 (CNJ:.0248199-22.2014.8.21.0001)


Vistos em plantão Prisão em flagrante

Após prender (adultos) ou apreender (menores de 18 anos) em flagrante, os policiais encaminham os envolvidos à delegacia para que sejam lavrados os autos de prisão (ou apreensão) em flagrante. Os requisitos desses dois tipos de inquéritos são semelhantes. Os presos têm direito a ser ouvidos, ter acesso a advogado, que um familiar seja comunicado, que o policial que os prendeu (ou apreendeu) e duas testemunhas deponham, entre outros previstos no Código de Processo Penal e no Estatuto da Criança e do Adolescente. Primariedade do autuado

Em 2013, François Antônio Charão de Oliveira foi preso em flagrante com 16 buchas de cocaína, pesando 5,6 gramas, e R$ 490. Ele respondeu em liberdade, foi absolvido e, posteriormente, no processo de apelação Nº 70057996290 movido pelo Ministério Público, teve a absolvição mantida por “insuficiência probatória para ensejar juízo condenatório”. Sobre absolvição, o juiz Deolindo afirma que nada pode ser feito e que França não perdeu a primariedade, pois ele foi considerado inocente.

A prisão preventiva passou a revestir-se de maior excepcionalidade

Deolindo explica que a tendência é decidir baseado na presunção da inocência e que, antes da atual Constituição, primeiro se prendia, para depois investigar e julgar. Casos como o da Cruzeiro despertam dúvidas no delegado Garcia. Por exemplo: como pedir para a sociedade testemunhar contra um criminoso que não passa 24 horas preso por porte de arma ilegal e tráfico de drogas? “Tu achas que esse tipo de análise não acaba mantendo o círculo vicioso do crime?”, indaga. Concedo liberdade provisória

Garcia entende que a lei permite isso, mas acredita que deveria haver mais proximidade do Judiciário com comunidades como a da Cruzeiro. O delegado acredita que a decisão deve vir acompanhada de uma análise social dos fatos, para conhecer as consequências que a liberação pode trazer aos moradores. “Aos olhos de quem mora na comunidade, (o criminoso liberado) é um cara que tem muito poder, tem força, e por isso não se mantém preso. Esse é o problema”, acredita. Se por outra razão não estiver preso o flagrado

O regime de plantão do Foro Central do Tribunal de Justiça atua 24 horas. O setor atende casos de urgência, que são levados a um juiz plantonista. De acordo com o juiz Vanderlei Deolindo, há cinco juízes com essa atribuição: “Diria que os flagrantes correspondem a 90%, em média, das ações que chegam todas as noites e nos finais de semana ao plantão”, comenta. Ele afirma que os autuados em flagrante possuem o direito de terem sua situação definida em até 24 horas e não considera o tempo curto para analisar se os inquéritos cumprem os requisitos para decidir.

Crime praticado sem violência ou grave ameaça

O delegado Rodrigo Garcia conta que França foi preso por portar um fuzil .30, de uso restrito e com numeração raspada. O juiz Deolindo salienta que a Justiça não é um prolongamento da polícia, e por essa razão não precisam estar afinados. “As pessoas querem um juiz policial. É um equívoco”, afirma. Apesar disso, ele entende que há casos que devem ser levados em consideração na hora de decidir pela prisão preventiva, devido à periculosidade que o indivíduo representa para a sociedade, como estupradores e assaltantes à mão armada.

França possuía mandado de prisão preventiva que deveria estar cadastrado no sistema Infopen (registro nacional informatizado). O juiz Deolindo explica que as delegacias têm acesso ao registro e que pode ter havido problemas técnicos. O delegado Garcia acredita que a pesquisa não foi realizada corretamente. Essa informação, portanto, pode não ter constado no inquérito entregue a Rotta para que fosse decidida a situação de François e por isso concedida liberdade provisória. “No outro dia, (os policiais) foram ao Foro, depararam com ele ali e efetuaram a prisão novamente”, conta o delegado, referindo-se à correção da situação duvidosa. “Se não está no processo, não está no mundo”, cita Deolindo, reproduzindo uma espécie de ditado judiciário.


Ao poder, a primeira coisa que se diz 辿 n達o. N達o por ser um n達o, mas porque o poder tem de


ser permanentemente vigiado. O poder tem sempre tendência para abusar, para exorbitar.

— José Saramago


Forรงa digital

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por Rômulo Fernandes

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ontrole, interatividade, escolhas e recompensas. Estes elementos definem como os videogames exercem uma relação de poder com os jogadores. Diferente de outras formas de arte, como música, cinema ou teatro, que constituem experiências puramente passivas, os jogos eletrônicos oferecem aos jogadores um ambiente digital onde eles controlam os personagens. Trata-se de um campo relativamente novo, que está constantemente gerando debates, resultando em pesquisas que divergem entre seus benefícios e malefícios. Porém, um aspecto que sempre se destaca nestes estudos é a maneira como a recompensa virtual influencia o jogador. Elas podem definir diferentes padrões de comportamento, sejam eles negativos, no caso de se jogar excessivamente games violentos como GTA (em que o jogador explora um mapa aberto, baseado em cidades reais, podendo fazer o que bem entende, desde pular de paraquedas até matar pessoas pelas ruas) ou Call of Duty (jogo de guerra em primeira pessoa, o jogador tem o ponto de vista a partir dos olhos do personagem, que é um soldado em meio a conflitos armados) ou positivos, em jogos que não apresentam aspectos tão agressivos e estimulam comportamentos sociais, educativos e estratégicos, como The Sims (simulador da vida, em que se pode criar um personagem do zero, definindo seus aspectos físicos e comportamentais e depois controlá-lo durante seu envelhecimento) ou Journey (título independente em que jogadores colaboram uns com os outros para chegar ao ponto final, sendo que a única forma de comunicação é via acordes musicais). Este poder vem de uma área de prazer do cérebro, onde a dopamina, substância química que desempenha uma série de funções como prazer, recompensa, movimento, memória e atenção, é liberada sempre que esta zona capta sinais de gratificação a determinados comportamentos. No caso dos videogames, a recompensa por cumprir os objetivos determinados no jogo. O estudante de Relações Internacionais Júlio Constantino, 22 anos, conta como se sente após jogar. “Geralmente fico com o mesmo humor que estava antes de jogar, a não ser que seja um jogo muito difícil. Se perco, fico frustrado, se ganho, me sinto aliviado. Também tem aqueles em que estou ansioso para jogar, quando jogo saio bem feliz também”, relata. Júlio joga, em média, 15 horas por semana, uma hora acima da média geral do brasileiro, que gasta duas horas por dia, sete dias por semana, conforme pesquisa realizada pela InsideComm em 2012. Todo jogo digital conta com a chamada jogabilidade, que é um conjunto de propriedades técnicas pelas quais o usuário interage com o virtual e como este mundo responde ao jogador. Estas propriedades incluem as regras do jogo, formas de controle, obstáculos,

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Controle é mais do que um simples meio de interação, ele é o objeto que dá poder ao jogador, transferindo modelos comportamentais e neurológicos para o usuário, podendo mudar suas interações sociais Foto: Giovanna Pozzer

os meios para transpor estes desafios e quais serão as recompensas ao superá-los. Através destas características, toda a produção artística e técnica de um jogo digital é manejada, podendo ser modificada por meio das decisões do jogador, que muda, de forma dinâmica, a história que está sendo contada ou o mundo virtual que é apresentado na tela. As narrativas dos games são imprevisíveis, a partir das formas de interação e controle. Os personagens podem ter definidos o gênero, a aparência e até mesmo o perfil psicológico. As novas formas de interatividade, como controles de movimento e câmeras que captam as ações físicas do jogador, provocam a sensação de completa imersão no mundo virtual. Estas características ajudam a ampliar os sentimentos que um game pode provocar, da agressividade à serenidade, da gratificação à frustração. A empresária Nathiely Costa, 28 anos, descreve que qualidades ela considera essenciais para gostar de um jogo. “Para eu gostar, tem que ter uma boa história, se não não entro no clima e acabo deixando de lado, exceto os de terror, que curto mesmo sem ter um bom enredo, vou pelo medo mesmo”, destaca. Ela ainda lembra que games com muita interatividade, nos quais é preciso tomar decisões constantemente, são os que ela mais aproveita. “Um jogo tipo Mass Effect (game em que todos os diálogos do personagem são escolhidos pelo jogador e acaba definindo diferentes desfechos da história) ou Heavy Rain (em que as ações do jogador definem o desenvolvimento da narrativa) me deixa muito desligada. Eu entro na história, começo a jogar sem parar e, quando vejo, já está amanhecendo”, conta. Um estudo realizado em 2011 por cientistas das universidades de Genebra, na Suíça, e de Rochester, nos Estados Unidos,

publicado na revista britânica Nature, indicou que os videogames atuam como uma espécie de treinamento controlado, através de contextos comportamentais extremamente motivadores. Um título de guerra como Call of Duty exagera nos conflitos militares, incentivando o sentimento de urgência no usuário, motivando-o a tomar decisões rápidas. Entre os principais benefícios neurológicos deste contexto estaria o aperfeiçoamento da capacidade cognitiva, com aumento nas reações visuais, localização espacial e processamento neurológico. Ao resolver problemas, o cérebro de um jogador indicava menos atividade do que de um não jogador, ou seja, a eficiência aumentou. A professora da Faculdade de Psicologia da PUCRS Carolina Lisboa destaca que este aumento geral na capacidade neurológica tem influência direta no comportamento de uma pessoa. “Essas características podem soar, num primeiro momento, como um treinamento quase que robótico das pessoas, mas o resultado pode ser exatamente inverso. Elas ajudam na resolução de problemas do dia a dia, ocasionando uma maior autoconfiança e consequente melhora nas habilidades sociais”, garante. Entretanto, ela destaca que nem sempre o resultado psicológico é positivo, podendo um jogo agressivo ter efeitos negativos. “Algumas pesquisas dizem que o impacto de um game violento é maior do que o de uma novela ou de uma propaganda agressiva, pois ele permite a interatividade. O sujeito, além de estar recebendo um estímulo, interage. A possibilidade de captar um modelo agressivo é maior do que se eu estiver sentada olhando um filme, que também impacta”, explica. Ainda assim, ela destaca que cada pessoa pode responder de maneiras muito diferentes aos estímulos digitais, sejam eles agressivos

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ou não. “Tem pessoas com pré-disposição à agressividade, ou seja, elas vão gostar mais de um jogo violento. Quem não tem esta característica ou não vai comprar ou jogar uma hora por dia, talvez nem isso, não vai se interessar”, destaca. Carolina lembra que as diversas pesquisas que existem sobre o impacto psicológico dos games não são conclusivas. Alguns estudos indicam que títulos violentos podem aumentar a agressividade do jogador, enquanto outros não encontram ligação alguma entre estes games e um aumento no comportamento violento. Em 2010, uma meta-análise, técnica de pesquisa que combina resultados de diferentes estudos voltados ao mesmo tema, publicada pela Associação Americana de Psicologia, indicou que jogar videogame causa comportamento agressivo e diminui a empatia e a sociabilidade. O resultado recebeu apoio de psicólogos, psiquiatras e físicos, que elogiaram a forma como foi conduzido o estudo, um dos mais abrangentes até hoje. Entretanto, no mesmo ano, a Procuradoria-Geral da Austrália, um dos países mais rígidos no controle de videogames, realizou

uma revisão do estudo americano, constatando que, apesar da meta-análise ser considerada um padrão de excelência, não foram apresentadas evidências conclusivas para provar que os videogames provocam comportamento violento, mostrando consenso apenas no que diz respeito a serem nocivos às pessoas com personalidade agressiva ou psicótica. O órgão destacou que uma série de fatores, incluindo questões políticas e sociais, influenciaram no resultado final da análise, além da falta de consenso na própria comunidade científica sobre a real definição do comportamento violento e como mensurá-lo. Esta conclusão foi uma surpresa para muitos especialistas e para a própria indústria de jogos digitais, que viam no governo australiano um perfil mais conservador no controle de jogos. O psicólogo colaborador do Núcleo de Pesquisa da Psicologia em Informática da PUCSP Márcio Berber Diz Amadeu destaca que os videogames podem modificar o comportamento, mas não necessariamente a agressividade. “Em um jogo violento, o usuário extravasa, o que causa uma euforia e consequente agitação, mas isso não significa que há necessariamente um aumento da

“TEM PESSOAS COM PRÉDISPOSIÇÂO À AGRESSIVIDADE, ELAS VÃO GOSTAR MAIS DE UM JOGO VIOLENTO. QUEM NÃO TEM ESTA CARACTERÍSTICA OU NÃO VAI COMPRAR OU VAI JOGAR UMA HORA POR DIA, TALVEZ NEM ISSO.”

Carolina Lisboa Psicóloga

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agressividade”. Amadeu é crítico das pesquisas que relacionam videogames à violência. “Geralmente as pesquisas que indicam que há alguma ligação entre jogos e violência são subsidiadas por organizações com um perfil mais conservador, até mesmo religioso. Quase todos os estudos recentes indicam que não há qualquer ligação entre violência e games”, ressalta. O vício em videogames também é um problema que tem surgido na última década. Sem muitos estudos que comprovem os reais fatores que levam ao vício em games, muitos especialistas teorizam que o fator da recompensa leva à adição. Títulos online, como League of Legends, em que o jogador pode competir com dezenas de outros jogadores por recompensas infinitas, são considerados os que mais viciam. No mundo virtual, os jogadores encontram a satisfação que não encontram no mundo real, levando à necessidade constante de estar conectado. Neste sentido, Carolina e Amadeu concordam que o vício pode ocorrer, mas não é exclusivo dos games e que só vai se manifestar no caso da falta de outros elementos sociais no dia a dia de uma pessoa. “Isso só acontece como forma de preencher alguma falha na vida dele, como um trauma, ou um vazio, como falta de amigos ou família”, elabora. Países como Coreia do Sul e China têm clínicas de reabilitação para viciados em eletrônicos. Carolina explica que nestes países há altos índices de suicídio, consequência de fatores como pressões sociais e até mesmo do clima, já que o isolamento é comum em períodos de frio rigoroso. Donan Alves pode ser visto por muitos como alguém viciado em games. Jogador desde os sete anos, ele põe as mãos no controle pelo menos 45 minutos por dia e, por mais estranho que pareça, não faz isso por

diversão. “Não chega a ser por diversão, pois como entramos na história, acabamos com um sentimento de que o jogo poderia ser melhor em um aspecto ou outro, além das vezes nas quais desligo o videogame por não conseguir passar de um determinado ponto”, relata. Este sentimento de frustração é comum em títulos com níveis de dificuldade muito altos, como Dark Souls, famosa produção medieval. Donan relata que se sente frustrado depois de jogar por muitas horas e fica ansioso para continuar. “Sinto que o fim de semana deveria ser maior ou o tempo poderia andar mais devagar. É muito ruim estar focado e, ao olhar o relógio, ver que está na hora de desligar, pois amanhã é segunda. Fico com ansiedade, com vontade de saber como será a continuação”, descreve. Ele acredita que um jogo possa viciar e que, no seu caso, a adição só ocorre com alguns gêneros específicos, como ação ou estratégia. “Nos que sou fã, perco a noção de tempo, exemplo do Grand Theft Auto 5. Quando comprei, virei oito vezes, de todas as formas que achei possível que se fizesse. Depois disso, fiquei um bom tempo sem jogar”, destaca. Apesar dos excessos, Donan vê que alguns games podem ser benéficos para o desenvolvimento do raciocínio, enquanto outros não passam de simples meios de diversão. “Acho que é positivo quando apresenta uma história que leve você a raciocinar, como um título de estratégia. Negativo quando as pessoas se viciam em jogos como os de futebol, passando horas com algo que é praticamente a mesma coisa o tempo todo. Estes são games para diversão. Jogos com histórias e estratégias contribuem para o desenvolvimento do raciocínio”, avalia.

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Cada um tem tantos direitos, segundo o poder que tem.

— Baruch Espinoza


Não há poder. Há um abuso do poder, nada mais.

— Henri Montherlant


De Paris à Voluntários 76


por Paola Pasquale

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ndy Sacks, personagem vivida pela atriz Anne Hathaway no filme O Diabo Veste Prada, é a assistente novata da editora-chefe da maior revista de moda do mundo. Em sua primeira vez acompanhando uma reunião para decidir as roupas a serem fotografadas em um editorial, não consegue controlar uma risada ao testemunhar a indecisão da superior entre dois cintos azuis, para ela iguais. Ao que a temida Miranda Priestly, interpretada por Meryl Streep, responde com uma das mais icônicas réplicas do cinema: “Você acha que isso não tem nada a ver com você. Você vai até o seu guarda-roupa e escolhe esse suéter azul folgado para dizer ao mundo que se leva muito a sério para se importar com o que veste. O que você não sabe é que esse suéter não é apenas azul. Nem turquesa, nem lápis-lazúli. Na verdade, é cerúleo. E você também não tem a menor noção de que, em 2002, Oscar de la Renta fez vestidos cerúleos e Yves Saint Laurent fez jaquetas militares cerúleas. E o cerúleo logo foi visto em oito coleções diferentes. E acabou nas grandes lojas de departamento e, um tempo depois, em alguma lojinha vagabunda onde você, sem dúvida, o comprou em uma liquidação. No entanto, esse azul representa milhões de dólares e incontáveis empregos. E é até meio cômico que você ache que sua escolha a isente da indústria da moda quando, de fato, você usa um suéter que foi selecionado pelas pessoas nesta sala. No meio de uma pilha de coisas”. Assim como o filme e as marcantes personagens, a explicação de Miranda é baseada em fatos reais. Apesar do tom maldoso que a “mulher de ferro da moda”, como era conhecida, imprime ao seu discurso, a explicação é o resumo do poder que a indústria da moda exerce em todo o mercado mundial de vestimentas e acessórios. Engana-se quem imagina que a moda está restrita ao circuito de desfiles das semanas de Nova York, Londres, Paris e Milão, por exemplo. As tendências apresentadas quatro vezes ao ano por estilistas do mundo todo são, atualmente, consequência de um estudo de materiais, cores, formas e desejos captados com anos de antecedência por empresas de pesquisa de mercado e comportamento e que atingem vários setores. Uma das peças mais vendidas na Voluntários da Pátria, uma das ruas com o comércio popular mais efervescente do centro da capital gaúcha, é um colar esteticamente simples. O acessório consiste em um aro metálico com uma pérola sintética enorme em cada ponta, cada uma de um tamanho, sem fecho, e pode ser visto em quase todas as lojas, assim como no camelódromo de Porto Alegre. Entrando em uma das mais movi-


mentadas, a Mil Biju, é possível encontrar, entre as prateleiras abarrotadas, um lugar especial para os pacotes com inúmeros colares de duas pérolas. “Muitas mulheres vêm atrás desse colar, todos os dias, vendemos bastante”, conta Kellen dos Santos, uma das vendedoras que reforçam o time do meio-dia. A funcionária diz não saber ao certo como a febre surgiu, mas que já ouviu clientes comentando que viram na televisão ou em revistas. “Algumas até viram no Fantástico, se não me engano, mas acredito que a maioria só compra por estar todo mundo usando, conhecem pelo boca a boca”, conclui. Afinal, como essa tendência foi parar na Voluntários e no pescoço de tantas porto-alegrenses? Apenas algumas quadras de distância é possível encontrar outra filial da Mil Biju, igualmente cheia de acessórios dos mais variados. A gerente da loja, Jéssica Susan, explica que os folhados a ouro ou prata vêm de Guaporé, polo rio-grandense de fabricação de bijuterias e semijoias, mas a maioria vêm de São Paulo. “Os produtores de Guaporé replicam o design dos

produtos vindos de São Paulo, que por sua vez encomendam da China”, afirma Jéssica. Conforme a gerente, independentemente do distribuidor, esses acessórios de baixo custo e produzidos em larga escala são todos chineses ou reproduções do que vem de lá. A professora do curso de Moda da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) Cariane Weydmann Camargo, especialista em Desenvolvimento de Produto e Gestão de Marca, aponta que, embora longo, o caminho de uma nova tendência é cada vez mais rápido. “Atualmente, a informação é praticamente instantânea, via internet. Nesse sentido, as grandes indústrias da China reproduzem o que as marcas importantes apresentam em seus desfiles e também o que é divulgado nas principais revistas de moda. Depois, vendem em atacado e exportam para várias partes do mundo”, explica. Retrocedendo alguns meses, não foi difícil encontrar o tal colar das superpérolas nas capas e editoriais das maiores revistas de moda do planeta, como a Vogue Itália de janeiro de 2014, com Julia Nobis, a Vogue Austrália do mesmo mês,

“CONSUMIDORAS QUEREM USAR ALGO DIFERENTE, RELEVANTE E, PRINCIPALMENTE, QUE ALGUÉM BACANA ESTEJA USANDO, SEJA EM NÍVEL PARALELO COM AS BLOGUEIRAS OU PROFISSIONAL, COMO A GISELE BÜNDCHEN.”

Cassio Grinberg Mestre em Marketing

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Conceito de colar lançado em desfile da Chanel, no verão de 2014, ganhou espaço em lojas populares em todo mundo Foto: Giovanna Pozzer


com Jessica Hart, e a Harper’s Bazaar do Reino Unido de fevereiro. Em paralelo à profusão de revistas que expuseram o colar, redes de fast fashion, como a espanhola Zara, conhecidas por reproduzir tendências vistas nas passarelas em larga escala e com preço acessível, já exibiam as suas versões inspired, ou seja, inspiradas no colar original. Sites de compra como o asiático AliExpress também estavam entupidos de vendedores anunciando versões do colar. A origem do produto, por fim, remete ao desfile da temporada de verão 2014 da famosa Maison Chanel, que aconteceu no Grand

Palais, em Paris. As pérolas sempre foram ícone da grife, desde a sua adoção pela visionária estilista fundadora, Coco Chanel, no início do século 20. Na temporada em questão, Karl Lagerfeld, atual diretor criativo da marca e considerado o kaiser da moda, foi mais uma vez ovacionado por rejuvenescer o acessório e apresentar o colar de maxipérolas minimalista.“O colar de pérolas, é um clássico da Chanel, e tornou-se um símbolo de originalidade e elegância”, assinala Cariane. O caminho da França à Voluntários da Pátria, passando pelas revistas, lojas de departamento, indústria chinesa e fi-

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nalmente se distribuindo pelo planeta em formatos cada vez mais baratos, parece retilíneo, mas não é. O percurso do alto luxo ao popular envolve diversas variáveis e, acima de tudo, depende do desejo. O professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Cassio Sclovsky Grinberg, mestre em Marketing, afirma que um dos grandes fatores de propagação de tendências é a aspiração: “As consumidoras querem usar algo diferente, relevante e, principalmente, que alguém bacana esteja usando, seja em nível mais paralelo como as blogueiras, ou profissional como a Gisele Bündchen, que é altamente influenciadora”. Portanto, apesar de existir, sim, um processo orgânico de difusão de tendências a partir do que é desfilado nas semanas de moda, as marcas ainda investem em marketing para influenciar nesse curso. Ainda que a Chanel tenha um nome de peso na indústria, o colar de maxipérolas não fugiu a isso. Logo após o desfile, celebridades jovens e da cultura pop, como as cantoras Miley Cyrus e Rihanna e as atrizes Nicole Richie e Lupita Nyong’o, foram vistas utilizando a peça e atraindo atenção para o que foi chamado pela revista Vogue Brasil de “a mudança de personalidade das pérolas”. Antes associadas ao estilo bem-comportado, depois do verão 2014 de Lagerfeld, elas viraram sinônimo de visual arrojado. É esse sentimento de desejo pelo novo que faz com que as tendências surjam a cada estação. Em seu livro O Império do Efêmero, o sociólogo francês Gilles Lipovetsky define a moda como um fenômeno específico das sociedades modernas, associado aos valores. É o gosto pela mudança que faz essa indústria própria do capitalismo girar. Não se poderia, de acordo com

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o autor, falar em moda nas sociedades tribais, antigas e medievais. Predominaria nestas o valor atribuído à permanência, o que impediria a formação do gosto pelo prestígio, pelo tempo presente e pela legitimidade da ação humana sobre o mundo, existente no século 21. Assim, o colar das duas pérolas da Chanel percorreu toda a etapa inicial da propagação de tendências da moda tradicional, desde a inovação, quando foi criado, passando pelos primeiros adeptos e formadores de opinião da moda, quando usado por celebridades, até ser adotado pela maioria inicial, quando parou nas prateleiras de lojas de departamento e se tornou pop. Atualmente, encontra-se na etapa decrescente, pois acabou abraçado pela maioria tardia, ou seja, chegou à sua etapa mais massificada, a mais popular. Após esse trajeto, a nova moda tende a ser usada pelos considerados “retardatários” e logo some, fechando o ciclo. Em entrevista ao site da Editora Abril, a diretora na América do Sul da consultoria de tendências WGSN, Andrea Bisker, nomeia as quatro primeira etapas deste circuito. A fase tastemaker é quando a tendência desponta, trend setter, quando ela se dissemina, mainstream, no momento em que está totalmente espalhada, e early adopter é o início da dissipação. Ao atingir o fim do ciclo, o produto vai lentamente saindo de mercado e dá lugar a novos. “O mercado da moda geralmente é efêmero, seguindo um padrão de alta obsolescência programada pelas próprias marcas”, resume Cariane. Atualmente na fase mainstream, o colar da Chanel está prestes a fechar o seu ciclo e sumir de circulação. Na próxima estação, tudo recomeça com um novo artigo.

Lançamento do acessório em desfile da Chanel Foto: Divulgação


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Quem não tem poder não tem amigos.

— Padre António Vieira


Terás alegria ou terás poder, disse Deus; mas não terás ambos.

— Ralph Waldo Emerson



Luxo aos olhos e ao paladar por Bibiana Dihl

U

m boi japonês que escuta jazz e ganha massagem. Essa pode parecer a descrição de um bicho de estimação ou até de um desenho animado – mas este animal é a base do prato mais caro do restaurante Hashi, em Porto Alegre. “É, na verdade, um boi bem tratado, de raça nobre e de carne macia, cujo quilo do ingrediente custa R$ 300”, explica o chef Carlos Kristensen. Ele vende apenas 300g por porção, o que equivaleria a R$ 90. Mas o valor do prato é mais salgado: R$ 159. Os alimentos que acompanham o boi e completam os outros R$ 69? Farofa, uma fatia de pão e um ovo. O alto preço se deve ao nome que o restaurante Hashi conquistou no mercado gastronômico da Capital. O local é considerado de classe alta, chique e, portanto, pode cobrar preços elevados por “bois que escutam jazz”. Por isso, Kristensen explica que a comida não é o único foco de um estabelecimento gastronômico. Para o chef, três comportamentos determinam o motivo pelo qual alguém entra num restaurante: boa comida, bom atendimento e o nome, a marca. “Por mais que a gente trabalhe muito a técnica e os ingredientes, talvez a comida não seja o principal atrativo”, admite. O chef do Chez Philippe, outro restaurante conhecido, complementa, destacando o serviço oferecido. “Colocaram muita

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Uma dupla de peças de sushi com ovas de salmão tem 50g e custa R$ 20, o que faz dela o prato mais caro do restaurante. Cleber Vital, chef do Sushi by Cleber, vende cerca de seis porções por mês Fotos: Giovanna Pozzer


moda em cima da gastronomia. Os estabelecimentos têm, sim, essa questão do status. E, para muita gente, a comida também”, explica Philippe Remondeau. Os alimentos podem ser a representação de um status, de uma classe social. Produtos estrangeiros, de difícil acesso, estão entre os que mais combinam com o perfil de quem quer ostentar pela alimentação e local onde fazem suas refeições. E uma das responsáveis pelo aumento da popularidade das iguarias servidas por restaurantes considerados chiques é uma plataforma em que se tornou comum postar fotos de comida: o Instagram. “Desde sempre, em diferentes culturas, os alimentos foram usados para demonstrar diferença entre as pessoas e expressar diretamente uma relação de poder. Antes, fazia-se isso com banquetes. Hoje se faz através das redes sociais”, explica a antropóloga da alimentação Patrícia de Gomensoro. O arquiteto Rafael Kroth e o estudante Matheus Dorigatti, frequentadores assíduos de restaurantes considerados de classe alta, fazem questão de dizer que não é sempre que postam as fotos de pratos bem elaborados em suas redes sociais – mas admitem que já fizeram isso. “Nem sempre é o prato de comida. Pode ser um detalhe do guardanapo ou um detalhe do restaurante”, diz Kroth. “Não deu nem tempo de apresentar a comida para eles. Quando coloquei o prato bonito e grande na frente dos clientes, eles pegaram o celular e tiraram a foto antes mesmo de pensarem em comer”, relata, com naturalidade, Cleber Vital, chef do Sushi by Cleber. Ele ressalta que o alimento nem sempre é o foco do consumidor. “As pessoas não vêm aqui só pela comida, vêm porque é um restaurante chique. Com alimentação,

há muito a história do mostrar”, ressalta, acrescentando que grande parte dos clientes que frequentam o local posta fotos dos pratos ou faz check-in em redes sociais. “As pessoas precisam mostrar para os outros onde estão”, destaca. Para Patrícia, o post da comida em uma rede social equivale a abrir a bolsa, pegar a carteira e, dela, sacar uma conta bancária. “É o mesmo que dizer eu posso, eu sou melhor do que o resto”, ressalta. Segundo a antropóloga, o comportamento é o mesmo de outras épocas, com a diferença de que foram inventadas novas ferramentas para esta ostentação, como fotos e compartilhamentos de localização. “Largo o prato na mesa e o cara, em vez de pegar o talher, pega o telefone. É um comportamento mundial”, ilustra o chef do restaurante Hashi, Carlos Kristensen. “Desde as sociedades mais antigas, sempre houve grupos dominadores e dominados, e quem tem poder sempre buscou maneiras de expressar diretamente essa diferença social”, analisa Patrícia. A antropóloga destaca que esta superioridade pode ser expressa através de diversos objetos: roupas, joias, acesso a lugares. A comida é só uma dessas formas – e é potencializada pelo compartilhamento mundial. A vontade de se sentir privilegiado pelo poder de degustar comidas caras também passa pelo simples ato de frequentar. Kroth e Dorigatti destacam a importância da experiência com o restaurante que, por si só, já vale o alto preço. “Admito que frequento por dois motivos: por gostar da comida e por saber que ela representa um certo status”, reconhece o arquiteto. Para ele, o restaurante conquista pelos detalhes – que nem sempre precisam estar relacionados à comida. A estudante Mariana Castro pensa

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diferente – mas reconhece o comportamento dos amigos. “Eu vou especialmente por causa da comida, mas conheço pessoas que comemoram aniversários nesses lugares em função de serem locais chiques, que representam algo, que proporcionam uma experiência diferente”, avalia. O chef do Hashi passou por uma história que ilustra bem esta situação. Em uma viagem gastronômica para Nova York, enquanto ainda estudava o ofício, Kristensen visitou duas cozinhas. No primeiro local, havia apenas uma mesa com 11 cadeiras ao redor. O chef do restaurante, um dos melhores do mundo, preparou o prato e Kristensen provou. “Foi a melhor comida que comi na minha vida”, disse. Depois, foi a outro restaurante, onde teve várias experiências – dentre elas, uma cesta de piquenique e uma toalha estendida sobre a mesa antes de comer. A comida, no entanto, não tinha nem a metade do sabor da primeira. “Mas em qual tu achas que vou voltar? No segundo, é claro”, destacou. A média de gasto de um frequentador do Hashi é de R$ 160. No entanto, este gasto pode ser 37 vezes maior do que isso com uma simples garrafa de vinho – que custa cerca de R$ 6 mil. Este rótulo, no entanto, é

pedido, no máximo, 15 vezes por ano. “Tenho um cliente que escolhe o vinho pelo preço. Ele pede o vinho mais caro. Uma vez não tinha e ele pediu o segundo mais caro”, conta o chef. “Não interessa o vinho. Interessa que é uma bebida de uma marca que tem status”, explica. Durante a Idade Média, as famílias europeias de classe alta compravam para seus banquetes os alimentos mais caros, de difícil acesso. Mandavam trazer de toda a Europa os vinhos que custavam mais dinheiro. E para mostrar seu poder, convidavam todos da alta sociedade para o jantar. Hoje é um pouco mais fácil: basta sacar o telefone, fazer uma foto e enviá-la para o Facebook ou para o Instagram. “Já que estou gastando um alto preço, quero que meus amigos vejam. E também quero compartilhar momentos com eles, claro”, conta a vendedora de roupas Suzana Ribeiro, frequentadora do Hashi. No Sushi by Cleber, cada pessoa gasta em média R$ 40 a menos do que no Hashi: cerca de R$ 120. O máximo geralmente fica em torno de R$ 700, muito em função do preço da bebida. “Fui elevando o preço sem baixar a qualidade e vi que tinha público para isso. Quem tem dinheiro quer frequentar um lugar chique, de status, que seja reco-

“TEM GENTE QUE FORÇA UMA BARRA E COME UMA COISA QUE NÃO GOSTA APENAS PARA DIZER QUE É FINO.”

Patrícia de Gomensoro Antropóloga

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Através do projeto Internacionalmente Local, o restaurante Hashi valoriza o pequeno produtor do Estado. Alguns dos alimentos vendidos são os que compõem uma mini-horta


nhecido pelos outros. Muitos vêm aqui também porque vão encontrar pessoas famosas e poderosas”, conta Vital. A iguaria que mais aumenta o preço dos pratos no restaurante são as ovas primas do caviar. As do prato famoso são de esturjão. As de Cleber, de salmão. O quilo tem o valor de R$ 300. Um dupla de peças de sushi com ikura (que são as ovas de salmão), que tem em torno de 50g, custa cerca de R$ 20. Para se comparar com o prato mais caro do Hashi, teriam que ser vendidas seis porções de 50g (o que soma 300g). O valor seria mais barato: custaria R$ 120. E seis porções é o número aproximado de vezes que o prato é vendido por mês. O restaurante Chez Philippe tem a mesma média por pessoa do que o Sushi by Cleber: R$ 120. O prato mais caro chega a R$ 99: camarão rosa com gengibre, laranja e palmito com arroz negro. “O camarão rosa é um camarão tamanho GG. Grandão. Tra-

go de Santa Catarina. Mas não me importo muito com o preço do alimento, não. O valor do produto não me atrai. O que me atrai é a qualidade”, explica Philippe Remondeau. “Tenho uma jabuticabeira no jardim, por exemplo. Um produto simples. Uso as frutas para fazer sobremesa”, conta. No Sushi by Cleber, 70% dos ingredientes são importados, principalmente da China e do Japão. Esta característica era seguida por Kristensen, principalmente logo que voltou de sua viagem culinária. Com o tempo, porém, o chef foi adaptando o seu cardápio e as suas ideias em relação à comida. “Passei a valorizar a cultura e o produto locais”, explica. Hoje o Hashi possui um projeto chamado Internacionalmente Local, que procura valorizar o pequeno produtor do Estado. Um dos resultados dessa aposta é o Jurupiga, vinho feito com uva da Ilha dos Marinheiros, em Rio Grande. Há quatro anos, as

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famílias que moravam no local começaram a sair da ilha, e corria-se o risco de o produto deixar de existir. Hoje apenas quatro famílias plantam a uva, que é protegida por lei no Estado. “Pagamos mais para estas pessoas para valorizar a nossa cultura”, explica. A partir deste projeto, o conceito de luxo e de status começou a se modificar no restaurante – e, de acordo com Kristensen, deve se modificar também em outros locais de Porto Alegre e do Brasil. “Outras pessoas estão entrando na onda porque isso é um caminho sem volta. É isso que vai acontecer daqui pra frente”, defende. Romilda Grinn Hax cria cerca de cem gansos por ano em uma região de mais ou menos 400 habitantes, próximo a São Lourenço do Sul. Ela abate, salga e defuma cada animal de tal forma que, ao final do processo, ele chega a se parecer com um presunto parma. Um quilo de ganso custa cerca de R$ 30, mas o chef do Hashi paga R$ 50. Por quê? “Porque valorizo o trabalho dela e, depois que trago para o restaurante, agrego o valor da minha marca e transformo esse ganso em um prato”, conta. Um peito de ganso rende 20 fatias. Uma fatia, com molho de vinho de Jurupiga, mais pedaços de maçã cristalizada e voilà: está pronto um dos pratos do Menu Confiança do Hashi – adiciona-se mais nove ou dez pratos pequenos, e a conta bate os R$ 340. “Isso para mim é luxo. Tu não vais comer isso em nenhum outro lugar do mundo”, garante. E o que mais é luxo e status para o chef do Hashi quando se trata de comida? Um produto no auge do seu ponto de sazonalidade, colhido no melhor momento e orgânico, como a mini-horta – verduras pequenas (“tomatinhos, cenourinhas e beterrabinhas”, nas palavras do chef) que também são servidas no Menu Confiança. “Luxo é colher

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a fruta do pé no dia em que vou usá-la no restaurante. Não é tanto o valor do produto ou a nacionalidade dele”, destaca. Seja do interior do Estado ou dos mais longínquos lugares, o fato é que a comida, assim como o restaurante onde é feita, é sinônimo de status. Patrícia chega a dizer que há pessoas que fingem gostar de determinado alimento apenas para se sentir parte de um grupo. “Em geral, isso vai junto: status e gosto pela coisa. Mas tem gente que força uma barra e come uma coisa que não gosta apenas para dizer que é fino”, destaca. O Sushi by Cleber e o Hashi recebem, em média, cem pessoas por noite em um final de semana. O Chez Philippe, cerca de 20 por turno. No restaurante japonês, há clientes que vão até três vezes por semana. Levando em conta a média de R$ 120, esse cliente chega a gastar R$ 360 semanais para fazer três refeições. Privilégio para poucos? Não. “Ultimamente, temos recebido muitas pessoas que vêm aqui pela primeira vez”, conta o chef. E Rafael Kroth, consumidor que conhece vários restaurantes considerados de classe alta, segundo ele, tem planos: “Já escolhi os próximos lugares chiques que vou visitar”.


O poder passa de uma nação a outra pela injustiça, pela violência e pela riqueza.

— Eclesiastes 10,8


Faces da inseguranรงa


por Jaqueline Acosta e Jéssica Laine Andrade

E

m pequenas ruas, em algumas vilas de Porto Alegre, é possível conseguir um envelope contendo substâncias ilícitas a qualquer hora do dia. O comércio, em geral, é realizado por pessoas sem antecedentes criminais, de preferência, menores de 18 anos. Apesar da ilegalidade, o tráfico de drogas acontece em diversas regiões da Capital. Cada local de comércio tem o comando de um grupo de traficantes que defendem o ponto de venda até a morte. Ao contrário do que se pensa sobre comunidades periféricas de Porto Alegre, de que haveria uma organização para preservar a segurança dos moradores, Pedro*, 20 anos, residente de uma vila da Zona Leste, conta que a realidade é completamente diferente. Ele considera essa imagem um romantismo feito a partir de características próprias das comunidades do Rio de Janeiro. “Na real, onde tem tráfico, tem terror, as pessoas vivem sob terror o tempo todo”, denuncia. Para o morador, o tráfico de drogas nada mais é do que um simples interesse financeiro. Na comunidade, há duas regras: não chamar a atenção da polícia e fazer justiça com as próprias mãos. A repressão por parte dos traficantes em relação aos moradores pode até ser feita de forma silenciosa, mas ocorre com graves consequências, devido à vulnerabilidade da comunidade. “O cara que rouba na rua tem que roubar e ficar na rua, não tem que chamar atenção pra dentro da vila. Quem levou a polícia pra dentro vai pagar o preço disso e geralmente é a morte. Na verdade, some. Se tu for pesquisar, não tem um alto índice de homicídios, o que tem é um alto índice de desaparecimentos”, explica. O Estado é desacreditado dentro da comunidade porque, mesmo estando no contexto social, presenciando as atividades do tráfico de drogas, não intervém, conforme relato do morador. As pessoas não se sentem seguras na vila e não confiam no poder público. Um exemplo dado por Pedro é que, em casos como conflitos entre traficantes, os tiroteios acontecem sem intervenção. Quando a situação se normaliza, o policiamento aparece. A Brigada Militar afirma que boa parte das ações de repressão acontece no final do dia e no início da noite. Por esse motivo, as pessoas receosas e acometidas pelo medo se retraem e não conseguem visualizar as ações realizadas na comunidade. O major André Ribeiro, subcomandante do 20º Batalhão da Polícia Militar (BPM), explica: “A Brigada está lá, fazendo um trabalho presente. Em algumas regiões, temos uma equipe permanente de ação com as entidades e instituições locais, como postos de saúde, escolas e organismos do município que funcionam nos locais, e também as entidades privadas”.

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“QUEM LEVOU A POLÍCIA PARA DENTRO VAI PAGAR O PREÇO E GERALMENTE É A MORTE.” Pedro* Morador da zona leste de Porto Alegre


Para o professor de Sociologia e de História do Colégio Júlio de Castilhos José Morais, quando surge um poder paralelo, ele é causado, muitas vezes, pela falta de representatividade, pela incompetência e pela falta de interesse do Estado. Especialista em Direitos Humanos, ele avalia que a ausência do Estado torna a comunidade fragilizada diante dos traficantes. O agravante é a quantidade de locais em que a situação se repete. A estudante de Assistência Social Simone Balsamo, que trabalhou como agente comunitária do Departamento Municipal de Habitação (Demhab) durante a remoção de moradores da Vila Dique, conta que não há ações efetivas do poder público no local. “O governo deveria interferir em vários aspectos sociais dentro de vilas, como a Dique. O tráfico chegou a tal ponto de ter decisão de quem pode e quem não pode morar no local. Na Dique, por exemplo, estão invadindo casas, e a população teme. Só isso que eles podem fazer. A polícia sabe, mas nada é feito”, revela. O major afirma que o Comando de Policiamento da Capital reforçou a presença de policiais nas vilas. Eles estariam fazendo incursões em ruas menores para tranquilizar as pessoas. Ribeiro, no entanto, afirma que este trabalho transcende o papel da Brigada Militar. “Compete a outros órgãos de segurança como, por exemplo, o Departamento Estadual de Narcóticos (Denarc), da Polícia Civil, e o Batalhão de Operações Especiais (BOE), dar continuidade às ações. Eles estão desenvolvendo um trabalho para em breve obter resultados com relação a esses grupos. O medo da população, o risco e a cautela são inerentes, devem ser adotados. Mas a Brigada está lá”, garante. O soldado Antônio Machado, do BOE, atua dentro dos bairros coibindo o tráfico

de drogas. Ele explica que a opnião dos moradores é diferente da visão da corporação. “Nós temos um quadro ostensivo para estar presente, coibindo o tráfico. A comunidade já está tão acostumada com o tráfico, que acaba se rendendo a ele. Porque quem está junto no dia a dia, ali, é o traficante”, diz. Pedro destaca que em nenhum outro lugar da cidade seria visto um motoqueiro com fuzil nas costas, sem capacete nem camisa, andar livremente, sem ser abordado por um policial. Isso deveria ao menos causar estranhamento, mas é considerado comum dentro da comunidade, e a presença do Estado não interfere nesta realidade. Na região, pode-se encontrar Brigada Militar, prefeitura, mas, ao mesmo tempo, os órgãos públicos se omitem. A ausência do poder institucionalizado é observada no cotidiano da população local. Nas festas que acontecem dentro das comunidades, não existe preocupação com segurança contra incêndio, que é uma realidade diferente nas casas de show do centro da Capital. Não há fiscalização dentro dos bailes. São reunidas mais de 3 mil pessoas em de um mesmo espaço sem extintores, com apenas uma porta. “A prefeitura não faz nada. Cadê a polícia? Onde estão quando dentro destas casas de show estão vendendo bebida alcoólica para menor?”, indigna-se Pedro. Para justificar a falta de confiança dos moradores na ação policial, o soldado Machado culpa o “assistencialismo” do traficante. “Às vezes, quem tem necessidades financeiras acha muito mais fácil chegar no traficante e pedir. E o traficante quer ter a comunidade a favor dele, para encobrir a ação de tráfico, principalmen-

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Comunidade é silenciada pela opressão do tráfico Foto: Giovanna Pozzer

te o tráfico de drogas. Então ele vai fazer de tudo para que quem está ao redor dele, não o entregue”, explica. O professor Morais explica que, com o nascimento de uma nova ordem, surge um novo cidadão que não está incluído em nenhum contexto social. “A pessoa ali está marginalizada porque ninguém atende. Ela está sobrevivendo a isso e não tem o que fazer”, esclarece. Além de todos os problemas e conflitos acompanhados pelos moradores, dificilmente as pessoas conseguem sair desta realidade. As condições financeiras possibilitariam deslocamento para outra vila, o que não seria vantajoso. A maioria das comunidades de Porto Alegre estão em conflito por drogas. Pedro explica: “Tu sair de uma quebrada e ir para outro lugar, outra vila em que tu não conhece quem é do lado direito e do lado esquerdo, é mais complicado. Onde se vive uma situação, se sabe quais são os lados, se sabe o lugar onde eles vão estar, onde não vão”. Segundo Morais, uma parte muito importante neste caso é a alienação. O indivíduo não reflete sobre os instrumentos que podem modificar sua realidade, apenas absorve o que lhe é comunicado. As situações conflitantes que envolvem traficantes, moradores e poder público são dependentes de uma ação da população que está à margem da assistência do Estado. Por não ter o acompanhamento devido, a solução, segundo o professor, deve vir deste grupo social. Os moradores das vilas precisam se mobilizar e começar a fazer parte desse Estado no sentido de busca de suas demandas e de cobrança dos direitos do grupo social em que estão inseridos. * Nome trocado a pedido dos entrevistado

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Todo o poder é confiança.

— Margaret Thatcher


Obras da transformação por Caroline Escobar Natalia Rodrigues

Diversas gerações foram influenciadas e embaladas por canções, livros e filmes que retratam um período histórico e social específico. Certas obras são tão importantes que até hoje mexem com a cabeça de leitores e ouvintes. Para o sociólogo Gustavo Matiuzzi de Souza, a sociedade é dominada por músicas, livros e filmes “porque os indivíduos que os produziram têm a capacidade de impor determinado discurso capaz de influenciar outros indivíduos a agir de determinada maneira, pela construção de uma verdade”. Alguns trabalhos são mais poderosos do que outros. Toda lista é arbitrária e subjetiva, mesmo assim, um grupo de especialistas selecionou obras que, segundo eles, exerceram importância sobre uma geração.

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Na batida poderosa das músicas Para definir se alguma música foi poderosa o bastante, primeiro é preciso entender que depende muito do grupo para quem se está falando e de determinado momento da sociedade. O produtor musical e professor Ticiano Paludo, da Faculdade de Comunicação Social (Famecos) da PUCRS, lembra que muitas vezes pessoas cantam músicas em inglês, por exemplo, sem saber o que elas significam. As canções All You Need is Love, Que país é este? e Panis et circenses são exemplos de obras que influenciaram gerações.

All You Need is Love

Foto divulgação: Holger Ellgaard

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No rock, a banda The Beatles trabalhou o verbo amar sob todas as formas, trazendo uma conscientização que ainda persiste. “Se tu pegares a música All You Need is Love ou até mesmo Imagine (de John Lennon), elas têm o seu poder na sociedade”, analisa Ticiano, que acredita na força dos Beatles quando eles estavam juntos. Portanto, na opinião do produtor musical, All You Need is Love é inspiradora. A faixa surgiu quando a banda poderia se dar ao luxo de gravar singles para rádios que não saíam nos discos, conforme enfatiza o produtor musical Gustavo Demarchi: “The Beatles era perfeita para a missão de compor a canção-tema para um especial da BBC, que seria o primeiro a ser transmitido via-satélite para vários países tanto da Europa quanto da Ásia, da Escandinávia e da Austrália, entre outros. Foi a celebração do amor via satélite”. Para ele, a composição, escrita por Lennon e McCartney, era simples de harmonia e letra, mas referia o básico de qualquer ser humano ao valorizar o amor entre as pessoas. “Em um momento histórico, marcado pelos protestos a favor da paz, aquela

canção encontrava eco perfeito em toda uma juventude que se unia a favor da vida e que se descobria através de sua força pela música como nenhuma outra antes e, a partir dali, encontraria finalmente a força incontestável de sua voz”, analisa. Lançada em 1967, a canção trazia uma mensagem de paz na época da Guerra do Vietnã. A mensagem contida na letra também embalou a época do flower power (movimento hippie). “Hoje estamos revivendo este momento. São ciclos que vêm e voltam”, explica Ticiano.


Que País é Este?

Foto: Divulgação

Panis et Circenses

Foto: Divulgação

As questões políticas vividas pelo Brasil atualmente ainda podem ser encontradas na música Que País é Este?, da banda Legião Urbana. Composta por Renato Russo, a canção é “totalmente atemporal”. Gustavo Demarchi conta que ela saiu em disco quase por acaso e que marcou uma fase decisiva da banda: “Foi emblemática em mostrar a face contestadora da Legião Urbana, a banda dos anos 1980 mais relevante da música de questionamento e protesto, que marcou a maturidade do rock nacional”. Gustavo é enfático ao falar da importância de Renato Russo para o cenário da música brasileira. Para o produtor, Renato encarnou como nenhum outro o papel de ser o porta-voz da juventude “em um momento de abertura política em que a

sociedade começava a questionar leis e poderes e a juventude se impunha como parte pensante e influente”. “Que País é Este? é uma música forte pois consegue se encaixar em qualquer época. Uma canção de mobilização política”, exalta Ticiano. Ele também lembra que a música perde força quando não dá mais conta da representação que faz de um momento histórico. “As grandes canções que permaneceram na história são aquelas que o artista exterioriza a percepção que tem, que é geral e não pessoal”, ressalva.

Na época da ditadura militar, o movimento Tropicalista trouxe a mensagem da juventude no final da década de 1960 que, influenciada pela contracultura, usava roupas coloridas e letras codificadas, em que só era possível a compreensão se o ouvinte tivesse bagagem cultural. Gustavo Demarchi explica que os tropicalistas foram os que mais chegaram perto de reproduzir o movimento da Psicodelia que, capitaneado pelos Beatles, significou um passo à frente na evolução e na genialidade do rock como estilo contestador e relevante na música. O álbum Tropicália, d’Os Mutantes, traduziu uma população cansada das proibições impostas pela censura. “O disco mostraria tudo isso e mais um pouco e, em um país onde ídolos verdadeiros quase inexistem, permaneceu relevante desde

então, sendo redescoberto por toda uma nova geração através de sua acertada adoção como leitura obrigatória no vestibular, a partir de 2014”, lembra Gustavo. Ticiano Paludo corrobora que Os Mutantes eram um dos maiores nomes do Tropicalismo. “A música Panis et Circenses retrata a inércia total das pessoas em uma época em que tudo era mal visto. O trecho em que falam ‘Mas as pessoas na sala de jantar estão preocupadas em nascer ou morrer’ é a imagem da vida vazia, das pessoas que não se engajam”, analisa. A canção foi um choque para a sociedade, lembrada de que havia vida e que não era para se deixar influenciar pela política do pão e circo da ditadura.

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Os filmes que roteirizaram vidas O cinema liberta as pessoas do cotidiano, das leis e morais éticas impostas pela sociedade. Por meio dos filmes, é possível viajar e vivenciar novas experiências, mesmo sem sair do lugar. O professor de cinema da PUCRS Roberto Tietzmann esclarece que “não necessariamente a dominação aparece nos filmes, dizendo o que e como fazer”. Os filmes não têm todo esse poder de influência, são as pessoas que os fazem assim.

Laranja Mecânica

Foto: Divulgação

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O filme Laranja Mecânica (1971), de Stanley Kubrick, define a cara de um tempo. A obra, que contém cenas fortes, chegou a ser censurada durante muito tempo no Brasil. “O regime militar, na sua fase mais repressiva, na época do governo Médici, não permitiu a liberação da obra, que trazia muitas cenas de nudez, violência e caráter amoral”, relata o Roberto Tietzmann. O filme retrata a sociedade querendo controlar o protagonista Alex (personagem de Malcolm McDowell), expondo-o ao tratamento Ludovico, que era uma terapia de aversão para criminosos. “Na cena final do filme, vemos que o método não funcionou, e Alex volta a ser um marginal, tarado e pervertido. O filme todo trata de poder e dominação”, revela. Tietzmann conta que, quando a obra foi lançada no Brasil, houve censura gráfica nos seios e genitálias dos atores nas cenas de nudez. “Ele se torna um objeto de culto. Quem desejasse ver sem as tarjas teria de viajar para outros países. É o filme que o governo não quer que você veja”, lembra Tietzmann. O professor recorda que, quando o filme estreou na Inglaterra, onde foi produzido, uma série de arruaceiros começou a se vestir como o personagem e cometer

crimes. “O próprio Kubrick disse que não iria mais exibi-lo nas salas de cinema da Inglaterra, e o filme só voltou a ser visto quando saiu em fitas VHS, a partir da década de 1980”, lembra. Tietzmann ressalta que não se deve cair na ingenuidade de achar que uma mensagem passada numa tela de cinema vai comandar a cabeça das pessoas. “Laranja Mecânica é um filme persuasivo, sobre viver fora das restrições da sociedade e, ainda assim, manter um grau de conforto e autonomia. É a fantasia de todos”, completa. O professor da PUCRS Gustavo Spolidoro compara a obra aos filmes de faroeste, em que o mocinho é o anti-herói: “O mocinho também é bandido e mata um monte de gente, mas, por algum motivo, as pessoas se identificam com ele. Em Laranja Mecânica, Kubrick conseguiu que as pessoas, de alguma forma, se identificassem com os personagens”.


Curtindo a Vida Adoidado

Foto: Divulgação

Star Wars

Foto: Divulgação

O filme Curtindo a Vida Adoidado (1986), de John Hughes, acompanha o personagem Ferris Bueller, que quer apenas matar aula e curtir o dia da melhor maneira possível. Ele também está à margem da sociedade, que tenta enquadrá-lo, mas não consegue. “O filme é a promessa de algo bom, que toca os desejos que estão na cabeça de todo mundo”, assegura Roberto Tietzmann. A comédia teve um grande poder na juventude dos anos 1980, ao mostrar o que pode ser vivido pelos adolescentes de qualquer época: pais ausentes, professores enfadonhos, desejo de liberdade e de ir contra o que é imposto pelas regras sociais. Spolidoro afirma que a obra foi um

dos grandes clássicos dos anos 1980 pela proximidade com a juventude da época. “Ferris Bueller é o anti-herói, o guri magricelo, malandro e ao mesmo tempo inteligente, que tinha uma namorada bonita, mas não era o garanhão da escola. Ferris representava uma geração que não era a dos riquinhos, bonitos e bem-sucedidos. Os adolescentes da época queriam ser que nem ele, e essa é a grande identificação do público, o espelho do que elas realmente gostariam de ser e de ter feito”, avalia.

A saga Guerra nas Estrelas (Star Wars), de George Lucas, cria e pauta todo um universo galáctico. “Star Wars se torna tão grande na cultura pop que o próprio filme se desfez. Os personagens se separaram do filme e não é difícil encontrar muitas pessoas com camisetas do impagável Chewbacca, por exemplo”, analisa. O Episódio 4, de 1977, é o início da narrativa. Star Wars migra para dentro da cultura pop. A aventura é cheia de símbolos, como a ideia da abnegação do Jedi, que vem das religiões. É quase uma senha para conversas entre as pessoas. “Vemos expressões como a ideia de ‘ir para o lado negro da força’ ou ‘que a força esteja com você’. Ele é um filme que tem o poder de galvanizar na cultura pop várias coisas”, explica Tietzmann. Para Spolidoro, Guerra nas Estrelas cativou gerações ao representar, com o máximo de realidade, o sonho de viajar para

outros planetas. “Não eram apenas efeitos especiais, eram os monstros convivendo em uma sociedade quase que igualitária. O filme conquistou as pessoas por isso, por mostrar uma tecnologia revolucionária que até hoje ainda é estudada e pensada. Foi uma das primeiras obras que levou para as telas do cinema o videogame, o fliperama”, analisa.

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Letras e palavras inspiradoras Alguns livros foram condutores de gerações e nações. O professor de literatura Guilherme Suman é enfático ao falar sobre o poder da literatura: “Ela sempre foi e é temida como instrumento reivindicador, emancipatório”. Na história, pode-se ver as perseguições a livros e escritores, como o índex na Inquisição e o nazismo, por exemplo. Ele acredita que “a literatura exerce influência sobre o sujeito que, além de sujeito social individual, é componente de um grupo, uma nação. O livro conta a história de uma parte, mas que remonta ao todo”. Para Suman, existem muitas obras que influenciaram as sociedades, já que a literatura é a captação de um espirito social, político, histórico e cultural.

Bíblia

O primeiro livro que Guilherme Suman julga como poderoso é a Bíblia Hebraica e suas ramificações e releituras. Pode ser considerado um texto influenciador para diversas culturas e nações. Sem fazer jus ao argumento religioso, mas sim de influência. “É aceitável que destaque a Bíblia por conta do grau de influência exercida até hoje, tanto na permanência como na literatura canônica, servindo de suporte para a intertextualidade com outros clássicos como John Milton,

Dante Alighieri, Dostoievski, Pessoa (Caeiro) e Faulkner, quanto por sua relação simbólica, parabólica ou religiosa”, explica. A Bíblia também exerce poder na incorporação de diálogos com os tempos modernos, como na aplicação de leis, convenções obtidas das ideias cristãs ou a persistência na manutenção de instituições e Estados teocráticos. “Ela é um dos livros mais estudados e lidos do mundo, indiferente a qualquer filiação religiosa”, diz o professor.

O livro A República, de Platão, escrito no século 4 a.C., também está na lista de Suman, que o destaca como um dos mais influentes cânones da literatura universal. Para o professor, “sua discussão transcende o período clássico e vira, portanto, uma referência substancial para a organização social e o pensamento filosófico contemporâneo”. Suman explica que Platão, instrumentalizado por uma notável força textual, incorporando dialéticas para contribuir com as alusões pertinentes, apresenta a represen-

tação da realidade histórica, “revitalizando a ordem da cidade, como a organização social, alegorizando preconceitos, para estabelecer preceitos de adequação social”. O texto retrata a organização matrimonial, doméstica, familiar, educativa e governamental de uma sociedade. Ele é escrito para acabar com os problemas do seu período e preservar a integridade da cidade. “Seu texto serviu e serve de base para as instituições modernas, sendo um dos grandes influenciadores na estruturação das sociedades posteriores”, completa.

Foto: Giovanna Pozzer

A República

Foto divulgação: Jastrow

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Foto divulgação: Stw

A Origem das Espécies, do naturalista Charles Darwin, escrita em 1859, se contrapõe com o primeiro livro citado, a Bíblia. “Este vem sob a luz do mundo, a teoria revolucionária, a Teoria da Seleção Natural, desacreditando o criacionismo religioso e evidenciando a determinação do meio, da diversidade biológica, a desencadear processos evolutivos e modificadores, em que os organismos tendem à adaptação”, enfatiza Suman. Darwin queria contradizer as teorias religiosas pregadas naquele momento (o Gênesis, por exemplo), criando um debate científico polêmico no século 19. “A ciência se repagina, sendo o tratado do autor, sem dúvida, um dos maiores divisores teóricos da história da humanidade”, conclui. “MAS AS PESSOAS NA SALA DE JANTAR SÃO OCUPADAS EM NASCER E MORRER” (PANIS ET CIRCENSES, OS MUTANTES) // “MAS TODOS ACREDITAM NO FUTURO DA NAÇÃO” (QUE PAÍS É ESTE, LEGIÃO URBANA) // “ALL YOU NEED IS LOVE, LOVE. LOVE IS ALL YOU NEED” (ALL YOU NEED IS LOVE, THE BEATLES) // “NO INÍCIO, DEUS CRIOU O CÉU E A TERRA” (BÍBLIA) // “O HOMEM SE TORNA RIGOROSAMENTE UM TIRANO, QUANDO, POR NATUREZA, OU POR HÁBITO, OU PELOS DOIS MOTIVOS, SE TORNA ÉBRIO, APAIXONADO E LOUCO” (A REPÚBLICA, PLATÃO) // ”ENQUANTO ESTE PLANETA FOI GIRANDO NA SUA ÓRBITA, (…), INTERMINÁVEIS FORMAS, BELAS A ADMIRÁVEIS, A PARTIR DE UM COMEÇO TÃO SIMPLES, EVOLUÍRAM E CONTINUAM A EVOLUIR” (A ORIGEM DAS ESPÉCIES, CHARLES DARWIN) // “EU SOU SEU PAI” (DARTH VADER, EM STAR WARS) // “O QUE HÁ DE TÃO FEDORENTO NELE” (ALEX, EM LARANJA MECÂNICA) // ”BUELLER, FERRIS BUELLER” (FERRIS BUELLER, EM CURTINDO A VIDA ADOIDADO)

A Origem das Espécies


O poder revela o homem.

— Sófocles


O mínimo que se pode dizer do poder é que a vocação para ele é suspeita.

— Jean Rostand


O peso da utopia


por Gabriel Palma

A

s lutas contra o poder da especulação imobiliária e do mercado habitacional no Brasil têm um importante símbolo em Porto Alegre. No Viaduto Otávio Rocha, situa-se a Comunidade Autônoma Utopia e Luta. Sob a perspectiva da autogestão, a proposta da ocupação é reunir pessoas com uma visão crítica da sociedade, desde o questionamento da lógica capitalista às formas de administração e de convivência cotidiana. A fachada branca, marcada por desenhos e frases, indica a preocupação com a repressão e as desigualdades do atual sistema econômico. “Protesto não é crime!” e “Romper o cerco” são algumas das palavras de ordem que podem ser lidas ao se aproximar da entrada. No interior não é diferente: em cada andar, grandes pinturas remetem a ícones da cultura da esquerda latino-americana, além de imagens e mensagens que refletem as esperanças de mudança, de revolução. A trajetória do Utopia e Luta começa à época da edição de 2005 do Fórum Social Mundial. Pessoas ligadas ao Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) ocuparam o imóvel, abandonado havia anos, pertencente ao Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS). Com a visibilidade da ação, que resistiu por alguns dias, realizou-se uma audiência com o então ministro das Cidades do governo Lula, Olívio Dutra, que assinou um documento com o compromisso de transformar o prédio em moradia. Uma série de negociações com o Palácio do Planalto resultou no financiamento por meio do programa Crédito Solidário, com a ajuda de uma cooperativa de moradia popular de Cachoeirinha, que emprestou o CNPJ e auxiliou na construção do Utopia e Luta. Diversas reuniões se sucederam para selecionar os futuros residentes e, quando instalados, iniciaram-se as reformas. Assim, dividiram-se os antigos escritórios em 42 apartamentos conjugados e foi feita a renovação do sistema elétrico, que criou um aspecto característico – as tubulações percorrem o lado de fora das paredes. Criaram-se, ao longo dos anos, áreas comuns, como uma pequena biblioteca, uma lavanderia comunitária e um teatro em parte adjunta ao edifício principal. Constituída em 2008, a Cooperativa Solidária Utopia e Luta (Coopsul) teve todos os moradores como sócios-fundadores. Com uma representação institucional, o movimento teria autonomia para conseguir editais, além de projetos de geração de renda para os integrantes – uma das principais preocupações do grupo. Exemplos das iniciativas da Coopsul são a criação de uma padaria, que funciona em espaço anexo ao imóvel, e um núcleo de corte e costura, além da primeira horta hidropônica

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Ocupação do antigo prédio do INSS tranformou os escritórios em 42 apartamentos conjugados populares Fotos: Giovanna Pozzer

Horta hidropônica (plantio sem o uso de terra) do Utopia e Luta é considerada uma das primeiras feitas em terraço urbano na América Latina


em terraço urbano do Brasil, tudo sob a perspectiva de possibilitar sustentabilidade e gestão autônoma. Desde o início, a ocupação assumiu um caráter de resistência e questionamento, aliado ao diálogo com representantes governamentais e de movimentos sociais. A Coopsul, inclusive, teve em sua criação muitos militantes do Partido dos Trabalhadores, como é o caso do economista e eletricitário Rodrigo Schley, que se instalou no Utopia e Luta em 2008, a convite de um amigo. Ele recorda que as origens e as orientações políticas das pessoas envolvidas na ocupação eram distintas, porém havia coesão nos ideais relativos ao prédio. Com o passar do tempo, a Coopsul foi se desvinculando do Movimento Na-

cional de Luta pela Moradia. Rodrigo critica: “Quando a gente entrou, não houve um bom esclarecimento sobre o que era o movimento e o que ele representava. As pessoas naturalmente se ligavam ao movimento, mas de uma forma meio automática, sem muita reflexão”. O morador aponta que uma divergência de lideranças entre a coordenação do MNLM e a Coopsul resultou no rompimento entre as organizações. Ações culturais, como saraus, oficinas e propostas de integração com a comunidade foram recorrentes na ocupação, que serviu de inspiração para uma atividade do francês Nicolas Floch, durante a Bienal do Mersosul de 2009. O artista montou, junto dos moradores, uma réplica em madeira do edifício. O cotidiano era marcado


Diferenças ideológicas estão presentes desde o início da ocupação, mas se acentuaram ao longo do tempo

pelas desconstruções de relações de poder estabelecidas comumente em condomínios. O ator Edgar José Alves da Silva, integrante do Utopia desde 2006, lembra que, no começo, a manutenção dos ambientes foi bem dividida entre todos. As funções administrativas do imóvel eram colaborativas, os moradores se alternavam para cuidar da portaria e da lavanderia, havia latões de lixo a cada andar e mutirões faziam uma limpeza geral, aos finais de semana. Hoje, apenas a limpeza segue igual, enquanto as outras tarefas são individuais, como a dispensa do lixo e a lavagem das roupas, e não há mais porteiros. Rodrigo reconhece a individualização dos processos, mas observa que o envolvimento coletivo causava transtornos. “Algumas pessoas trabalhavam em bairros distantes e tinham que sair do seu expediente para vir até o prédio recolher o lixo; outros pas-

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savam o dia inteiro entre trabalho e estudo e, ao chegar em casa, precisavam ficar na portaria por horas”, destaca. Edgar já exprime um olhar mais crítico: considera que as justificativas para as mudanças deram-se pela indisposição das pessoas em contribuir pelo coletivo. Edgar, anteriormente ligado ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), não tem uma posição vinculada a partidos, por não acreditar na representação através das figuras políticas existentes, e é um exemplo de outra vertente ideológica que esteve presente desde a constituição da ocupação. O morador também critica a falta de esclarecimento no início do Utopia. Pensa que não se possibilitou o desenvolvimento de um processo de formação realmente libertário, apesar de crer que, no começo, o equilíbrio fosse viável. A atual individualização dos morado-


Rodrigo Schley é morador do Utopia e Luta há seis anos, milita no Partido dos Trabalhadores e lamenta a polarização ideológica dentro do movimento


res é um reflexo das divergências ideológicas que diluíram o grupo. Edgar constata que “existem os analfabetos políticos de um lado e os extremamente letrados de outro”. O ator percebe a formação de dois polos, dentro dos grupos politicamente ativos, e a geração de um montante que permanece de fora. Os integrantes dividiram-se, grosso modo, entre os que acreditam na militância político-partidária e os que adotam ideais anarquistas, além dos que não se identificam com uma vertente específica. Desta maneira, a disputa por uma orientação ideológica central desmantelou a antiga coesão do Utopia e Luta. As discussões em assembleia para decisões triviais tornaram-se embates acalorados, conforme Edgar. Rodrigo relata que hoje poucos são os moradores que participam de reuniões. As mudanças não renderam o Utopia e Luta à lógica dos condomínios tradicionais. Não existe uma administradora contratada nem serviços terceirizados. Até hoje, nenhum morador vendeu seu apartamento – e, caso o faça, não poderá ser por meio de imobiliária. As moradias têm títulos relativos aos donos, que seguem pagando o financiamento da Caixa

Econômica Federal. Rodrigo reconhece aí uma das características que ainda não se alteraram: “Uma coisa que a gente sempre fez questão de manter é o não fomento à especulação imobiliária, ou seja, o imóvel que está aqui é para ser ocupado, e não vendido”. Segundo o economista, existe um consenso de que não se alugue algum apartamento, e até hoje não houve casos de venda. A Coopsul atualmente não representa a administração do edifício do Utopia e Luta, que é mantido por uma coordenação eleita com a finalidade de cuidar do prédio. A cooperativa expandiu seu trabalho, a fim de orientar e instituir no Rio Grande do Sul novas estruturas de habitação popular similares ao Utopia. Assim, deu-se a criação da Rede de Comunidades Autogestionárias, que visa a implantar habitações populares que escapem da dependência econômica imobiliária. “A luta se voltou pra fora”, reflete Edgar, que também afirma ter esperança de que os próximos projetos não repitam os erros do Utopia. Apesar da desintegração de várias relações e parâmetros na sua dinâmica interna, o Utopia e Luta ainda representa uma contestação ao sistema capitalista.

“UMA COISA QUE A GENTE SEMPRE FEZ QUESTÃO DE MANTER É O NÃO FOMENTO À ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA, OU SEJA, O IMÓVEL QUE ESTÁ AQUI É PARA SER OCUPADO, E NÃO VENDIDO.”

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Rodrigo Schley Economista


“Continuamos sendo um símbolo de resistência, somos vistos como diferentes”, reconhece Edgar, lembrando dos ataques de skinheads durante as manifestações de junho de 2013 – assim como as invasões da Brigada Militar, no mesmo período, atrás de responsáveis por atos de vandalismo. Rodrigo, seu vizinho, mesmo que em outra extremidade ideológica, também acredita que a resistência continua, através das ações e das relações que, alteradas, seguem em um padrão diferente do comum.

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Todo o ato de bondade é demonstração de poder.

— Jeremy Bentham


Ninguém conserva por longo tempo o poder exercido com violência.

— Séneca


Prisão a céu aberto


por Leandro Duarte

D

entre os variados setores da agricultura familiar, talvez o mais difícil para o pequeno produtor retirar o seu sustento seja a fumicultura. Mesmo assim, inúmeros agricultores ingressam no ramo da produção de tabaco, no Brasil, seduzidos por promessas da indústria, acompanhadas por ofertas de financiamento fácil para compra de materiais de produção. Muitas vezes, sem saber ler ou escrever, o agricultor acaba assinando um contrato estabelecendo vínculo com a empresa. Essa relação, em teoria, é de patrão-empregado, mas, na prática, pode ser encarada como financiador-devedor, já que o trabalhador não tem direitos a férias, 13º salário ou afastamento em caso de doença. O texto assinado prevê que a empresa obrigatoriamente compre todo o material produzido pela propriedade. No entanto, o valor pago geralmente fica abaixo do esperado. Dessa forma, o compromisso financeiro adquirido com a empresa pelo financiamento não é totalmente quitado, e o produtor torna-se uma espécie de escravo da indústria, trabalhando, ano após ano, para pagar uma dívida que, sob a incidência de juros, só aumenta. Nesse momento, o produtor percebe que assinou, na verdade, a abdicação do bem mais precioso de quem nasce na zona rural: a liberdade. Com o fumo colhido, após árduo trabalho no campo, o agricultor dirige-se até a empresa de tabaco que firmou contrato para vender a produção. Parte do valor obtido é utilizado para pagar a dívida com a própria companhia. O resto, se sobrar, é aproveitado pelo proprietário rural. O problema é que, nesse sistema comercial, quem estipula o valor do produto não é o vendedor, mas o comprador – no caso, um funcionário da própria empresa de tabaco. O montante pago, na maioria das vezes, fica abaixo das expectativas. Dessa forma, muitos agricultores que pretendiam quitar o empréstimo, e ainda ficar com algum dinheiro, acabam se comprometendo a pagá-lo com parte do hipotético tabaco produzido na safra seguinte. A Região Sul contempla 160 mil produtores distribuídos em 640 municípios. Venâncio Aires, localizado no Vale do Rio Pardo, no Rio Grande do Sul, é o maior produtor de tabaco do país, contando com 4.820 fumicultores, conforme dados da Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra), referentes à safra 2012/2013. A diretora do Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município, Sandra Helena Wagner, foi fumicultora durante nove anos e conta que passou muita dificuldade quando atuava na plantação. “Naquela época, vivia no prejuízo. A gente tinha que bancar um monte de coisas, como roupas de proteção, venenos, insumos, adubo, semente, seguro, e tudo isso era

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financiado. Quando o resultado da safra não era bom, em função de algum problema, a gente acabava com uma dívida com a fumageira para a próxima temporada. Às vezes, dava tudo errado, mas a gente não perdia a esperança”, relata. Mesmo que os agricultores consigam lucrar com o produto, são estimulados pela indústria a plantar mais na próxima safra e, consequentemente, correr mais riscos. “Muitos acabam expandido a área de produção, seduzidos pelas fumageiras. Mas, para plantar mais, é preciso mais investimento, e o negócio é incerto. Eu sei disso porque, quando plantava, ficava o tempo inteiro envolvida. No entanto, meu dinheiro era todo destinado à indústria, e o pouco que sobrava usava na minha alimentação. Se eu não tivesse recebido essa oportunidade aqui no sindicato, estaria endividada nas mãos da indústria até hoje. O produtor deveria plantar menos”, propõe Sandra. O perigo é grande porque a relação de oferta e demanda muda bastante de safra para safra, e a classificação do fumo é muito subjetiva. As folhas são avaliadas por classe, subclasse, grupo, subgrupo, tipo, subtipo, mistura, resíduos e umida-

de. São cerca de 40 classificações possíveis para uma mesma folha. Feijão, milho ou soja, por exemplo, garantem uma projeção mais fiel do valor que será obtido, por terem menos variações. A produção excedente desses produtos pode ser consumida – o que não ocorre com o tabaco. Além disso, no caso do fumo, a avaliação é realizada por um profissional contratado pela própria fumageira, explica o técnico agrícola e diretor do Departamento de Agricultura Familiar da Secretaria de Desenvolvimento Rural do Rio Grande do Sul, Albino Gewehr. “É onde fica evidente a desigualdade e o poder da indústria sobre o trabalhador. É um funcionário de uma organização que produz fumo no mundo todo, com uma estrutura gigantesca, que realiza essa avaliação. Geralmente, o agricultor nem acompanha. Existe o acompanhamento de técnicos da Emater [Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural], mas há um padrão de avaliação muito rigoroso que, quando é aplicado na essência, o agricultor acaba prejudicado”, afirma. O presidente do Sindicato Interestadual da Indústria do Tabaco (SindiTabaco), Iro Schünke, entende que as dívidas

“HÁ UM PADRÃO DE AVALIAÇÃO MUITO RIGOROSO QUE, QUANDO É APLICADO NA ESSÊNCIA, O AGRICULTOR ACABA PREJUDICADO.”

Albino Gewehr Técnico agrícola

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adquiridas ocorrem em razão de erros de gestão do próprio fumicultor. “Temos produtores bons, médios e desleixados. Tem produtor que não cuida da produção. Há aqueles que nunca saem do mesmo lugar, porque não conseguem trabalhar tanto quanto outros. No entanto, isso é uma pequena minoria”, garante. O problema referente ao pagamento pela produção não é maior do que o próprio trabalho em si. A engenheira agrônoma e técnica do Departamento de Estudos Sócio-Econômicos Rurais (Deser) do Paraná, Cleimary Zotti, alerta que a relação estabelecida entre indústria e fumicultor não é saudável e envolve outros pontos negativos, inclusive, de ordem psicológica. “O agricultor que está produzindo fumo torna-se um empregado da indústria a céu aberto, com muitos deveres e poucos direitos”, explica. Conforme Cleimary, a relação entre as partes na fumicultura envolve outras questões que pesam, como a perda da autonomia, associada à sensação de incapacidade de deixar o fumo, pois muitos agricultores acreditam que não existe alternativa. O resultado é que, ao abdicar do trabalho a que estão habituados, perdem a identidade, o espaço na sociedade e tem a autoestima afetada. Não é raro os fumicultores terem suas propriedades hipotecadas, em razão da falta de pagamento das dívidas, ficando sem um teto para si e sua família, sem espaço para plantar e buscar sustento. Especula-se que a falta de perspectiva gerada pode levar produtores a tirarem suas próprias vidas. O Rio Grande do Sul, maior produtor de tabaco do Brasil, também é o campeão no índice de suicídios. De acordo com dados do Ministério da Saúde, entre 2006 e 2010, o Estado teve 10,2

suicídios a cada 100 mil habitantes, enquanto que a média nacional é de 4,8. Em Venâncio Aires, município recordista em produção de fumo no país, aconteceram 79 casos entre 2007 e 2011, o equivalente a 23,1 ocorrências a cada 100 mil habitantes. A questão, no entanto, é polêmica, já que nunca foi realizado um estudo aprofundado sobre o tema. Gewehr acredita que outros fatores possam ter influência nos suicídios: a questão cultural dos agricultores, principalmente os de origem germânica ou polonesa, que não conseguem conviver com a desonra financeira; a relação direta com neurodepressores (substâncias inibidoras do sistema nervoso central), em razão da aplicação dos agrotóxicos; o alto índice de alcoolismo em algumas regiões fumicultoras; e, por último, a assimilação por via dérmica da nicotina no sangue. “Os trabalhadores que plantam fumo, mesmo não sendo fumantes, podem contrair a chamada Doença do Tabaco Verde por assimilação da nicotina. Um dos sintomas dessa doença é oscilação do humor, que poderia ser um motivante do suicídio”, acredita. A doença foi identificada cerca de 30 anos atrás na China e na Índia. No Brasil, no entanto, o reconhecimento ocorreu apenas há, aproximadamente, três anos, conta Gewehr. “Depois que insistimos com o Ministério da Saúde, foi feita uma investigação, então as indústrias passaram a produzir campanhas de prevenção. Só que, ao mesmo tempo, também descobriram uma nova fonte de renda para explorar o fumicultor: a venda da roupa de proteção”, coloca. Essa relação perversa de poder estabelecida entre as fumageiras e os fumi-

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Fumicultores trabalham duro, sob o sol intenso, expondo-se aos mais diversos perigos. Momentos de sombra e descanso são raros Fotos: Leandro Duarte

cultores é ainda mais desproporcional em razão da falta de uma entidade que represente efetivamente a categoria. Gewehr aponta que o motivo do surgimento da Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra) não era ajudar os produtores, mas atuar como um braço da indústria de tabaco. “A Afubra não foi uma ideia dos trabalhadores, mas dos articuladores da British American Tobacco, que ajudaram a financiar o sindicato. A British é ligada à Associação Internacional dos Produtores de Tabaco, que representa a indústria do tabaco e trabalha, no Brasil, junto com a Afubra”, afirma. Em um cenário tão complicado, em que o fumicultor tem extrema dificuldade para sobreviver, a saída mais indicada, conforme especialistas, é a diversificação. Viver somente de tabaco é tarefa difícil principalmente para os pequenos produtores. Muitos já descobriram isso, mas têm medo de arriscar em outro setor da agricultura. Em razão desse motivo, muitos projetos de diversificação estão sendo fomentados por entidades na Região Sul. No Paraná, desde setembro, um projeto desenvolvido em parceria entre o Deser e a Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar do Sul do Brasil (Fetraf) vem sendo executado para a promoção da diversificação a famílias de fumicultores. “Muitos agricultores acreditam que não existe alternativa para o fumo, têm medo de arriscar e preferem, mesmo que infelizes, se manter com o que lhes é seguro. Existem várias iniciativas para fomentar a diversificação, inclusive de agricultores que não produzem tabaco, porque diversificar é importante para todos os agricultores familiares”, relata Cleimary. Além disso, o futuro é nebuloso. En-

tre 2012 e 2013, o consumo mundial de cigarros teve queda de 2 bilhões de unidades, e as exportações do tabaco produzido no Brasil reduziram 35%, no primeiro semestre de 2014, em relação ao mesmo período do ano anterior, conforme dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Com a demanda de cigarro caindo no mundo inteiro, o valor oferecido pelas folhas de tabaco deverá piorar, nos próximos anos. Portanto, a diversificação parece ser a única saída para o agricultor que quiser recuperar sua liberdade – aquela mesma perdida, lá atrás, quando assinou um certo contrato.

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Contrariamente ao que supõe uma óptica inocente e folhetinesca, o poder não é tanto uma


questão de punhos quanto de nádegas.

— José Ortega y Gasset


Abuso vertical


por Matheus Cabral

N

o mercado de trabalho, existem situações em que o funcionário não compactua com a ideia de seu superior e, muitas vezes, é moralmente perseguido por quem tem autoridade na empresa ou na indústria. Diante disso, é comum pensar que algo estranho está acontecendo no ambiente de trabalho. A questão que fica é: isso é ou não um abuso de poder? Os casos mais comuns ocorrem geralmente de forma vertical, ou seja, um patrão perseguindo o funcionário, a fim de interesses pessoais. Para a procuradora do Ministério Público do Trabalho Márcia Medeiros de Farias, a discriminação já começa nos pré-requisitos para contratação de pessoas numa determinada corporação. “O abuso de poder inicia-se nos anúncios de emprego. Eles colocam que precisam de pessoas jovens, de boa aparência, com anos de experiência, que resida próximo, coisas que não têm nenhuma relação específica com o trabalho”, pondera. Para a procuradora, ocorre assédio moral quando o superior rege a identidade de seus funcionários. Ainda segundo Márcia, isso acontece devido às preferências do empregador sobre o empregado, em situações em que o superior acaba expondo seus gostos pessoais a fim de desmoralizar um determinado funcionário. No ano passado, o Ministério Público do Trabalho registrou cerca de 3,6 mil casos deste tipo de assédio em todo o Brasil. A categoria que mais sofre é a dos bancários. De cada três ações, uma vem de um funcionário de banco. Os superiores desta categoria cobram demais dos colaboradores, como afirma Karine Carpegiani, 35 anos. Atualmente ela é dona de um salão de beleza, mas trabalhou durante 16 anos em diversos bancos de Porto Alegre. Um caso específico a marcou. Quando ela casou, foi transferida para o Rio de Janeiro. Ao voltar da licença maternidade de seu primeiro filho, havia um novo chefe regional do banco, com quem teve uma discussão. A partir daí, trocou de agência, e seu gerente a deixou sem carteira de clientes, fazendo com que cobrisse férias de outros colegas. “Escutei de tudo do meu chefe novo, desde que eu deveria pedir demissão, pois tinha marido rico e não precisava trabalhar, até que meu filho ia passar o dia inteiro com uma babá e não poderia vê-lo crescer. Foi realmente a gota d’água para sair da área”, considera. As estatísticas não mentem. Segundo o SindBancários, desde 2004, as denúncias por abuso de poder aumentaram em 7%, e as principais vítimas são mulheres, geralmente grávidas ou mães solteiras, além de pessoas mais velhas e obesas. Outro caso semelhante ao

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de Karine foi o de Vanessa Caxeiro, que também trabalhou como bancária e viu de perto uma cena traumatizante. ‘’Quando estava em banco, tive um gerente muito déspota. Em uma reunião, ele chegou a dar um tapa num colega por não concordar com suas ideias”, frisa. Segundo levantado do SindBancários, a categoria é a que mais tem afastamentos por problemas psiquiátricos motivados pelo ambiente de trabalho. Desde 2011, houve no Brasil mais de 1.579 atendimentos de saúde por motivo de sofrimento psíquico. “Dentro desses casos existe um determinado número de funcionários que de tanto aguentarem a pressão no trabalho de chefes e gerentes, acabam perdendo a força psicológica e recorrem ao tratamento de saúde”, afirma a coordenadora. Para Jaceia, o que traduz esse tipo de cobrança é um despejo de atribuições de chefe para funcionário. “Existe o chamado ‘efeito cachoeira’, quando os superiores vão delegando funções aos inferiores, o que acaba acumulando responsabilidades no cotidiano de trabalho do bancário”, analisa. O trauma nesses casos é iminente. A psicóloga Mayte Amazarray explica as

consequências deste tipo de pressão no trabalho: “Sempre que a pessoa se sente humilhada moralmente, se sente invadida psicologicamente, isso traz prejuízos psicológicos, alguns tão devastadores que podem estar relacionados desde baixa autoestima, até depressão e tentativa de suicídio”. A melhor alternativa é não enfrentar o problema sozinho. “O enfrentamento solitário da situação é sempre a via mais sofrida para a pessoa, e também a de menor resolutividade. Quando a pessoa consegue apoio, tanto no âmbito da empresa quanto no sindicato, como em sua rede de apoio pessoal, o problema pode ser enfrentado de forma mais adequada. Portanto, o enfrentamento coletivo da situação, seja a saída do trabalho ou a opção de buscar outro emprego, é o mais indicado”, considera Mayte. A melhor solução nesses casos é buscar ajuda. “Pode procurar o RH da empresa. Caso isso não adiante, procure um auxílio fora. O mais recomendado é procurar o Ministério Público do Trabalho ou até associações de assédio moral”, explica a procuradora Márcia Medeiros.

“ESCUTEI DE TUDO DO MEU CHEFE NOVO, DESDE QUE DEVERIA PEDIR DEMISSÃO, POIS TINHA MARIDO RICO E NÃO PRECISAVA TRABALHAR, ATÉ QUE MEU FILHO IA PASSAR O DIA INTEIRO COM UMA BABÁ E NÃO PODERIA VÊ-LO CRESCER.”

Karine Carpegiani Ex-bancária

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Ministério Público do Trabalho pode ser procurado pelo funcionário que se sentir moralmente assediado, informa a procuradora Márcia Medeiros de Farias Foto: Luiza Menezes



Poder é toda chance, seja ela qual for, de impor a própria vontade numa relação social,


mesmo contra a relutância dos outros.

— Max Weber


PATRテグ 2.0


por Gabriel Campos Arte: Daniele Souza

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novação, sustentabilidade e colaboração são características valorizadas na formação de novos líderes no mercado de trabalho atual. O desenvolvimento de empresas ruma um caminho paralelo ao da preservação ambiental e com práticas que produzam um resultado novo além de buscar incluir os funcionários na elaboração da estratégia de atuação. O conceito de liderança é definido, para muitos, como forma de dominação e poder diante dos outros. Porém, a função de um líder empresarial sofisticou-se. Liderança hoje está além de um cargo: é um comportamento. A tendência, segundo a vice-presidente de Desenvolvimento Humano e Inovação da Associação Brasileira de Recursos Humanos do Rio Grande do Sul (ABRH-RS), Crismeri Delfino Corrêa, é haver no futuro do empreendedorismo líderes muito mais comprometidos com a empresa, quebrando a média de permanência que é de 2,5 anos. Outra característica importante é a busca por conciliar os interesses dos clientes e acionistas aos dos colaboradores. “Não existe este papo de que líderes nascem líderes. A liderança é desenvolvida e aperfeiçoada, em quesitos como organização e postura”, defende. Esta reportagem aborda três das principais mutações no perfil do líder do futuro.

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Inovação O novo nada mais é do que um resultado diferente, gerado por uma maneira diversa do pensar habitual. Exemplos simples servem para compreender a dinâmica da inovação. O consultor de empresas e startups Bruno Perin afirma que a comodidade é a pior inimiga da renovação: “As pessoas fazem o mesmo trajeto, todos os dias, até chegar ao trabalho. Passam pelas mesmas casas, pelos mesmos pontos referenciais, enquanto estão desperdiçando rotas alternativas. Podendo passar, nesta inovação, por pontos novos que irão te despertar uma alegria diferente. Ou seja, no fim a pessoa está no trabalho, mas depois de um processo novo, com um resultado diferente”. Práticas renovadoras, por exemplo, fazem parte da trajetória da Bebidas Fruki S/A. Antigamente, eram definidas como uma atitude fora dos objetivos da empresa, um fator supérfluo. O presidente da empresa, Nelson Eggers, afirma que, por necessidade de atender adequadamente às exigências dos clientes, precisou trazer novos processos. “Faz 34 anos que instalamos o processo computadorizado nas áreas administrativas. Fomos os primeiros a utilizar esta ferramenta na região do Vale do Taquari. Inclusive, naquela época, recebemos visitas dos grandes fabricantes de bebidas do Brasil, não apenas aqui do Estado”, contou. O mercado apresenta uma alta quantidade de empresas em todos os segmentos. Diante deste cenário, é impossível destacar-se realizando o comum. A inovação é o que mantém as organizações competitivas dentro do cenário econômico atual. O presidente do Programa Gaúcho da Qua-

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lidade e Produtividade (PGQP), Ricardo Felizzola, aponta a diferenciação de resultados e práticas refletidas na satisfação do cliente como principal inovação. “É fundamental investir cada vez mais em qualidade da gestão e inovação para aumentar a competitividade das organizações no Rio Grande do Sul, mas o principal ganho com a eficiência nos setores público e privado é aquele sentido no cotidiano de cada cidadão”, complementa.

Sustentabilidade Este é um assunto moderno. Só a partir do século 21 as empresas passaram a preocupar-se com práticas inteligentes. Durante muitos anos, a ambição estava acima do bem-estar do planeta e da sociedade. Atualmente, os interesses de empresas e do ambiente estão começando a se conectar A necessidade de favorecer uma orientação maior sobre o tema estimulou a criação de uma empresa específica, a Ideia Sustentável, fundada em 1993, atua com estratégias e consultoria na área, dentro do mercado nacional. A companhia enfrenta o desafio de inserir as práticas verdes no core business (foco central dos negócios) das organizações. O presidente da organização, Ricardo Voltolini – um dos primeiros especialistas no tema –, acredita que sustentabilidade em empresas é um dilema ético e entende que não se pode deixar tudo por conta de líderes políticos. “Não podemos depender dos políticos, pois se deixarmos para eles, não atingiremos o nosso objetivo. E é nesse momento que ressaltamos a importância do engajamento empresarial”, afirma Voltolini.


Na Fruki, a sustentabilidade é trabalhada desde 1988, quando foi construída uma estação de tratamento de efluentes, exclusiva para a fábrica. “Somos totalmente favoráveis a esta causa. Em todas as nossas construções, contamos com o armazenamento de água pluvial. E a usamos na limpeza de setores da empresa e para regar os jardins”, explica Eggers. Segundo Voltolini, quando existe um líder dedicado à causa, o grupo de colaboradores segue o fluxo de atitudes com naturalidade. “É de extrema importância que o líder, de fato, acredite nesta luta, e que a sustentabilidade seja vista como oportunidade e não como risco. Os valores sustentáveis precisam estar estampados na estratégia de atuação, e as partes interessadas educadas neste sentido”, explica o especialista, ao comentar as características da sustentabilidade dentro da empresa. E ainda conclui que as práticas sustentáveis geram valor econômico: “Sustentabilidade não é desvio de foco, mas o melhor jeito de fazer negócios”.

Colaboração A nova leva de empreendedores invade o mercado com uma proposta cooperativa, alinhada às demandas que surgem: gerar lucro montando um negócio que ajude o cotidiano da sociedade. A cooperação deve haver também dentro da organização, tendo em vista que as pessoas apenas se comprometem com aquilo em que estão inseridas. “Um líder sozinho não consegue nada. Agora, um líder que tem a capacidade de atuar em conjunto atinge resultados potencializados. Partindo deste princípio, a empresa consegue se diferenciar como

um todo.” Com este mantra empresarial, Eggers – empresário vencedor de condecorações como o Prêmio Empresário do Ano Troféu Carrinho de Ouro 2007 Agas e a Medalha Jorge Gerdau Johannpeter do PGQP, em 2014, durante o Prêmio Qualidade RS – administra a quase centenária Fruki. Embora a empresa seja tradicional, o comando nunca teve o perfil de conduta autoritária. “Os vocábulos qualidade e colaboração fazem parte da nossa história, pois na criação da empresa utilizamos valores da nossa família”, ratificou Eggers, que representa a terceira geração à frente da empresa. No instante em que os colaboradores percebem o tratamento inclusivo do superior – que em uma estrutura pode até estar acima do funcionário, porém no cotidiano de trabalho encontra-se ao seu lado –, automaticamente passam se empenhar muito mais. Como acontece na Stihl Ferramentas Motorizadas, onde existe um programa que dá voz e espaço para os funcionários. Denominado IdeiaPlus, a plataforma permite que sugestões de melhoria que gerem economia à empresa sejam apresentadas. A ferramenta, que é digitalizada, bonifica os responsáveis pelas ideias conforme o resultado gerado. “Este incentivo é benéfico para ambos os lados, tanto ao colaborador quanto para a Stihl. Atualmente, o programa retorna para a empresa o triplo do valor pago em premiações”, afirma o supervisor de Melhoria Contínua da Stihl, Maykel Royer, responsável pelo controle do mecanismo. Dentro da ala de montagem do processo industrial da fábrica da Stihl, o funcionário Juliano Freitas, que trabalha há oito anos na organização, sugeriu que uma peça interna da Motosserra MS 650 – de uso

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florestal – deixasse de ser pintada, pois não mudaria em nada a sua utilização. A sugestão de Freitas passou por um processo avaliativo em um grupo da sessão de Melhoria Contínua e, após aprovada, foi direcionada para execução. “Percebi este detalhe pois vivo o dia a dia da criação da máquina. E de fato era algo dispensável”, afirmou o colaborador que recebeu como prêmio pela iniciativa 40% da sua remuneração. Mais de 1 mil colaboradores já foram beneficiados pelo programa, que além do Brasil, funciona também nas unidades do Estados Unidos, China, Suíça e Alemanha. O presidente da Stihl, Claudio Guenther, acredita que este é o início de uma cultura: “O IdeiaPlus busca a criação de um hábito inovador e inclusivo”. Na Fuhro Souto Consultoria Imobiliária – empresa mais premiada do segmento no Rio Grande do Sul –, práticas de relacionamento dos colaboradores com o líder e acolhimento da equipe servem como fatores de dedicação. O diretor-executivo da empresa, Fabrício Sorondo, criou métodos como o café da manhã para pessoas recém chegadas e também bonificação àqueles que cumprem as metas estipuladas. “Muitos funcionários são contratados para serem braços, porém nós contratamos pessoas, que precisam ser valorizadas e sentirem-se bem para produzir o que desejamos”, explica. Felizzola define a gestão colaborativa como um motor de resultados: “Pessoas unidas são agentes geradores de inspiração. Geram motivação, constroem causas e objetivos comuns. Com base em suas crenças, transformam sonhos em realidade, gerando resultados e um futuro de oportunidades”. Um fator decisivo deste modelo é a valorização do profissional: a meritocracia contribui para o engajamento e o alcance de metas.

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PAPEL UTILIZADO Miolo: off-set 120 g Capa: off-set 220 g TIPOGRAFIA Título: Arial Texto: Minion Pro




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