Matéria Natal - Revista do Cruzeiro (janeiro/agosto 2016)

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POR B R U N O M AT E U S /// FOTO S B R U N O S E N N A

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Orgulhoso por ter defendido as cores do seu time de coração, Natal faz uma retrospectiva de sua carreira, recheada de conquistas e polêmicas

O cruzeirense que ia ao Mineirão na segunda metade dos anos 1960 acostumou-se a ver um sujeito franzino e extremamente rápido escapar pela ponta-direita e deixar as defesas adversárias tontas. Não foram poucas as vezes que esse baixinho destemido e habilidoso venceu os goleiros, estufou as redes e correu para o abraço. Com a camisa 7 azul estrelada, Natal brincou de jogar bola, se divertia como um menino em campo e é, ainda hoje, reconhecido como um dos maiores jogadores que passaram pelo Cruzeiro. Pará-lo em campo era tarefa das mais difíceis. Mesmo se o zagueiro ficasse atento a cada movimento, a chance de ser driblado era maior que a de ganhar a jogada. Quando o defensor se dava conta, Natal já o havia cortado como um raio. Porém, muitas vezes, a única maneira de frear nosso grande camisa 7 era na violência. Cotovelada, socos, pontapés. Valia de tudo. E como ele apanhava em campo! O Diabo Loiro, apelido que Natal Carvalho Boroni recebeu por conta de seu estilo encapetado, marcou 71 gols em 245 jogos pelo Cruzeiro, deixando seu nome eternizado na história do clube mais popular de Minas Gerais. Nascido e criado nos bairros Nova Granada e Jardim América, na Zona Oeste de Belo Horizonte, o mais velho de um total de nove irmãos mudou-se com a família para o Eldorado, em Contagem, onde começou a jogar nos juniores do Itaú, time da região. Em 1964, quando o Cruzeiro foi disputar uma partida contra a equipe, os dirigentes celestes ficaram de olho no menino que estava arrebentando com o jogo. No intervalo, Natal, que tinha apenas 17 anos, já estava contratado. Não havia tempo a perder.

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O ponta-direita se encaixou de forma perfeita em um Cruzeiro que jogava por música. Formando a linha de ataque com Evaldo e Hilton Oliveira, e tendo o tripé mágico Piazza-Tostão-Dirceu Lopes na armação, ele desandou a dar espetáculos junto com a máquina azul. O ano de 1965 marcou o futebol mineiro com a inauguração do Mineirão e foi também o início da hegemonia cruzeirense no estado, que culminou no pentacampeonato estadual – de 1965 a 1969 –, o único da história da Raposa. Tempos que deixam saudade para Natal. “Era bom demais, aqueles jogadores eram simples e objetivos. Perdíamos pouco e fazíamos muitos gols. Nossa mentalidade era: vamos marcar, mas respeitando o adversário. Se pudesse fazer 10, a gente fazia, sem menosprezar. Tinha dia que o Raul nem tomava banho depois do jogo, porque a bola não ia lá.”

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// / / / Í D O L O S E T E RNO S Um capítulo merece destaque nesse período: a conquista do Campeonato Brasileiro de 1966. O Cruzeiro atropelou o Santos por 6 a 2 no Mineirão. Em São Paulo, no Pacaembu, o time paulista foi para o intervalo vencendo a partida por 2 a 0, resultado que forçava o terceiro jogo de desempate. Natal dá sua versão para uma conhecida história: “O presidente do Santos entrou no vestiário junto com o Mendonça Falcão, da Federação Paulista de Futebol, perguntando para o Felício Brandi [então presidente do Cruzeiro] onde seria o terceiro jogo. O [lateral] Pedro Paulo saiu do chuveiro e falou: ‘Saiam daqui senão vou quebrar todo mundo no cacete!’. Não ficou nem meio. Nos reunimos e falamos que íamos virar o jogo.” No segundo tempo, Tostão marcou duas vezes e empatou o duelo. O título já era da Raposa com esse placar, mas Natal, decisivo, fez o terceiro e fechou a fatura. O Cruzeiro era campeão brasileiro com méritos e justiça. O Diabo Loiro, então, aproveitou para armar uma das suas: “Nesse jogo, eu já tinha tomado soco, o Zito me provocava, cuspia na minha cara. Faltando dois minutos, eu fiz o terceiro. Aproveitando o embalo do soco e da cusparada que levei, passei perto do Zito e dei um no meio da cara dele e ‘casquei’ pra perto do Pedro Paulo. Não sou besta!”. Mas esse, apesar da grande conquista, não é o maior jogo de Natal com o manto azul. O ídolo cruzeirense resgata uma tarde de novembro de 1967, um domingo chuvoso, quando 110 mil pessoas se espremeram no Mineirão para ver o famoso 3 a 3 contra o Atlético-MG. A partida começou complicada para o lado azul.

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Logo aos 5 minutos, Tostão saiu de campo lesionado. Para piorar a situação, Procópio foi expulso aos 25. Aos 15 do segundo tempo, o placar anotava 3 a 0 para o Atlético-MG. Orlando Fantoni, técnico do Cruzeiro, chamou nosso camisa 7 para uma conversa. “Embola no meio de campo”, disse o treinador. O próprio Natal é quem conta a história do jogaço. “Meu primeiro gol foi de cabeça, a maior zebra do mundo. Cinco minutos depois, a bola ficou parada na poça d’água e não tinha muito que fazer, bati de calcanhar e fiz o segundo. No final, houve um pênalti e o Raul mandou eu bater. Eu falei que não, que já tinha feito dois gols e se perdesse esse pênalti eu estaria lascado. O Piazza cobrou e a bola ainda bateu na trave, entrou e nem chegou a tocar na rede. Tinha que dar Cruzeiro mesmo, né? Quando terminou o jogo, todos nós olhamos uns para a cara dos outros. E a torcida do Atlético-MG caladinha, quietinha.” Devido às excelentes atuações pela Raposa, Natal foi convocado pela seleção brasileira em 1968 para uma excursão por 30 dias na Europa. Jogou bem, foi titular, mas um problema de lesão fez com que passasse por uma cirurgia. Ele se recuperou e manteve a boa fase, mas não foi chamado novamente. “Não me levaram para a Copa de 1970, levaram um jogador do Botafogo machucado e eu pronto. Fiquei magoado demais.”

fora deles o bom humor e os causos e piadas divertiam os colegas de Cruzeiro. “Sempre fui uma pessoa de bem com a vida. Eu chegava na Toca e falavam: ‘Chegou o palhaço’. Eu gostava de brincar com o pessoal, mas sempre respeitando muito.” Por outro lado, a conduta impulsiva e desligada lhe trouxe fama de irresponsável. “Eu não estava nem aí. Isso me prejudicou, não resta a menor dúvida. Mas não me arrependo de nada vezes nada. Isso nunca me atrapalhou dentro de campo, eu me cuidava. Faria tudo de novo, só guardaria mais um pouquinho de dinheiro.” O craque da camisa 7 foi negociado com o Corinthians em 1971 e chegou com prestígio ao time paulista. Porém, a passagem foi curta e marcada por polêmicas. Após perder um pênalti contra o Guarani, a torcida corintiana quebrou o carro novinho do ex-jogador. O clube comprou outro, tudo certo. Até que, um dia antes de uma partida contra a Ponte Preta, Natal estava concentrado, tranquilo, jogando baralho. Mas quando ligou a TV e viu um jornalista criticá-lo, ele chutou o balde.

DIABO LOIRO E A PAIXÃO POR CARROS

“Peguei minhas coisas para ir embora. Encontrei o presidente e falei que não queria mais jogar lá. ‘Você está escalado para amanhã, não faz isso’, ele disse. Mas eu falei que não ficaria nem mais um dia. Aí, o comentarista que me criticou apareceu na concentração. Parti pra cima. Dei um soco na cara dele e ele caiu. Foi uma confusão! Entrei no carro e fui embora”, relembra.

Natal fazia jus ao apelido que ganhou em 1966. Se dentro de campo o encapetado jogador dava show de bola,

Após passar por Bahia, Vitória, Londrina, Deportivo Itália, da Venezuela, e alguns times do interior de Minas, Na-


“O ser humano tem que ser algo na vida. Não é só nascer, viver e morrer sem ter um objetivo, sem construir nada

tal encerrou sua carreira no Villa Nova, em meados dos anos 1980. Algumas histórias ganham contornos folclóricos. Pouco antes de se aposentar, ele foi jogar pelo ESAB em Uberaba, às 11h da manhã. Na arquibancada, um torcedor não o deixava em paz. Natal, o Diabo Loiro celeste, no início da carreira e anotando mais um gol pelo Cruzeiro

“Tinha um atleticano no alambrado. Ele começou a me xingar e a falar que eu já tinha acabado com o Atlético. Ele jogou uma lata de cerveja, que pegou no meu braço. Estava um calor danado! Não deu outra: peguei e bebi. O juiz me perguntou: ‘Eu te expulso ou você quer sair?’”, conta, às gargalhadas. A paixão por carros era outra marca registrada de Natal, que tinha sempre um modelo do ano na garagem. “Gostava de Alfa Romeo, sempre gostei de carros italianos. Levei uma vida feliz, nunca fui de preocupar muito com as coisas. Quando eu queria um carro novo, o Felício [Brandi] falava: ‘Então assina outro contrato’”, conta o ex-camisa 7, que tinha um passatempo em dias de concentração. “Eu ajudava a lavar os carros dos jogadores do time. Lavava na parte da manhã e à tarde chegava no Mineirão e matava a pau.” Em novembro passado, Natal completou 70 anos. Muito bem vividos, ele garante. Sentado no bar onde costuma jogar caixeta com os amigos, o ídolo da torcida cruzeirense diz que sua saúde está 100% e que joga uma peladinha de vez em quando. Fazendo uma retrospectiva de sua trajetória como jogador, o eterno Diabo Loiro não esconde a felicidade por ter defendido o Cruzeiro, seu time de coração, e a seleção brasileira. “O ser humano tem que ser algo na vida. Não é só nascer, viver e morrer sem ter um objetivo, sem construir nada. Fiz o bem, fui algo na vida, mas nunca saí falando na rua ‘eu sou isso, sou aquilo’. Prepotência não é comigo. Dentro de mim sinto um orgulho imenso, não tenha dúvida, mas não saio gritando isso na rua”. Natal continua desapegado e, como ele mesmo diz, sem esquentar a cabeça. Essa, talvez, seja a receita para que ele ainda tenha alguns séculos de vida pela frente: “Meus amigos falam que vou viver mais 300 anos”.

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