Os Contos dos Irmãos Grimm

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Seleção de Textos André Souza Monteiro Wilder Cursino

Diagramação Bruno Perruci Cavalcanti

Ilustrações Caio Neiva Soares Emanuel Cavalcanti



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sta edição de “Os Contos dos Irmãos Grimm” é uma coletânea que conta

com os principais e mais conhecidos contos dos autores, como: Chapéuzinho Vermelho, Branca de Neve, Rapunzel, e muito mais. Divirta-se.



ÍNDICE

PARTE 1 1. João e Maria

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2. Rapunzel

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3. Chapéuzinho Vermelho

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PARTE 2 4. Branca de Neve

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5. Os Três Cabelos de Ouro do Diabo

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6. Os Dois Irmãos

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João e Maria

s margens de uma extensa mata existia, há muito tempo, uma cabana pobre, feita de troncos de árvore, na qual morava um lenhador com sua segunda esposa e seus dois filhinhos, nascidos do primeiro casamento. O garoto chamava-se João e a menina, Maria. A vida sempre fora difícil na casa do lenhador, mas naquela época as coisas haviam piorado ainda mais: não havia comida para todos. Minha mulher, o que será de nós? Acabaremos todos por morrer de necessidade. E as crianças serão as primeiras. - Há uma solução… - disse a madrasta, que era muito malvada. Amanhã daremos a João e Maria um pedaço de pão, depois os levaremos à mata e lá os abandonaremos.


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João e Maria

O lenhador não queria nem ouvir falar de um plano tão cruel, mas a mulher, esperta e insistente, conseguiu convencê-lo. No aposento ao lado, as duas crianças tinham escutado tudo, e Maria desatou a chorar. - Não chore, tranqüilizou-a o irmão. Tenho uma idéia. Esperou que os pais estivessem dormindo, saiu da cabana, catou um punhado de pedrinhas brancas que brilhavam ao clarão da lua e as escondeu no bolso. Depois voltou para a cama. No dia seguinte, ao amanhecer, a madrasta acordou as crianças. As crianças foram com o pai e a madrasta cortar lenha na floresta e lá foram abandonadas. João havia marcado o caminho com as pedrinhas e, ao anoitecer, conseguiram voltar para casa. O pai ficou contente, mas a madrasta, não. Mandou-os dormir e trancou a porta do quarto. Como era malvada, ela planejou levá-los ainda mais longe no dia seguinte. João ouviu a madrasta novamente convencendo o pai a abandoná-los, mas desta vez não conseguiu sair do quarto para apanhar as pedrinhas, pois sua madrasta havia trancado a porta. Maria desesperada só chorava. João pediu-lhe para ficar calma e


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ter fé em Deus. Antes de saírem para o passeio, receberam para comer um pedaço de pão velho. João, em vez de comer o pão, guardou-o. Ao caminhar para a floresta, João jogava as migalhas de pão no chão, para marcar o caminho da volta. Chegando a uma clareira, a madrasta ordenou que esperassem até que ela colhesse algumas frutas, por ali. Mas eles esperaram em vão. Ela os tinha abandonado mesmo! - Não chore Maria, disse João. Agora, só temos é que seguir a trilha que eu fiz até aqui e ela está toda marcada com as migalhas do pão. Só que os passarinhos tinham comido todas as migalhas de pão deixadas no caminho. As crianças andaram muito até que chegaram a uma casinha toda feita com chocolate, biscoitos e doces. Famintos, correram e começaram a comer. De repente, apareceu uma velhinha, dizendo: - Entrem, entrem, entrem, que lá dentro tem muito mais para vocês. Mas a velhinha era uma bruxa que os deixou comer bastante até


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João e Maria

cair no sono em confortáveis caminhas. Quando as crianças acordaram, achavam que estavam no céu, parecia tudo perfeito. Porém a velhinha era uma bruxa malvada que e aprisionou João numa jaula para que ele engordasse. Ela queria devorá-lo bem gordo. E fez da pobre e indefesa Maria, sua escrava. Todos os dias João tinha que mostrar o dedo para que ela sentisse se ele estava engordando. O menino, muito esperto, percebendo que a bruxa enxergava pouco, mostrava-lhe um ossinho de galinha. E ela ficava furiosa, reclamava com Maria: - Esse menino, não há meio de engordar. - Dê mais comida para ele! Passaram-se alguns dias até que numa manhã assim que a bruxa acordou, cansada de tanto esperar, foi logo gritando: - Hoje eu vou fazer uma festança. Maria ponha um caldeirão bem grande, com água até a boca para ferver e dê bastante comida paro seu o irmão, pois é hoje que eu vou comê-lo ensopado. Assustada, Maria começou a chorar.


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João e Maria

- Acenderei o forno também, pois farei um pão para acompanhar o ensopado, a bruxa falou. Ela empurrou Maria para perto do forno e disse: - Entre e veja se o forno está bem quente para que eu possa colocar o pão. A bruxa pretendia fechar o forno quando Maria estivesse lá dentro, para assá-la e comê-la também, mas Maria percebeu a intenção da bruxa e disse: - Ih! Como posso entrar no forno, não sei como fazer? - Menina boba! - disse a bruxa. Há espaço suficiente, até eu poderia passar por ela. A bruxa se aproximou e colocou a cabeça dentro do forno. Maria, então, deu-lhe um empurrão e ela caiu lá dentro. A menina, então, rapidamente trancou a porta do forno deixando que a bruxa morresse queimada. Maria foi direto libertar seu irmão. Estavam muito felizes e tiveram a idéia de pegarem o tesouro


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que a bruxa guardava e ainda algumas guloseimas . Encheram seus bolsos com tudo que conseguiram e partiram rumo a floresta. Depois de muito andarem atravessaram um grande lago com a ajuda de um cisne. Andaram mais um pouco e começaram a reconhecer o caminho e viram ao longe a pequena cabana do pai. Ao chegarem na cabana encontraram o pai triste e arrependido. A madrasta havia morrido de fome e o pai estava desesperado com o que fez com os filhos. Quando os viu, o pai ficou muito feliz e foi correndo abraçá-los. Joãozinho e Maria mostraram-lhe toda a fortuna que traziam nos seus bolsos, agora não haveria mais preocupação com dinheiro e comida e assim foram felizes para sempre.


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Rapunzel

ra uma vez um casal que há muito tempo desejava inutilmente ter um filho. Os anos se passavam, e seu sonho não se realizava. Afinal, um belo dia, a mulher percebeu que Deus ouvira suas preces. Ela ia ter uma criança! Por uma janelinha que havia na parte dos fundos da casa deles, era possível ver, no quintal vizinho, um magnífico jardim cheio das mais lindas flores e das mais viçosas hortaliças. Mas em torno de tudo se erguia um muro altíssimo, que ninguém se atrevia a escalar. Afinal, era a propriedade de uma feiticeira muito temida e poderosa. Um dia, espiando pela janelinha, a mulher se admirou ao ver um canteiro cheio dos mais belos pés de rabanete que jamais


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imaginara. As folhas eram tão verdes e fresquinhas que abriram seu apetite. E ela sentiu um enorme desejo de provar os rabanetes. A cada dia seu desejo aumentava mais. Mas ela sabia que não havia jeito de conseguir o que queria e por isso foi ficando triste, abatida e com um aspecto doentio, até que um dia o marido se assustou e perguntou: - O que está acontecendo contigo, querida? - Ah! - respondeu ela. - Se não comer um rabanete do jardim da feiticeira, vou morrer logo, logo! O marido, que a amava muito, pensou: “Não posso deixar minha mulher morrer… Tenho que conseguir esses rabanetes, custe o que custar!” Ao anoitecer, ele encostou uma escada no muro, pulou para o quintal vizinho, arrancou apressadamente um punhado de rabanetes e levou para a mulher. Mais que depressa, ela preparou uma salada que comeu imediatamente, deliciada. Ela achou o sabor da salada tão bom, mas tão bom, que no dia seguinte seu desejo de comer rabanetes ficou ainda mais forte. Para sossegá-la,


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Rapunzel

o marido prometeu-lhe que iria buscar mais um pouco. Quando a noite chegou, pulou novamente o muro mas, mal pisou no chão do outro lado, levou um tremendo susto: de pé, diante dele, estava a feiticeira. - Como se atreve a entrar no meu quintal como um ladrão, para roubar meus rabanetes? - perguntou ela com os olhos chispando de raiva. - Vai ver só o que te espera! - Oh! Tenha piedade! - implorou o homem. - Só fiz isso porque fui obrigado! Minha mulher viu seus rabanetes pela nossa janela e sentiu tanta vontade de comê-los, mas tanta vontade, que na certa morrerá se eu não levar alguns! A feiticeira se acalmou e disse: - Se é assim como diz, deixo você levar quantos rabanetes quiser, mas com uma condição: irá me dar a criança que sua mulher vai ter. Cuidarei dela como se fosse sua própria mãe, e nada lhe faltará. O homem estava tão apavorado, que concordou. Pouco tempo


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depois, o bebê nasceu. Era uma menina. A feiticeira surgiu no mesmo instante, deu à criança o nome de Rapunzel e levou-a embora. Rapunzel cresceu e se tomou a mais linda criança sob o sol. Quando fez doze anos, a feiticeira trancou-a no alto de uma torre, no meio da floresta. A torre não possuía nem escada, nem porta: apenas uma janelinha, no lugar mais alto. Quando a velha desejava entrar, ficava embaixo da janela e gritava: - Rapunzel, Rapunzel! Joga abaixo tuas tranças! Rapunzel tinha magníficos cabelos compridos, finos como fios de ouro. Quando ouvia o chamado da velha, abria a janela, desenrolava as tranças e jogava-as para fora. As tranças caíam vinte metros abaixo, e por elas a feiticeira subia. Alguns anos depois, o filho do rei estava cavalgando pela floresta e passou perto da torre. Ouviu um canto tão bonito que parou, encantado. Rapunzel, para espantar a solidão, cantava para si mesma com sua doce voz. Imediatamente o príncipe quis subir, procurou uma porta por


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Rapunzel

toda parte, mas não encontrou. Inconformado, voltou para casa. Mas o maravilhoso canto tocara seu coração de tal maneira que ele começou a ir para a floresta todos os dias, querendo ouvi-lo outra vez. Em uma dessas vezes, o príncipe estava descansando atrás de uma árvore e viu a feiticeira aproximar-se da torre e gritar: - Rapunzel, Rapunzel! Joga abaixo tuas tranças! - e viu quando a feiticeira subiu pelas tranças. “É essa a escada pela qual se sobe?,” pensou o príncipe. “Pois eu vou tentar a sorte….” No dia seguinte, quando escureceu, ele se aproximou da torre e, bem embaixo da janelinha, gritou: - Rapunzel, Rapunzel! Joga abaixo tuas tranças! As tranças caíram pela janela abaixo, e ele subiu. Rapunzel ficou muito assustada ao vê-lo entrar, pois jamais tinha visto um homem. Mas o príncipe falou-lhe com muita doçura e contou como seu coração ficara transtornado desde que a ouvira cantar, explicando que não teria sossego enquanto não a conhecesse. Rapunzel foi se acalmando, e quando o príncipe lhe perguntou


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Rapunzel

se o aceitava como marido, reparou que ele era jovem e belo, e pensou: “Ele é mil vezes preferível à velha senhora….” E, pondo a mão dela sobre a dele, respondeu: - Sim! Eu quero ir com você! Mas não sei como descer… Sempre que vier me ver, traga uma meada de seda. Com ela vou trançar uma escada e, quando ficar pronta, eu desço, e você me leva no seu cavalo. Combinaram que ele sempre viria ao cair da noite, porque a velha costumava vir durante o dia. Assim foi, e a feiticeira de nada desconfiava até que um dia Rapunzel, sem querer, perguntou a ela: - Diga-me, senhora, como é que lhe custa tanto subir, enquanto o jovem filho do rei chega aqui num instantinho? - Ah, menina ruim! - gritou a feiticeira. - Pensei que tinha isolado você do mundo, e você me engana! Na sua fúria, agarrou Rapunzel pelo cabelos e esbofeteou-a. Depois, com a outra mão, pegou uma tesoura e tec, tec! cortou as belas tranças, largando-as no chão.


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Não contente, a malvada levou a pobre menina para um deserto e abandonou-a ali, para que sofresse e passasse todo tipo de privação. Na tarde do mesmo dia em que Rapunzel foi expulsa, a feiticeira prendeu as longas tranças num gancho da janela e ficou esperando. Quando o príncipe veio e chamou: “Rapunzel! Rapunzel! Joga abaixo tuas tranças!,” ela deixou as tranças caírem para fora e ficou esperando. Ao entrar, o pobre rapaz não encontrou sua querida Rapunzel, mas sim a terrível feiticeira. Com um olhar chamejante de ódio, ela gritou zombeteira: - Ah, ah! Você veio buscar sua amada? Pois a linda avezinha não está mais no ninho, nem canta mais! O gato apanhou-a, levou-a, e agora vai arranhar os seus olhos! Nunca mais você verá Rapunzel! Ela está perdida para você! Ao ouvir isso, o príncipe ficou fora de si e, em seu desespero, se atirou pela janela. O jovem não morreu, mas caiu sobre espinhos que furaram seus olhos e ele ficou cego. Desesperado, ficou perambulando pela floresta, alimentando-se apenas de frutos e raízes, sem fazer outra coisa que se lamentar


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e chorar a perda da amada. Passaram-se os anos. Um dia, por acaso, o príncipe chegou ao deserto no qual Rapunzel vivia, na maior tristeza, com seus filhos gêmeos, um menino e uma menina, que haviam nascido ali. Ouvindo uma voz que lhe pareceu familiar, o príncipe caminhou na direção de Rapunzel. Assim que chegou perto, ela logo o reconheceu e se atirou em seus braços, a chorar. Duas das lágrimas da moça caíram nos olhos dele e, no mesmo instante, o príncipe recuperou a visão e ficou enxergando tão bem quanto antes. Então, levou Rapunzel e as crianças para seu reino, onde foram recebidos com grande alegria. Ali viveram felizes e contentes.


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Chapéuzinho Vermelho

ra uma vez uma doce pequena que tinha o amor de todos os que a viam; mas era a avó quem mais a amava, a ponto de não saber o que mais dar à criança. Uma vez deulhe um capucho de veludo vermelho e, como este lhe ficava tão bem que ela nunca mais quis usar outra coisa, chamaram-lhe simplesmente Chapéuzinho Vermelho. Um dia disse-lhe a mãe: “Vem cá, Chapéuzinho Vermelho, aqui tens um pedaço de bolo e uma garrafa de vinho para levares à tua avó. Ela está doente e fraca e isto há-de fortalecê-la. Põe-te ao caminho antes que se ponha quente e, quando estiveres no bosque, vai directa e não te desvies do carreiro, senão ainda cais e partes o vidro e a tua avó não recebe nada. E quando entrares no quarto dela, não


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Chapéuzinho Vermelho

te esqueças de dizer bom dia e não te vás pôr a espreitar em todos os cantos.” “Vou fazer tudo bem,” prometeu Chapéuzinho Vermelho dando a sua mão. A avó vivia isolada no bosque, a meia légua da aldeia. Quando Chapéuzinho Vermelho chegou ao bosque, um lobo veio ao seu encontro. Chapéuzinho Vermelho não sabia que se tratava dum animal malvado e não teve medo nenhum. - Bom dia, Chapéuzinho Vermelho. - disse ele. - Muito obrigado, lobo. - respondeu - Aonde vais tão cedo, Chapéuzinho Vermelho? - À minha avó. - O que levas debaixo do avental? - Bolo e vinho: ontem cozemos, portanto a pobre avó doente vai poder receber algo bom que a fortaleça. - Chapéuzinho Vermelho, onde vive a tua avó? - Ainda a um bom quarto de légua dentro do bosque, debaixo dos três carvalhos, aí fica a casa


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Chapéuzinho Vermelho

dela; logo abaixo ficam as avelaneiras, assim já saberás. - disse Chapéuzinho Vermelho. O lobo pensou para si mesmo: “Que coisa tenra, dará um pitéu suculento. Vai saber ainda melhor que a velha. Tens que agir ardilosamente se queres apanhá-las ambas.” Então andou um pouco ao lado de Chapéuzinho Vermelho e depois falou: - Chapéuzinho Vermelho, vês as lindas flores por aqui à tua volta? Porque não olhas para elas? Acho que ainda nem reparaste como os passarinhos estão a cantar amorosamente. Andas tão séria, como se fosses para a escola, enquanto que tudo no bosque está tão alegre. Chapéuzinho Vermelho levantou os olhos e quando viu como os raios de sol dançavam entre as árvores, para a frente e para trás, e como havia lindas flores por todo o lado, pensou: “Se eu levar à avó um ramo fresco, hei-de dar-lhe alegria. Ainda é tão cedo que chegarei bem a tempo.” Então ela saiu do carreiro e entrou no bosque à procura de flores. E cada vez que tinha apanhado uma, pensava que mais longe haveria outra ainda mais bonita e corria a apanhá-la, de tal forma que entrou cada


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vez mais fundo no bosque. Mas o lobo foi directo para casa da avó e bateu à porta. - Quem está aí? - perguntou a avó - É Chapéuzinho Vermelho, trazendo bolo e vinho, abre! - Levanta o trinco - gritou a avó - eu estou demasiado fraca para me poder levantar. O lobo levantou o trinco, a porta abriu e ele, sem uma palavra, dirigiu-se à cama da avó e comeu-a. Depois vestiu as roupas e a touca dela, deitou-se na cama e fechou as cortinas. Entretanto, Chapéuzinho Vermelho tinha corrido de flor em flor e só quando já tinha tantas que não podia carregar mais é que se lembrou da avó e retomou o caminho para casa dela. Estranhou que a porta estivesse aberta e, quando entrou no quarto, teve uma sensação tão estranha que disse para si própria: “Meu Deus, hoje sinto-me tão angustiada e normalmente gosto tanto de estar com a avó.” Largou um “Bom dia!,” mas não obteve resposta. Então dirigiu-se à cama e puxou as cortinas para trás: ali estava a avó com a touca puxada sobre a cara e com uma aparência estranha. - Ó! Avó, que grandes orelhas tens! - disse Chapéuzinho.


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- Para poder ouvir-te melhor. - respondeu - Ó! Avó, que grandes olhos tens! - Para poder ver-te melhor. - Ó! Avó, que grandes mãos tens! - Para poder abraçar-te melhor. - Mas, avó, que boca horrivelmente grande tens! - Para poder comer-te melhor. Mal tinha o lobo dito isto, pulou da cama e engoliu a pobre Chapéuzinho Vermelho. E, tendo apaziguado a sua concupiscência, tornou a deitar-se na cama, adormeceu e começou a ressonar muito alto. O caçador estava mesmo a passar em frente da casa e pensou: “Como a velhota ressona! É melhor veres se há algo errado.” Então entrou no quarto e, quando chegou à cama, viu o lobo lá estendido. - Aqui te encontro, velho pecador - disse ele - há muito que te procuro! Apontou a espingarda, mas então pensou que o lobo podia ter comido a avó e que ela ainda podia ser salva. Portanto, em vez de disparar, pegou numa tesoura e começou a cortar a barriga do lobo. Depois de ter feito um par de cortes viu Chapéuzinho


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Vermelho luzir; e após outros tantos cortes a moça saltou para fora, gritando: - Ah, como tive medo! Estava tão escuro dentro do lobo! Depois a avó saiu, também viva mas quase incapaz de respirar. Entretanto, Chapéuzinho Vermelho depressa procurou grandes pedras com as quais encheram o lobo. Quando ele acordou quis fugir, mas as pedras eram tão pesadas que caiu subitamente e morreu. Então os três ficaram muito contentes. O caçador tirou a pele ao lobo e levou-a para casa. A avó comeu o bolo e bebeu o vinho que Chapéuzinho Vermelho tinha trazido e recuperou forças. Mas Chapéuzinho Vermelho pensou: “Nunca mais na vida tornarás a sair do caminho sozinha para entrar no bosque depois de a tua mãe o ter proibido.”





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Branca de Neve

á muito e muito tempo, bem no meio do inverno, quando os flocos de neve caíam do céu leves como plumas, uma rainha estava sentada costurando junto a uma janela com esquadrias de ébano. Costurava distraída, olhando os flocos de neve que caíam lá fora e, por isso, espetou o dedo com a agulha e três gotas de sangue caíram na neve. Aquele vermelho em cima do branco ficou tão bonito que ela pensou: “Eu queria ter um neném assim, que fosse branco como a neve, vermelho como o sangue e negro como a madeira da moldura desta janela”. Algum tempo depois, ela teve uma filha, que era branca como a neve, vermelha como o sangue e tinha cabelos negros como o ébano. Deram a ela o nome de Branca de Neve, mas, quando ela nasceu, a rainha morreu.


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Branca de Neve

Um ano mais tarde, o rei casou de novo. A nova rainha era linda, mas muito orgulhosa e prepotente; tão vaidosa que não podia suportar a idéia de que alguém pudesse ser mais bonita do que ela. Tinha um espelho mágico e gostava de se olhar nele e perguntar: - Espelho, espelho, vem já e me diz, quem é a mais linda de todo o país? E o espelho respondia: - Senhora Rainha, tu és a mais linda de todo o país. Então ela ficava satisfeita, porque sabia que o espelho dizia sempre a verdade. Mas, à medida que Branca de Neve crescia, ia ficando cada vez mais bonita e, quando tinha sete anos, já era tão bela quanto o dia e mais bonita do que a própria rainha. Um dia, quando a rainha perguntou ao espelho: - Espelho, espelho, vem já e me diz, quem é a mais linda de todo o país? O espelho respondeu:


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- Senhora Rainha, tu és a mais linda que está aqui, mas Branca de Neve é mil vezes mais linda que todas as lindas que há por aí. A rainha engoliu em seco, ficou amarela e verde de inveja. Cada vez que ela olhava para Branca de Neve, depois disso, tinha tanto ódio dela que seu sangue até fervia no peito. A inveja e o orgulho cresceram como ervas daninhas dentro do coração da rainha até que ela não conseguia ter um momento de sossego, nem de noite nem de dia. Finalmente, mandou chamar um caçador e disse: - Suma com essa menina da minha frente. Quero que você a leve para o fundo da floresta e a mate. Para provar que você fez mesmo isso, traga-me os pulmões e o fígado dela. O caçador obedeceu. Levou a menina para a floresta, mas, quando puxou seu facão de caça e se preparava para atravessar o coração inocente de Branca de Neve, ela começou a chorar e disse: - Por favor, querido caçador, deixe-me viver. Eu fujo para o fundo do mato e nunca mais volto para casa...


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Ela era tão bonita que o caçador ficou com pena e disse: - Está bem, menina, pobre coitada. Fuja! Mas, para si mesmo, pensou: “Num instante os animais selvagens vão devorá-la.” Porém, como nesse caso não era ele mesmo quem ia matar a criança, isso já tirava um peso enorme de cima dele. Logo depois, um filhote de javali saiu correndo do mato. O caçador meteu a faca nele, tirou os pulmões e o fígado e os levou para a rainha, como prova de que tinha cumprido sua missão. A malvada mandou o cozinheiro salgar e assar esses miúdos e comeu tudo, certa de que estava comendo os pulmões e o fígado de Branca de Neve. Enquanto isso, a pobre menina estava sozinha no meio da grande floresta. Apavorada, ela se assustava com todas as folhas das árvores e não sabia para onde ir. Começou a correr. Correu, correu, por cima de pedras afiadas e pelo meio de moitas de espinhos e os animais ferozes passavam por ela sem fazer mal nenhum. Correu enquanto as pernas agüentaram até que, finalmente, pouco antes de anoitecer, avistou uma casinha e entrou nela para descansar. Lá dentro tudo era pequenininho, mas limpo de fazer gosto. A mesa estava posta com uma toalha branca e sete pratinhos, cada um com sua faca, seu garfo, sua colher e sete canequinhas.


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Do outro lado, junto à parede, havia sete caminhas enfileiradas, cobertas por lençóis brancos imaculados. Branca de Neve estava morrendo de fome e sede, mas não queria comer a comida toda de ninguém, por isso comeu um pouquinho de pão e de legumes de cada prato e bebeu um gole de vinho de cada caneca. Depois estava tão cansada que resolveu se deitar em uma das camas, mas nenhuma servia exatamente para ela - algumas eram compridas demais, outras eram curtas demais, até que a sétima era do tamanho perfeito. Resolveu ficar por ali, rezou suas orações e caiu no sono. Quando já estava bem escuro, chegaram os donos da casa. Eram sete anões que, todos os dias, iam para as montanhas minerar prata, com suas pás e picaretas. Acenderam suas sete velinhas e, quando tudo ficou iluminado, eles perceberam que alguém tinha estado por ali, porque algumas coisas estavam fora do lugar. - Quem sentou na minha cadeira? - disse o primeiro - Quem comeu no meu prato? - disse o segundo - Quem deu uma dentada no meu pão? - disse o terceiro - Quem andou beliscando os meus legumes? - disse o quarto - Quem usou o meu garfo? - disse o quinto


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- Quem cortou com minha faca? - disse o sexto - Quem bebeu na minha caneca? - disse o sétimo Depois, o primeiro olhou em volta e viu que a cama dele estava amassada, como se tivesse uma coisa cavada no meio e perguntou: - Quem deitou na minha cama? Os outros vieram correndo e gritaram: - Alguém deitou na minha cama também! Mas quando o sétimo olhou para a cama dele, viu que Branca de Neve ainda estava deitada lá, dormindo. Chamou os outros, que chegaram num instante. Começaram a gritar muito espantados, foram buscar as velas e as levantaram bem alto por cima de Branca de Neve: - Deus do céu! - gritaram - Deus do céu! Que menina tão linda! Ficaram tão maravilhados com ela que nem a acordaram, mas deixaram que ela continuasse dormindo na caminha. O sétimo


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anão dormiu com seus companheiros, uma hora com cada um e depois a noite já tinha acabado. Na manhã seguinte, Branca de Neve acordou e, quando viu os sete anões, levou um susto. Mas eles foram muito simpáticos, com um jeito amigo e perguntaram: - Qual é o seu nome? - Meu nome é Branca de Neve - respondeu ela. - Como é que você veio parar na nossa casa? - os anões quiseram saber. Então ela contou a eles tudo o que tinha acontecido, como a madrasta queria matá-la, como o caçador poupou a vida dela, como ela tinha caminhado o dia todo até que, finalmente, encontrou a casinha deles. Os anões disseram: - Se você tomar conta de nossa casa, cozinhar para nós, fizer as camas, lavar, costurar e cerzir as nossas roupas e deixar tudo bem limpinho e arrumado sempre, pode ficar morando conosco e nunca vai lhe faltar nada. - Que bom! - disse Branca de Neve - Eu ia adorar... E foi assim que ela ficou tomando conta da casa. Todas as manhãs eles saíam para a montanha, para garimpar ouro e prata


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e, todas as noites, voltavam para casa e ela tinha que ter feito o jantar. Mas ela passava o dia todo sozinha e os bondosos anões acharam bom avisar: - Muito cuidado com sua madrasta. Ela vai descobrir logo que você está aqui. Não deixe ninguém entrar nunca. Pois bem, a rainha que pensava ter comido os pulmões e o fígado de Branca de Neve, agora tinha certeza de que era a mais bonita do lugar. Foi até diante do espelho e perguntou: - Espelho, espelho, vem já e me diz, quem é a mais linda de todo o país? E o espelho respondeu: - Senhora Rainha, tu és a mais linda que está aqui, mas Branca de Neve, que já foi-se embora com os sete anões, na montanha onde mora, é mil vezes mais linda que todas as lindas que há por aí. A rainha engoliu em seco. Como ela sabia que o espelho não mentia nunca, compreendeu que o caçador a enganara e que


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Branca de Neve ainda estava viva. Ficou então pensando sem parar, imaginando que jeito podia dar para matar a menina, porque ela tinha que ser a mulher mais linda do mundo... Se não, a inveja não ia deixá-la em paz. Afinal, acabou fazendo um plano. Sujou o rosto todo e se vestiu como se fosse uma velha vendedora ambulante, para que ninguém pudesse reconhecê-la. Com esse disfarce, atravessou as sete montanhas até a casa dos sete anões, bateu na porta e anunciou: - Belas coisas para vender! Quem quer comprar? Bonito e barato! Branca de Neve olhou pela janela e perguntou: - Bom dia, minha boa velha, que é que a senhora tem para vender? - Corpetes lindos, de todas as cores - respondeu ela. E estendeu um corpete brilhante, tecido em seda colorida. “Esta senhora tem um ar tão honesto,” pensou Branca de Neve, “não pode fazer mal se eu deixar que ela entre...” Por isso, abriu a porta e comprou o belo corpete. - Minha filha, você está toda mal-ajambrada! - disse a velha Venha cá, deixe que eu dê o laço direito...


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Sem desconfiar de nada, Branca de Neve se aproximou dela e deixou que a velha a vestisse e amarrasse o corpete novo. Mas ela teve um gesto tão rápido e apertou tanto o cadarço do colete, que Branca de Neve ficou sem fôlego e caiu como se tivesse morrido. - Muito bem, - disse a rainha - agora você não é mais a mais linda do mundo. E foi embora correndo. Um pouco mais tarde, quando caiu a noite, os sete anões voltaram para casa. Ficaram horrorizados ao ver sua adorada Branca de Neve caída no chão! Ela estava tão imóvel que eles pensaram que ela estivesse morta. Levantaramna com cuidado e, quando viram que a roupa estava apertada demais, cortaram o corpete. Com isso, ela respirou um pouquinho e, bem devagar, foi voltando à vida. Quando os anões ouviram o que tinha acontecido, disseram: - É claro que essa velha vendedora era a rainha malvada e mais ninguém. Você tem que ser mais cuidadosa e não pode deixar ninguém entrar em casa.


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Quando a malvada chegou em casa, foi direto para a frente do espelho perguntar: - Espelho, espelho, vem já e me diz, quem é a mais linda de todo o país? E o espelho respondeu, como sempre: - Senhora Rainha, tu és a mais linda que está aqui, mas Branca de Neve, que já foi-se embora com os sete anões, na montanha onde mora, é mil vezes mais linda que todas as lindas que há por aí. Quando ouviu isso, a rainha sentiu um aperto tão grande no peito que parecia que o sangue ia ferver, pois compreendeu que Branca de Neve ainda estava viva. - Mas não faz mal... - disse - Desta vez vou pensar em alguma coisa que vai mesmo destruir você de uma vez por todas... Com a ajuda de uns encantamentos mágicos que conhecia, fez um pente envenenado. Depois se disfarçou de novo, como


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se fosse outra velhinha. E, mais uma vez, atravessou as sete montanhas até a casa dos sete anões, bateu na porta e disse: - Belas coisas para vender! Quem quer comprar? Bonito e barato! Branca de Neve olhou pela janela e disse: - Vá embora! Não posso deixar ninguém entrar. - Mas você pode olhar, não pode? - perguntou a velha, mostrando o pente. A menina gostou tanto dele que esqueceu de tudo e abriu a porta. Combinaram o preço e aí a velha disse: - Agora eu vou pentear você direitinho. Sem desconfiar de nada, Branca de Neve ficou bem quieta, deixando que a velha a penteasse, mas, assim que o pente tocou seu cabelo, o veneno fez efeito e ela caiu desmaiada, como se estivesse morta. - Aí está, minha beleza, - disse a malvada - agora vai ser o seu fim.


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E foi-se embora. Mas, felizmente, a noite já vinha caindo e logo os anões chegaram em casa. Quando viram Branca de Neve caída no chão como se estivesse morta, imediatamente desconfiaram da madrasta. Examinaram Branca de Neve com cuidado e encontraram o pente envenenado. Assim que o arrancaram dos cabelos dela, a menina despertou e contou como tudo tinha acontecido. Mais uma vez, eles avisaram que ela precisava ter cuidado e não devia abrir a porta para ninguém. Quando a rainha chegou ao castelo, foi direto para o espelho e perguntou: - Espelho, espelho, vem já e me diz, quem é a mais linda de todo o país? O espelho respondeu do mesmo jeito que antes: - Senhora Rainha, tu és a mais linda que está aqui, mas Branca de Neve, que já foi-se embora com os sete anões, na montanha onde mora, é mil vezes mais linda que todas as lindas que há por aí. Quando ouviu o espelho dizer isso, ela tremeu e se sacudiu de raiva, gritando:


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- Branca de Neve tem que morrer! Mesmo que isto custe a minha própria vida. Então ela foi até um quarto secreto e isolado onde ninguém entrava, nem se sabia que existia e fez uma maçã muito venenosa. Tinha um aspecto tão bonito por fora, branca com faces vermelhas, que qualquer pessoa que a visse ia querer comer. Mas qualquer um que comesse um pedacinho ia morrer. Quando a maçã ficou pronta, ela sujou bem o rosto e se disfarçou de camponesa. E, mais uma vez, atravessou as sete montanhas até a casa dos sete anões. Bateu na porta e Branca de Neve pôs a cabeça para fora da janela. - Não posso deixar ninguém entrar. Os anões não querem. - Não faz mal - disse a camponesa - eu só quero me livrar dessas maçãs. Tome. Eu lhe dou uma de presente. - Não posso - disse Branca de Neve - não posso aceitar nada. - Você está com medo de que esteja envenenada? - perguntou a velha - Bobagem... Veja, vou cortar a maçã pelo meio. Você fica com a banda vermelha e eu fico com a banda branca. Mas a maçã tinha sido tão bem feita que só a banda vermelha é que tinha veneno. Branca de Neve estava morrendo de vontade de comer a maçã e, quando viu a camponesa dando


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uma dentada na fruta, não conseguiu resistir. Estendeu a mão e pegou a metade envenenada. Assim que deu uma mordida, caiu morta no chão. A rainha deu um olhar cruel, uma gargalhada terrível e disse: - Branca como a neve, vermelha como o sangue, negra como o ébano... Desta vez os anões não vão conseguir reviver você... E, quando chegou ao castelo, perguntou ao espelho: - Espelho, espelho, vem já e me diz, quem é a mais linda de todo o país? E o espelho finalmente respondeu: - Senhora Rainha, tu és a mais linda de todo o país. Então seu coração invejoso ficou sossegado - se é que um coração invejoso pode ficar sossegado. Quando os anões voltaram para casa ao cair da noite, encontraram Branca de Neve caída no chão. Não saía nem um pouco de hálito de sua boca e ela estava morta realmente. Eles a levantaram, procuraram bem para ver se encontravam


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alguma coisa venenosa, afrouxaram as roupas dela, despentearam o cabelo, lavaram a menina com água e vinho, mas não adiantou nada - sua bem-amada estava morta e morta ficou. Puseramna numa maca, sentaram-se todos em volta, choraram e se lamentaram durante três dias. Depois iam enterrá-la. Mas ela ainda tinha aspecto fresco e cheio de vida e continuava com suas lindas bochechas vermelhas. - Não podemos botar essa menina na terra escura - disseram. Então fizeram um caixão transparente, de vidro, de modo que ela pudesse ser vista de todos os lados. Deitaram Branca de Neve no caixão e escreveram o nome dela em letras de ouro, acrescentando que ela era filha de um rei. Depois puseram o caixão no alto de uma colina e um deles sempre ficava ao lado, montando guarda. E os pássaros foram chegando e também choraram por Branca de Neve; primeiro uma coruja, depois um corvo e depois uma pomba. Branca de Neve ficou no caixão por muitos e muitos anos. Ela não se decompunha e parecia dormir, continuando sempre branca como a neve, vermelha como o sangue e negra como o ébano. Até que um dia um príncipe veio por aquela floresta e parou para passar a noite junto à casa dos sete anões. Viu o


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caixão no alto da colina, viu a linda Branca de Neve dentro dele, leu as letras de ouro no caixão. Então, disse aos anões: - Eu quero esse caixão, por favor. Pagarei por ele o quanto vocês pedirem. Mas os anões responderam: - Não nos separaríamos dele nem por todo o dinheiro do mundo. - Então, por favor, me dêem o caixão, - insistiu ele - porque não vou poder continuar vivendo se não puder ficar olhando Branca de Neve. Vou honrá-la e respeitá-la para sempre. Aí os anões ficaram com pena e resolveram dar o caixão a ele. Quando os criados do príncipe o levantaram e foram carregá-lo nos ombros, um deles tropeçou numa raiz. Com o tropeção, o pedaço envenenado da maçã que ela havia comido se soltou da garganta, Branca de Neve desengasgou, abriu os olhos, levantou a tampa do caixão, sentou e voltou à vida. - Onde é que eu estou? - perguntou. - Está comigo! - respondeu o príncipe, todo alegre.


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Então ele contou o que tinha acontecido e disse: - Eu amo você mais do que qualquer outra coisa no mundo. Venha comigo até o castelo de meu pai e vamos nos casar. Branca de Neve também se apaixonou pelo príncipe e foi com ele. Começaram logo os preparativos para uma festa maravilhosa de casamento. A madrasta malvada de Branca de Neve também foi convidada. Depois de se arrumar toda, com suas roupas mais bonitas, foi para a frente do espelho perguntar: - Espelho, espelho, vem já e me diz, quem é a mais linda de todo o país? O espelho respondeu: - Senhora rainha, tu és a mais linda que está aqui, mas a jovem rainha é mil vezes mais linda que todas as lindas que há por aí. Ouvindo isso, a malvada xingou e amaldiçoou. Ficou tão horrorizada que não sabia o que fazer. Primeiro não queria ir ao casamento, mas não podia resistir à curiosidade de ver a jovem


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rainha. No momento em que entrou no salão, reconheceu Branca de Neve e ficou tão apavorada que nem conseguiu se mexer. Mas já tinham mandado botar dois sapatinhos de ferro na brasa. Alguém os tirou de lá com umas tenazes e os pôs diante dela, que foi obrigada a calçar os sapatinhos em brasa e dançar até cair morta.


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Os três cabelos de ouro do diabo

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á muitos e muitos anos, numa casinha pobre, nasceu um menino bonito e forte, mas que, ao contrário de todas as outras crianças, nasceu com todos os dentes na boca. Os pais, assim que o viram, ficaram muito assusta-os, pensando se tratar de alguma bruxaria. As vizinhas, entretanto, os tranqüilizaram, dizendo que nascer com dentes era sinal de boa sorte. E uma delas, que era considerada feiticeira, profetizou que o menino, ao com­pletar quinze anos, se casaria com a filha do imperador do país. Um dia, quando o menino ainda era bem pequeno, o imperador passou casualmente pela vila e ouviu contar a história da


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criança, que era chamada de o “Filho da Sorte.” In­dignado com a possibilidade de ver sua filha casada com um tipo qualquer, pobre e de ori­gem humilde, o imperador resolveu dar um jeito de impedir que a profecia se cumprisse. Dizendo-se um rico comerciante, apresen­tou-se na casa onde vivia o Filho da Sorte. Tomou a criança nos braços e, fingindose en­cantado com sua beleza, disse aos pais que era muito rico e não tinha ninguém a quem deixar sua herança. Por isso, gostaria muito de poder levar o bebê e criá-lo como se fosse seu filho. O casal, a princípio, não aceitou a proposta, mas o imperador foi tão hábil e convincente que os fez acreditar que daria ao menino uma vida muito melhor do que ele teria naquela casa pobre. Assim, o perverso imperador levou con­sigo o pequeno Filho da Sorte e, logo que se viu sozinho, fora da cidade, colocou-o numa caixa e atirou-a ao rio, na certeza de que ela afundaria, matando a criança. Mas o menino parecia merecer mesmo o nome de Filho da Sorte, pois a caixa, em vez de afundar, saiu flutuando rio abaixo, indo parar no açude de um moinho. Um velho moleiro que ali trabalhava, pensando ter encontrado um tesouro, foi cor­rendo tirar a caixa da água. Quando a abriu, ficou comovido por ver uma criança tão linda e esperta


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abandonada para morrer. Como não tinha filhos, levou o bebê para casa. A mulher do moleiro ficou muito feliz, e o Filho da Sorte cresceu ali, rodeado pelo carinho dos pais adotivos. O tempo passou e, um dia, alguns meses depois que o menino havia completado quinze anos, o imperador e sua comitiva viajavam pela região quando caiu uma tempestade muito forte. Como não havia nada por perto a não ser o moinho, o imperador foi obrigado a pedir abrigo na casa do velho moleiro. O casal de velhos o recebeu muito bem. Para que o tempo passasse mais depressa, ficaram conversando com o imperador. Não demorou para que a beleza e a vivacidade do Filho da Sorte chamassem a atenção do mo­narca, que perguntou ao moleiro se o menino era seu filho. A mulher, inocentemente, res­pondeulhe que não, e acabou contando a his­tória de como haviam encontrado a criança. Quando ela terminou de falar, os olhos do imperador estavam vermelhos de ódio, pois ele logo se deu conta de quem era o rapaz. Furioso por ele ainda estar vivo, começou imediatamente a pensar num jeito de liqui­dar o moço de uma vez. Como estava no meio de uma grande via­gem e demoraria muitos meses para voltar ao palácio, o imperador ficou com


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medo de que a profecia se concretizasse durante sua au­sência. Assim, resolveu agir rapidamente e, dando algumas moedas aos velhos, pediu-lhes que deixassem o rapaz levar uma mensagem à rainha, na capital do reino. Em seguida, mandasse à sua mulher ordenando que ela mandasse executar imediatamente o rapaz que lhe entregasse aquela carta. No dia seguinte, bem cedinho, lá se foi o Filho da Sorte na direção da capital do reino, sem saber que levava nas mãos sua própria lentença de morte. Andou o dia inteiro, sem descanso, pois queria chegar logo ao palácio. No entanto, como nunca havia deixado a vila em que mo­rava, o rapaz se desviou do caminho certo e acabou se perdendo no meio da floresta. Quando já estava anoitecendo, o Filho da Sorte viu, numa clareira, uma cabana, onde resolveu pedir ajuda. Bateu à porta e uma velhinha muito bondosa veio atender. Á mulher o acolheu com simpatia e, depois de ouvir sua história, deu-lhe de comer e de be­ber, mas avisou-lhe que seria melhor ele não dormir ali, pois aquela cabana servia de es­conderijo a perigosos ladrões, que certamen­te o matariam quando o encontrassem. O rapaz, entretanto, não teve medo e in­sistiu tanto que a boa


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senhora arranjou-lhe um canto da cabana onde pudesse dormir aquela noite. De madrugada, quando o Filho da Sorte dormia a sono solto, chegaram os ladrões. A velha, temendo pela vida de seu hóspede, avi­sou aos malfeitores que havia alguém na ca­bana, mas que se tratava apenas do filho de um moleiro que estava a caminho da capital para levar uma carta do imperador à mulher. O chefe dos bandidos ficou muito curioso para saber o conteúdo da carta e a abriu para ler. Ao ver a maldade que estava fazendo com o pobre rapaz, ficou indignado e resol­veu pregar uma peça no malvado soberano. Imitando a letra do imperador, escreveu uma nova mensagem à rainha, ordenando que ela casasse imediatamente a princesa com o portador daquela carta. Em seguida, quei­mou a carta verdadeira e colocou a outra em seu lugar. Na manhã seguinte, o Filho da Sorte, sem saber de nada, partiu. Orientado pelo pró­prio chefe dos ladrões, encontrou facilmente o caminho certo para a capital e horas de­pois se apresentava no palácio. A rainha, ao ler a mensagem que julgava ser de seu marido, preparou tudo para o casamento, que se realizou naquela mesma tarde, na capela do palácio.


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Meses depois o imperador voltou de sua viagem e, vendo sua filha casada com o filho do moleiro, ficou furioso com a mulher, lista, sem entender por que o marido estava tão bravo, mostroulhe a carta que havia re­cebido. Como não havia mais remédio para a situação, o imperador decidiu não punir nem a mulher nem o genro, para a felicidade da princesa, que gostava muito do marido. Por outro lado, era impossível aceitar que a princesa vivesse casada com um tipo qual­quer, sem eira nem beira, como aquele; por isso o imperador chamou o genro e lhe disse: - Para eu consentir que você e minha filha continuem vivendo juntos, é preciso que você se torne digno de ser um príncipe rea­lizando alguma façanha. Por isso, eu lhe dou uma tarefa para cumprir: quero que vá até o inferno e traga de lá três cabelos de ouro do Diabo. Se conseguir realizar esse feito, quando voltar eu o farei príncipe. O Filho da Sorte, esperto e valente como era, partiu sem demora rumo ao inferno. Caminhou durante muitos dias, até che­gar à porta de uma grande cidade, onde uma sentinela lhe perguntou que problemas ele sabia resolver.


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- Todos! - respondeu o rapaz. - Todos?! - disse o guarda. - Então faça-me o favor de dizer por que a fonte do nosso mercado, que antes jorrava um vinho delicioso, agora está tão seca que não solta nem uma gota de água! - Não posso responder agora - ele res­pondeu -, mas, se me deixar passar, eu lhe trarei a resposta na volta. A sentinela, confiando na palavra do rapaz, abriu as portas da cidade para que ele passasse. O Filho da Sorte seguiu seu caminho e alguns dias depois chegou à porta de uma outra cidade, onde havia outra sentinela que também lhe perguntou que problemas ele sa­bia resolver. - Todos! - respondeu ele mais uma vez. - Ah, é? - disse a sentinela. - Então me responda por que é que a árvore grande dos jardins do nosso rei, que antes dava fru­tos de ouro, agora está tão seca que não tem nem uma folha mais! - Nao posso responder agora - disse o moço -, mas, se me deixar passar, eu lhe trarei a resposta na volta! O guarda também acreditou em sua pa­lavra e o deixou seguir.


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Alguns dias depois, o filho do moleiro che­gou a um grande rio que precisava atraves­sar para chegar ao inferno. Só havia ali um barqueiro que, ao vê-lo, perguntou a mesma coisa que as duas sentinelas. Quando ouviu o rapaz dizer que sabia resolver todos os pro­blemas, o barqueiro, interessado, disse-lhe: - Meu jovem, se você sabe mesmo de tudo, então me explique logo por que eu pre­ciso ficar a vida inteira sendo barqueiro, atra­vessando gente de um lado para outro do rio, sem nunca encontrar uma alma boa que ve­nha me substituir neste trabalho! - Não sei explicar o motivo - disse o Filho da Sorte -, mas, se me levar à outra margem, prometo que na volta eu trarei a resposta à sua pergunta! O barqueiro também acreditou na pala­vra do Filho da Sorte e o levou para o outro lado do rio. Bem perto dali ficava a porta do inferno. O rapaz bateu bem forte e esperou ser aten­dido. Algum tempo depois, apareceu à porta a avó do Diabo, dizendo que seu neto não estava. Como ela parecia ser uma boa pes­soa, o moço contou-lhe sua história, e a velha, condoendo-se da sua situação, resolveu ajudá-lo. - Mas se o meu neto o encontrar aqui - disse ela -, vai ficar tão


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furioso que vai que­rer matá-lo no mesmo instante e comê-lo as­ sado no jantar. Por isso preciso escondê-lo. Assim, a velha transformou o Filho da Sorte numa formiguinha e o escondeu numa das dobras de sua saia. Minutos depois, chegava em casa o Dia­bo, e já vinha faminto, pois havia sentido cheiro de carne humana, seu prato predileto. Farejou por todos os cantos do inferno, mas, como nada encontrasse, a velha lhe disse: - Você anda com mania de sentir cheiro de gente! Venha comer que eu matei um franguinho novo especialmente para. o seu jantar! O Diabo comeu até fartar-se e, depois, como era seu costume, deitou-se no colo da avó para que ela lhe fizesse cafuné. Dali a pouco, dormia profundamente e a velhinha aproveitou-se disso para arrancar o primeiro fio de ouro de sua cabeça. - Ai! - gritou Satanás. - Que é que você está fazendo, minha avozinha? - Nada - respondeu a velha. - É que tive um sonho mau e acordei agarrada em seus cabelos!


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- E qual foi o sonho que teve? - pergun­tou o Diabo. - Sonhei que a fonte do mercado de uma cidade, que antigamente só jorrava vi­nho, agora anda tão seca que não solta nem uma gota de água. Satanás deu uma gostosa gargalhada e depois respondeu: - É verdade! É verdade! É que existe uma pedra tampando o nascedouro da fonte! Se a tirarem, a fonte voltará imediatamente a jorrar vinho. A avó do Diabo voltou a fazer cafuné na cabeça do neto e logo depois ele dormia tão pesado que roncava. Quando estava num sono ferrado, a velha aproveitou para arran­car o segundo fio de cabelo. - Ai! Ai! Ai! - fez ele de novo. - O que é que aconteceu agora? - Eu sonhei outra vez! - disse a avó - desta vez foi com uma outra cidade onde havia, no jardim do rei, uma árvore que dava frutos de ouro e que agora está cada dia mais seca! O Diabo riu gostosamente e respondeu:


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- Isto também é verdade, minha avó! E sabe por que a árvore secou? Porque em­baixo dela há um rato que diariamente rói suas raízes. Se matarem o rato, a árvore fi­cará verde outra vez. Se o deixarem lá, ela ficará cada dia mais seca, até morrer! Depois de dizer isso, Satanás ajeitou de novo a cabeça no colo da avó e, logo, emba­lado pelo cafuné, dormia outra vez. A velhi­nha aproveitou então para arrancar o tercei­ro fio e ele, acordando por causa da dor, gri­tou furioso: - Ai, minha avó! Seus sonhos vão aca­bar me deixando careca! O que foi desta vez? - Sonhei com um barqueiro - disse a avó - que se queixava de ficar eternamente passando gente de uma margem para outra do rio sem nunca encontrar alguém que o substituísse nesse trabalho sem fim! - Ah! - respondeu o Diabo, dando outra gargalhada. - Esse barqueiro é um bobo! Se ele quiser sair de lá, é preciso apenas que abandone os remos na mão da primeira pes­soa que aparecer pedindo para passar à outra margem do rio! A pessoa não terá outro re­médio senão tomar o lugar do barqueiro!


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Como já estava de posse dos três fios de cabelo, e já havia obtido as respostas para as três perguntas, a velhinha finalmente dei­ xou Satanás dormir sossegado. Logo de manhã, dizendo ao neto que ia buscar água, a avó do Diabo saiu do inferno e retirou a formiguinha da dobra da saia, restituindo ao Filho da Sorte a forma huma­na. De posse das três respostas, o rapaz pe­gou os três fios de cabelo de ouro e, depois de agradecer muito à -velhinha, iniciou o ca­minho de volta. Logo chegava outra vez à margem do grande rio e o barqueiro, ansioso, perguntou pela sua resposta. - Primeiro você precisa me levar ao outro lado - respondeu o rapaz. E, assim que o barqueiro o atravessou, o moço ensinou-lhe como deveria fazer para escapar da sina de ser barqueiro eternamen­te. Muito feliz, o homem agradeceu a ajuda e o Filho da Sorte seguiu seu caminho. Depois de alguns dias, chegava ao portão da cidade onde existia a árvore que dava fru­tos de ouro. Ensinou à sentinela o que se de­via fazer para recuperar a árvore, e o ho­mem, agradecido, deu-lhe como recompensa dois jumentos carregados de ouro e pedras preciosas.


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Mais à frente, passou outra vez pelo por­tão da cidade cuja fonte de vinho havia se­cado. A sentinela logo indagou da resposta e o moço ensinou-lhe o que fazer, conforme havia ouvido da boca de Satanás. Muito feliz, o guarda deu-lhe mais dois jumentos carre­gados de ouro e lá se foi o Filho da Sorte, rumo ao reino de seu sogro. Chegou ao palácio muito satisfeito, pois, além de haver cumprido a façanha exigida, estava agora muito rico. A princesa, sua esposa, o recebeu com muita alegria e o imperador, depois de ter em mãos os três cabelos de ouro e ver a ri­queza que o genro trazia, permitiu que ele vivesse com sua filha e o tornou príncipe. Tudo ia muito bem no palácio, mas o im­perador era muito ambicioso e morria de curiosidade para descobrir como e onde o genro havia conseguido tantas riquezas. Um dia, não resistindo mais, acabou per­guntando, e o Filho da Sorte lhe respondeu: - Foi muito fácil, meu sogro! No cami­nho para o inferno há um grande rio onde está sempre um barqueiro que atravessa todas as pessoas. É só pedir para ele atravessá-lo e colher, na margem de lá, todo o ouro que pu­der carregar, pois o ouro ali é a areia do chão!


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- E eu posso ir até lá pegar ouro para mim também? - perguntou o imperador. - Claro, meu sogro! - respondeu o ra­paz. - É só falar com o barqueiro! O ganancioso imperador saiu logo na ma-nhã seguinte, ansioso por encontrar o lugar onde havia tanta riqueza. Viajou por vários dias e, de fato, acabou encontrando o barqueiro. Este, que aguardava ansiosamente o aparecimento de alguém, assim que o impe­rador lhe pediu que o atravessasse, entregou-lhe com satisfação os remos e disse: – Atravesse você mesmo, ora! Movido pela ambição, o imperador acei­tou a tarefa e saiu remando, enquanto o bar-queiro, feliz da vida, saía por esse mundo afora, livre outra vez. E dizem que até hoje o imperador está lá, Cumprindo a eterna tarefa de atravessar gen­te de um lado para outro do rio. Quanto ao Filho da Sorte, viveu feliz por muitos e muitos anos, junto com a princesa, sua amada esposa.


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ra uma vez dois irmãos, um rico e outro pobre. O rico era ourives, e malvado até não poder mais. O pobre ganhava a vida fabricando vassouras, e era bom e honesto. O pobre tinha dois filhos, dois gêmeos iguaizinhos como duas gotas d’água. De vez em quando, eles iam até à casa do rico e, às vezes, ganhavam umas sobras de comida. Um dia, o fabricante de vassouras foi até o bosque apanhar uns gravetos de bétula e viu um pássaro todo dourado, mais bonito do que qualquer outra ave que ele jamais tivesse visto. Pegou uma pedra, jogou nele, e atingiu o pássaro, mas de raspão. Uma pena caiu no chão e o animal voou e foi embora. O homem pegou a pena e a levou até o irmão, que olhou para ela e disse:


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- Mas é ouro puro! E deu muito dinheiro por ela. No dia seguinte, o fabricante de vassouras subiu numa bétula, para arrancar alguns galhos. De repente, viu o mesmo pássaro sair voando da árvore. Olhou em volta e acabou encontrando um ninho com um ovo dentro, um ovo de ouro. Ele pegou o ovo, levou para casa e o mostrou ao irmão, que mais uma vez disse: - É ouro puro! E deu a ele tudo o que o ovo valia. Finalmente, o ourives disse: - Gostaria de ter esse pássaro. Pela terceira vez, o fabricante de vassouras foi até o bosque. Novamente, viu o pássaro dourado, desta vez pousado num galho, e jogou uma pedra nele, que caiu. Levou o pássaro para o irmão, que lhe deu um dinheirão. Agora vou poder dar um jeito em minha vida - pensou o fabricante de vassouras. E foi para casa. Acontece que o ourives era esperto e sabia uma porção de coisas. Sabia que tipo de pássaro era aquele. Chamou a mulher e disse:


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- Quero que você asse este pássaro com todo cuidado e não deixe se perder nem um pedacinho dele. Quero comer ele todo, sozinho. Fique sabendo que esse pássaro não era como os outros. Tinha uma coisa maravilhosa: quem comesse o coração e o fígado dele passaria a achar, todas as manhãs, uma moeda de ouro debaixo do travesseiro. A mulher limpou o pássaro e o pôs num espeto para assar. Enquanto ele estava assando, ela teve que sair da cozinha por causa de algum outro trabalho, e bem nessa hora os filhos do fabricante de vassouras entraram correndo. Pararam do lado do fogo, rodaram o espeto algumas vezes e, quando dois pedacinhos pequenos caíram na panela, um dos dois meninos disse: - Vamos comer esses pedacinhos? Estou com tanta fome E ninguém vai reparar. E puseram os dois pedacinhos na boca. Quando a mulher voltou, viu que eles tinham comido alguma coisa e perguntou: O que é que vocês andaram comendo?


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- Uns pedacinhos que caíram dessa ave - disseram eles. - Eram o coração e o fígado! - gritou a mulher, aflita. Como ela não queria que o marido desse falta e ficasse zangado, rapidamente matou um frango, tirou o coração e o fígado e os pôs dentro do pássaro dourado. Quando a ave ficou pronta, ela a serviu ao ourives, que comeu tudo sozinho. Mas na manhã seguinte, quando ele pôs a mão debaixo do travesseiro, esperando encontrar uma moeda de ouro, não havia nada diferente de todos os outros dias. Os dois meninos nem desconfiavam de sua boa fortuna. Quando se levantaram no dia seguinte, alguma coisa caiu no chão, tilitando. Quando olharam, viram que eram duas moedas de ouro. Mostraram ao pai, que ficou muito espantado: - Que será isso? - perguntou. Mas, no dia seguinte, quando acharam mais duas, e mais duas na outra manhã, e assim por diante, ele resolveu ir procurar o irmão e contar aquele caso estranho. Imediatamente, o ourives descobriu que as crianças tinham comido o fígado e o coração do pássaro dourado. Mas ele era um homem invejoso e sem piedade e, para se vingar, disse ao pai dos meninos:


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- Seus filhos fizeram um pacto com o diabo. Não fique com esse ouro, nem deixe que ele fique guardado em sua casa, porque o diabo já se apossou de seus filhos e, se você deixar, vai acabar destruindo você também. O pai tinha muito medo do diabo. Por mais que odiasse fazer uma coisa dessas, levou os gêmeos para a floresta e lá, com o coração apertado, largou os dois. As crianças andaram e andaram, procurando o caminho de casa, mas não conseguiram achar. Quanto mais andavam, mais se perdiam. Finalmente, encontraram um caçador, que perguntou: - Quem são vocês? De onde vocês vêm? - Somos os filhos do pobre fabricante de vassouras - responderam. E contaram a ele que o pai não podia mais ficar com eles em casa, porque todas as manhãs apareciam duas moedas de ouro debaixo dos travesseiros deles. - Não há nada de mal nisso - disse o caçador - desde que vocês continuem sendo bons e honestos e não comecem a ficar preguiçosos.


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O bom homem gostou das crianças. Como não tinha filhos, resolveu tomar conta dos meninos e disse: - Eu vou ser pai de vocês e criá-los. E fez isso mesmo: criou os dois e os ensinou a caçar. Eles continuaram a achar moedas de ouro todas as manhãs, mas o caçador as guardava com cuidado, para o caso de algum dia eles precisarem. Um dia, quando eles já tinham crescido e estavam uns homens feitos, o pai de criação os levou à floresta e disse: - Hoje eu vou testar a perícia de vocês como atiradores. Se passarem no teste, deixarão de ser aprendizes e eu vou declarálos mestres-caçadores. Foram todos para o esconderijo de caça e ficaram um tempão à espera, de tocaia, mas não apareceu nenhum animal. Depois, o caçador viu que vinha no céu um bando de gansos selvagens, voando numa formação em triângulo, e disse a um dos rapazes: - Abata um em cada ponta. O rapaz acertou e passou no teste.


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Daí a pouco, outro bando veio chegando, desta vez voando na forma do número dois. O caçador disse ao outro irmão que acertasse um ganso em cada canto, e ele também passou no teste. Diante disso, o pai de criação exclamou: - Muito bem! Vocês agora são mestres-caçadores. Então os dois irmãos foram juntos para a floresta, pensaram, conversaram muito e combinaram um plano. De noite, disseram ao pai de criação: - Resolvemos que não vamos tocar em um único bocado da comida enquanto o senhor não nos fizer um favor. - E qual é esse favor? - perguntou ele. - Já aprendemos bem nosso ofício - replicaram. - Agora devemos nos por à prova, nós mesmos. Queremos sair para correr mundo. O velho ficou feliz e respondeu:


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- Vocês falam como caçadores de verdade. Era isso mesmo o que eu esperava. Podem ir. Tenho certeza de que vão se dar muito bem. E então eles comeram e beberam juntos, muito alegres. Quando chegou o dia em que tinham resolvido partir, o pai de criação deu a cada um uma boa arma e um cachorro, e disse que eles levassem consigo todas as moedas de ouro que quisessem, daquelas que estavam guardadas. Seguiu com eles por uma parte do caminho e, na despedida, deu aos dois uma faca com a lâmina muito brilhante. - Se algum dia vocês se separarem - recomendou -, enfiem esta faca numa árvore na encruzilhada. Dessa maneira, se um de vocês voltar, vai poder saber como está passando o irmão ausente, porque o lado da lâmina que estiver na direção em que ele foi vai enferrujar se ele morrer. Mas, enquanto ele estiver vivo, continuará brilhante. Os dois irmãos continuaram, indo cada vez mais para longe, e chegaram a uma floresta tão grande que não foi possível atravessá-la em um único dia. Pararam para passar a noite e comeram o que tinham em suas sacolas de caça. Depois,


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caminharam o outro dia inteiro, mas ainda não conseguiram chegar ao fim da floresta. Não tinham mais nada para comer e um dos irmãos disse: - Vamos ter que abater alguma caça ou ficar com fome. Carregou a arma e olhou em volta. Quando uma velha lebre apareceu, ele fez pontaria, mas a lebre gritou: - Bom caçador, deixe eu viver, dou dois pequenos para você. Saiu correndo para dentro de uma moita e voltou com dois filhotes de lebre. As lebrinhas brincavam tão alegres e eram tão engraçadinhas que os caçadores não tiveram coragem de matálas. Então, resolveram poupá-las e elas começaram a segui-los. Daí a pouco, apareceu uma raposa. Eles iam atirar, mas a raposa gritou: - Bom caçador, deixe eu viver, dou dois pequenos para você. É claro que, em seguida, trouxe duas raposinhas. De novo, os


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caçadores não tiveram coragem de matá-las e disseram que elas podiam fazer companhia às lebres. Não tinha se passado muito tempo e um lobo saiu do mato. Os caçadores apontaram a arma, mas o lobo gritou: - Bom caçador, deixe eu viver, dou dois pequenos para você. Os caçadores puseram os dois filhotes de lobo com os outros bichos e todos foram andando atrás deles. Depois apareceu um urso, que queria continuar a viver e gritou: - Bom caçador, deixe eu viver, dou dois pequenos para você. Os dois ursinhos foram levados para junto dos outros animais, e agora já eram oito. E quem veio no fim de todos? Apareceu um leão, sacudindo a juba. Mas não assustou os caçadores. Eles fizeram pontaria e, bem como os outros tinham feito, o leão disse: - Bom caçador, deixe eu viver, dou dois pequenos para você. Também trouxe os dois filhotes dele e agora os caçadores tinham


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dois leões, dois ursos, dois lobos, duas raposas e duas lebres que iam atrás deles e os serviam. Só que isso não matava a fome. Então eles disseram às raposas: - Todo mundo sabe que vocês são espertas e sabidas. Pois então, tratem de nos arranjar comida. Elas responderam: - Perto daqui tem uma aldeia onde já nos servimos de galinhas, uma ou duas vezes. Vamos mostrar o caminho a vocês. Assim, eles foram até a aldeia, compraram alguma coisa para comer, deram comida também aos animais e continuaram a viagem. As raposas conheciam bem a região, porque já tinham andado vigiando todos os galinheiros por ali. Por isso, sempre sabiam mostrar o caminho aos caçadores. Andaram a esmo durante algum tempo, mas os caçadores não conseguiram encontrar nenhum emprego que permitisse que todos ficassem juntos. No fim, disseram:


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- Não tem jeito. Vamos ter que nos separar. Dividiram os animais, de modo que cada um ficou com um leão, um urso, um lobo, uma raposa e uma lebre. Depois, se despediram, prometeram se amar como bons irmãos até a morte, e enfiaram numa árvore a faca que o pai de criação tinha dado a eles. Depois, um foi para leste, outro foi para oeste. Seguido por seus animais, um dos irmãos chegou a uma cidade que estava cheia de faixas de crepe preto dependuradas por toda parte. Foi até uma estalagem e perguntou onde podia deixar os animais. O estalajadeiro os botou num celeiro que tinha um buraco na parede. A lebre se esgueirou pelo buraco e acabou conseguindo um repolho. A raposa pegou uma galinha e, depois de comer, acabou pegando também um galo. O lobo, o urso e o leão eram grandes demais para passar pelo buraco, por isso o estalajadeiro teve que leválos até um lugar onde havia uma vaca deitada no pasto, e eles comeram até se fartar. Finalmente, quando todos os animais já estavam alimentados e abrigados, o caçador perguntou ao estalajadeiro porque toda a cidade estava de luto. O estalajadeiro respondeu:


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- Porque a filha única do nosso rei vai ter que morrer amanhã. - Ela está tão doente assim? - perguntou o caçador. - Não - disse o estalajadeiro. - Ela tem ótima saúde, mas, de qualquer jeito, vai morrer. - Como pode ser uma coisa dessas? - quis saber o caçador. - Não muito longe da cidade, existe uma montanha. Nessa montanha vive um dragão e todos os anos ele precisa ter uma donzela imaculada. Se não, ele devasta todo o país. Todas as donzelas já foram dadas ao dragão, agora só resta a filha do rei. Por isso, filha do rei ou não, ela não pode ser poupada. Amanhã, ela vai ser entregue ao dragão. - Mas por que ninguém mata esse dragão? - perguntou o caçador. - É uma história muito triste - disse o estalajadeiro. - Muitos cavaleiros já tentaram, mas todos perderam a vida. O rei prometeu a mão de sua filha em casamento para quem matar o dragão e, além disso, o reino todo de herança quando o velho rei morrer. O caçador não disse mais nada. Porém, no dia seguinte, saiu com os animais e escalou a montanha do dragão. Lá no alto, havia uma igreja e no altar havia três taças, cheias até a borda, e ao lado havia uma inscrição que dizia:


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“Quem esvaziar estas taças será o homem mais forte da terra e poderá brandir a espada que está enterrada do lado de fora da porta.” O caçador não bebeu. Saiu e achou a espada enterrada, mas não conseguiu arredá-la do lugar. Voltou e esvaziou as taças. Aí ficou bem forte, conseguiu tirar a espada do chão e manejá-la à vontade. Quando chegou a hora de entregar a donzela ao dragão, vieram com ela o rei, o marechal e toda a corte. De longe, ela avistou o caçador na montanha do dragão e achou que era o dragão esperando por ela. Não queria subir, mas isso ia ser a desgraça de toda a cidade. Finalmente, ela acabou se conformando e começando sua amarga subida. Chorando, o rei e os cortesãos voltaram para casa, mas o marechal ficou, pois tinha instruções de acompanhar tudo à distância. No momento em que a filha do rei alcançou o alto da montanha, viu que quem estava lá esperando por ela não era o dragão, mas o jovem caçador, que a consolou e prometeu salvá-la. Para começar, ele a levou para a igreja e a trancou lá dentro. Daí a pouco, o dragão de sete cabeças arremeteu com um poderoso rugido. Quando viu o caçador, ficou surpreso e perguntou:


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- O que é que você está fazendo na minha colina? O caçador respondeu: - Vim para combater você. O dragão disse: - Alguns cavaleiros já morreram aqui em cima, e num instante eu vou dar cabo de você também. Dizendo isso, cuspiu chamas pelas suas setes goelas. A idéia dele era incendiar o capim seco por ali, de modo que o caçador morresse sufocado no calor e na fumaça, mas os animais vieram correndo e pisotearam o fogo até apagar. Em seguida, o dragão atacou, mas o caçador brandiu a espada com tanta agilidade e rapidez que ela cantou no ar e cortou três cabeças do monstro. Aí o dragão ficou zangado de verdade. Levantou-se no ar, lançando chamas ferozes, e se abateu sobre o caçador bem no instante em que ele brandiu outra vez a espada e cortou mais três cabeças. O dragão caiu no chão. Mas, apesar de toda a fraqueza que sentia, atacou de novo. Reunindo suas últimas forças, o caçador conseguiu cortar fora a cauda do monstro, mas depois disso não podia lutar mais. Então, chamou os animais, que fizeram o dragão em pedaços. Depois que a batalha terminou, o caçador abriu a porta da igreja. A filha do rei jazia no chão, porque tinha desmaiado de


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medo durante a luta. Ele a levou para fora e, quando ela voltou a si e abriu os olhos, ele mostrou a ela os pedaços do dragão e lhe disse que estava salva. Ela ficou muito feliz e disse: - Então você vai ser meu marido muito querido, porque meu pai prometeu minha mão ao homem que matasse o dragão. Para recompensar os animais, ela tirou do pescoço o colar de coral e o dividiu entre eles. O leão ficou com o fecho de ouro. Ao caçador, ela deu um lenço, com o nome dela bordado. O caçador cortou as sete línguas do dragão, enrolou-as no lenço e as guardou com cuidado. Depois disso, como ele estava exausto do incêndio e da luta, disse à filha do rei: - Nós dois estamos caindo de cansaço. Vamos dormir um pouco. Ela concordou, eles se deitaram no chão e o caçador disse ao leão: - Fique de guarda. Não deixe ninguém nos atacar enquanto estivermos dormindo.


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E os dois adormeceram. O leão deitou ao lado deles para montar guarda, mas, como também estava muito cansado da luta, chamou o urso e disse: - Deite ao meu lado. Preciso dormir um pouco. Se acontecer alguma coisa, me acorde. O urso deitou ao lado dele, mas também estava muito cansado. Por isso, chamou o lobo e disse: - Deite ao meu lado. Preciso dormir um pouco. Se acontecer alguma coisa, me acorde. O lobo deitou ao lado dele, mas também estava muito cansado. Por isso, chamou a raposa e disse: - Deite ao meu lado. Preciso dormir um pouco. Se acontecer alguma coisa, me acorde. A raposa deitou ao lado dele, mas também estava muito cansada. Por isso, chamou a lebre e disse:


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- Deite ao meu lado. Preciso dormir um pouco. Se acontecer alguma coisa, me acorde. A lebre se sentou ao lado dela, mas, coitadinha, também estava muito cansada e não tinha ninguém para quem pudesse passar adiante a guarda. Mas, mesmo assim, acabou dormindo também. E foi assim que, em pouco tempo, o caçador, a filha do rei, o leão, o urso, o lobo, a raposa e a lebre, todos estavam dormindo a sono solto. Quando o marechal, que fora instruído para acompanhar tudo à distância, não viu o dragão sair voando com a filha do rei e achou que tudo estava tranqüilo na montanha, tomou coragem e foi até lá. Então viu o dragão estraçalhado e, ali por perto, a filha do rei e um caçador com todos os seus animais, todos dormindo profundamente. Como ele era um homem mau e ímpio, tirou a espada, cortou fora a cabeça do caçador, pegou a filha do rei no colo e desceu a montanha com ela. Quando chegaram lá embaixo, ela acordou sobressaltada e o marechal disse: - Você está em meu poder. Tem que dizer que fui eu quem matou o dragão.


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- Não posso dizer uma coisa dessas - respondeu ela. - Foi um caçador com seus animais. Ouvindo isso, ele puxou a espada e ameaçou matá-la se ela não prometesse confirmar a história dele. Depois, a levou até o rei, que achava que o dragão tinha despedaçado sua filha adorada e não coube em si de alegria ao vê-la viva. O marechal disse: - Matei o dragão, salvei sua filha e todo o reino. Agora ela tem que casar comigo, como o senhor prometeu. O rei perguntou à filha: - É verdade? - É - disse ela deve ser... Mas o casamento não pode ser celebrado antes de um ano e um dia. Sabe, ela achava que durante esse tempo devia ter alguma notícia de seu amado caçador. Na montanha do dragão, os animais ainda estavam dormindo


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ao lado do corpo do seu dono morto. Aí veio uma abelha e pousou no focinho da lebre, mas a lebre a espantou com a pata e continuou dormindo. Ela veio outra vez, e mais uma vez a lebre a espantou e continuou a dormir. Mas quando a abelha veio pela terceira vez e picou o focinho da lebre, ela acordou. E no instante que a lebre acordou, acordou a raposa, e a raposa acordou o lobo, e o lobo acordou o urso, e o urso acordou o leão. E quando o leão acordou e viu que a filha do rei tinha sumido e seu dono estava morto, deu um rugido que parecia um trovão e perguntou: - Quem fez isto? Urso, por que você não me acordou? O urso perguntou ao lobo: - Por que você não me acordou? O lobo perguntou à raposa: - Por que você não me acordou? A raposa perguntou à lebre: - Por que você não me acordou? E como a coitadinha da lebre não podia jogar a culpa em cima de ninguém, ficou sendo a única culpada. Iam todos avançar em cima dela, mas ela pediu: - Não me matem. Eu posso devolver a vida ao nosso dono. Sei de uma montanha onde cresce uma raiz e, se a gente puser essa raiz


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na boca de um ferido, ele fica inteiramente curado de qualquer doença ou ferimento. Mas essa montanha fica a duzentas horas daqui. O leão disse: - Você tem vinte e quatro horas para ir e voltar com essa tal raiz. A lebre saiu à toda, feito uma flecha, e em vinte e quatro horas estava de volta com a raiz. O leão pôs a cabeça do caçador no lugar, a lebre pôs a raiz na boca do morto e no mesmo instante as partes se costuraram e ficaram juntas outra vez, o coração começou a bater e a vida voltou. Quando o caçador acordou, ficou tristíssimo de ver que a donzela tinha ido embora. - Na certa ela quis se livrar de mim - disse ele. - Aproveitou que eu estava dormindo e foi embora. O leão tinha estado com tanta pressa na hora de consertar o dono, que pôs a cabeça dele ao contrário, de trás para frente. Mas o caçador estava tão ocupado com seus pensamentos tristes sobre a filha do rei, que nem reparou. Lá pelo meio-dia, quando


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ele foi comer, notou que a cabeça estava de frente para a direção errada. Ficou muito intrigado com isso e perguntou aos animais o que é que tinha acontecido enquanto ele estava dormindo. Então o leão contou a ele que todos estavam tão cansados que acabaram dormindo e que, quando acordaram, descobriram que ele estava morto, com a cabeça cortada, e que a lebre tinha ido buscar a raiz da vida e que ele, leão, tinha colado a cabeça na posição errada porque estava com pressa demais, mas agora ia corrigir o erro. Assim, ele arrancou a cabeça do caçador outra vez, virou-a direito, e a lebre colou e tratou da ferida com a raiz. A partir desse dia, o caçador, sempre muito triste, passou a andar de um lado para o outro com seus animais, fazendo-os dançar para as pessoas. Quando tinha passado exatamente um ano, ele chegou à mesma cidade onde tinha salvo do dragão a filha do rei. Desta vez, o lugar estava todo enfeitado com faixas vermelhas. - Que quer dizer isso? - perguntou ao estalajadeiro - Há um ano, a cidade estava toda pendurada com faixas de luto. Agora, está toda de vermelho. Por quê? O estalajadeiro replicou:


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- Há um ano, a filha de nosso rei ia ser entregue ao dragão, mas nosso marechal lutou com o dragão e o matou, e amanhã eles se casam. Por isso é que a cidade estava de preto, de luto, e agora está de vermelho, de alegria. Ao meio-dia do dia do casamento, o caçador disse ao estalajadeiro: - O senhor acredita que eu vou comer pão da mesa do rei, bem aqui na sua casa, antes que o dia termine? O estalajadeiro respondeu: - Aposto cem moedas de ouro como não vai. O caçador topou a aposta e pôs em cima da mesa uma bolsa que tinha exatamente as cem moedas de ouro. Depois, chamou a lebre e disse: - Minha querida Pé-Leve, traga-me um pouco do pão que o rei come.


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A lebre era o menor dos animais, não podia passar a ordem adiante para nenhum outro, e disse para si mesma: - Se eu for correndo pelas ruas sozinha, todos os cachorros carniceiros vão sair me perseguindo. E foi isso mesmo: os cachorros foram correndo atrás dela, com evidentes intenções de encher sua pele de buracos. Mas ela deu um pulo assim - você não viu? - e se meteu dentro da guarita do sentinela. O soldado nem viu que ela estava lá. Os cachorros chegaram e tentaram tirá-la dali, mas o soldado não gostou nada daquilo e saiu atrás deles batendo com a coronha da espingarda até que eles fugiram uivando e latindo. Quando a lebre viu que o caminho estava livre, correu para dentro do palácio, foi direto aonde estava a filha do rei, sentou debaixo da cadeira e começou a coçar o pé dela. A moça achou que era seu cachorro e disse: - Passa fora! A lebre coçou o pé dela mais uma vez e de novo ela disse: - Passa fora! Mas a lebre não desanimou. Quando coçou o pé da filha do rei pela terceira vez, a moça olhou para baixo e a reconheceu pelo


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coral no pescoço. Pegou o bichinho no colo, levou-o até seu quarto e disse: - Minha lebre querida, que é que eu posso fazer por você? Ela respondeu: Meu dono, que matou o dragão, está aqui. Mandou que eu lhe pedisse um pão, dos que o rei come. Quando ouviu isso, a moça ficou contentíssima. Chamou o padeiro e mandou que ele lhe trouxesse um pão, dos que o rei comia. - Mas - disse a lebre - o padeiro precisa também entregar o pão, em meu lugar. Se não, os cachorros carniceiros acabam comigo. O padeiro levou o pão até a porta da estalagem. Lá chegando, a lebre ficou de pé em suas patas traseiras, pegou o pão nas patas da frente e o levou ao seu dono. Então o caçador disse ao estalajadeiro: - Como vê, as cem moedas de ouro são minhas. O estalajadeiro ficou muito espantado, mas o caçador continuou: - Sim, senhor!


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Tenho pão, mas agora quero um pouco da carne que o rei come. O estalajadeiro disse: - Eis uma coisa que eu queria ver... Mas dessa vez não propôs nenhuma aposta. O caçador chamou a raposa e disse: - Raposinha, traga-me um pouco da carne assada que o rei come. A raposa sabia todos os truques, esgueirou-se ao longo de muros, passou por buracos de cercas, os cachorros nem a viram. Quando chegou ao palácio, sentou-se embaixo da cadeira da filha do rei e coçou o pé dela. A moça olhou, reconheceu a raposa por causa do coral no pescoço, e disse: - Minha raposa querida, que é que eu posso fazer por você? Ela respondeu: - Meu dono, que matou o dragão, está aqui. Mandou que eu lhe pedisse um pouco da carne assada que o rei come. Então a moça mandou chamar o cozinheiro e disse que ele preparasse um assado como o rei comia e o levasse até a porta da estalagem. Depois, a raposa pegou a bandeja, abanou bem a cauda para espantar as moscas que vinham atrás do assado, e o levou até seu dono.


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Aí, o caçador disse ao estalajadeiro: - Como vê, senhor, tenho o pão e tenho a carne, mas agora quero a guarnição do prato, bem como o rei come. Chamou o lobo e disse: - Caro lobo, traga-me um pouco da guarnição que acompanha esse assado que o rei come. O lobo foi direto ao palácio, porque não tinha medo de ninguém. Quando chegou junto da filha do rei, deu um puxão no vestido dela, pelas costas. Ela teve que se virar e olhar para ele, e logo o reconheceu, por causa do coral no pescoço. Levou-o até seu quarto e perguntou: - Meu lobo querido, que é que eu posso fazer por você? O lobo respondeu: - Meu dono, que matou o dragão, está aqui. Mandou que eu lhe pedisse um pouco da guarnição que acompanha o assado, bem como o rei come.


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Então a moça mandou chamar o cozinheiro, que teve que preparar a guarnição, bem como o rei comia, e levar até a porta da estalagem, onde o lobo tirou a travessa da mão dele e a levou a seu dono. Aí, o caçador disse ao estalajadeiro: - Como vê, agora eu tenho pão, carne e acompanhamento, mas também quero uma sobremesa, das que o rei come. Chamou o urso e disse: - Caro urso, você gosta de doces. Tragame um pouco da sobremesa que o rei come. O urso saiu trotando para o palácio e todo mundo saía da frente dele. Mas quando chegou ao portão, os sentinelas o ameaçaram com seus mosquetes e não queriam deixar que ele passasse. Ele ficou de pé nas patas traseiras e bateu nas orelhas deles com as patas, para a direita e para a esquerda, e todos os sentinelas caíram. Então ele foi direto para onde estava a filha do rei, ficou bem atrás dela e deu uma rosnadinha suave. Ela olhou para trás, reconheceu o urso, pediu-lhe que a seguisse até seu quarto e disse:


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- Meu urso querido, que é que eu posso fazer por você? Ele respondeu: - Meu dono, que matou o dragão, está aqui. Mandou que eu lhe pedisse um pouco da sobremesa que o rei come. Ela mandou chamar o confeiteiro e ordenou que ele preparasse uns doces como o rei comia de sobremesa e levasse até a porta. Primeiro, o urso lambeu umas ameixas açucaradas que enfeitavam os doces e tinham rolado de cima deles, depois se levantou nas patas de trás, pegou a travessa e a levou até o dono. O caçador então disse ao estalajadeiro: - Como vê, agora tenho pão, carne, acompanhamentos e sobremesa, mas ainda quero um pouco de vinho que o rei toma. Chamou o leão e disse: - Caro leão, você gosta de beber de vez em quando. Traga-me então um pouco de vinho, do que o rei toma.


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O leão saiu passando pela rua e as pessoas correram para tudo quanto era lado. Quando chegou ao palácio, os guardas tentaram lhe barrar a entrada, mas ele deu um rugido e eles saíram correndo. Aí ele foi até os aposentos reais e bateu na porta com o rabo. A filha do rei abriu e levou um susto quando viu o leão, mas logo o reconheceu pelo fecho de ouro de seu colar de coral. Pediu que ele fosse com ela até o quarto e perguntou: - Meu leão querido, que é que eu posso fazer por você? Ele respondeu: - Meu dono, que matou o dragão, está aqui. Mandou que eu lhe pedisse um pouco do vinho que o rei toma. Então ela mandou chamar o encarregado da adega e lhe ordenou que desse ao leão um pouco do vinho que o rei tomava. Mas o leão disse: - É melhor eu ir junto, para ter a certeza de que ele está pegando o vinho certo.


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Foi com o encarregado até a adega e, quando chegaram lá, o funcionário queria pegar um pouco de vinho comum, do que os criados tomavam, mas o leão disse: - Espere aí! Vou provar esse vinho. O encarregado deu meio litro ao leão e ele bebeu tudo de um gole. Depois disse: - Não. Este não é o vinho certo. O encarregado da adega olhou para ele espantado e foi então até outro barril, que tinha o vinho reservado para o marechal do rei. O leão disse: - Primeiro, vou provar esse vinho. Tirou meio litro, bebeu e disse: - Este é melhor, mas ainda não é o vinho certo. Isso deixou o encarregado da adega furioso. Tão furioso que disse: - Como é que um animal estúpido desses pode querer entender alguma coisa de vinho! O leão deu uma patada tão forte atrás da orelha dele, que ele caiu sentado no chão, fazendo um barulhão. Quando se levantou, não


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disse nada, mas levou o leão até uma pequena adega separada, onde se guardava o vinho especial do rei, que ninguém jamais tocava. O leão tirou meio litro e provou. Depois, disse: - Ah, este sim pode ser o vinho certo. Então, disse ao encarregado da adega que enchesse meia dúzia de garrafas, e depois subiram novamente as escadas. Quando chegaram lá fora, o leão estava ligeiramente alegre, e balançava de um lado para outro. O encarregado da adega teve que carregar o vinho até a porta, onde o leão segurou a alça da cesta nos dentes e levou o vinho até seu dono. O caçador disse então ao estalajadeiro: - Como vê, agora tenho pão, carne, acompanhamentos, sobremesa e vinho, como o rei, e agora vou jantar com meus animais. Sentou-se, comeu e bebeu, dividindo a comida e a bebida com a lebre, a raposa, o lobo, o urso e o leão. Estava feliz, porque via que a filha do rei ainda o amava. Quando acabou a refeição, disse para o estalajadeiro: - Como vê, senhor, comi e bebi como o rei come e bebe. Agora,


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vou até o palácio do rei casar com a filha dele. O estalajadeiro se espantou: - Como é que pode? Ela está noiva, vai se casar hoje mesmo. O caçador tirou do bolso o lenço que a filha do rei tinha dado a ele lá na montanha do dragão, e as sete línguas do monstro ainda estavam embrulhadas nele. - Vou conseguir isso - disse ele - com a ajuda do que tenho aqui na mão. O estalajadeiro olhou para o lenço e duvidou: - Estou disposto a acreditar em qualquer coisa, menos nisso. Aposto a minha estalagem. O caçador tirou da cintura uma bolsinha com mil moedas de ouro, colocou-a sobre a mesa e disse: - Aposto isto aqui contra a sua estalagem. Enquanto isso, o rei e sua filha estavam sentados à mesa real. - O que é que todos aqueles animais que ficaram entrando e saindo do palácio queriam com você? - perguntou ele.


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Ela respondeu: - Estou proibida de dizer, mas o senhor faria muito bem se mandasse buscar o dono desses animais. O rei mandou um criado ir até a estalagem convidar o estranho para vir até o palácio. O criado chegou assim que o caçador tinha acabado de fazer sua aposta com o estalajadeiro. O caçador disse ao estalajadeiro: - Como vê, o rei mandou seu criado me buscar, mas eu não vou assim. E respondeu ao criado: - Por gentileza, peça ao rei que me mande trajes reais e uma carruagem com seis cavalos e criados que me sirvam. Quando o rei ouviu a resposta, perguntou à filha: - Que é que eu faço agora? - O senhor faria bem se mandasse buscá-lo, como ele diz respondeu.


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Então o rei mandou os trajes reais, a carruagem com seis cavalos e criados para servilo. Quando o caçador os viu chegar, disse ao estalajadeiro: - Como vê, mandaram me buscar, como eu pedi. Vestiu os trajes reais, apanhou o lenço com as línguas do dragão e foi para o palácio. Quando o rei o viu chegar, perguntou à filha: - Como devo recebê-lo? - O senhor faria bem se andasse ao seu encontro - respondeu ela. O rei se adiantou, foi ao encontro do caçador e o convidou a entrar. Os animais foram atrás. O rei mandou que ele se sentasse a seu lado, perto de sua filha. Do outro lado estava sentado o marechal, porque era o noivo, mas não reconheceu o caçador. Então trouxeram as sete cabeças do dragão para mostrar a todos, e o rei disse:


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- O marechal cortou estas sete cabeças do dragão. Portanto, estou dando a ele a mão de minha filha em casamento. Ouvindo isso, o caçador se levantou, abriu as sete bocas e perguntou: - O que aconteceu com as sete línguas do dragão? O marechal ficou pálido de susto e não conseguia pensar em nenhuma resposta para dar. Finalmente, aterrorizado, acabou dizendo: - Dragões não têm línguas. O caçador disse: - Seria muito melhor se quem não tivesse língua fossem os mentirosos. As línguas de um dragão são a presa do matador do dragão. Abriu o lenço e lá estavam, as sete. Aí ele pôs cada uma das línguas na boca em que ela se encaixava, e todas se ajustaram perfeitamente. Depois, ele pegou o lenço que tinha o nome da filha do rei bordado, mostrou a ela e lhe perguntou a quem ela o tinha dado.


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Ela respondeu: - Ao homem que matou o dragão. Em seguida, ele chamou os animais, pegou os cordões de coral e o fecho de ouro do leão, mostrou tudo à filha do rei e lhe perguntou a quem pertenciam. Ela respondeu: - O colar e o fecho de ouro eram meus. Eu os dividi entre os animais que ajudaram a matar o dragão. - Quando eu estava exausto e me deitei para descansar depois do combate, o marechal veio e cortou minha cabeça enquanto eu dormia. Depois, carregou a filha do rei e disse que quem tinha matado o dragão era ele: Isso é mentira, como eu já provei, com as línguas, o lenço e o colar. Em seguida, contou sua história. Contou como os animais o tinham salvo com uma raiz milagrosa, como ele tinha andado a esmo durante um ano até voltar à mesma cidade e como, então, tinha ficado sabendo pelo estalajadeiro que o marechal estava enganando todo mundo. O rei então perguntou à filha: - É verdade que quem matou o dragão foi este jovem?


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- É, sim - respondeu ela. - Agora posso falar sobre o crime do marechal, pois todos ficaram sabendo sem que eu dissesse nada. Ele me tinha feito prometer guardar segredo. Por isso é que eu insisti para que o casamento não se celebrasse antes de um ano e um dia. O rei mandou reunir seus doze conselheiros e lhes pediu que julgassem o marechal. A sentença o condenou a ser esquartejado por quatro bois. Dessa forma, o marechal foi executado e o rei deu a mão da filha ao caçador, que também foi nomeado regente de todo o reino. O casamento foi celebrado com muitos festejos e o jovem rei mandou chamar o pai verdadeiro e o pai adotivo e os cobriu de presentes. Também não se esqueceu do estalajadeiro, mas mandou buscá-lo e disse: - Como vê, senhor, casei-me com a filha do rei. Agora, sua estalagem é minha. - De direito, é mesmo - concordou o estalajadeiro. Mas o jovem rei disse:


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- A misericórdia é mais importante que o direito. Pode ficar com sua estalagem. E também vou lhe dar as mil moedas de ouro, de presente. Aí tudo ficou bem com o jovem rei e a jovem rainha, que viveram felizes juntos. Ele ia sempre caçar, porque gostava muito, e seus fiéis animais sempre iam com ele. Ora, acontece que havia uma floresta, não muito distante do palácio, que tinha fama de ser encantada. O que se contava é que quem entrava lá custava muito a sair. Mas o jovem rei queria muito ir caçar lá, e não deixou o velho rei em paz enquanto não obteve a permissão para ir. E então, partiu, com um grande séquito. Quando chegou à floresta, viu uma corça branca e disse a seus homens: - Fiquem aqui até que eu volte. Vou caçar aquela bela corça. Entrou na floresta e apenas seus animais o seguiram. Os homens esperaram até cair a noite. Como ele não voltava, eles foram para casa e disseram à jovem rainha:


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- O jovem rei foi perseguir uma corça branca na floresta encantada e não voltou mais. Quando ela ouviu isso, ficou muito preocupada. Enquanto isso, ele perseguia a corça branca, mas não conseguia alcançá-la. Ela parecia estar ao alcance de um tiro às vezes, mas quando ele fazia pontaria e ia atirar, de repente a via dando saltos mais adiante, cada vez mais distante, até que acabou por desaparecer por completo. Vendo que estava na floresta profunda, muito longe, ele pegou sua trompa de caça e tocou. Mas não houve resposta, pois seus homens não o ouviram. Quando caiu a noite, ele compreendeu que não ia poder voltar naquele dia. Então, apeou do cavalo, acendeu uma fogueira debaixo de uma árvore e se preparou para passar a noite. Quando estava sentado com os animais à beira do fogo, achou que ouviu de repente uma voz humana. Procurou, mas não conseguiu ver nada. Depois, ouviu um gemido que parecia vir do alto. Olhou e viu uma velha sentada na árvore:


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- Ai, ai! - chorava ela. - Estou com tanto frio! - Pois desça e venha se esquentar - chamou ele. - Não - disse ela. - Seus animais iam me morder. - Não se preocupe, vovó - disse ele. - Eles são mansos, não vão lhe fazer nada, pode descer. Mas a velha era uma bruxa e disse: - Vou quebrar uma varinha e jogar aí embaixo. Bata nas costas deles, que assim não me machucam. Ela jogou a varinha e ele bateu nos animais que, num instante, ficaram imóveis, transformados em pedra. Sem os animais para atrapalhar, ela num instante pulou lá de cima e tocou também o caçador com a varinha. No mesmo momento, ele virou pedra. Aí, dando uma gargalhada horrível, ela o arrastou, e aos animais, para um barranco onde já havia uma porção daquelas pedras. Quando o jovem rei não voltou, a preocupação e o medo da jovem rainha foram ficando cada vez maiores. Ora, acontece que, nessa mesma ocasião, o outro irmão, que tinha ido para o leste quando se separaram, estava chegando a esse reino. Depois de procurar emprego sem encontrar, resolveu ir de vila


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em vila com os animais, que dançavam para distrair as pessoas. Depois de algum tempo, ele se lembrou da faca que eles tinham enfiado no tronco da árvore quando se separaram, e resolveu ir até lá para saber como estava o irmão. Quando chegou lá, viu que o lado da lâmina que correspondia ao irmão estava metade enferrujado e metade brilhante. Isso é mau - pensou -, algo deve ter acontecido a meu irmão, mas talvez eu ainda possa salvá-lo, porque metade da lâmina está brilhante. Saiu caminhando para oeste com os animais e, quando chegou aos portões da cidade, um sentinela veio lhe perguntar se queria que mandasse anunciar sua chegada para a jovem rainha, sua esposa, porque ela estava muito preocupada, com medo de que ele tivesse morrido na floresta encantada. É que o jovem rei e o irmão eram tão parecidos que o sentinela os confundiu, ainda mais porque o irmão também tinha aquele bando de animais selvagens que o seguiam. Ele entendeu o erro do sentinela e pensou: é melhor eu fazer de conta que sou ele, assim fica mais fácil salvá-lo.


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Por isso, deixou que o sentinela o levasse ao palácio, onde foi recebido com muita alegria. Sua jovem esposa também achou que era o marido dela e perguntou porque ele tinha demorado tanto. - Eu me perdi na floresta e não consegui achar o caminho respondeu ele. De noite, ele foi levado ao leito real, mas colocou uma espada de dois gumes entre ele e a jovem rainha. Ela não sabia porque, mas ficou com medo de perguntar. E assim se passaram alguns dias, em que ele tentou descobrir tudo o que podia sobre a floresta encantada. Depois disse: - Vou lá caçar novamente. O rei e a jovem rainha tentaram dissuadi-lo, mas ele insistiu e partiu com um grande séquito. Quando chegou à floresta, aconteceu com ele a mesma coisa que tinha acontecido ao irmão. Viu uma corça branca e disse a seus homens:


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- Fiquem aqui até eu voltar. Vou caçar essa bela corça branca. Cavalgou para dentro da floresta, seguido pelos animais. Mas não conseguiu alcançar a corça e acabou se embrenhando tão profundamente na mata que teve que passar a noite lá. Depois que acendeu a fogueira, ouviu alguém gemendo no alto: - Ai, ai! Estou com tanto frio! Ele olhou para cima, viu a bruxa na árvore e disse: - Pois desça e venha se esquentar! - Não - disse ela. - Seus animais iam me morder. Ele então respondeu: - Não se preocupe, vovó. Eles são mansos, não vão lhe fazer nada, pode descer. Então ela disse: - Vou quebrar uma varinha e jogar aí embaixo. Bata nas costas deles, que assim não me machucam. Quando ouviu isso, o caçador desconfiou da velha: - Não vou bater nos meus animais. Desça logo ou eu subo aí e pego você - disse ele. - Não me faça rir - respondeu a velha. - Você não pode me fazer nada.


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- Se você não descer, eu lhe dou um tiro. - Pois pode dar desafiou ela. - Não tenho medo nenhum das suas balas. Ele mirou e atirou, mas a bruxa era à prova de balas. Ficou dando gargalhadas e gritando: - Você não vai conseguir me acertar! Mas o caçador era muito esperto. Arrancou três botões de prata do paletó e carregou a arma com eles, porque contra a prata não havia poder mágico. No momento em que ele puxou o gatilho, ela despencou aos berros. Ele pôs o pé em cima dela e disse: - Sua bruxa velha, se você não me disser imediatamente onde está o meu irmão, eu lhe pego com as duas mãos e jogo você no fogo, já, já! Ela ficou com tanto medo que pediu clemência e disse: - Ele e os animais estão caídos naquele barranco, viraram pedra. Ele fez a velha levá-lo até o lugar e a ameaçou: - Sua macaca velha! Devolve a vida imediatamente a meu irmão e a todas as criaturas que estão aí, ou então vai para o fogo!


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Ela pegou uma varinha e tocou as pedras. O irmão e os animais voltaram à vida. E muitos outros homens também, mercadores, artesãos, pastores. Todos se levantaram, agradeceram ao caçador por libertá-los e foram para casa. Os gêmeos se abraçaram e se beijaram, contentíssimos por se encontrarem novamente. Agarraram e amarraram a bruxa e a jogaram na fogueira. Quando ela acabou de queimar, a floresta se abriu sozinha e deu para ver o palácio real à distância, a mais ou menos quatro ou cinco milhas dali. Os dois irmãos voltaram juntos e, pelo caminho, foram contando o que tinha acontecido com cada um. Quando o mais jovem disse que era regente de todo o país, o outro disse: - Eu descobri, porque, quando eu cheguei ao palácio e me confundiram com você, me deram honras reais. A jovem rainha achou que eu era o marido dela, e tive que sentar ao lado dela na mesa e dormir na sua cama. Quando o jovem rei ouviu isso, ficou tão zangado e com tanto ciúme que puxou a espada e cortou fora a cabeça do irmão. Mas quando viu que ele estava caído, morto, e viu o sangue vermelho escorrendo, ficou transtornado de tristeza.


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- Meu irmão me salvou - gritava -, e foi assim que eu agradeci! Chorou e se lamentou, mas depois sua lebre se aproximou e se ofereceu para ir buscar um pouco da raiz da vida. Saiu a toda velocidade e chegou de volta em tempo. Deu para ressuscitar o irmão morto, e ele nem percebeu a cicatriz. Depois, continuaram andando e o irmão mais moço disse: - Você se parece comigo, está usando roupas reais, como eu, e os animais seguem você como me seguem. Vamos entrar por dois portões opostos e aparecer ao mesmo tempo diante do velho rei, vindo de direções diversas. Assim, eles se separaram e depois, dois sentinelas, um de cada portão, chegaram ao mesmo momento junto do velho rei para anunciar que o jovem rei e seus animais estavam voltando da caçada. O velho rei disse: - Impossível. Os dois portões ficam longe um do outro, é uma caminhada de uma hora. Mas nesse instante os dois irmãos entraram no pátio, vindos de duas direções opostas, e ambos subiram as escadas ao mesmo tempo. O rei disse à filha:


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- Diga-me qual dos dois é seu marido. São tão iguais que não sei. Ela não conseguia descobrir e estava muito espantada, mas depois se lembrou do colar que tinha dado aos animais. Olhou bem para eles e descobriu o fecho de ouro em um dos leões. - O meu marido é aquele que este leão seguir - disse, toda contente. O jovem rei riu e disse: - É, está certo. Sentaram-se juntos à mesa, comeram, beberam e se divertiram. Nessa noite, quando o jovem rei foi para a cama, a esposa perguntou: - Por que foi que você botou uma espada de dois fios na cama nestas últimas noites? Pensei que você ia me matar... Aí ele ficou sabendo como seu irmão lhe tinha sido fiel.




Este livro foi composto na tipologia Minion Pro e Trajan Pro, em corpo entre 8 e 20, e impresso em papel off-white 80g/m².




E

sta edição de “Os Contos dos Irmãos Grimm” é uma coletânea que conta com

alguns dos contos dos autores, como: João e Maria, Rapunzel, Chapéuzinho Vermelho, Branca de Neve, Os Três Cabelos de Ouro do Diabo e Os Dois Irmãos.


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