Asas Presas Assis Coelho
CAPÍTULO I Lá estava Iângu, na janela de sua casa, olhando para a do vizinho. Na verdade, ele não olhava para a casa, mas para uma pequena gaiola com um passarinho, que ficava dependurada na parede da casa defronte à sua. Todo dia, aquela cena se repetia, como também os chamados da mãe: - Iângu, vem escovar os dentes, vem tomar café, vem se arrumar pro colégio, vem almoçar... 3
Muitas vezes, era necessário a mãe puxá-lo pelo braço para que ele deixasse a janela. A contragosto, o menino a seguia, resmungando quase sempre as mesmas palavras: - Por que prendem os passarinhos? Pra que eles têm asas? A senhora não acha que é covardia prender um bichinho tão frágil? Só queria ver se o dono dele gostaria de ficar preso em uma gaiola. Por que a senhora, que é grande, não faz nada? E se fosse o contrário? Se os passarinhos fossem seres grandes e tivessem o poder e a maldade de nos prender? Só queria ver se eles gostariam de não poder usar suas pernas, e ficar sem saída num espaço tão pequeno... só 4
queria ver... E lรก em sua gaiola, indiferente aos clamores do menino, o passarinho, saltitando de um lado para o outro, ficava emitindo trinados que se propagavam pela vizinhanรงa, amenizando o barulho de buzinas e descargas. Enquanto a mรฃe vestia o uniforme no garoto, Seu Zelito cuidava, com muito esmero, do passarinho. Todos os dias era o mesmo ritual. Primeiro, retirava a caixinha com alpiste para assoprรก-la, separando as palhinhas soltas ali acumuladas. Em seguida, trocava a รกgua do pequeno cilindro preso numa fresta 5
da gaiola, onde o passarinho bebia. E tudo era feito com gestos lentos e met贸dicos. Enquanto fazia a limpeza na gaiola, assobiava outros pios e notas musicais, como se ensinasse ao passarinho novos cantos e trinados. Piu, piu, piu, piri, piu, piu, piripipi, piu, piu...
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CAPÍTULO II Assim era o Seu Zelito, ou Seu Litin, como a meninada o chamava - um homem baixinho e com uma avantajada careca, sempre encoberta por um boné, mal disfarçando a região sem cabelo. Mesmo depois de longos anos, o apego com os cabelos não o abandonara. Seu Zelito era o dono do passarinho. Velhinho, já viúvo, ele tinha como companhia somente aquele animalzinho, 7
de que cuidava como se fosse um filho. Os filhos de verdade nunca apareciam. Não se sentiam bem diante de tanta simplicidade de vida. Preferiam o burburinho dos shoppings, onde tentavam, em vão, realizar seus desejos. Geralmente, à tarde, puxava uma cadeira de balanço e ficava naquele vai e vem, lendo o seu jornal preferido. Às vezes, lia algumas cartas do tempo de namoro com a companheira de longa data, que já partira. Era quando ficava olhando pro céu, na tentativa de vislumbrar a face da amada nas nuvens, que mudavam tão velozmente. Quem sabe, um dia, não veria a sua face em alguma delas. Uns sonham dormindo, 8
ele preferia fazer isso acordado. Para amenizar as lembranças sofridas, lia jornais e revistas. Gostava de ler sobre as peripécias dos homens, sempre a inventarem coisas para disfarçar as asperezas da vida. A leitura era sempre interrompida pelo canto do passarinho. Ficava embevecido vendo-o pular de um canto para o outro da gaiola. De vez em quando se levantava, trocava a água, assoprava a palha do alpiste, ou colocava na grade uns pedacinhos de frutas, que o passarinho bicava carinhosamente. E assobiava, emitindo sonoros beijos, deixando o bichinho ainda mais eufórico e saltitante. 9
Também gostava de criar canções, dizia que era uma forma de dialogar com o bicho. “Cadê a Dona Fulô? Foi pro céu e nos deixou Zelito ficou sozinho Com seu menino-passarinho Cantar alivia a dor E o sofrer de quem ficou Lá, rá, lá e lô,rô,rô Coitado de quem não tem Nessa vida o seu amor... Ô ô ô ô , Lá lá rá lá, Ioiô ô ô” Sua felicidade, fugaz, era quando apareciam alguns pássaros atraídos pelo cantar de seu pequeno canário. Ficavam 10
Assis Coelho nasceu em Viçosa do Ceará, foi professor de Língua Inglesa e de Literatura Brasileira da Secretaria de Educação do DF. É autor dos livros de contos: “Labirintos (2000)”; “Homens de Fumaça (2009)”; “A lucidez dos insanos (2013)”; “Lima Barreto, um caminhante
libertário
(Romance
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2010)”. Tem contos publicados em Revistas Eletrônicas como Literaturas sem Fronteiras, O Baque, Zagaia e entre outras. É participante da Coletânea Candanga da Academia Ceilandense de Letras e Artes Populares (2008), e verbete do “Dicionário de Escritores de Brasília”, organizado por Napoleão Valadares.
Sou do tempo em que caçar passarinho era uma diversão para a meninada. Ter um bom estilingue era motivo de orgulho. E matavam-se os bichinhos por pura diversão – nem sei se seria o caso de falar aqui em maldade. Éramos inocentes e, naquela época, não havia ainda o que se denomina hoje de “consciência ecológica”. Felizmente essa época passou, e todos nós compreendemos que o bacana mesmo é preservar. Hoje, criança alguma tem no seu imaginário um estilingue ou um bodoque. O livro de Assis Coelho, Asas presas, trata exatamente desse novo olhar da infância sobre a natureza. Um olhar marcado pela consciência ecológica. Lângu, protagonista dessa bela história, luta para que o passarinho preso na gaiola por Seu Litin seja libertado. Ver o pássaro livre é o motivo maior da luta empreendida pelo menino. E isso vai se estender também para outros pássaros cativos. Liberdade é, sem dúvida, a palavra-chave nesse livro de Assis Coelho. É um direito que deve ser defendido com determinação e coragem. E nada melhor que entender isso desde pequeno. Geraldo Lima