Fundador: Francisco Martins Rodrigues
SETEMBRO / OUTUBRO 2010 Nº 126
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A paz de Washington Uma força social Não restam dúvidas a ninguém que as recentes manifestações de protesto significam uma força social de envergadura totalmente insatisfeita com as medidas de austeridade sobre todos os trabalhadores, em especial os mais pobres. As medidas aprovadas pelos sucessivos PECs encontram suporte no actual OGE, que se encarniça contra os direitos sociais e económicos dos assalariados com o objectivo de os fazer pagar a crise que suportam há dois anos. Estamos confrontados com uma classe dominante pronta para um combate em várias frentes, tendo por armas as medidas anti-sociais que tanto desconforto e miséria produzirão. Uma coisa não se pode esconder, todos o entendem: todo este plano tem um carácter injusto por recair sobre quem não tem nenhuma responsabilidade acerca do estado lamentável a que chegámos. Porém, uma greve marcada para os finais de Novembro, quando todas as medidas já foram aprovadas, terá um valor essencialmente simbólico. Além disso, outra dificuldade se levanta: é muito difícil mobilizar a adesão dos precários, dos subcontratados e das pequenas empresas privadas, que são a maioria, tanto mais que a realização de assembleias gerais se torna nestes casos muito problemática. Os mais de 10 por cento de desempregados também não estarão em greve, obv iamente. Por outro lado, num contexto de crise como é este, muitos trabalhadores com emprego certo se retrairão com receio de perder esse verdadeiro privilégio, nos dias que correm, que é ter um trabalho garantido. Veremos se a força social que se exprime activamente nesta fase será capaz de vencer o pessimismo reinante e funcionar como perspectiva emancipadora. Assim as centrais sindicais saibam interpretar correctamente os sentimentos e as disposições mais avançadas do mundo laboral. Só assim é possível condenar ao fracasso este governo. A auto-organização na base, na perspectiva da radicalização colectiva dos protestos, é certamente uma forma de tentar ultrapassar as dificuldades dando um exemplo de luta decidida.
As conversações de paz entre Israel e a Autoridade Palestiniana, forçadas pelos EUA, chegaram a um impasse ainda antes de começarem. Mais um tropeção para Obama – a juntar aos insucessos no Afeganistão e no Iraque – que assim se vê perante acrescidas dificuldades para a implementar a sua estratégia antiterrorista e o impede de concentrar meios para cercar e submeter o Irão, se necessário pela força. (Pág.11)
Viva a Greve Geral!
SUPLEMENT SUPLEMENTOO PO Maoísmo à portuguesa
AUDITÓRIO DA LIVRARIA LER DEVAGAR ESPAÇO LXFACTORY | ALCÂNTARA | LISBOA DIAS 13 - SÁBADO e14 - DOMINGO DAS 9,30 ÀS 19,30H.
ANA BARRADAS
Cuba: já nada será como dantes
Distribuição de riqueza
ANTÓNIO BARATA
A fome alastra entre nós. Os ministros deviam deslocar-se à sopa do Sidónio e indagar junto daquelas centenas de despossuídos a origem dos seus infortúnios. Assinalando o Ano da Pobreza os políticos dizem umas palavras comovidas, passam indiferentes, dão uma moedinha e vão à vidinha. (Pág.9)
Mono Jojoy: a vida pela revolução CARLOS MORAIS
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} SOARES CADA VEZ MAIS FIXE – Soares fez com Cavaco
Silva a parelha ideal para os grandes capitalistas e empresários. Entreajudando-se, mantendo os conflitos ocasionais à porta fechada; os dois garantiram uma longa estabilidade do regime, que era a maior necessidade de todas as forças burguesas para se poderem sentar em cima do movimento operário. A lei das privatizações, a liberdade dos despedimentos e o pacote laboral, o aumento das rendas de casa, a liquidação final das cooperativas agrícolas, a polícia política – tudo passou sem dificuldade pelas mãos de Soares.
}DEMOCRACIA NA EMPRESA – Se o trabalhador se apro-
pria de algo que é propriedade do patrão pode ser imediatamente despedido sem qualquer indemnização. Mas se o patrão se apropria dos salários e subsídios dos seus trabalhadores, estes nem sequer podem recusar-se a trabalhar de graça, pois tal pode ser considerado falta justificada, dando lugar a serem despedidos por aquele mesmo que o rouba!
} CHAMAM-LHE “HIROCHIMA”… – O bairro El Chorrillo,
na Cidade de Panamá, foi baptizada de “Hirochima” pelos sobreviventes. Os bulldozers do exército americano limparam o que restava das casas e carros depois do bombardeamento de 20 de Dezembro. Viviam aqui mais de 14 mil pessoas. Ainda não se sabe quantas morreram no ataque, sob a bombas dos aviões “Stealth” ou devido às rajadas de metralhadora dos helicópteros e da infantaria. Um pouco mais longe, junto ao cemitério privado “Jardim da Paz”, há velas, fotografias, coroas de flores, próximo de uma fossa comum aberta pelo exército americano. A fossa tem 36 metros de comprimento por 6 de largura. Não se sabe quantos corpos contém. Há fossas semelhantes na zona do Canal. Os números oficiais americanos são de 203 mortos civis e 314 militares. Várias fontes panamianas dizem que os mortos não foram menos de 3 mil e podem ter ido até aos 8 mil.
}“PARA O GOLFO E EM FORÇA” – A ÚLTIMA PALHAÇA-
DA DOS SOCIALISTAS LUSITANOS – Indignou-se o PS por o governo ter aberto as Lajes à ponte americana sem consultar ninguém? Nem lhes passou pela cabeça atacar o governo por esse lado! Cheios de ciúmes por não serem eles a brilhar junto do Pentágono, ultrapassam o governo pela direita e criticam-no por falta de presteza em servir os “aliados”. “Não podemos ter uma participação simbólica”, exclama João Cravinho. João Soares declara que “o fundamental é dar uma lição ao agressor” e assegura que “Israel é, não obstante os erros que por vezes comete, o único Estado democrático de todo o Médio Oriente”!
Na PO 26, Setembro/Outubro de 1990: - Soares cada vez mais fixe - Vasco Gonçlves e os esquerdistas - Crónica do capitalismo real - Cruzada anti-árabe pelo petróleo - Os socialistas e o 1º de Maio - O socialismo das classes médias descoberto por Adam Sghaff - Um tiro ao lado - Lenine e a revolução russa
QUERIDA PETROBRÁS Aí vai um discurso do Lula no “momento mais auspicioso do capitalismo mundial”. Como podem ver, com uma esquerda como esta não precisamos de direita. Seleccionei os trechos do início e do final do discurso de Lula, na Bolsa de Valores de São Paulo, durante o pregão da capitalização da Petrobrás. “E dizer para vocês que eu quero, em primeiro lugar, agradecer a Deus por estarmos vivendo este momento. Eu acho que Deus foi muito generoso neste momento, não pessoalmente comigo, mas com o Brasil, com o povo brasileiro, que há muito tempo esperava a chance de ser respeitado no mundo como nós somos hoje. E isso se deu à custa de muito trabalho. Muito trabalho, e eu quero manifestar a minha alegria em comparecer a esta Bolsa, no momento em que ela se torna um ponto de referência de um singular capítulo do desenvolvimento brasileiro. É importante lembrar que eu vim aqui em 2003. A Bolsa de Valores movimentava naquele tempo, quem sabe, 200 bilhões por ano. Hoje a Bolsa está movimentando quase 2 trilhões por ano, quase 2 trilhões. A Bolsa tinha o equivalente a 14 mil pontos em 2003. Hoje ela tem 70 mil pontos, ou seja, a mudança foi extraordinária. Portanto, eu quero que vocês saibam que o Brasil está muito orgulhoso do Brasil neste dia 24 de Setembro, na primavera de 2010. Nós estamos participando da maior oferta de ações já registrada na história econômica mundial que acontece aqui nesta Bolsa verde e amarela, com uma empresa em cujo nome reluz o interesse nacional: a nossa querida Petrobras”. ... “Mas, de qualquer forma, eu queria que vocês soubessem que a alegria de estar aqui não tem tamanho. Não tem tamanho porque... eu estava vendo o Presidente da Bolsa falar, estava ouvindo o discurso dele e estava imaginando: quem diria que eu viria à Bolsa de Valores ouvir o que eu ouvi aqui hoje. Isso só pode ser uma dádiva de Deus. Só pode ser uma dádiva de Deus porque, dez anos atrás eu passava aqui na porta da Bolsa, as pessoas tremiam de medo: “Onde é que vai esse comedor de capitalismo?”. E exatamente esse comedor de capitalismo deixa a Presidência da República, depois de oito anos, como o Presidente que participou, de forma honrosa – com o Presidente da Petrobras, com o Presidente da Bolsa, com o Vice-Presidente da República, com o Ministro da Fazenda, o Ministro de Minas e Energia e com vocês –, do momento mais auspicioso do capitalismo mundial. E aí, Guido, a
gente tem que dizer o seguinte: nunca antes na história da Humanidade nós tivemos um processo de capitalização da envergadura que a nossa Petrobrás está fazendo aqui hoje”. Dois amigos do Brasil – Rio de Janeiro TERRORISMO DO CAPITAL E pronto. Ontem lá terminei o preenchimento e entrega electrónica da inqualificável “Prova de Condição de Recursos”, prevista no Decreto-Lei n.º 70-2010, de 16 de Junho. Para nós, que recebemos subsídio social de desemprego, o prazo terminava a 30 de Setembro. Para os que recebem rendimento social de inserção e abonos de família, o prazo pode ir até ao fim do ano. A minha saga começou quando recebi, como os demais, a ameaçadora carta da Segurança Social e prosseguiu com a obtenção dos saldos bancários em 31/12/2009 das duas contas da CGD que possuo, certificados de aforro (por sorte a aplicação informática deles lá no IGCP permitia ir buscar o extracto àquela data, senão queria ver como descalçava a bota!) e outras modestas aplicações financeiras. Tudo isto, muito abaixo dos 100.613 euros impostos pela SS como patamar máximo para este património. Depois, tive que ter muito cuidado com o formulário electrónico, especialmente com as quantias declaradas (ao euro), pois qualquer distracção no seu preenchimento nos pode fazer incorrer em falsas declarações, punidas com a cassação liminar dos apoios sociais e inibição de a eles, ou a outros, recorrer (e os familiares) durante dois anos. A própria carta da SS, sem registo algum, a chantagem para a exposição de dados pessoais, o carácter retroactivo desta prova e a quase obrigatoriedade de ser feita pela internet são prova da constitucionalidade mais que duvidosa de todo este processo. Mas tudo isto, além um acto administrativo corsário, é uma pulhice cobarde, por parte do capital, dos poderosos e do seu governo, sobre os mais fragilizados e indefesos, estigmatizados ideologicamente pela burguesia como malandros, relapsos e vigaristas. E condenados deste modo, por via da cassação imediata dos apoios e sua inibição durante dois anos, à sopa dos pobres ou ao delito comum, para se alimentarem, a si e aos seus. E é ainda, no plano meramente económico, uma fraude e uma farsa, porque os trocados que a administração fiscal irá assim sacar, em termos de Orçamento de Estado e PEC, não passarão disso mesmo: trocados. Além de que os amiguinhos mais remediados ou pobres deste reaccionário PS foram presumivelmente avisados antecipadamente e (continua pág. 15)
dinopress@sapo.pt Colaboraram neste número: Ana Barradas, António Barata, António Doctor, Carlos Morais, Esperança Alves, José Borralho, Ricardo Noronha, Vítor Colaço Santos Propriedade: Cooperativa Política Operária Correspondência: Apartado 1682 - 1016-001 LISBOA | TM: 960 135 270 | Periodicidade: Bimestral | Tiragem: 1100 exemplares Publicação inscrita na DGCS com o número 110858
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Sem saída Há hoje na sociedade portuguesa um novo consenso nacional — “a crise só pode ser vencida com o alastramento da pobreza”. É claro que não é enunciado desta maneira, mas numa linguagem matreira: é preciso cortar “no lado da despesa e não do da receita”, “70% dos portugueses são sustentados pelos dinheiros do Estado” e por isso o “estado social faliu”, etc. A lógica férrea do sistema económico capitalista só deixa como alternativa aos que a não põem em causa serem os de baixo a pagar crise. A receita é tão velha como o capitalismo, e à custa dela este tem resolvido as suas crises, deixando um tremendo rasto de milhões de vítimas, sejam as lançadas nos enormes matadouros das guerras mundiais, sejam as que anónima e silenciosamente vão morrendo à fome e de inanição nas grandes metrópoles do Norte rico e, principalmente, no chamado terceiro mundo. Certamente o PCP e o BE não comungam da ideia de que devem ser só os pobres a pagar a crise. Mas porque lhes é alheia a ideia de que a uma esquerda digna desse nome não compete andar a dar conselhos às classes dominantes sobre a melhor forma de conduzir os negócios, de a catequizar e sensibilizar sobre as suas “responsabilidades sociais”, esforça-se por convencê-la de que a crise tem de ser paga por todos, tem de ser patriótica, e este esforço conjunto em prol de um ilusório “bem comum” é um “desígnio nacional”. Se fosse uma esquerda a sério andaria ocupada a amotinar os deserdados para que a burguesia os temesse e, então sim, se visse obrigada a fazer concessões para que não estalasse uma crise revolucionária. Por isso, PCP e BE, que após as férias de Verão começaram por afirmar que o OE não teria o seu voto favorável nem por eles seria viabilizado pela abstenção, resolveram depois, tacticamente, moderar o discurso e dizer estarem dispostos a negociar, que não será por causa deles que não haverá OE para 2011: tudo depende de serem ou não contempladas as suas propostas de pagamento da dívida a meias. Ao mesmo tempo vão-se queixando da falta de vontade do governo de falar com eles e que só tem olhos para a direita. Uma habilidade táctica que as classes dominantes e as consciências reformistas não levam a sério, mas muito apreciam, dado que tal postura funciona como um anestésico das massas trabalhadoras, que, prisioneiras desta lógica “responsável e com sentido de Estado”, aceitam pacificamente que seja convocada uma greve geral para depois de aprovado o OE, e se iludem na esperança de que o BE e o PCP, face à “intransigência” do PSD, consigam arrancar ao PS algumas concessões. Um caminho que não pode deixar de conduzir os trabalhadores a novos desastres.
Temos líder “Em Portugal temos tudo às avessas”, descobriu Passos Coelho, num assomo ímpar de sagacidade e clarividência política. E como não é homem para deixar as coisas pela metade, sentenciou, com ares de grande estadista, que a solução para “voltar a pôr tudo a direito é pôr quem tem boas ideias a governar e quem revela tanta inacção a fazer os trabalhos de casa”. É bonito, mas não diz nada. É aquilo que se chama falar para não estar calado. Que Nossa Senhora de Fátima o guarde.
O reino do faz-de-conta A aprovação do próximo Orçamento de Estado (OE) é um dos temas quentes em que governo e oposição se travam de razões. Com muito pouca seriedade, saber e competência para enfrentar o problema da falência económica e financeira do país, a discussão reduz-se ao faz-de-conta e a demagógicos exercícios retóricos em torno do “Estado social”, agora transformado no grande responsável pelo descalabro económico a que os governos do PS, PSD, e por vezes do CDS, nos conduziram com os seus trinta anos de governação. Com a ajuda da comunicação social os nossos líderes partidários e governamentais vão-nos entretendo com questões menores, como a de saber como vão Manuel Alegre, o BE e o PS entender-se numa candidatura presidencial que tanto é apoiada (para já) pelo partido do governo (PS) como pelo da oposição da esquerda desempoeirada (o BE); se o candidato do PCP vai apoiar ou não Alegre na segunda volta ou quando Cavaco se resolve a formalizar a sua candidatura. Ao mesmo tempo que Sócrates, na sua patética campanha de demonstração de que o país está a recuperar e a economia a entrar no bom caminho, vai inaugurando creches, estradas e tudo o mais que houver. Do Eurostat vêm números que situam o desemprego acima dos 10%, o que não se registava desde 1952, mas nada disto merece a atenção do governo e das oposições, que se limitam aos circunstanciais e rotineiros comentários – o governo diz que o Eurostat está enganado, as oposições que este vive no país das maravilhas. E tudo continua na mesma, com os de cima a passar ao lado da crise, a aumentar os seus rendimentos, a esbanjar em carros e habitações de luxo, férias milionárias, cavando ainda mais fundo o fosso que os separa dos pobres. Ao mesmo tempo que para os despossuídos não param de crescer as privações – desemprego, aumento de impostos, carestia, redução drásticas das prestações, ajudas sociais e subsídio de desemprego –, agravadas já no próximo ano, com as reduções salariais e o esgotamento do prazo de atribuição do subsídio de desemprego às centenas de milhares de trabalhadores que se viram lançados na rua com a crise. Aos níveis estratosféricos do endividamento externo do Estado e dos privados, soma-se agora a desconfiança dos meios financeiros internacionais, que já não emprestam, e a exigência pelo Banco Central Europeu de juros ainda maiores. Nada que não se soubesse há mais de um ano, mas todos faziam por ignorar, para evitar o “derrotismo”. Com o PEC soou o alarme e descobriu-se o grande culpado, o “Estado social”, esse monstro maléfico e insaciável que engole tudo quanto é dinheiro sacado aos portugueses e à banca. E como sempre acontece nestas situações, poucos são os que se atrevem a questionar esta suposta verdade e apontar para a obs-
cena acumulação de riqueza por um punhado de ricos cada vez mais ricos, a fuga de capitais, a economia paralela, toda a sorte de isenções e privilégios fiscais de que goza o grande capital, a política das grandes e inúteis obras de regime, as remunerações dos gestores e demais figurões, as despesas militares, a submissão à União Europeia, etc. Governo e oposições falam do OE como se estivessem em condições de decidir o que quer que seja. Todos eles sabem que o OE que vão viabilizar é um orçamento imposto, feito à sua revelia e de acordo com os ditames da EU, em particular da Alemanha, sujeito a aprovação prévia pela ECOFIM, uma estrutura não eleita da União Europeia com poder de veto. E que por via disso ele tem como preocupação central não a salvação da economia nacional ou o bem-estar dos portugueses, mas a salvação do euro. Há um pacote de 750 mil milhões garantidos pela Alemanha para esse efeito, o qual impõe a redução dos défices nacionais para os famigerados 3% – e quem não se quiser que se vá embora. Porque governo, parlamento e oposições aceitam jogar este jogo, não lhes passa pela cabeça denunciá-lo e menos ainda contrariá-lo. Pelo não lhes resta outra saída que não seja o de assinar por baixo. Pelo que todo este barulho se resume a saber quem vai arcas com as culpas. Sócrates finge acreditar naquilo em que ninguém acredita – que neste segundo semestre se vão repetir os resultados menos maus da execução orçamental do primeiro, conseguidos não à custa da redução dos gastos do Estado (que aumentaram 4,3% na despesa efectiva e 5,6% na corrente primária) ou da reanimação económica, mas do aumento dos impostos indirectos e de algumas exportações. Também por conveniência, as oposições fingem que os pressupostos em que assenta a discussão são verdadeiros, que tudo se resume a boa ou má governação, à vontade de avançar ou não com medidas de regulação dos mercados e que o dito “Estado social” poderá ser mantido, ainda que numa versão mini, através do contínuo endividamento do Estado ou da entrega dos serviços que presta o sector privado. Há muito que a soberania nacional é uma ficção. Se antes da adesão à EU e ao euro ela era mitigada, depois disso passou a ficção – em Portugal os governos, seja qual for a sua cor, já não são outra coisa que meras comissões executivas de Bruxelas. ANTÓNIO BARATA
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O mês em relance SÓCRATES & PASSOS COELHO – São cara e coroa da mesma má moeda. O rotativismo de poder, disputado entre apenas dois partidos – o PD e o PSD – causa desmobilização, desesperança e falta de ânimo, também pela péssima qualidade destes. Sócrates reuniu com “sábios” economistas, muitos dos quais pertenceram a governos odiosos e odiados, culpados de tudo o que de pior nos tem acontecido. Quase todos receberam reformas milionárias, duas e três, e atrevem-se a dar nas televisões patrióticas lições de salvação económica. Miserável! Um deles, com deficiências de fala e espuma aos cantos da boca, trabalhou seis anos num banco do Estado e recebeu uma reforma para sempre!, de 18 mil euros! É o retrato típico de uma situação repugnante. Mas há mais… Afinal, de que falaram os ex-ministros “sábios”? Indicaram os mesmos remédios para a resolução da crise (da nossa crise, de facto!): cortes nas despesas de saúde, da educação, da previdência, baixa dos salários da função pública (os funcionários públicos que paguem a crise!), supressão do 13º mês, redução nas pensões, extinção de subsídio para os mais pobres, aumento nos medicamentos … e caso alguém tente desmontar esta ladainha é considerado comunista ou afim. Haja decoro e decência. Passos Coelho também reuniu com um rico grupo de economistas. Foram dizer-lhe o que quis ouvir. A mesma receita. A mesma cantilena. Os mesmos cortes. Os mesmos sacrifícios. A mesma ou pior fome! Esta gente não está (nunca esteve, nem estará) ao lado de quem sofre e está na mó de baixo. Os seus testemu-
nhos não ocultam a casta a que pertencem. Os jornais e revistas publicam os nomes, os rendimentos, as casas luxuosas, os iates, os aviões, os automóveis topo de gama dos que nos exigem sacrifícios, suor, lágrimas e renúncia. Exigem mas não praticam. Uma televisão quis saber o que pensam os portugueses desta actual situação: uns não responderam, outros não sabiam, alguns revelaram indiferença e ignorância ou ausência. Até que uma mulher antiga, com olhos de sofrimento e rugas no rosto de miséria da fome, disse: “Não acredito em nada, nem em ninguém. Eles estão lá para se encher.” Quando se tira aos reformados um escasso cêntimo, as dificuldades que daí advém são mais que muitas e as consequências imediatas são terríveis. Portugal é um país padrasto e pátria madrasta para a grande parte dos portugueses. Até nós querermos… É nesta “pérfida embrulhada”, para citar um português maior – Jorge de Sena – que vamos sobrevivendo. Omissão, mentira, engano, cambalhotas. E não é apenas Sócrates o paladino destas tropelias. Passos Coelho vai nos mesmos passos…
O DR. CAVACO – Desde a aparição do “messias” Cavaco, montado num Citroen com cavalos até se guindar a primeiro-ministro, a nossa democracia passou a ser de superfície. A sociedade ficou amolgada. Esta criatura alimentou (e alimenta) um distorcido entendimento do que é a democracia. Os dez anos em que foi chefe de governo saldaram-se pela recusa da modernidade e pela imposição de uma rigidez emocional que ainda hoje lhe está colada à pele. Pedra e betão substituíram a alma e coragem. Encheu o país Cada um que se governe de cimento inútil. De “O Governo não mascara o desemprego, considera-o alcatrão também. principal problema social, mas não podemos cingir a resFez de Portugal o posta à crise aos subsídios, ao seu prolongamento ou ao INATEL da Europa! seu aumento”. (Helena André, Ministra do Trabalho, 21 Recebeu toneladas de Setembro, no Parlamento). dinheiro para resolver dificuldades esA teta nacional senciais e dar um tra“Existem cerca de 14 mil instituições que estão no tamento uniforme Orçamento de Estado. 13.740 entidades que recebem aos problemas relatidinheiros públicos — 365 institutos públicos, 639 fundavos ao desenvolvições, 343 empresas públicas, 87 parcerias público primento. É uma das vadas…” (José Cantigas, economista, num debate organizamaiores mentiras ardo pela Ordem dos Economistas, 21 Setembro). tificiosas de que há memória. O primado Avante camaradas, confiança no futuro do económico sobre“Uma revolução que tem heroicamente resistido ao pôs-se a tudo. As pescriminoso bloqueio dos EUA” terá êxito no seu “projecto soas passaram a ser de construção do socialismo”. (PCP ao Expresso de 18 Senúmeros! Nada tem tembro, comentando as reformas cubanas de liberalização a ver com apostolaeconómica). do da liberdade. Em termos culEureka! Ele propõe! turais, o que o dr. Ca“Estamos no centenário da República. Como portuvaco nos oferece é a guês muito preocupado com o seu país, seria incapaz de “cultura” que nos dá passar este período sem propor um desígnio para o país. o programa de entreE proponho: qualificação.” (Manuel Maria Carrilho, Exprestém “Quem quer ser so, 18 Setembro). milionário”… Um
MAIS
UM INJUSTIÇADO – Dias Loureiro tem um processo em curso de investigação, negou afirmações feitas pelo seu antigo chefe Cavaco, esteve muito ligado ao PSD, sabe fazer umas cantiguinhas, também sabe jogar golfe e desde há uns meses nunca mais se ouviu falar dele. Dias Loureiro vive actualmente à grande em Cabo Verde. É dono do maior resort turístico da ilha do Sal, aquela ilha daquele país africano onde o BPN criou umas sucursais e um banco mais ou menos virtual, com que se faziam umas operações de lavagem e fugas ao fisco, etc. Como vêem, é fácil fazer esquecer um roubo superior a mais de 4 mil milhões de euros quando se tem amigos por todo o lado...
solitário exemplo: do bicentenário do nascimento de Alexandre Herculano – comemora-se este ano – cuja obra como escritor e jornalista tentou resgatar do tristonho viver este povo deprimido, o dr. Cavaco ignorou a data. Quero lá saber!, – terá dito. Alguma vez se terá debruçado sobre uma minguada linha escrita pelo grande historiador? Não creio. Alexandre Herculano tem um destino de grandeza e de solidão confirmado pela guerra, pelo estudo e pelo exílio. Ignorá-lo é mais do que um escândalo! 3 EFES – FOME, FRAUDE E FUTEBOL… – Impostos - Há trinta mil milhões de euros que não pagam impostos! Caso pagassem, arrecadava-se 10 milhões de euros! Bancos - O Banco de Portugal lucrou 254 milhões de euros em 2009. No primeiro trimestre deste ano, os lucros dos quatro maiores bancos privados portugueses totalizaram 361,9 milhões de euros! Os lucros diários do Millenium, BES, BPI e Santander foram de 4,3 milhões ao dia!! Remédios e Farmácias - A Associação Nacional de Farmácias queixa-se de que o negócio da venda de medicamentos nunca esteve tão mal – coitadinhos! Cada vez há mais doenças, mais doentes. Tenho dó da Associação. Se as queixas fossem mais pequenas, diria que tomassem um ben-u-ron. Tirem senha, esperem pela vez, que o governo vos há-de atender. Se apresentarem a reclamação por escrito, façam-no com letra legível… VÍTOR COLAÇO SANTOS
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Concluído o julgamento dos “Quatro do Porto” Depois de enormes delongas e tendo o processo já transitado de passagem pelas Varas Criminais de S. João Novo, baixando novamente à sua origem no 2º Juízo Criminal do Bolhão (tribunal singular), por decisão da Relação do Porto, recomeçou no passado dia 15 de Setembro o julgamento de quatro activistas sociais acusados de difamação agravada ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), concluindo-se depois com sentença de absolvição a 8 de Outubro. Os factos reportam-se ao Verão de 2006 e necessitam de alguma contextualização. A Direcção Regional Norte do SEF tinha passado, em Dezembro de 2005, pelo escândalo da ampla divulgação mediática (iniciada por uma reportagem da SIC) das condições desumanas a que submetia as pessoas a quem era recusada e entrada no território nacional à chegada ao aeroporto Sá Carneiro, ficando aí a guardar repatriamento. Estes indivíduos e famílias ficavam instalados, por semanas ou meses a fio, em “Centros de Instalação Temporária” que consistiam em vulgares contentores de mercadorias, com adaptações mínimas, em condições de salubridade indescritíveis. Este escândalo custou o lugar à Sr.ª D.ª Amélia Paulo, que detinha o cargo à altura, tendo sido substituída pelo Sr. Dr. Eduardo Margarido, que transitou de igual lugar na Direcção Regional dos Açores. Por esta altura, a queixa mais intensa e generalizada da comunidade imigrante instalada no Norte de Portugal era relacionada com as dificuldades arbitrárias criadas pela Direcção Regional Norte do SEF na emissão de autorizações de permanência e de residência. Enquanto a lei se limitava a exigir que o candidato fizesse prova de posse de “meios de subsistência”, a autoridade policial sedeada no Porto entendia exigir, por conta disso, cópia de declaração de rendimentos do ano anterior, para efeitos de IRS, com um mínimo declarado de 5.400 euros (salário mínimo mul-
O que nos prometem agora Parece estar a chegar ao fim um longo ciclo histórico iniciado a 25 de Novembro de 1975 e acelerado após a adesão à CEE, em 1986. Durante estes 35 anos, tanto a burguesia (a possível) como o regime liberal (aquele que se conseguiu arranjar) sustentaram-se na perspectiva de uma progressiva convergência dos principais indicadores económicos e sociais portugueses com os países mais desenvolvidos da Europa Setentrional. E embora a imaginação não tenha sido o ponto forte da II República, lembramos com nostalgia os tempos auspiciosos em que expressões como “A Europa connosco”, “A Suíça do Sul”, o “pelotão da frente” e outras ambiciosas miragens eurodesenvolvimentistas deixavam estadistas e jornalistas com um brilhozinho nos olhos, aqueles dias gloriosos do cartão jovem, da Europália e da fúria consumista, quando a paixão entre Lisboa e Bruxelas era tórrida e poucos (mas bons) encontravam razões para se queixar. Tudo aquilo que nos prometem agora é mais crise, recessão e sacrifícios. O aluno bem comportado da Comissão Europeia passa os dias virado para o canto com orelhas de burro, sem autorização para ir ao recreio nem gelatina de ananás depois do almoço. É caso para dizer que não foi para isto que se fez o 25 de Novembro e, se o soubesse, talvez Jaime Neves não tivesse saído do Batalhão de Comandos da Amadora para fazer o lindo trabalhinho que se conhece. Definitivamente, o futuro já não é aquilo que era. Agora que a nau se afunda, os mais ingénuos poderiam ser levados a dirigir o olhar para os homens que manejaram o leme ao longo de tão acidentada viagem. Mas isso equivaleria a ignorar o ponto forte da oligarquia portuguesa, a saber, a desconcertante capacidade para se eximir das suas responsabilidades próprias com a ligeireza de quem abandona uma casa de banho pública. Restam por isso os suspeitos do costume: o povo, a ralé, a arraia-miúda, os trabalhadores (“por conta de outrem”), o proletariado. Não se trata agora de feitos assustadores, como o derrube de um regime, a expropriação de empresas, a ocupação de terras, o desrespeito pela propriedade privada ou pela autoridade do Estado. Os problemas agora são a competitividade e as contas públicas.
tiplicado por catorze). Esta exigência era tão patentemente absurda – sabendo-se como a vida laboral dos trabalhadores imigrantes é marcado pela precariedade e pela informalidade – que só pode ser entendida no âmbito de uma estratégia destinada a manter estas pessoas em permanente sobressalto, entre vistos provisórios necessitados de renovação a cada 60 dias, sob pena de cair na clandestinidade, incorrendo então na ameaça imediata de expulsão. Pode ser simples insensibilidade e despotismo burocrático, nada incomum neste país, mas sabendo-se que em 2008 foi desmantelada uma rede de legalizações ilícitas de estrangeiros que envolvia pelo menos dois funcionários do SEF-Porto (presos preventivamente), não pode deixar de concluir-se que esta rigidez de critérios facilitava objectivamente a actividade criminosa então em curso. Hamid Hussein, paquistanês, 33 anos, casado e pai de dois filhos menores, era um desses trabalhadores desesperados à procura da revalidação da sua autorização de residência, que lhe permitisse encarar a sua vida com alguma tranquilidade. Sabe-se que, no início de Junho de 2006, esteve a tratar desse assunto junto aos balcões da Comissão Nacional de Apoio ao Imigrante (CNAI) na Rua do Pinheiro, onde o SEF também está presente. Segundo relato feito por um amigo próximo e compatriota, que esteve presente, desenganado sobre a possibilidade de renovação da sua autorização de residência, Hussein terá pedido que lhe fossem devolvidos todos os descontos feitos para a Segurança Social portuguesa, para com esse dinheiro regressar à sua pátria. Essa hipótese ter-lhe-á sido negada terminantemente por parte do funcionário que o atendeu (do SEF ou do CNAI), com atitudes de enfado e de escárnio. Hamid Hussein entrou numa espiral depressiva que o levou a suicidar-se, nessa mesma noite, atirando-se ao rio Douro a partir do tabuleiro superior da ponte D. Luis I. Desaparecido durante muito tempo, o corpo de Hussein só seria encontrado pelos amigos no Instituto de Medicina Legal, onde voz informada os aconselhou a procurá-lo. Apesar de o corpo ter sido encontrado com o passaporte no bolso, nem a
RICARDO NORONHA
polícia nem ninguém naquela instituição se preocupou em alertar a família ou o consulado paquistanês do seu falecimento. O corpo estava ali simplesmente depositado como um dejecto anónimo e não reclamado, a breve trecho destinado à cremação para não ocupar mais espaço. Também esta circunstância provocou uma forte comoção indignada nos amigos de Hussein, que procuraram de imediato contacto com associações representativas da comunidade imigrante para denunciar esta situação. A partir de meados de Junho de 2006, diversas associações de imigrantes e outras organizações de activistas solidários com eles estão mobilizadas na denúncia das circunstâncias que envolveram o suicídio de Hamid Hussein, assunto que merece tratamento noticioso, assaz discreto, num certo número de órgãos da comunicação social. Foi também realizada uma manifestação pública onde se exigiu o apuramento de responsabilidades e a revisão de procedimentos. Mas isso era coisa que o Director Regional Norte do SEF achou que não podia permitir de modo algum, pelo que resolveu recolher elementos e fazer uma participação ao Ministério Público pelo crime por “difamação ao SEF”. Apesar de a denúncia ser patentemente inepta e de o inquérito preliminar nada lhe ter acrescentado, o certo é que o Ministério Público deduziu prontamente a acusação pretendida, nos seus exactos termos, fazendo
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irresistivelmente recordar outros tempos em que as instituições judiciais funcionavam como câmara de ratificação pronta e expedita de quantas fantasias policiais lhes fossem presentes. Os quatro acusados eram: - Rachid Fathi, solteiro, na altura com 30 anos, natural da cidade de Tânger, em Marrocos, radicado em Portugal já há alguns anos e de nacionalidade portuguesa, tendo sido já operário têxtil, trolha, cortador de carnes, conhecido por ser dirigente da associação ESSALAM - Associação dos Imigrantes Magrebinos e de Amizade Luso-Árabe; - José Alberto da Rocha Paiva, conhecido activista libertário português, preso político no tempo do fascismo (nessa altura era marxista-leninista), animador de diversos grupos de causas sociais e ecológicas, como é o caso, presentemente, da associação Terra Viva! Terra vivente, com sede na Rua dos Caldeireiros, Porto; - Abílio Gonçalves Mourão, português, produtor teatral em Lisboa, simples associado de uma agremiação cultural portuense denominada Espaço Musas; - Flávio Ferreira Paes Filho, cidadão brasileiro, na altura doutorando na Faculdade de Letras do Porto e presidente da AACILUS, associação de apoio aos imigrantes lusófonos sul-americanos e africanos em Portugal, actualmente professor efectivo na Universidade Federal de Mato Grosso, em Cuiabá. O julgamento, novamente interrompido, teve um reinício a 30 de Setembro, mas aí nada se passou, para além das alegações do Ministério Público e dos advogados. Era suposto ser ouvida então a principal testemunha de acusação e autor da denúncia crime, o ex-director regional Norte do SEF, Eduardo Margarido, mas este escusou-se a comparecer justificando-se com uma ausência em serviço nos estrangeiro. Esteve presente, isso sim, o actual director regional Norte do SEF que “ofereceu” a desistência da queixa contra uma retratação dos Réus publicada na imprensa, hipótese que foi prontamente rejeitada. A 8 de Outubro foi lida sentença que absolveu os arguidos, por falta de provas. Simplesmente, nada disso é ainda suficiente para se fazer justiça neste caso. Faltou ainda responder pela morte de Hamid Hussein, prestar uma qualquer compensação à sua viúva e amparar devidamente os seus filhos menores. E falta, sobretudo, para o que nos interessa com vista ao futuro, saber como foi possível perpetrar este verdadeiro atentado ao Estado de direito. Como foi possível, em esconsos gabinetes policiais, tramar toda esta operação celerada, visando criminalizar, amordaçar e perseguir por via judiciária as justíssimas manifestações de indignação cívica levantada pelas circunstâncias que envolveram a morte da Hamid Hussein? Como foi possível a estes agentes reunir uma semelhante cultura de desprezo humano e, por cima dela, a arrogância burocrática suficiente para montar tudo isto, confiantes em que podem calar e reprimir a seu talante a opinião pública livremente formada e expressa por meios legítimos e pacíficos? Mas mais inquietante ainda, falta explicar como é que o aparelho judiciário pôde embarcar nesta aberração e deixar-se envolver nela, passando depois a batata quente de Caifás para Pilatos ao longo de quatro anos e meio, sem nenhuma consideração pelos acusados, a quem manteve em suspenso de uma possível condenação criminal e sujeitos a medidas de coacção, durante todo este tempo. E tudo apenas porque se terem indignado e buscado reparação para uma injustiça feita a um seu semelhante, com um desenlace trágico que ainda hoje traz mergulhada na miséria a sua família. ESPERANÇA ALVES
A nossa esquerda ordeira Uma jornalista do Diário de Notícias, conhecida por ser uma espécie de porta-voz oficiosa das polícias, decidiu desta vez investir, não contra os “gangues” de jovens negros dos ditos “bairros problemáticos”, mas contra a PAGAN (uma das coligações que em Portugal contestam a realização da cimeira da NATO em Lisboa, constituída por pessoas e organizações vulgarmente tidas como da área revolucionária e anticapitalista – anarquistas, bloquistas, ecologistas, etc.) tentando conotá-la com os grupos “violentos”, como o Black Block, que costumam confrontar as “forças da ordem” que protegem os encontros dos ricos e poderosos. Até aqui, nada de extraordinário. Seguindo a ordem natural das coisas, os governos e as polícias fazem o seu trabalho, tal como o “jornalismo” a soldo. O que já é estranho e sintomático do estado comatoso em que se encontra aquilo que faz de “esquerda” em Portugal, foi a reacção da PAGAN que, em vez de chamar a atenção para o reforço de meios repressivos – está prevista a colocação de uma vasta rede de câmaras de vigilância em Lisboa para recolher e gravar imagens; a aprovação de leis de excepção e a suspensão do tratado de Schengen; a expulsão imediata de estrangeiros; a limitação do direito de manifestação e a criação de vários perímetros de segurança de check-points; a aquisição de blindados semelhantes aos que estão a ser usados no Iraque; o recrutamento à pressa de mais 60 elementos para a polícia de choque; a elaboração pelas polícias europeias e norte-americanas de uma listas de elementos e organizações radicais a ter debaixo de olho; infiltração das secretas, etc. – resolveu secundarizar este facto relevante e centrar-se em abjurar (mais uma vez e em nome do pacifismo) a acção directa e os “violentos”, jurando que “recusa liminarmente a associação do seu nome a actos violentos ou ameaçadores da ordem pública” e insurgindo-se: “O facto de o Diário de Notícias subverter o nome da PAGAN, cujo acrónimo se traduz em Plataforma Anti-Guerra Anti-NATO, omitindo a expressão anti-Guerra e sublinhando a expressão anti-NATO, configura-se como uma tentativa
de distorção do carácter pacifista desta plataforma de cidadãos.” Quando na altura publiquei este comentário no Diário Liberdade (www.diarioliberdade.org) foram várias as reacções negativas – ridículo, sectário, espécie de infiltrado do PCP, adepto da acção directa (esqueceram-se de terrorista). Pena foi que não se tivessem referido ao que de facto importava – por que razão consideraram mais importante demarcar-se dos “violentos” que denunciar todo o aparato repressivo e de limitação de liberdades que está a ser montado para “proteger” a Cimeira da NATO. Ora uma demarcação destas, na sequência de anteriores e insistentes pronunciamentos sobre o carácter não violento da plataforma, vale como um programa político. Começa por fechar a plataforma a todos aqueles que não têm qualquer posição sobre a violência, como aqueles que a admitem como uma inevitabilidade quando se agudizam os conflitos sociais. Depois obriga a que nos interroguemos sobre as razões que levam pessoas e movimentos que se dizem de esquerda a constantemente se sentirem obrigados a justificar-se e a apresentar credenciais de bom comportamento e de respeito da ordem pública, ao ponto de achar necessário traçar fronteiras. Por que será que não percebem que com atitudes destas se colocam numa posição reaccionária, de isolamento da outra esquerda que pensa diferente, indicando-a como um alvo mais fácil para a repressão e a provocação? Que diferença entre esta atitude e aquela que o PCP tomou no tempo da ditadura, ao “avisar” publicamente, nas páginas do Avante sobre a entrada no país de alguns militantes comunistas que tinham rompido com ele pela esquerda? Que diferença entre as suas preocupações e as do PCP contra os “provocadores esquerdistas”? Por que não querem ou não conseguem tirar lições da campanha anti-“violentos” promovida pelos meios sociais-democratas para os isolar e erradicar das manifestações antiglobalização e o definhamento e domesticação desse movimento e o dos Fóruns Sociais? ANTÓNIO BARATA
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Viva a greve geral! Saudamos a convocatória de uma greve geral nacional pela CGTP, embora tenhamos que dizer que peca por tardia como consequência de uma orientação que alimenta a ilusão política de que o sistema há-de recuperar da crise desde que enverede pela via do crescimento económico. Todas as hesitações sindicais têm a mesma proveniência: “estamos aqui para colaborar desde que os trabalhadores sejam ouvidos.” Ainda não perceberam que os capitalistas têm ouvidos de mercador. São duas coisas distintas: uma greve geral convocada com uma perspectiva para a superação da crise através de propostas colaborantes com o capitalismo, para o seu crescimento e fortalecimento, ou uma greve geral convocada segundo os interesses da classe operária e restantes massas trabalhadoras tendo como motivos o combate à crise e perspectivando dar fim ao odioso sistema capitalista. Daqui partem duas linhas antagónicas face à luta de classes. O que temos aí é a greve geral construtiva. Há razões de sobra para que os trabalhadores se lancem decididamente na luta até fazer vergar o capital, o governo de Sócrates e a direita reaccionária PSD-CDS e a razão determinante é que a crise capitalista está a ser descarregada para cima dos mesmos de sempre: o proletariado e as massas trabalhadoras. Vejam-se as medidas que o governo tomou e quer implementar através do orçamento do Estado: congelamento de todos os investimentos estatais, fim dos contratos a prazo e das admissões de pessoal na administração pública, cortes nos salários em 5%, aumento do IVA de 21 para 23%, congelamento das pensões e reformas e do salário mínimo, corte em 20% nos apoios de reinserção social, para lá de outros roubos semelhantes nos dois anteriores PECs. A imaginação dos abutres não tem limites quando se trata de roubar o povo. Esta é a grande crise do sistema que abre brechas por todos os lados e só não vê quem não quer ou a quem não convém ver. A ilusória ideia profusamente transmitida de que a causa da crise esteve na falta de regulamentação das instituições financeiras é um embuste do capital e dos seus arautos economistas a quem convém vender a tese de que, resolvido o problema da ganância, tudo entrará na normalidade. Puro malabarismo. A génese da crise é a economia capitalista de que o capital financeiro é uma parte, e o que está à vista é a ponta do icebergue, o resto e mais importante do ponto de vista económico é a chamada economia
real, que entrou numa profunda crise de superacumulação de lucros e de superprodução de mercadorias, lançando o caos no sistema por imposição das economias mais fortes e pela emergência dos novos concorrentes chineses, indianos e brasileiros. As velhas economias entraram em caos sem capacidade de competir, lançaram no desemprego milhões de trabalhadores, muitos dos quais a quem tinham dado créditos, a exportação de mercadorias ficou bloqueada e entrou em recessão devido à lei da concorrência do mercado “livre” e à impossibilidade de consumo das massas trabalhadoras. E assim o capitalismo entrou num impasse e em crise que descarrega sobre os trabalhadores e os povos. O facto de assistirmos à grande especulação financeira com a dívida pública deve-se às imposições ditadas pela União Europeia, que impôs a escravatura do défice precisamente para que as economias mais fortes da UE esmaguem as mais fracas na velha lógica de mercado do capitalismo. O problema central que está colocado ao país não é uma questão de incompetência dos capitalistas que não sabem pôr a economia a produzir e a crescer como defendem em uníssono os partidos da esquerda do regime, PCP e BE; a questão não vai lá com batalhas da produção, mas sim com combate ao próprio sistema que sustenta as políticas reaccionárias. Quanto a nós, faz falta uma greve geral que faça com que os explorados ganhem confiança nas suas forças e clarividência de que o INFORMAÇÃO ALTERNATIVA capitalismo deverá ser eliminado e não reforçado. E por isso apelamos aos operários e a todos os assalariados, aos desempregados, aos jovens e às mulheres trabalhadoras, aos trabalhadores do ensino, da educação e da saúde, aos reforDiário Liberdade é um projecto jornalístico mados e pensionistas roubados alternativo anticapitalista e anti-imperialista, nos seus baixos proventos, às virado para a realidade social e as lutas de classes uniões de agricultores, ao mona península Ibérica, América Latina e África de vimento associativo e de moraexpressão portuguesa e castelhana dores, à intelectualidade progressista, para que façamos do www.diarioliberdade.org dia da greve geral em 24 de No-
vembro um dia de luta a sério, uma rebelião, unidos sob a ideia de que as medidas de austeridade devem ser para os ricos e não para os trabalhadores. E que medidas são essas? a) A dívida externa do país deve ser paga num prazo de quinze anos, assumindo o Banco Central Europeu os encargos imediatos com os bancos credores. b) Os recursos financeiros do Estado devem ser aplicados na efectiva criação de postos de trabalho, seja na agricultura, no mar, na reabilitação de estradas e edifícios ou noutras áreas úteis ao povo trabalhador. c) Cobrança coerciva das dívidas dos capitalistas às finanças públicas. d) Pagamento pelos bancos de uma taxa de IRC de 25% igual ao que pagam as outras empresas. e) Anulação da compra dos submarinos. f) Corte nos ordenados dos ministros, gestores e equivalentes. g) Regresso imediato das tropas do Afeganistão ou outras missões de guerra. h) Fim do offshore da Madeira. i) Passagem a efectivos de todos os contratados e a recibo verde. j) Pagamento imediato de todos os salários em atraso. k) Trabalhador despedido, subsídio garantido e, enquanto não obtiver novo emprego, a integração do trabalhador em serviços do Estado compatíveis. l) Aumento do salário mínimo e das reformas. m) Redução do horário de trabalho sem perda de salário no combate ao desemprego. n) Reposição imediata dos valores dos subsídios sociais. o) Obrigatoriedade de negociação com o patronato através da contratação colectiva. Este programa mínimo atinge o capital e defende as condições sociais dos trabalhadores; é pois um programa do trabalho contra o capital. Apelo aos trabalhadores de vanguarda que façam seu este programa, o divulguem e assumam nesta perspectiva a defesa da greve geral. JOSÉ BORRALHO
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Comércio ao Domingo Descartáveis A Solvay, multinacional belga da indústria química, vendeu recentemente o seu sector farmacêutico à Abbot, uma multinacional das indústrias ligadas à medicina e à investigação, fabrico e comércio de medicamentos. Feito o negócio, anunciou-se o despedimento de 800 trabalhadores a nível mundial para tornar o grupo mais competitivo e leve. Ou seja, aquilo que motivou a mudança estratégica
O sucessor dinástico de Belmiro de Azevedo (o tal que é a segunda maior fortuna de Portugal, ganha a pulso – dos outros), seu filho Paulo de Azevedo, afirmou: “Se os hipermercados abrissem ao domingo, de tarde, iriam ser criados 2.000 postos de trabalho”. Mentira! Valente mentira! Aquilo que iria ser feito era diminuir as horas de trabalho nos dias de menos afluência, para que depois os
} 6,42% é o valor da taxa de juro exigida
pela banca internacional à economia portuguesa, nas obrigações a 10 anos. Mais 30 pontos percentuais, o valor mais alto desde 1997. (Agência Bloomberg).
} A Associação Portuguesa de Turismo
de Lisboa, presidida pelo presidente da CM de Lisboa António Costa, quer aplicar aos turistas taxas sobre as entradas e do dormidas na cidade (1 euro pelas entradas, 20 cêntimos pelas dormidas em pensões e 1,90 euros em hotéis de 5 estrelas). (Diário Económico, 20 de Setembro).
} O valor das poupanças dos portugue-
ses subiu 830 milhões de euros entre Junho e Julho, o maior valor desde 1989. Os depósitos de particulares passaram no mesmo período de 118.402 milhões de euros para os 119,232 milhões. Enquanto isso, o crédito malparado aumentou, com as famílias que não conseguem pagar os empréstimos bancários a atingirem os 2,91% (4.09 mil milhões de euros) e o relativo ao consumo os 7,86%. A banca emprestou 975 milhões de euros para compra de casa, menos 30 milhões que em Junho. (Boletim Estatístico do Banco de Portugal, 21 de Setembro).
} 57 milhões de euros em 2010, 235 no próximo ano e 369 em 2012, é quanto estima obter em receitas de porta-
da Solvay foi tudo menos a crise. Setenta e cinco dos trabalhadores a despedir serão da Solvay portuguesa. Mais uma vez quem trabalha é que vai pagar os custos de mais uma reorganização do capital e da produção, no caso provocada por um negócio em que não foram vistos nem achados. Uma demonstração clara de que a essência do sistema capitalista é a procura do lucro máximo e não a satisfação das necessidades humanas.
mesmos empregados tivessem de trabalhar ao domingo de tarde. É o que se vem fazendo no grupo Sonae. E também retirar horas em alguns dias e obrigar os trabalhadores a trabalhar até às 14 horas de domingo e, durante a semana, até às duas horas da madrugada, quando a sua hora de saída contratada é à meia noite. VÍTOR COLAÇO SANTOS
gens a Estradas de Portugal, EP. (Almerindo Marques, presidente da EP na Comissão Parlamentar de Obras Públicas, 21 de Setembro).
Cavacadas
} Os trabalhadores das autarquias fize-
ram uma greve a 20 de Setembro para “levar o governo a cumprir a sua própria legislação e deixar de ingerir nas câmaras com vista à redução de salários”.
} O emprego em Portugal reduziu
1,5% no segundo trimestre do ano, face ao período homólogo de 2009. Neste período foram destruídos 74 mil postos de trabalho.
} Os preços subiram 1,9% em Agosto,
face ao período homólogo de 2009, e 1,8% relativamente a Julho. Os aumentos principais registaram-se nos transportes, produtos alimentares, bebidas, habitação, água, electricidade, gás e outros combustíveis.
} A destruição de activos financeiros
à escala mundial durante o período mais agudo da crise foi de 37 biliões de euros, o equivalente a 87% do PIB mundial em 2009. Nesse ano o PIB mundial caiu 0,8% e o comércio internacional entre 11 e 12,3%. (Jorge Nascimento Rodrigues, Expresso Economia, 18 de Setembro).
Cavaco, numa demonstração de que é um presidente atento às modas políticas e empenhado em apontar rumos de salvação para o país, acaba de revelar a sua “inquietação pelo alheamento
de Portugal relativamente ao mar”, o qual deve tornar-se “uma verdadeira prioridade da agenda política”, e mostrar-se igualmente alarmado com a deficiente exploração económica de tão “valioso recurso”. Estranhas palavras, vindas precisamente de quem há vinte anos, em nome da modernidade e do desenvolvimento, iniciou o abate da frota pesqueira portuguesa e liquidou o que ainda restava da indústria naval e transportes marítimos, inaugurando o modelo de “desenvolvimento” que nos conduziu à situação de mão estendida em que hoje nos encontramos – a política do betão e das obras faraónicas, feitas à custa e com o esbanjamento dos dinheiros da União Europeia, e de liquidação do aparelho produtivo a troco das ajudas estruturais que, dizia, nos iriam transformar num moderno e próspero país de serviços e muito sol.
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IFM/PLATEX
PETROGAL
Uma vitória com sabor amargo
Morrer a trabalhar
“Este não é o acordo que os trabalhadores desejavam, mas é o acordo possível”. Com estas palavras, Aquilino Coelho, do Sindicato da Construção e Madeiras do Sul, sintetizava a impotência e o conformismo dos trabalhadores da IFM/Platex, de Tomar. Com a realização da assembleia de credores em Setembro, terminava um longo processo de luta dos 200 trabalhadores da Platex em defesa dos seus postos de trabalho e pela viabilização da empresa. Salva do encerramento pela Investewood, tal fez-se sob chantagem, porque os credores (trabalhadores, Segurança Social, finanças, BES e BCP) ou aceitavam as condições desta empresa, que comprou a Platex, ou era o fim para os operários. O que para eles
significou o despedimento de quase metade (só 105 foram integrados), o pagamento dos salários em atraso e um corte de 35% nas indemnizações devidas aos que não foram reintegrados. Os 105 que ficaram tiveram de prescindir de três meses
Distribuição de riqueza 31% das famílias portuguesas vivem no limiar da pobreza e 20% estão já na pobreza. A causa destes 31% está no desemprego e na precariedade laboral. Caso não houvesse apoios sociais (neste momento a serem cortados), a pobreza aumentaria para os valores próximos dos 50%. Entretanto, o número de milionários em Portugal subiu no último ano de 1040 para 11.000 – mais 600! Os pobres mais pobres, os ricos mais ricos. O problema da pobreza não tem a ver com o crescimento do PIB, mas com o modo como o rendimento é distribuído. A fome alastra entre nós. Os ministros deviam deslocar-se até à sopa do Sidónio, em frente à igreja dos Anjos, e indagar junto daquelas centenas de despossuídos da vida que se juntam ali, diariamente, em busca
de um pão e de um caldo, a origem dos seus infortúnios. Assinalando o Ano da Pobreza e da Exclusão, os “bravos” políticos dizem uma palavras comovidas ou passam indiferentes, ou entregam uma moedinha e vão à vidinha. Os governantes malfeitores estão a enfiar-nos numa camisa de
Um trabalhador de 50 anos morreu, vítima de acidente de trabalho, na madrugada do dia 5 de Outubro, quando trabalhava na reparação de uma instalação da Petrogal em Sines. É mais uma vítima da precariedade contratual, do trabalho à hora em que tudo se exige, pouco se paga, os trabalhadores não têm direitos e raramente constam das estatísticas. O trabalho que efectuava era de carácter urgente, de curta duração e por isso obrigava a várias horas de trabalho quase seguidas e com pouco descanso. Era um operário subcontratado de outra empresa a recibo verde, o que significa que quanto mais horas fizesse, mais ganhava e menos a empresa descontava para a Segurança Social. Este é mais um caso demonstrativo da exploração selvagem a que estão sujeitos os precários, sujeitos a todas as arbitrariedades patronais e das próprias chefias. Têm muitas vezes receio de reclamar melhores condições de trabalho, mais segurança e inclusive de recusar fazer determinados trabalhos sem condições. Na Petrogal neste momento existem milhares de trabalhadores precários, portugueses e estrangeiros, com contrato a termo e a receber à hora. Não gozam férias, não recebem subsídio de férias, de Natal, nem horas suplementares. O salário é o mais baixo possível, para que o patronato pague o mínimo para a Segurança Social; o restante vem no recibo como ajuda de custo, quando afinal não existe deslocação. Outros estão a recibo verde, como seria o caso do trabalhador falecido. Chamam-lhes trabalhadores por conta própria, mas não têm qualquer autonomia: cumprem um horário de trabalho, as ferramentas utilizadas são da empresa e, no local de trabalho, estão sob ordens, direcção e autoridade de um responsável da empresa à qual foi adjudicado o trabalho e está também sempre presente um quadro da Petrogal.
onze varas – mas não sabem prever a explosão social que se aproxima… Almeida Garrett disse: “para haver” poucos ricos, tem que existir muitos pobres. Mais contundente, José Rodrigues Miguéis: “Por cada rico, têm de existir 100 pobres!” VÍTOR COLAÇO SANTOS
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Os EUA retiraram do Iraque? Uma enorme campanha de desinformação acompanhou o anúncio da retirada norte-americana do Iraque. Estávamos perante mais uma vitória dos EUA e, em particular, de Obama: a guerra baixou de intensidade e, supostamente, o Estado iraquiano seria uma realidade, dotado de forças armadas e policiais capazes e eficientes, com o parlamentarismo minimamente implantado. A resistência estaria debilitada e a caminho da derrota. O único senão seria não terem conseguido deitar mão a Bin Laden. Dos mais de 600 mil mortos iraquianos vitimados pela invasão nem sequer se falou. Contaram mais as menos de 5 mil baixas sofridas pelos norte-americanos por um Iraque “livre e democrático”. No entanto, a realidade dos factos é outra, como fizeram notar algumas vozes menos dedicadas à propaganda e mais ao jornalismo a sério. Não houve qualquer retirada, mas uma simples reconversão do dispositivo militar, em conformidade com os objectivos estratégicos definidos há muito por Obama – centrar a luta contra o terrorismo no Afeganistão e privilegiar a guerra suja ou “encoberta”, consubstanciada na sua Doutrina de Guerra Irregular (o texto publicado na rubrica Pelo Mundo é esclarecedora a este respeito). No terreno ficam cerca de 60 mil homens, 40 mil deles tropas de elite, das melhores que os EUA dispõem, fortemente armadas com o mais avançado equipamento militar existente. A única força aérea existente no Iraque não é outra que a norte-americana. O restante contingente é constituído por espiões, gente das secretas, especialistas em guerra suja, etc. A esta espécie de guarda pretoriana do regime, que tanto serve para o manter a salvo da resistência como dentro dos limites que mais convêm aos interesses do império americano, há ainda a juntar o enorme contingente de mercenários, superior a 100 mil homens. No plano político, ao contrário da verdade oficial, as últimas “eleições” foram um fracasso. Realizadas em Março e vencidas pelo candidato que não era apoiado pelos ocidentais, as facções ainda não conseguiram chegar a qualquer acordo, pelo que o Iraque não tem governo há mais de meio ano. O único resultado visível foi o de provocar um recrudescimento da guerra, o aumento da violência sectária e aguçar os ape-
tites e as ingerências locais (Irão, sauditas, turcos, sírios, russos, israelitas, etc.), o que obriga os EUA a negociar com o arqui-inimigo Irão e pode conduzir a prazo ao desmembramento do Iraque entre sunitas, xiitas e curdos. Na realidade, o Curdistão iraquiano já só formalmente é que ainda é parte do Iraque. Há algo nesta “retirada” que faz lembrar a do Vietname, em 1973. Também na altura, dados os custos políticos, económicos e humanos, os EUA anunciaram uma retirada e a vietnamização da guerra, deixando para trás, como agora, milhares de “instrutores” e um governo fantoche, mas “democrático”. Dois anos depois, o regime sul vietnamita colapsava e os norte-americanos retiravam à pressa, de forma desordenada, deixando para trás aviões, blindados, helicópteros e os “protegidos” entregues ao seu destino.
Obama pior que Bush Uma investigação de Eva Golinger, do Wshington Post, revela que Barak Obama aprovou a expansão da guerra secreta contra grupos radicais. Tais operações, a realizar em 75 países, vão envolver 13 mil militares e civis, especialista em espionagem, guerra psicológica, treino, acções clandestinas e outras. A jornalista afirma ainda que o investigador Jerry Schaill descobriu que Obama enviou grupos de elite das forças especiais denominadas Comando de Operações Especiais Conjuntas para o Irão, Geórgia, Ucrânia, Bolívia, Paraguai, Equador e Peru. E que um alto militar do Pentágono lhe terá confidenciado que Obama está a autorizar muitas acções e estratégias que não foram autorizadas durante o governo de Bush. Não falta dinheiro para conspirar e financiar organizações como La Torre, que há dois anos tentou derrubar Evo Morales através de um “golpe cívico-comunal”, coordenado pelo embaixador Philip Goldberg, que viria a ser expulso. Obama acaba de pedir um aumento de 5,7% do orçamento destinado a Operações Especiais para 2011. 6.300 milhões de dólares, mais 3.500 adicionais para operações clandestinas de contingência. O que eleva para 872 mil milhões o orçamento de defesa, sendo 75 mil milhões destinados a acções de espionagem. Em 2009 Obama deu a conhecer a sua Doutrina de Guerra Irregular, a qual dá prioridade às acções de guerra “encobertas” e não convencionais. A subversão e o uso de forças especiais em operações clandestinas são o principal meio de destabilização do adversário, a partir de dentro. Para realizar estas tarefas, agências e ONG’s como a USAID - Agência para o Desenvolvimento Internacional dos EUA, a NED - Nacional Endowment for Demoracy ou a Freedon House, servem para canalizar o financiamento dessas acções. A “sociedade civil” e os movimentos sociais infiltram-se no países onde os interesses imperialistas estão sob ameaça – “já não temos de trabalhar a partir das embaixadas nem de nos coordenarmos com o Departamento de Estado. Podemos operar a partir de onde quisermos”, revelou uma fonte a Golinger. (Adaptado de Resumen Latinoamericano, Jul./Ago.)
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A paz de Washington As conversações de paz entre Israel e a Autoridade Palestiniana, forçadas pelos EUA, chegaram a um impasse ainda antes de começarem, como era previsível. Mais um tropeção para Obama – a juntar aos insucessos no Afeganistão e no Iraque – que assim se vê perante acrescidas dificuldades para a implementar a sua estratégia antiterrorista e de “pacificação” do Médio Oriente, o que o impede de concentrar meios para cercar e submeter o Irão, se necessário pela força. Contratempo mais significativo se tivermos em conta que os Estados Unidos e Israel contaram com a boa vontade sem paralelo do presidente palestiniano Abu Mazen, disposto a mais uma vez reconhecer o Estado hebraico e a não levantar obstáculos à liquidação do governo palestiniano e do Hamas em nome da “segurança de Israel”. Ou seja, uma rendição sem condições. A troco de quê? Da promessa de um expansionismo menos agressivo de Israel e da suspensão da construção de colonatos. Quanto ao resto, continuaria a ocupação da Palestina, agora transformada e reconhecida como colónia de Israel, a existência de um “Estado” palestiniano sem continuidade territorial, murado e desarmado. A sua defesa e segurança seria assegurada pela potência colonial, tal como continuaria condicionada aos caprichos sionistas a circulação entre as pulverizadas comunidades palestinianas que, lembremos, dependem totalmente de Israel no que respeita ao abastecimento de água, produtos industriais, alimentares, etc. O que significaria também a oficialização da existência de
pelo menos cinco Palestinas – Gaza, Cisjordânia, a Palestina de 1948, Jerusalém Ocidental e a dos refugiados. Forçado a suspender as conversações, sob pena de cair no descrédito e tornar-se alvo da ira popular, o presidente da Palestina está longe de ser uma vítima das circunstâncias. Ao aceitar falar de paz com o presidente israelita, nas condições que lhe foram impostas por ele e pelos americanos, com ataques a decorrer em Gaza e Jerusalém, deixou de fora os representantes eleitos pelo povo palestiniano para os governar, a população de Gaza e o Hammas. O mínimo que se pode dizer é que é uma traição aos sacrifícios suportados pelo povo da Palestina que há 60 anos luta pelo direito à autodeterminação nacional. Este acto não se deve a um só homem, mas a uma lógica de sobrevivência da corrupta casta da burguesia palestiniana, fortemente ligada e dependente da economia e dos negócios com Israel. Se se conseguem entender nos negócios, porque razão não se podem
A PROPÓSITO DO CATIVEIRO DO SOLDADO GILAD Há dois dias li o seguinte no Twitter: “Passaram demasiados dias e noites desde que Gilad Shait foi sequestrado pelo Hammas. 1501 dias de cativeiro está para além do incompreensível.” Shalit é um soldado ocupante israelita cuja missão era matar palestinianos. Não é um “cidadão sequestrado”… se está para além do compreensível, que dizer de 6.000 em cativeiro? Ou 9.000? E como chamariam a 11.817 dias presos por um Estado terrorista? Um sionista à civil ou fardado tem luz verde para disparar e matar qualquer palestiniano que ele ‘pense/ acredite/assuma/preveja/imagine’ ser uma ‘ameaça’ para a potência nuclear que detém o quarto exército mais poderoso do mundo, e tem a certeza de que jamais será detido, julgado ou encarcerado por isso. Um palestiniano só precisa de ser palestiniano e estar na mesma rua, aldeia, cidade, região, continente, planeta ou galáxia em que seja ‘atacado’ um sionista para ser detido, torturado e encarcerado por ‘atacar’ um sionista armado até aos dentes, mesmo sem qualquer prova disso. Entre os mais de 7.200 presos palestinianos que estão actualmente nas prisões israelitas: - 308 são “presos veteranos” – palestinianos presos antes da assinatura do chamado acordo de paz entre a entidade sionista e a defunta OLP, em Maio de 1994; - 118 são “decanos dos presos” – palestinianos encarcerados há mais de vinte anos; - 21 são “generais da paciência” – palestinianos encarcerados há mais de vinte e cinco anos; - 291 são crianças;
entender noutros assuntos? Abu Mazzem também sabia – como todos sabemos, dado que os governantes israelitas não fazem segredo disso – que a política de expansão dos colonatos é para continuar, porque ela é e sempre foi a peça essencial do plano de colonização pelos sionistas. Israel só lhe porá fim pela força. Nada tem de novidade que Israel tenha decidido avançar com a construção de novos colonatos, depois de a ter suspendido por uns meses e por pressão norte-americana, no preciso - 36 são mulheres; momento em que se iniciavam os pri- 203 estão sob prisão administrativa. meiros encontros. Repetiu o que sem(Adaptado de um artigo de Reham Alhelsi, Rebelion). pre tem feito. Obtida a cedência (e aqui era levar a Autoridade Palestiniana a “negociar” a paz), logo fez tábua O NACIONALISMO GALEGO MARXISTA rasa das condições iniciais e avançou A génese do movimento nacional galego não é alheia com novas exigências – reconhecia todo esse movimento mundial de ruptura com as posimento prévio do Israel e não questioções conciliadoras soviéticas, com o conservadorismo namento da política de expansão dos dos partidos comunistas tradicionais, de legitimização e colonatos. utilização da violência revolucionária como instrumento Como Abu Mazzem é homem de imprescindível para atingir o poder e destruir o modo mão dos americanos, o mais provável de produção capitalista, trazendo à luta uma nova geração é que daqui a uns meses as conversamilitante com outros referenciais imediatos diferentes ções sejam retomadas e em condições dos dos seus pais. Não podemos deixar de considerar ainda mais gravosas. O que se perfila que a acidentada fundação da UPG tem lugar poucas é nova tragédia palestiniana, com a semanas depois da constituição das FARC nas montanhas eclosão provável de uma guerra civil. da Colômbia, quando Che difundia por todo o planeta a A outra coisa não pode conduzir uma necessidade de se confrontar o imperialismo por todos “paz” conseguida à custa da dignidade os meios. Mais que mera casualidade, o movimento pae da negação dos direitos dos palestitriótico galego de inspiração marxista é também fruto, nianos, da liquidação da OLP, das diou pelo menos está influenciado pelas tendências internavisões na base da Fatah, da fragmencionais em voga naquela conjuntura. Tanto o que se tação política das organizações palespassava em Paris, Havana, Moscovo e Pequim, a cisão tinianas, do aprofundamento da sepasino-soviética como os debates e as novas orientações da ração entre as diferentes Palestinas, esquerda latino-americana e caribenha não eram alheias a fazendo tábua rasa da implantação Luís Soto, no México, ou a Celso Emílio Ferreira, em do Hammas, do milhão e meio de Caracas. Hoje tão-pouco devem sê-lo, embora a cultura palestinianos que vivem em Gaza e hegemónica em boa parte do movimento patriótico indos milhões forçados a viver na emicompreensivelmente despreze o que acontece para lá gração. das nossas fronteiras. (Carlos Morais, Voz Própria, 23).
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Nas Fábricas de França
Enfrentamos um ataque de grande envergadura. Responder-lhe é essencial. O governo Sarkozy-Parisot tem um objectivo preciso: aproveitar a crise económica mundial para reestruturar o capitalismo francês, tornando-o mais competitivo. Depois das dezenas de milhares de despedimentos em 2009, o ataque dirige-se agora às reformas. E no entanto a riqueza existe, para salvar bancos ou fluir aos milhões, como no caso Bettancour. Mas se somos nós que criamos a riqueza, é o capital quem dela se apropria…
Recusamos ser destruídos psíquica ou intelectualmente pelo trabalho… queremos o fim destes métodos de produção, do trabalho em cadeia, do trabalho que nos imobiliza, do trabalho nocturno com horários atípicos, stressante e polivalente, cronometrado, que nos desgastam o corpo e o cérebro, dia após dia.
(Passagens de uma declaração da Voie Prolétatienne, Partisan, 241).
Nas democracias do Tio Sam
Ajuda humanitária chega a Gaza Uma coluna de ajuda humanitária constituída por 140 veículos e mais de 300 apoiantes da causa palestiniana chegou a Gaza no dia 21 de Outubro depois de atravessar a Europa e parte do Médio Oriente. Organizada pelo ex-deputado britânico Georges Galloway, que já havia organizado uma outra coluna de ajuda humanitária a Gaza e foi por isso declarado “persona non grata” e impedido de prosseguir viagem pelas autoridades egípcias, a coluna entrou naquele território palestiniano pela fronteira de Rafah. Foram calorosamente recebidos pela população de Gaza e por responsáveis do Hammas, com bandeiras palestinianas e dos países que participaram na expedição. Criada com o apoio da Câmara dos Comuns de Londres, em 12 de Setembro, a coluna de ajuda humanitária passou por França, Itália, Grécia, Turquia e Síria, tendo chegado por mar ao Egipto, cujo governo fez questão de “excluir qualquer responsabilidade com a coluna de George Galloway”. Durante a travessia foi prestada uma homenagem aos nove turcos assassinados pela marinha israelita no assalto ao navio Mavi Marmara, em 31 de Maio, que comandava a frota humanitária que pretendia romper o bloqueio de Israel a Gaza.
A América Latina registou em 2009 um número impressionante da assassinatos, ameaças de morte, desaparecidos e perseguições a trabalha-
dores. Este clima de extrema violência custou a vida a 89 sindicalistas e activistas pelos direitos laborais, fazendo da América Latina a zona mais mortífera do mundo. No topo do ranking encontra-se a Colômbia do narco-para-presidente Uribe. Aí não só foram assassinados 48 sindicalistas como existe um clima anti-sindical, que dura há vários anos e parece ter-se enraizado. No México persiste a estratégia anti-sindical do governo. Quatro membros do sindicato nacional de mineiros morreram durante uma greve, enquanto noutros incidentes separados eram assassinados dois outros dirigentes, um deles na presença da família. No Brasil aumentaram os actos de violência contra os trabalhadores agrícolas, tendo sido assassinados três dirigentes sindicais e um activista defensor dos trabalhadores rurais. Nas Honduras foram assassinados pelo menos 12 sindicalistas e 125 presos durante o golpe de Estado. Os patrões recorrem a todo o tipo de intimidação – despedimentos, perseguições e listas negras.
(Contramarcha, Agosto/ Setembro)
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As outras nações de Moçambique? Aqui está um retrato da relação entre classes, com a burguesia moçambicana alheada e de costas voltadas para o povo, embora não partilhemos da esperança de uma refundação da Frelimo como partido popular que já foi. Os pneus ardendo nas estradas de Maputo e Matola não obrigaram apenas a parar o trânsito daquelas cidades. Paradoxalmente, esse bloqueio à normalidade abriu acesso a outras estradas que pareciam bloqueadas em todo o país. Os motins obrigaram a repensarmo-nos como país, como entidade que não pode ser dirigida por um pensamento único. As manifestações tornaram visível um outro Moçambique que parecia esquecido e longe dessa “pátria amada” tornada em chavão oficial. No auge da crise, a Frelimo retomou o seu velho método de contacto directo com as bases. Brigadas “saíram” para os bairros e regressaram alarmadas. O sentimento que encontraram nas bases estava distante dos relatórios oficiais que, à força de serem repetidos, pareciam ser a verdade única e total. Afinal, a zanga não era apenas a dos que saíram à rua. Os distúrbios eram a expressão desordenada de uma insatisfação bem mais generalizada e profunda. Não era obra dos “inimigos”. Se calhar, era obra dos que parecem militar nas próprias fileiras. Dos que assumem que fazer política
é levar e trazer relatórios falseados para agradar aos chefes. A insatisfação dos mais pobres não tinha apenas a ver com preços de produtos. Essa revolta não era, afinal, apenas dos que vivem na pobreza absoluta. Outras pobrezas fizeram fumo no primeiro de Setembro. A dimensão desse sentimento popular foi vital para ditar o volte-face do Governo. Medidas que 48 horas antes haviam sido tidas como “irreversíveis” pelo porta-voz do Conselho de Ministros foram, afinal, revogadas. De forma pouco habitual, o poder vinha dizer que uma parte do problema estava também dentro da própria governação. Esta aceitação da necessidade de uma nova ética na relação com os outros é talvez mais importante que as anunciadas medidas económicas. Ao assumir publicamente que devem dar o exemplo no apertar do cinto, os dirigentes da Frelimo tornam-se mais próximos dessa vanguarda moral que, antes nos ensinou que o “responsável político é o primeiro no sacrifício e o último nos privilégios”. Os eventos de Setembro podem indiciar que a Frelimo pretende
reaproximar da própria Frelimo. Chama-se o que se quiser ao volte face que o Conselho de Ministros. Eu acho que essa mudança foi corajosa, vital e indiciadora de outras mudanças. Essa mudança pode salvar todas as nações da nação moçambicana. E pode salvar a própria Frelimo como força condutora dos destinos de uma pátria que é a única que, nós, moçambicanos temos. Este acordar para uma realidade não tocou apenas os dirigentes de partidos. No dia dos tumultos, muitos cidadãos de Maputo foram sacudidos pela surpresa. Morando em bairros ricos, esses cidadãos há muito que confundiam a nação com a reduzida geografia da cidade por onde circulam. O lugar dos pobres era, para eles, um cenário longínquo, uma fachada apenas visível da janela das viaturas com que, apressadamente, atravessam as chamadas “periferias”. Aos poucos, a nação destes compatriotas se resumiu ao circuito das grandes avenidas e dos quarteirões privilegiados do cimento. É fácil amar uma pátria assim: mais ou menos limpa, mais ou menos servida, mais ou menos cosmopolita. Para os cidadãos “deste” Moçambique, os motins surgiram como uma espécie de invasão. Os desordeiros estavam avançando sobre a sua “nação”. Xilunguíne estava sendo ameaçada pelos bárbaros suburbanos. De repente, os habitantes da
nação cimentada acordaram para a existência de uma outra nação maior. De súbito, lembraram-se que havia uma outra cidade fora da cidade, que havia uma pobreza que não morava apenas nos “distritos”. O fumo dos pneus teve o efeito inverso do que se poderia prever: clareou céus e rasgou horizontes. Os pobres deixaram de ser apenas assunto dos workshops. Os pobres saltaram dos seminários em luxuosos hotéis para a realidade do dia-a-dia. Os pobres podem fazer parar o país dos outros. Mesmo que para isso acabem ficando mais pobres. Para quem tem pouco “amanhã” esse esbanjar de futuro valia a pena. Neste sentido, no dia primeiro de Setembro Moçambique deu uma cambalhota. Dito de outro modo, a percepção que um certo Moçambique tem de si mesmo foi colocada de pernas para o ar. A periferia virou o centro. A pobreza falou por si mesma, com seus recursos pobres, com a sua esperança empobrecida. As cicatrizes dos pneus em chamas não sobreviverá nas estradas da capital. Espero que as lições desse transbordar sobrevivam dentro de nós como um alerta que algo precisa mudar nas duas nações. MIA COUTO (O País online, 19/9)
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NOVO LIVRO DO APOCALIPSE OU DA REVELAÇÃO, Pe. Mário de Oliveira, Areias Vivas.
“ Deus disse: do que eu gosto é de política, não de religião”, título de um livro do mesmo autor, edição Campo das Letras, 2004. O cidadão Mário de Oliveira (MO) é um homem livre. Conhecemo-lo. Não se vende, nem vende a sua liberdade por nenhum preço. Lembra Leonardo Boff, brasileiro, teólogo da libertação que acabou excomungado (a excomunhão é uma pena eclesiástica que separa do grémio católico quem a sofre). MO “merecia” ser excomungado, mas por causa da sua intensa actividade nas comunidades de base, as suas mensagens e os livros que publicou, isso teria um impacto e mal-estar não controláveis, pelo que a hierarquia católica antes o quer “saurado”. Excomungá-lo dar-lhe-ia o dobro da visibilidade. O Novo Livro do Apocalipse ou da Revelação está bem escrito. É um manancial de corajosa, luminosa e desassombrada denúncia contra o(s) poder(es) instituído(s). Sem apelo nem agravo! Diz: “Bispos de Portugal… mudai de fé e de deus”! De Bento XVI: “É o grande desastre. Espécie de Inverno na Igreja. Continuação de João Paulo II, para pior.” Sobre Fátima: “Não encontramos nenhum teólogo convicto que defenda Fátima … é absolutamente impossível haver (ter havido) aparições … uma mentira as aparições de 1917”. Neste livro denso mas com interesse, MO, presbítero do Porto sem ofício pastoral (sem igreja atribuída, pudera!) desanca em quase tudo o que mexe: em Frei Bento Domingues, em toda a hierarquia católica, em D. António Ferreira Gomes (quem diria?) pelo seu silêncio no momento da segunda prisão de MO pela PIDE por causa da forma genuína de pregar e viver o Evangelho, em Saramago,
definindo-o como “de direita”, no amigo B. Bastos, no major Tomé, em Bush – “o louco e o assassino genocida que desencadeou a guerra no Iraque”, a classe política e Cavaco. No futebol dos milhões representados no “special one” Mourinho. O autor de Maria de Nazaré, seu terceiro livro (Afrontamento, 1972) numa lista longa, encontra (só) a solução jesuânica para todos os males da (dita) civilização. Não reconhece os partidos nem a política como sendo capazes de libertar de toda a exploração e opressão que os de cima (burguesia) exercem sobre os “de baixo”. Ora a solução jesuânica é (e será) um complemento, não a chave da resolução do enorme quebra-cabeças que é o actual capitalismo de casino ou os paraísos fiscais, cancro maligno em fase terminal. O livro do homem livre Mário de Oliveira recomenda-se também por outro conjunto de situações que não cabem neste breve comentário. A ler, pois claro! Apostila: “A crise, em Portugal, é uma crise de cultura e uma crise ética. Toda esta situação advém do medo (!), vivemos com o medo às cavalitas … - B. Bastos, no DN. Precisamos de mulheres e homens com rebeldia, inquietação e brilho. Com esperança. O presbítero Mário de Oliveira também dá esperança. Vítor Colaço Santos SITA VALLES. REVOLUCIONÁRIA, COMUNISTA ATÉ À MORTE (1951-1977), Leonor Figueiredo, Aletheia Editora, 2010.
Por estranho que pareça, este livro encomendado e patrocinado pela editora de Zita Seabra até parece ser uma obra fidedigna. A jornalista sua autora recolheu uma quantidade apreciável de factos, depoimentos, testemunhos, documentos, cartas, etc. e confeccionou uma biografia bastante credível e isenta, se esquecermos uma
série de imprecisões, meias verdades e omissões que alguns protagonistas lhe apontam. Os dados que apresenta nem sempre coincidem com outras versões que antes circularam, como a de Felícia Cabrita (ela própria reconheceu a mistificação de algumas delas), do MPLA (profundamente sectária e politizada) e do PCP (possivelmente envolvido mas depressa distanciando-se friamente de qualquer conexão que o comprometesse junto do MPLA). Claro que são os comunistas portugueses que ficam mais mal vistos, por terem deixado “cair” alguém que lhes estivera muito próximo e que mereceria mais consideração. Mas continua por se saber e nem ao de leve é aflorado, como se não contasse, o papel das outras forças externas que naquele tempo se ingeriam de todas as maneiras nos assuntos angolanos (Cuba, Estados Unidos, França e toda uma chusma de espiões que pululavam em Luanda). Ainda vai ser preciso investigar bastante mais para sabermos toda a verdade.
EM DEBATE, UFSC, Brasil. Está de volta a revista Em Debate do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que divulga os resultados de pesquisas desenvolvidas no Laboratório de Sociologia do Trabalho (LASTRO) daquela academia. Agora – com objectivos redefinidos e ampliados, exclusivamente em formato electrónico e periodicidade semestral – retorna com um perfil multidisciplinar, aberta a pesquisadores(as) de temáticas para além do estrito campo da sociologia do trabalho. Pretende reunir artigos, ensaios, resenhas, traduções, capítulos de relatórios de pesquisas, dentre outros trabalhos elaborados por estudantes de graduação e pós-graduação, funcionários pesquisadores, pesquisadores independentes e professores. Os artigos que nos pareceram mais interessantes neste número: “História contemporânea e crise capitalista” de Pablo Rieznik, que discute as crises capitalistas, inclusive a recente, como um aspecto dos limites insuperáveis do capital e uma manifestação de uma etapa específica do seu declínio histórico. A análise recorre neste caso ao panorama das grandes crises, desde a Grande Depressão, até à presente crise mundial em curso e à luz do contexto social mais geral da época. “A Revolução Russa de 1905 e os Conselhos Operários” de Nildo Viana. Uma análise do significado his-
tórico da Revolução Russa de 1905 e a emergência dos conselhos operários (sovietes), que aborda tanto as formas organizativas como as abordagens teóricas que as precederam. Para tanto, apresenta o contexto social da Rússia e o dilema da revolução burguesa neste país de capitalismo retardatário, a emergência dos conselhos operários e a teoria elaborada posteriormente na Rússia sobre o seu significado histórico. “Trabalho e acção: o debate entre Bakunine e Marx e sua contribuição para uma sociologia crítica contemporânea” de Andrey Cordeiro Ferreira. O artigo desenvolve uma reflexão sobre a confrontação política e teórica entre Bakunine e Marx, focando as suas diferentes concepções de trabalho e revolução. Considera que os estudos de sociologia do trabalho partem de um universo de problemas económico-filosóficos que têm claros e importantes efeitos políticos e que as diferenças na interpretação da natureza (económica, ideológica) do proletariado e do papel a ser desempenhado pelo campesinato derivavam de diferentes conceptualizações de trabalho. Ao retomar o debate clássico entre Karl Marx, que colocava a centralidade no desenvolvimento económico que geraria a classe revolucionária (o proletariado industrial) e Mikhail Bakunine, que enfatizava a vontade (liberdade) e acção como factores determinantes do processo revolucionário e entendia que somente a aliança operário-camponesa poderia levar à liquidação do capitalismo, procura-se demonstrar que tais diferenças influenciaram o curso da história e os debates do movimento operário e socialista internacional, além de terem sido fundamentais para a história das teorias sociais e para a formação da classe trabalhadora em todo o mundo. No final discute-se como certos pressupostos fundamentais (definição de trabalho, definição de classes sociais e concepção de história) podem ser determinantes para uma sociologia crítica do trabalho nos dias de hoje.
JOSÉ SARAMAGO (1922 – 2010) O Nobel da Literatura de 1998 disse um dia: “Não invento nada, sou apenas alguém que se limita a levantar a pedra e pôr à vista o que está por baixo. Não é minha culpa se de vez em quando me saem monstros”. Amado ou odiado, José de Sousa Saramago foi um indisciplinado de almas, um inquietador, um não-consensual, irreverente e lutador. Em Novembro deste ano Saramago assinalaria mais um aniversário. O octogésimo oitavo. Não está cá para o fruir. Faleceu. Há precisamente um
SETEMBRO / OUTUBRO 2010 | 15 A “relação especial” entre os Estados Unidos e o Reino Unido causou, nestes últimos doze anos, a morte de milhares de pessoas no Iraque, no Afeganistão e na Sérvia — tudo isso a bem da “cruzada moral” americana e britânica, destinada a instaurar a “paz e estabilidade no mundo”. Harold Pinter, 2002
Aos emudecidos Oh, a loucura da grande Cidade, quando à noite junto ao muro negro aleijadas árvores se erguem boquiabertas, e por uma máscara de prata o Espírito do Mal se ri; a luz com flagelo magnético a pétrea noite expulsa. Oh, o submerso dobrar dos sinos pelo anoitecer.
ano, escrevia contra o desemprego: “O crime contra a humanidade é também o que os poderes financeiros e económicos, com a cumplicidade efectiva ou táctica dos governos, friamente perpetram contra milhões de pessoas em todo o mundo, ameaçadas de perder o que lhes resta, a sua casa e as suas poupanças, depois de terem perdido a única e tantas vezes escassa fonte de rendimento, quer dizer, o seu trabalho”. A direita portuguesa nem no momento da morte de Saramago lhe reconheceu o que lhe é devido. Houve mesmo quem, com o rancor dos nulos, o atacasse de várias maneiras, como se as ideias diferentes tivessem de ser condenadas à Inquisição ou ao fogo do inferno. O ódio da direita à cultura e, sobretudo, à liberdade (Saramago não pedia licença às palavras) mais uma vez comprovado. A igreja “infinitamente piedosa” , como gosta de se auto-elogiar, também não perdeu a oportunidade de lançar Saramago, depois de morto, às chamas do diabo. A direita e a igreja afinal são frente e reverso da mesma moeda. Os factos são incontornáveis: não perceber que o laureado autor de Levantado do chão colocou, entre outras coisas, a língua portuguesa no mundo é talvez, também, não ter lido o Ensaio sobre a cegueira… Vítor Colaço Santos
11 Out. a 10 Nov. – Ciclo de debates Privado, Público e Comum, organizada pela UNIPop, às 18,30 horas, no Teatro Maria Matos: 11 Out. - O que é Comum?, com Michael Hardt e a UNIPop; 13 Out. - Economia, Comunismo e Pirataria, com José Maria Castro Caldas e Miguel Serras Pereira; 20 Out. - Cidades, Centros Comerciais e Praças Públicas, com João Pedro Nunes, Manuel Graça Dias e Miguel Silva Graça; 27 Out. - Médias, Propriedade e Liberdade, com Daniel Oliveira, Nuno Ramos de Almeida e Rui Pereira; 3 Nov. - Medicina, Ciência e Saberes, com António Fernando Cascais e Isabel do Carmo; 10 Nov. - Escola, Ordem e Emancipação, com António Avelãs e Jorge Ramos do Ó.
Prostituta, que em convulsões de gelo pares uma criança morta. A ira de Deus chicoteia a fronte do homem possesso, purpúrea pestilência, fome, verdes olhos quebra, Oh, o horrendo riso do ouro.
25 Outubro – Às 14,30 horas, no Jardim de Inverno do Teatro S. Luís, Edições Dinossauro apresentam o livro de Cândido Ferreira, com as peças de teatro “O Segredo de Conceição”, “Paris de Fora” e “ S. Tomás da Ermida”. Na apresentação, diversos actores lerão cenas das peças. 17 Novembro – Protesto nacional de estudantes contra as condições de atribuição das bolsas de estudo, convocado pela academia de Coimbra, em Lisboa 20 Novembro – Às 15 horas, no Marquês de Pombal, manifestação contra a Cimeira da NATO promovida pela plataforma Paz Sim! NATO não! 24 Novembro – Greve Geral Nacional contra as medidas de austeridade contidas no Orçamento de Estado para o próximo ano, convocada pela CGTP e UGT.
A Batalha, 240, Lisboa Abrente, 57, Compostela Challenge , v. 42/20, Brooklyn, Nova Iorque Contramarcha, 52, Madrid Dans le monde une classe en lutte, Jul., Paris Êxodo, 104, Madrid Fraternizar, 179, S. Pedro da Cova Lutte de classe, 129, Paris Lutte ouvrière, 2200, Paris Monthly Review, Set., Nova Iorque Nous ne revendiquons rien, Maio, Marselha O militante socialista, 84, Lisboa Octubre, 38, Madrid Partisan, 240, Paris Perspectivas, Jul./Dez.09, S. Paulo Resumen Latinoamericano, 109, Donóstia/San Sebastian Simón Bolívar, libertador de naçons, criador de Pátria Grande, AGRAB, Galiza Théorie communiste , 23, Les Vignères, Marselha Voz Própria, 23, Compostela
Mas quieta na caverna escura uma humanidade mais silente sangra, Forja no duro metal a redentora cabeça.
Georg Trakl
(1887/1914)
Nascido em Salzburgo, Áustria, é considerado um dos grandes poetas da língua alemã, para muitos superior a Rilke. A sua poesia, influenciada pelo simbolismo, é atravessada por um sentimento existencial e de solidão. Mobilizado para a I Guerra Mundial, presta serviço na frente oriental nas enfermarias. Após a batalha de Grodek, é deixado em condições terríveis, com a responsabilidade de cerca de uma centenas de feridos graves, e quase enlouquece. Internado num hospital de Cracóvia, suicida-se.
(continuação da pág.2) já terão, antes de 31/12/2009, passado os patacos (património mobiliário) para outros titulares ou património imobiliário, a exemplo do que fez o senhor Carlos Cruz, quando foi avisado de que ia ser condenado a largar avultadas indemnizações às vítimas da Casa Pia. Entrementes, dois milhões de beneficiários (gente essa sim, explorada), mais de metade deles analfabetos e/ou info-excluídos, no limiar da pobreza e mesmo da fome, literalmente aterrorizados com a complexidade da prova e com a iminência de perder os magros apoios estatais, arrastam os seus dias fazendo desde madrugada filas intermináveis à porta das delegações da SS para obter informações. No caso dos desempregados, os que mesmo assim conseguirem transpor mais esta odiosa barreira lá continuarão a marchar quinzenalmente para as apresentações periódicas. Mas estes, são os dos trocados... E os outros, os dos milhões, perguntarão os mais distraídos? E os maiores dos grandes, as grandes fortunas, offshores, banca, seguradoras, administradores e altos quadros? Vamos deixar de ser tolos: obviamente que a esses ninguém lhes toca, ninguém lhes impõe o levantamento do sigilo bancário que, no fim do tal formulário, nos obrigam a assinar. Porquê? Porque não há “ninguém” por cima deles. São eles o topo, os donos, os verdadeiros amos deste sistema capitalista rapace. E das nossas humildes vidas. Até quando? PJA (professor recém-profissionalizado, desempregado) – Mercês
Vai acabar a corrupção? Em finais de Agosto, na mesma altura em que se anunciava a promulgação pelo presidente Cavaco Silva de mais um pacote de combate à corrupção, o Banco de Portugal divulgava números sobre a fuga de capitais da economia portuguesa para os offshores – 1,2 mil milhões de euros nos primeiros seis meses do ano, mais 471 milhões relativamente ao período homólogo de 2009. Sobre o novo pacote (resultado das propostas amalgamadas dos partidos parlamentares) pouco há a dizer e, como os anteriores, de pouco servirá (não é esclarecedor que passados dois já ninguém se lembre dele?). É certo que se anuncia um maior rigor legal sobre os detentores de cargos políticos e na administração pública e a redução das situações contempladas pelo sigilo bancário. Simplesmente nada disto é para levar a sério, pela simples razão de que os cíclicos anúncios de combate à grande corrupção se têm revelado ineficazes devido à falta de vontade política de quem nos tem governado em afrontar os interesses instalados. Não é segredo que a multiplicação de leis, decretos e portarias, sem qualquer coerência e contraditórios, criaram propositadamente um tal emaranhado legal que alimenta às mil maravilhas a impunidade
dos ricos e poderosos. Não é por falta de leis que a justiça portuguesa não funciona, ou só funciona para os pobres. Ao contrário, é a proliferação e multiplicação de leis e mais leis que a paralisa e esvazia. Como há um século, nos tempos finais da monarquia, hoje cada um dispõe da justiça ou impunidade que pode comprar. O nosso regime, assente num capitalismo atrasado e parasitário, não sobreviria se, em nome da moral e da transparência, se começasse a levantar entraves ao livre jogo dos subornos, tráfico de influências e lavagem de dinheiro. É a corrupção que dá vida à economia portuguesa, fazendo fluir
os negócios e o dinheiro. A corrupção é a forma encontrada pelo grande capital nacional para contornar as leis tacanhas e o “peso do Estado” que abafam a livre iniciativa dos empreendedores. Por isso ela é incontrolável. Daí que a fuga de capitais do sector produtivo (seja pela forma legal registada pelo Banco de Portugal, seja através da economia paralela que, segundo os dados disponíveis, corresponde a mais de 20% da economia portuguesa) para o especulativo seja uma realidade imparável. Esgrimir contra esta realidade sem pôr em causa o sistema que a gera, fazendo fé na renovada utopia de que o capitalismo é regulável, de que há um capitalismo bom e ético, capaz de criar riqueza e bem-estar, e um outro maléfico e parasitário, que vive da especulação financeira e de costas voltadas para a satisfação das necessidades da humanidade, como o fazem o BE e PCP só nos pode conduzir a nova e renovada miséria material e ideológica. Hoje, mais que nunca, se sente a falta de um programa político e ideológico que diferencie, identifique e isole os interesses da classe proletária dos das restantes classes. ANTÓNIO BARATA
A Greve Geral de 29 de Setembro é insuficiente Os resultados da jornada de luita convocada ontem a escala estatal devem ser avaliados como positivos. A greve geral tivo umha adesom na Galiza superior a todas as previsons mais optimistas. Embora o seguimento tenha sido desigual por sectores e comarcas, o determinante foi o elevado nível de apoio na indústria, construçom e transporte. A greve foi maciça em Vigo, Ferrol, Corunha e Compostela, e em menor medida em Ourense, Lugo, Vila Garcia e Ponferrada. Largas dezenas de milhares de trabalhadoras e trabalhadores participárom nas manifestaçons convocadas polas diferentes centrais sindicais. A reforma laboral empreendida polo governo do PSOE antes do Verao, que basicamente facilita ainda mais o despedimento e universaliza o contrato precário, junto ao posterior anúncio do atraso da idade da reforma, forçárom as corruptas cúpulas sindicais a convocar umha greve geral coincidindo com a jornada de mobilizaçom europeia promovida pola CES. O nível de descrédito, por tantas traiçons, práticas entreguistas e políticas pactistas tem atingido tal grau que era necessário mudar qualquer cousa para que todo continuasse na mesma. No entanto, a anunciada reforma da segurança social e os ataques ao modelo de sindicalismo pactuado na Transiçom entre a burguesia e o reformismo provocárom que as duas principais centrais sindicais espanholas, CCOO e UGT, se vissem forçadas a implicar-se a fundo no sucesso da greve, para evitarem perder os enormes privilégios da sua casta burocrática e assegurarem o cumprimento dos Pactos da Moncloa de 1977. Os seus líderes e o conjunto do mastondôntico aparelho burocrático optárom por desculpar as políticas neoliberais e contrárias à classe operária que, com diversos ritmos, tem aplicado Zapatero desde 2003 até a actualidade, passando a solicitar a sua rectificaçom, sem questionar o modelo capitalista. No caso da Galiza, a CIG, principal sindical nacional e de classe, careceu de vontade e coragem para encabeçar a resposta obreira aos ataques do Capital. A burocratizaçom de umha direcçom hipotecada polos seus vínculos e compromissos com o regionalismo provocou que, diferentemente das etapas precedentes, quando tinha convocado em solitário greves gerais, nesta ocasiom foi a reboque do sindicalismo amarelo espanhol. Este adverso e desalentador panorama nom impediu que a resposta obreira e popular ultrapassasse todos os cálculos. A classe trabalhadora galega optou por aderir à greve e ocupar as ruas para
manifestar colectivamente o que até agora nom passava de ser umha oposiçom individual e maioritariamente silenciosa. O 29 de Setembro foi um grito colectivo para transmitir ao governo espanhol o enorme mal-estar polo desemprego e a precariedade laboral, a preocupaçom e ansiedade polo negro futuro que nos prometem, a oposiçom aos cada vez mais visívies cortes de direitos laborais e a progressiva regressom no poder aquisito. Mas também foi umha mensagem inequívoca aos sindicatos de que é necessário luitar para evitar mais retrocessos e derrotas. O sinal lançado pola classe obreira ainda é tímido, mas é claro. Basta de pactos, de tanta negociaçom, de apoios a governos de “esquerda” que aplicam idênticas políticas que os de direita porque estas práticas só tenhem conduzido a empobrecer amplas camadas populares e condenar a juventude e pensionistas a um futuro de miséria. Só estám a ser dados os primeiros passos, som ainda insuficientes, modestos, contraditórios, mas cada vez é mais constatável, a recuperaçom da rebeldia e ruptura com o pactismo entre inexperientes núcleos juvenis e sectores veteranos desencantados com tantos anos perdidos em práticas conciliadoras. As dúzias de sabotagens e ataques a autocarros, sedes do PSOE, bancos, grandes empresas, barricadas em vias de comunicaçom, queimas de contentores, confrontos com as burocracias nos piquetes, que acompanhárom a greve, som reflexo destes sintomas. As condiçons do presente e o aprofundamento da crise sistémica do capitalismo vai inexoravelmente obrigar a que do seio do proletariado se consolide umha linha combativa e assemblear que, praticando a luita obreira com visom global, dote o conjunto da classe de umha direcçom revolucionária capaz de se despreender da resignaçom e assumir que só mediante a tomada do poder se poderá evitar o incremento da sobre-exploraçom e corte de direitos e liberdades. Chegou pois o momento de avançar com decisom nesta direcçom. E isto só é possível coincidindo na luita para a radicalizar e estender. O sindicalismo revolucionário tem que preparar umha nova resposta para tombar a reforma laboral, descartar qualquer modificaçom na idade de jubilaçom e impossibilitar mudanças na segurança social. O governo PSOE está extremamente enfraquecido. A resposta de ontem nom chegou. É necessário convocar antes de finalizar Outubro umha nova greve geral.
Galiza, 30 de Setembro de 2010 CARLOS MORAIS