NOV. /DEZ. 2010 Nº 127
O PCP, a PIDE e a homossexualidade
SUPLEMENTO
SÃO JOSÉ ALMEIDA É e foi vulgar ouvir dizer que Júlio Fogaça (1907-1980) foi expulso do PCP por ser homossexual. Esta afirmação, ainda que nunca tenha sido escrita, embora seja um não-dito oficial, é ventilada como justificação para uma expulsão que ocorreu, mas não por este facto. A homossexualidade de Júlio Fogaça é real e tão real que até está documentada pela PIDE. As polícias políticas portuguesas sempre foram muito zelosas do controlo da sexualidade, mesmo que isso não fosse utilizado como acusação. Tanto que a Inquisição portuguesa foi a única com jurisdição sobre o “pecado nefando”, deixando um vasto espólio sobre o que foi e o que se julgou ser a sodomia. Dizia eu que a homossexualidade de Júlio Fogaça está documentada, era uma verdade assumida à época e não dissimulada pelo próprio, dentro do que podia ser uma homossexualidade assumida nos anos 40, 50 e 60 em Portugal. Não foi, porém, essa a razão da expulsão do homem que liderou a reorganização do PCP, nos inícios dos anos 40, que liderou o PCP nos anos 50 e que caiu em desgraça nos anos 60, depois de preso e expulso do PCP, quando Álvaro Cunhal, com quem disputou a liderança e o protagonismo interno, ascende a secretário-geral do partido. Se a homossexualidade de Fogaça não foi a razão da sua expulsão – esta teria sido uma realidade se ele fosse heterossexual, aliás, como disse Ruben de Carvalho na investigação que fiz para o livro Homossexuais no Estado Novo: “Nem que ele fosse irmão gémeo de Álvaro Cunhal, teria sido expulso” – isso não impede que se perceba como ela foi usada contra si pelo PCP, depois da ruptura. Ou seja, como, para justificar uma expulsão que aconteceu por divergência política, foi usada a hipótese de os cuidados conspirativos da clandestinidade comunista serem postos em causa pela vida amorosa de Fogaça e os encontros que mantinha com o seu companheiro de há anos Américo Joaquim Gonçalves. Como se os cuidados conspirativos não pudessem ser postos em causa e não o tenham sido também em encontros heterossexuais! É esta precisamente a ideia que me traz aqui: explicar porque é que, na minha opinião e fruto do que investiguei sobre o assunto, o PCP não era (como não é hoje) nem mais nem menos homofóbico do que o resto da sociedade portuguesa. Também o PCP reage e usa a homossexualidade de Fogaça com o mesmo mecanismo do silêncio, do não-dito que era geral no início dos anos 60. A homossexualidade é algo que não tem dignidade nem para ser atirado como acusação a um inimigo ou a um adversário político. E quando, em Julho de 1961, a revista clandestina do PCP O Militante publica a nota de suspensão da militância de Fogaça, fá-lo precisamente usando a insinuação, nunca dizendo o que não tinha dignidade de servir de argumento para acusar um adversário: “Não estando esclarecidos aspectos da conduta de Júlio Fogaça, que embora não digam respeito ao seu comportamento ante o inimigo, revestem gravidade, o Comité Central resolve suspender Júlio Fogaça do Partido até ao apuramento de factos e resolução posterior.” Seguir-se-á a expulsão. Isto
quando, em Março de 1961, Álvaro Cunhal já fora eleito secretário-geral e começara a corrigir o “desvio de direita”, liderado por Fogaça. Isto é assim não porque os comunistas fossem seres perversos e excessivamente homofóbicos, mas porque a construção da sociedade burguesa, assente no modelo de família nuclear, patriarcal, monogâmica, heterossexual e procriativa, destinada a enquadrar todos socialmente e a produzir mão-de-obra, tem como pressuposto básico a domesticação da sexualidade. Enquadrada por uma nova moral social – muitas vezes identificada com o que vem a ser no século XX a pequena e a média burguesia –, a sexualidade passa a estar ao serviço da sociedade e a ter uma função assumidamente procriativa. Para isso, toda a actividade sexual que não tem esse objectivo é vista como desviante e anti-social e, no caso das relações afectivo-sexuais entre pessoas do mesmo sexo, baptizadas de homossexualidade, a conceptualização passa a ser a de uma doença e de um crime. Crime estipulado na lei da mendicidade de 20 de Julho de 1912 – e que subirá ao Código Penal em 1954, só daí saindo em 1982 – e que é psiquiatricamente enquadrado como doença por uma escola de médicos inaugurada por Egas Moniz. É esta nova visão da sociedade que será imposta a partir do poder e que determinará a mentalidade social ao longo do século XX – vigorando ainda hoje em vastos sectores, que empurram os homossexuais portugueses para o gueto da estigmatização e da auto-estigmatização e que cobre a sociedade a partir dos anos 40, transformando a homossexualidade num desejo e num comportamento caracterizado em três grandes eixos. Por um lado, o eixo da diferenciação social: numa sociedade classista, é lógico que as classes altas tenham um tratamento menos repressivo face a uma sexualidade vista como desviante, pois essa permissividade para as elites era genérica. Por outro lado, o da diferenciação por sexos: a invisibilidade lésbica era uma realidade absoluta a partir dos anos 30 e até aos anos 70. As mulheres que amaram e se relacionaram sexualmente com outras mulheres sofreram a dupla estigmatização de ser mulheres e homossexuais. Exemplo dessa invisibilidade é a forma como foi vista e tratada pelo poder, quer da PIDE e da ditadura, quer do PCP, a relação amorosa, que começou dentro de Caxias, quando ambas estavam presas na cela das mulheres, entre a dirigente do PCP Fernanda de Paiva Tomás (1928-1984) e a médica oposicionista, apoiante do PCP de Angola, Maria Julieta Guimarães Gandra (1917-2007). Uma relação que se desenvolveu aos olhos das guardas e das outras presas, mas que foi ignorada, não vista, olhada como espectral, como um fantasma. E em terceiro, o eixo do não-dito, do silêncio, da exclusão pela omissão. O que não é dito, aquilo cujo nome não é pronunciado, não existe. Logo, a homossexualidade é, à luz da nova visão social, algo que passa a não ter existência, a não se dizer, a não ter dignidade de existir. E se os homossexuais foram tratados, tal como os opositores políticos, como anti-sociais na lei e enquadrados por medidas de segurança pela República e depois pela ditadura salazarista, diversa
era a dignidade com que ambas as categorias eram tratadas pelo Estado Novo. Assim, se um preso político era homossexual, a sua vida sexual era investigada e documentada, só que tal não tinha dignidade para ser usado contra o adversário político. Isso não impediu, contudo, que os homossexuais temessem ser incomodados pela PIDE ou que agentes da polícia política não usassem a sua posição para chantagear homossexuais. Daí que, mesmo quando o comportamento sexual desviante não é ignorado em absoluto e é usado contra o adversário – como foi o caso de Júlio Fogaça na sua última prisão – o processo por homossexualidade é autónomo e corre no Tribunal de Execução de Penas de Lisboa. No caso de Fogaça, o processo abrangeu também o seu companheiro, Américo Joaquim Gonçalves, que com ele foi preso nas ruas da Nazaré. A sentença desse processo será lavrada e copiada para a ficha da PIDE de Fogaça: “Julgado em 6-4-962 pelo Tribunal de Execução de Penas de Lisboa, tendo sido classificado de pederasta passivo e habitual na prática de vícios contra a natureza, mas para ficar sujeito, durante cinco anos à regeneradora medida de segurança de liberdade vigiada, com início na data da sua soltura e cujo exercício se lhe limita através do íntegro cumprimento das seguintes obrigações específicas: 1) fixar residência nesta cidade, de que dará verdadeiro conhecimento à PJ, mas de onde não se pode ausentar sem prévia autorização deste tribu-
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nal; 2) dedicar-se ao trabalho honesto, com permanência, mas não mais à prática de qualquer vício contra a natureza; 3) não acompanhar cadastrados, antigos companheiros de prisão, pederastas ou quaisquer pessoas de conduta duvidosa; 4) aceitar a fiscalização da sua conduta pela P J onde tem de se apresentar todos os meses e em dias e horas que lhe forem determinados.” O caso de Fogaça é, aliás, paradigmático de como o regime agia face à homossexualidade, reduzindo-a ao domínio da doença e da perversão, e não lhe reconhecendo dignidade sequer para estar ao lado de uma acusação política, se bem que não a ignorasse ou aligeirasse a sua repressão. Como é sabido, Fogaça era um importantíssimo dirigente do PCP, com um papel central na produção da linha ideológico-política do PCP. E tinha atrás de si um longo currículo de prisões. Logo em 1935, foi preso e enviado para o Tarrafal, com José de Sousa, também então membro do Secretariado do PCP, e com Bento Gonçalves, secretário-geral entre 1928 e 1942, ano em que morre no Tarrafal, vítima de biliosa não tratada. Libertado em 1940, lidera a reorganização a partir de 1940. É preso mais uma vez em 1942, sendo então também enviado para o Tarrafal, pelo que não participa no III Congresso, em 1943, o primeiro na clandestinidade que se realiza na Vila Arriaga, no Monte Estoril. No Tarrafal, após a morte de Bento Gonçalves, dirige a Organização Comunista dos
Presos do Tarrafal. Libertado em 1945, vê a sua “política de transição” derrotada por Cunhal no IV Congresso, na Lousã, em 1946. Depois da prisão de Cunhal em 1949, no Luso, Fogaça volta a determinar a orientação até ser preso, em 1961, sendo solto em 28 de Agosto de 1970, sob liberdade condicional, depois de dezoito anos de prisões (1935-40, 1942-45, 1969-70), oito deles no Tarrafal. O processo da PIDE e os documentos que sobrevivem na Torre do Tombo relativos às prisões de Fogaça afirmam explicitamente que ele foi preso a 30 de Agosto de 1960, em conjunto com Américo Joaquim Gonçalves, que foi também detido “por ser seu companheiro”. De acordo com os documentos apreendidos e com o que está no processo, Fogaça usava o nome falso de Fernando Abreu Ramos. Já Américo Joaquim Gonçalves não tinha identidade falsa, era operário fabril e nascera a 29 de Julho de 1935, em Torres Vedras. Foram presos às 16 horas, “numa rua da vila da Nazaré”. A busca que a PIDE faz à casa onde morava Américo Joaquim Gonçalves permite a apreensão de vários documentos, entre os quais duas cartas de um “Fernando”, ou seja de Fogaça, uma enviada de Vieira de Leiria e começava por “Américo amigo”, assinada “Fernando”, a outra enviada de “Monte Real”. O resto era panfletos de propaganda. A PIDE fez um aturado levantamento da relação de ambos, o que prova que, apesar de indigno para acusar um adversário político, o
assunto também não era digno de ser descriminalizado. Entre as testemunhas ouvidas, destaca-se o depoimento da senhoria do quarto onde Américo Joaquim Gonçalves vivia, de nome Cecília Augusta, que foi ouvida a 9 de Setembro de 1960 e que afirma que Fernando ia lá uma vez por semana, juntavam-se no quarto e falavam baixo e quando Américo Joaquim Gonçalves não estava, Fernando deixava um bilhete para marcar encontros. A senhoria conta também que Américo avisou que ia estar fora no fim-de-semana em que é preso: disse que “ia para a Nazaré no dia seguinte com o ‘Fernando’ e com a esposa deste”. E está documentado no processo que a PIDE conhecia a morada de uma pensão onde os dois dormiam em Lisboa, bem como a forma como se conheceram em 1957 em Cascais, onde Américo cumpria o serviço militar – no tribunal, Américo dirá que foi em 1953. Américo Joaquim Gonçalves é solto em 7 de Outubro de 1960 com uma caução de 50 escudos e termo de identidade e residência. Fogaça será julgado por homossexualidade a 6 de Abril de 1962. No registo dos interrogatórios de Fogaça, o nome de Américo só é referido uma vez, mas de uma forma que mostra que Américo Joaquim Gonçalves contou coisas sobre a sua relação. A 20 de Janeiro de 1961, a PIDE questiona Fogaça sobre a sua participação numa reunião de partidos comunistas em Itália que começou a 21 de Novembro de 1959, alegando que “Américo Joaquim Gonçalves, a quem o respondente chegou a enviar do estrangeiro algumas lembranças, o fez para tomar parte na ‘reunião dos 17 partidos comunistas’, que teve lugar em Roma com início a 21 de Novembro daquele ano”. A PIDE diz, aliás, que Américo Joaquim Gonçalves assinou sempre os autos e respondeu a tudo, enquanto Fogaça não. Mas no processo falta um documento fundamental, no auto dos interrogatórios iniciais de Américo Joaquim Gonçalves, as páginas 32, 43 e 57. Apesar disso é fácil de perceber pelos restantes documentos que este depoimento foi de quem falou e que a PIDE investigou o assunto, não
o ignorou. Tanto que Fogaça foi condenado no Tribunal de Execução de Penas de Lisboa. Já o caso da relação amorosa que nasce dentro de Caxias entre Fernanda de Paiva Tomás e Julieta Gandra é, por seu lado, paradigmático de como o lesbianismo era visto e tratado na sociedade de então. Ela nunca é referida nos processos de ambas, nem mesmo quando são castigadas isso é referido. Isto apesar de a relação ter existido dentro da cadeia, onde coabitaram mais de quatro anos e partilhavam a cela das mulheres com figuras do PCP como Maria Alda Nogueira, Sofia Ferreira, Aida Paulo, etc. Fernanda é presa a 6 de Fevereiro de 1961 e ficará em Caxias até 19 de Novembro de 1970, sendo a mulher que mais anos seguidos passou nas cadeias da PIDE. Julieta é presa em Angola em 1959, entra em Caxias em a 8 de Novembro de 1960, sendo libertada após uma campanha da Amnistia Internacional como presa do ano, em 6 de Julho de 1965. Esta relação lésbica prolongar-se-á depois da libertação de Fernanda de Paiva Tomás até à sua morte em 1984, período em que viveram juntas. O silêncio que se fez sobre esta relação depois da morte de Fernanda de Paiva Tomás e o silêncio que existiu em relação ao período da prisão são típicos do que é a condição de não-dito que caracteriza a homossexualidade e que é ainda mais estigmatizante no caso do lesbianismo, já que as mulheres homossexuais são duplamente estigmatizadas: enquanto mulheres cuja sexualidade é reprodutiva e para dar prazer ao homem e que por isso não têm prazer, logo duas mulheres não têm sexualidade juntas. Sobre esta relação lésbica, vivida dentro e depois fora de Caxias, disse Teresa Horta, num trabalho que fiz para o Público quando da morte de Julieta Gandra: “Com o passar dos anos sobre a morte de Fernanda Tomás, a relação foi silenciada, mas as pessoas sabem, até porque criou celeuma na própria cela”. E prossegue: ‘Tinham uma afectividade imensa e uma solidariedade imensa entre as duas. Para fazer aquilo que elas fizeram, era preciso que houvesse uma grande coragem e um grande amor.
Mesmo depois do 25 de Abril, havia silêncio à volta do assunto. Não por elas, que não escondiam. Mas, em relação à mulher, é mais difícil falar-se, não há homossexualidade feminina, porque não há sexualidade feminina’.” E Teresa Horta chamava a atenção para o que esta relação comporta de limite: “Imagine-se o que é duas mulheres assumirem uma relação dentro de uma cela de uma cadeia da PIDE cheia de presas do PCP. É um acto de transgressão máxima, para mais porque são presas políticas do fascismo. Além da transgressão que as leva ali, há esta.” O impacto dessa transgressão é documentado por Maria Eugénia Varela Gomes na entrevista biográfica que dá a Maria Manuela Cruzeiro, do Centro de Documentação 25 de Abril, da Universidade de Coimbra. Aí Maria Eugénia Varela Gomes é explícita a criticar a relação de ambas, que assim se expunham perante a PIDE. Esta crítica foi reafirmada em declarações a mim num trabalho que fiz para o Público quando Julieta Gandra faleceu: “Era visível dentro da cela a relação das duas, escrevi porque é a verdade histórica.” Uma “verdade histórica”, nas palavras de Maria Eugénia Varela Gomes, que coabitou com ambas na cela das mulheres, mas uma “verdade histórica” que se viu invisibilizada, que viu a sua dignidade negada, enquanto relação lésbica, pela PIDE, pelo PCP e até por muitas pessoas que foram amigas do casal. (Participação no colóquio da Política Operária, 13 e 14 de Novembro de 2010, Livraria Ler Devagar, Lisboa)
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Cartas de um preso político a sua filha ANA BARRADAS
A “petite histoire” da vida dos militantes do PCP é muito pouco conhecida. Sempre se cultivou a ocultação dos percursos individuais, por razões de clandestinidade que se entendem mas segundo um padrão recorrente que se prolongou muito para lá do fim do fascismo A recente morte de alguns dirigentes recorda-nos essa quase ausência de memória histórica em termos de vida pessoal. Por isso valorizamos aqui documentos fidedignos que os próprios deixaram: correspondem-se com familiares falando da sua condição de prisioneiros, da família, dos dramas e dificuldades, de como se comportar perante a adversidade, da arte e de poesia e das atitudes a tomar perante a vida em geral. Tivemos o privilégio de conhecer uma pequena colecção de cartas escritas de Peniche nos anos 60 de um alto dirigente do PCP à sua jovem filha, já na altura funcionária do PCP e que esteve presa em Caxias dos 20 aos 27 anos. São cartas manuscritas de um tamanho equivalente a uma folha A4 frente e costas, permitidas uma vez por mês e lidas pelas duas comissões de censura, a de Peniche e a de Caxias, como se pode ver pelo carimbo da censura sobre a carta. As cartas têm toda a formalidade e cautelas que se podem esperar de quem sabe que vai ser lido pelos carcereiros e tem condicionada a castigos a autorização de se corresponder com a filha: “Passarei agora a escrever-te mensalmente uma folhinha assim, para estritos problemas pessoais.” A primeira carta anuncia à filha a chegada a Peniche, depois da condenação a pena maior: “Cheguei! Voei por montes e vales. Crespas ondas eu venci. Cem mil batalhas travei. Rudes borrascas sofri. Com os músculos retesados o calendário bati. Mas cheguei! Cansado, esfarrapado, mas com o riso nos olhos!” Era de praxe o optimismo, a expressão de um ânimo imbatível e a afirmação da vitória, mesmo na adversidade de estar preso e ter passado pelos maus tratos da tortura. O compromisso de luta suplantava tudo: “Os acontecimentos rolam, rolam, indiferentes aos nossos desejos e emoções com a sua dupla face de dor e esperança – de tal é feita a certeza – a afirmarem que a vida, mesmo conspurcada de regressões e lodo, é sempre pujante e promissora. E isso nem um só momento devemos esquecê-lo.” Sabemos que os Beatles gravavam nesse mês o seu primeiro disco, em Chipre degladiavam-se turcos e gregos, a Bolívia ganhava o título de campeão sul-americano de futebol, os cursos da Academia Militar em Portugal eram encurtados para fornecer mais oficiais para a guerra, o papa João XXIII publicava a encíclica Paz na Terra, terminara a guerra entre a Índia e a China, Francisco Martins Rodrigues escrevia cartas insistente ao CC do PCP criticando a linha sobre o derrubamento do fascismo, as alianças com a burguesia democrática, a questão da guerra colonial e do alinhamento do Partido pelo PCUS contra o Partido Co4 munista chinês. Não sabemos em que acon-
tecimentos pensava este preso, mas tudo isto lhe devia passar pela cabeça. FAMÍLIA Tinha duas filhas já crescidas, uma filha muito pequena e um filho de dois anos que mais tarde foi entregue aos padrinhos, visto a mãe e o pai estarem presos. Ao longo de 12 cartas não se cansa de exprimir alegria pela “ranchada de filhos” que teve: “Bem pode a senhora vida ter-me feito e vir ainda a fazer-me as mais travessas partidas. Não conseguirá apagar-me a alegria ímpar que me deste quando pela primeira vez fui pai”. O culto da família estava bem enraizado no pensamento do preso, em consonância com a cartilha vigente na altura nos meios comunistas. Mas “não basta o vínculo de sangue para unir as famílias. Pelo contrário, a realidade mostra todos os dias que quando esse é o único traço de união não há mesmo união – há uma consideração relativa e pouco mais.” Porque o conceito de família era essencialmente político, fala da “íntima determinação de não legar aos meus filhos a mancha duma indignidade que pudesse amanhã fazê-los sofrer à lembrança de seu pai”. Referia-se provavelmente ao facto de ter resistido à tortura e de não ter falado durante os interrogatórios pela PIDE. Preocupado com os filhos pequenos, recorda à filha: “Tenho sempre diante dos olhos as vicissitudes da tua vida e da tua irmã” (ambas na clandestinidade desde crianças). “E desde já façamos tudo o que pudermos para arredar tudo isso das suas pequeninas vidas.” A raiz da sua emoção, assinalada pela outra filha que o visitara em Peniche, era “pôr no mundo duas gerações de filhos e sentir partir-se o coração por não poder acompanhá-los desde os primeiros passos, como sempre foi minha aspiração profunda; não poder cuidar dos seus problemas com o entranhado interesse que me merecem; não poder, como qualquer pacífico ‘papá’, correr com eles, livremente, as cavalitas, pelos campos fora.” Quase todos os presos sentem duramente a sua omissão como pais e sonham com uma vida alternativa em que pudessem cuidar da família. Este não era excepção. Mas a militância estava acima de qualquer consideração, era preciso renunciar a tudo, como explica: “Por isso a necessária abdicação de tudo isso que alimenta a solicitude dos pais me dói profundamente e ao mesmo tempo sinto é que é assim, que tem de ser assim, ainda que se parta o coração.” Estabelecia-se como que uma relação dialéctica entre a vida privada, suprimida quase por completo e por isso fonte de dor e desgosto, e a entrega à causa, portadora de alegria e esperança. Era esta
que valia. “Há muito que me habituei à renúncia de muitas coisas – uma outra bela coisa que se aprende na prisão – e já estou bem couraçado” [contra as negligências da família]. O filho pequeno era quem o apoquentava mais: “Começa já a ser necessário pensar na saída dele, que faz 3 anos em Agosto.” Estava na prisão de Caxias com a mãe. “Está quase a deixar a mãe. Estamos muito apreensivos porque praticamente não tem outra vez para onde ir e isto amargura-me bastante. Como se resolverá tudo isto? A minha impotência para intervir nisto é das coisas que mais me dói.” Meses mais tarde: “Outro problema vai ser arrancar o menino à mãe e à irmã. Uma recente tentativa para o fazer dar um passeio com a tia redundou num berreiro tremendo e numa resistência tenaz. Mas terá de ser um drama inevitável e aconselho uma forma de o fazer sair a dormir.” HÁBITOS DE LEITURA A leitura era de regra e este preso não escapa às directivas do Partido: aproveitar o tempo de cadeia para estudar: “Um dos efeitos positivos da forçada e indesejável reclusão é ainda o de poder ser aproveitada para preencher lacunas culturais que uma vida agitada não permite colmatar.” (…) “Já vou lendo alguns livros. Tenho em primeiro lugar os da biblioteca da prisão, mas, além dos que possa receber, tenho ainda a possibilidade de ler os dos meus companheiros. (…) Claro que gosto das matemáticas. Para mim é uma óptima ginástica mental, além do interesse próprio. Se por aí houver uma tábua de logaritmos faz jeito. Outra coisa de que muito necessitava era um dicionário de português que fosse menos mau. (…) Até agora recebi as “Líricas” de Camões, o “Auto da Alma” – o menos progressista dos autos de Gil Vicente e uma pequena brochura sobre a obra dramática deste nosso precursor duma dramaturgia nacional”. O patriotismo cultural é evidente e naquela época foi também uma das marcas da política do PCP neste campo. Passados uns largos meses, o preso recebe a tábua de logaritmos e os livros Opúsculos históricos de Damião de Góis e Felizmente há luar de Luís de Sttau Monteiro. Um pouco mais tarde refere a leitura de O filme e o realismo de Baptista Bastos e Os olhos e o sol de um autor russo: “O primeiro é uma boa contribuição para a actualização e aclaramento do novo realismo (…) pois a mistificação revestiu-se das roupagens mais subtis e impõe-se, por isso, desnudá-la e pôr em evidência o que há de permanente – e contudo em constante mutação – na literatura e na arte.” Conselhos à filha: “Em primeiro lugar, o
estudo, de preferência o estudo objectivo da realidade nacional nas suas múltiplas facetas. Está tanta coisa por fazer, vai ser necessária tanta devoção e capacidades para revitalizar o organismo ulcerado que vão deixar-nos…” (…) “É preciso sempre buscar a ‘contra-mola que resiste’ – expressão de um poema da filha – mesmo nas situações mais difíceis e aparentemente sombrias. Mas os insucessos parciais dum empreendimento justo não são senão estádios transitórios para uma fase nova, irrevogável – a antítese da derrota.” “Tenho-me entretido com algumas coisas da história pátria e tenho podido documentar-me razoavelmente sobre aquele interessante período de 1383/85 e o das descobertas e cada vez me capacito mais de que, se quisermos penetrar as origens de algumas das nossas deformidades congénitas, é aí que temos de ir buscá-las.” A pintura era um dos temas recorrentes entre pai e filha: “Tenho o teu van Gogh sobre a mesa, como uma nota de arte [a palavra seguinte foi censurada]. “Já reparaste que o pequeno tem um pouco da tua expressão?” Noutra carta para a filha: “Saiba que logo que o recebi o instalei na minha pequena ‘galeria de arte’ sobre a minha mesa de troglodita (os modernos trogloditas têm mesas) ao lado daquela outra reprodução do van Gogh que antes me enviaste. (…) Sim senhora, também conheço ao natural o tal da roda de raparigas com os cabelos ao vento e algumas outras das suas mais belas composições e, apesar de coisas a nosso ver incongruentes e difíceis de digerir, admiro a sua pintura. “Conheço também ao natural uma agrupação das melhores obras daquele outro bizarro génio da pintura – Picasso – nas suas várias escolas e fases, e acredita que se não tivesse visto as belas coisas que vi só teria má impressão dele e não o levaria a sério…” “Hoje mando-te um velho desenho que fiz do avô em 1936 (…). O mais que te posso dizer é que está parecido. Só as mãos estão delicadas de mais para as suas massas calosas temperadas do calor da forja. Repara na sua velha samarra, o chapéu na cabeça (‘Cá em casa não há santos’, dizia ele), o seu ar interessado na leitura do jornal. Um pai e um avô de que nos podemos orgulhar…” OS PEQUENOS LUXOS DE CADEIA A filha mandou-lhe um “caderno de folhas soltas” e ele censura-a porque “deve ter custado algumas dezenas de escudos”. “Não, querida, não preciso de nada. Mas se nas coisas que
dizes existirem houver uma espécie de camurcine, mesmo velhota, faz-me jeito”. Referia-se por certo às roupas usadas recolhidas pelo Partido para serem entregues aos funcionários e aos presos. Mais tarde recorre a ela: “Bom, já que insistes vou fazer-te um pedido: poderás arranjar-me uns lápis de cores? (pode-se lá conceber bonecos para meninos sem vivas cores!)”. “Desde o primeiro contacto deixei as coisas claras à família: para mim, além de algumas necessidades mínimas e realmente necessárias, mais nada; para vós – os meninos e tu – tudo o que pudessem.” (…) “O que essencialmente me importa é que não estou na minha actual situação (como tu na tua) por ‘escroquerie’ ou objectivos de egoísmo pessoal. O CENTRISMO NA LUTA DE CLASSES Sobre uma parenta rica: “Não devemos julgar com igual severidade todas as infracções de princípios. Tratando-se de problemas humanos, julgo ser de boa norma pesar o lado bom e o lado mau das pessoas, relacioná-los com as condições ambientais, de consciência, etc. E, claro, julgar as faltas tanto mais severamente quanto mais graves. No meio de tudo isso pode sempre haver alguma coisa
a recuperar.” (…) “Vê, por exemplo, o caso da avó [antiga costureira]. Profundamente crente, mas nos seus actos e palavras transpira a consciência dos simples que passaram uma vida inteira de sacrifícios, mourejando desde que de manhã abrem os olhos até à noite os fechar, criar os filhos, fazer prodígios de economia, trabalhar ainda nas horas vagas para auferir um pouco com que tapar as graves lacunas do orçamento familiar. A avó é povo, minha filha. Essa é a diferença. E por isso é capaz de sofrer e enternecer-se e até avaliar com justeza as desditas duma filha, dum filho, duma neta. Com algumas diferenças é também talvez esse o caso da tia.”
Acerca dos problemas no trabalho de outra parenta: “Fico muito surpreendido com o que dizes das dificuldades do seu emprego. Bem, naturalmente os patrões são sempre patrões mas a meu ver os da F. mereceriam sem dúvida outra consideração. Eu não me esqueço que em ocasiões mais prósperas as famílias dos empregados doentes recebiam integralmente as suas férias e sem descontos, quando bem sabemos que as remunerações da Previdência são inferiores. É, apesar de tudo, um gesto que seria gentil retribuir, agora que atravessam uma vida difícil. Não podemos senão considerar francamente más e negativas as mesquinhas dissensões que referes. Nós podemos compreender que haja empregados que moldaram os assentos nas cadeiras e a quem problemas de falso prestígio levem a atitudes por vezes despeitadas. Podemos também compreender que numa pequena empresa como essa, a F. e os restantes empregados se movam em acanhados limites em que os pequenos problemas podem assumir ares de catástrofe se os poucos empregados não fazem um esforço constante, até certo ponto fraternal, para os reduzir à sua justa proporção. Pois bem, em momentos de crise como os que se vive esse esforço deveria ser maior e mais porfiado. E isso só pode ser obtido com uma grande prova de serenidade, de abstracção de todo o personalismo, com uma firme noção do que é secundário e mesquinho e do que é permanente e essencial. (…) As relações entre patrões e empregados têm, apesar das diferentes concepções, certas normas jurídicas que devem ser observadas – estritamente observadas – e dentro delas é sempre possível encontrar solução ajustada e construtiva com as quais ninguém perde e todos têm a ganhar. O contrário é anarquismo e ‘homem lobo do homem’ entre pessoas de quem tal coisa não pode admitir-se. A F. e as duas irmãs devem mostrar-se serenas, esforçarem-se por destruir as barreiras da separação e darem o exemplo da objectividade. São trabalhadoras de mérito e não será qualquer provisória (se a tal se chegar) baixa de categoria que lhes limitará os seus horizontes de vida.” Quando se pensa nos nossos actuais PEC I, II, III e os que se seguirão, só podemos concluir que nem os neoliberais podiam superar tal espírito de colaboração. LIBERDADE A última correspondência deste acervo de cartas é um postal escrito a 22 de Dezembro de 1964, com a filha já em liberdade “neste Natal e Ano Novo, os primeiros que passas depois da ‘noite escura’.” O postal é a reprodução do quadro de Van Gogh “O quarto de dormir de Van Gogh”. 5
O PCP ao tempo da ditadura militar ÂNGELO NOVO Da vida do PCP nos anos seguintes ao golpe militar de 28 de Maio de 1926 sabe-se que, sob a direcção de José de Sousa, participou em vários golpes e conspirações contra a ditadura, com destaque para a revolta militar democrática de 3 a 9 de Fevereiro de 1927. À excepção desta, onde aliás os comunistas participaram de forma subalterna e praticamente desarmados, as restantes foram sempre esmagadas, após alguns tiros, bombas, brados e correrias. O jovem partido sofreu então forte repressão, com centenas de prisões e deportações. Já nos anos 1930 haveria novamente algumas tentativas de “reviralho” com algum impacto, nomeadamente o golpe militar de 26 de Agosto de 1931 (a “revolta da Madeira”), de novo encabeçado pelo general Adalberto Sousa Dias. Segundo o duvidoso testemunho do inspector da PIDE Fernando Gouveia, que cita documentação apreendida, o PCP terá firmado um “contrato” escrito com o major Sarmento Beires para participar neste movimento, recebido armas para o efeito, já na previsão de, após a vitória, se recusar a entregá-las, aproveitando a oportunidade para “fazer a revolução social e implantar a ditadura do proletariado”1. O golpe falha militarmente em Lisboa, provocando dezenas de mortos e centenas de feridos. Quanto a uma tomada do poder por via insurreccional da parte dos comunistas, não se vê como a questão possa ter sido encarado nesses termos na direcção do PCP da altura. Nesse tempo, só os marinheiros comunistas tinham a sua própria, indómita e incontrolável Organização Revolucionária Armada (ORA), com recrutas como Joaquim Pires Jorge e Manuel Guedes. Uma delegação do PCP que inclui o jovem torneiro transmontano Bento Gonçalves (1902-1942), do Arsenal da Marinha, vai a Moscovo em 1927, ao Congresso dos Amigos da URSS, por ocasião do 10º aniversário da Revolução de Outubro, regressando com a incumbência de reorganizar o partido. Uma conferência realizada a 21 de Abril de 1929, nas instalações da Caixa de Previdência do Arsenal, toma em mãos essa tarefa, elegendo Bento Gonçalves como secretário-geral. O partido tem trinta membros organizados, abrindo-se nele um abismo em relação ao seu passado. Segundo o testemunho do importante agente repressivo, o barbeiro Júlio César Leitão, expulso do Brasil, e com alguma experiência de militância no PCB, introduziu então em Portugal o método de organização por “comités de zona”, com reuniões em plena rua. O método de agitação e propaganda mais comum desses tempos era o chamado “comício-relâmpago”, em que, protegido por dois ou três companheiros armados, um orador discursava em público, por alguns breves minutos, procedendo-se a alguma distribuição de panfletos, dispersando todos depois em boa ordem ou em correria, se fosse caso disso. Por essa altura fixa-se em Lisboa um agen6 te da Internacional Comunista de nacionali-
dade checa, Bernard Freund (“René”), que participa na direcção da federação da juventude (e talvez também do partido) até ser preso e expulso do país em 1932. A 15 de Fevereiro de 1931 começa a publicar-se o jornal Avante! como órgão central do Partido Comunista Português, mas nesta sua I série é ainda uma pequena folha de publicação irregular, saindo nove números até Janeiro de 1933. A Federação da Juventude Comunista Portuguesa (FJCP) foi constituída no início da década de 1930, logo nela se destacando outro operário arsenalista, Francisco Paula de Oliveira, “Pável”, o grande especialista do comício-relâmpago. A linha geral do comunismo internacional na altura era a doutrina “classe contra classe”, mas começava-se a evoluir, com novas instruções, no sentido do que viria a ser a linha da “frente popular”, consagrada em 1935 no 7º Congresso da IC.2 Sem que alguma vez se tivesse disseminado na vanguarda operária organizada do país um mínimo de cultura marxista, sem um verdadeiro processo de “bolchevização” do PCP, começava o processo da sua normalização estalinista. Bento Gonçalves trabalhou desde os doze anos e era um operário de eleição, um verdadeiro homo faber, capaz de construir virtualmente fosse o que fosse, com as suas mãos e a sua imaginação mecânica verdadeiramente prodigiosa. Foi um excelente organizador, tendo sido o principal responsável pela conquista da hegemonia no terreno sindical para os “vermelhos” da Comissão Inter-Sindical (CIS), na primeira metade da década de 1930, sinalizando o ocaso para a CGT. Outra organização importante deste tempo foi o Socorro Vermelho, que organizava a solidariedade com as vítimas da repressão política e foi uma importante porta de entrada de jovens na militância comunista. Entre 1929 e 1930 publicou-se no Porto um quinzenário comunista bastante importante intitulado O Proletário, que depois se prolongaria em Lisboa numa série clandestina, já como órgão da CIS. Bento Gonçalves publicou aí artigos doutrinais muito significativos sob o pseudónimo de Gabriel Batista, em polémica contra o “socialismo” e o anarquismo, sob o pano de fundo da grande crise do capitalismo mundial. Nesse tempo, Bento era um revolucionário indómito e resoluto, de impecável recorte leninista. BENTO GONÇALVES Este jovem natural de Fiães do Rio-Montalegre, cuja instrução primária foi feita já em Lisboa, era um homem cultivado. Não terá lido, seguramente, as “Obras” de Marx, Engels e de Lenine, como querem alguns autores, pois que não as havia disponíveis no seu tempo3. Todavia, dada a articulação existente com a IC, com apoios em Madrid e Paris, é de toda a verosimilhança que tenham sido colocadas à disposição do partido português (e até da própria biblioteca do Sindicato do Pessoal do Ar-
senal da Marinha) o essencial das obras avulsas dos clássicos do marxismo publicadas em francês (nomeadamente a excelente colecção ‘Bibliothèque Marxiste’ das Éditions Sociales), idioma acessível para Bento Gonçalves desde muito cedo. E, a avaliar pelos escritos que nos deixou, a sua curiosidade intelectual não se bastava com os clássicos do marxismo, abrangendo também a história, a economia política, a geopolítica e... a psicanálise. Tudo isso transparece nas suas peças políticas e históricas não meramente circunstanciais – alguns artigos de O Eco do Arsenal 4, a defesa perante o Tribunal Militar Especial de Angra do Heroísmo (1936) e, sobretudo, ‘Palavras Necessárias’ (1936-??) e ‘Duas Palavras’ (1941)5, estas últimas publicadas postumamente. Embora se lhes note ocasionalmente alguma falta de clareza expositiva, em parte explicável pelas duras condições (nomeadamente carcerárias) em que foram escritas, não lhes falta capacidade analítica, densidade e finura de observação. Na prisão, desenvolveria interesses avançados na matemática, física e biologia, como ávido autodidata. Fosse ou não Bento Gonçalves, potencialmente, um génio da craveira de um Gramsci (coisa que nunca saberemos), o que é indiscutível é que, politicamente, a sua cabeça estava sempre muito bem arrumada, do ponto de vista estratégico e táctico. Com o esvaimento da crista de rebentação da crise capitalista mundial, o princípio leninista da “actualidade da revolução” passou para segundo plano na sua mente. Bento tornou-se um progressista e um reformista estrutural, sendo sempre nessa perspectiva que encarava a luta de massas organizada e enquadrada pelo partido. Em 1935 participou em Moscovo no 7º Congresso da IC, levando consigo Álvaro Cunhal, na delegação da Federação das Juventudes Comunistas. Logo após o seu regresso, em Novembro, foi preso pela segunda e última vez. Embarcado para os Açores, é aí julgado e deportado para cumprir pena num presídio especial então inaugurado em Cabo Verde. Em Agosto de 1939, a dureza deste campo de extermínio e a sua natural moderação de carácter conduzem-no ao ponto de propor uma “Política Nova” de colaboração com a governação do Estado Novo, caso este decidisse entrar na guerra do lado dos “aliados”. Esta abertura, certamente produto de falta de informação, ficaria posta em causa logo de seguida, face à assinatura do pacto germano-soviético. Faleceu aos 40 anos no campo de “morte lenta” do Tarrafal, dois anos depois de cumprida a pena a que fora condenado. Para a PVDE tratava-se apenas de um operário rebelde. RADICALIZAÇÃO No início dos anos 1930 houve uma grande vaga de radicalização à esquerda dos estudantes e da pequena burguesia citadina. Eram reflexos da crise económica mundial, que em Portugal teve os seus efeitos ainda agravados
pelo caos plutocrático da política financeira do general Sinel de Cordes. Perante a falência teórica e até moral do republicanismo e do velho “socialismo”, chegava até cá com lustre redobrado o prestígio da nascente União Soviética, numa altura em que o fascismo levantava a sua crista ameaçadora por toda a Europa, com prenúncios de uma nova guerra imperialista. A paz era então a grande bandeira do comunismo internacional, imperando as vozes de Romain Rolland e Henri Barbusse. O comunismo português, esse, era essencialmente francófilo. Greves académicas eram ocorrências comuns na viragem da década de 1920 para a de 1930, geralmente animadas por “comícios-relâmpago”, confrontos físicos, apitos, atropelos e alguns tiros à mistura. Bento Gonçalves detestava estes hábitos “reviralhistas” no movimento operário mas, aparentemente, estava disposto a tolerá-los entre os estudantes, tendo aprovado a constituição dos Grupos de Defesa Académica para os combates de rua com a polícia e as organizações fascistas. Os intelectuais marxistas de então tinham, em geral, porque a buscavam activamente, ligação ao PCP, mas esta era muito irregular e dificilmente se pode considerar que fosse decisiva na sua formação. Mesmo que o partido fizesse questão nisso, muito dificilmente conseguiria filtrar toda a recepção do marxismo entre a jovem intelectualidade portuguesa pelo crivo do Materialismo Dialéctico e Materialismo Histórico de Estaline ou do Tratado de Materialismo Histórico (manual popular de sociologia) de Bukharine6. BENTO DE JESUS CARAÇA Ainda jovens, mas já entre os mais velhos de então, estavam Bento de Jesus Caraça (1901-1948) e o seu amigo José Rodrigues Miguéis (1901-1980). Este último, após uma estadia na Bélgica, rompe com a Seara Nova, em 1930, sob a forma de uma polémica nas páginas da revista, no que ele próprio qualificou como uma “dissidência sovietófila”. Foi a primeira vez, em Portugal, fora da imprensa operária, que se exprimiram e se defenderam publicamente, de forma clara, ideias marxistas, propugnando-se a intervenção dos intelectuais no quadro das lutas sociais visando “a realização da democracia socialista pelo próprio povo”. Miguéis militou ainda no Núcleo de Trabalhadores Intelectuais do PCP, foi editor, com Caraça, da efémera revista Globo (1933), mas partiu para os EUA em 1935, para só voltar esporadicamente, sendo hoje conhecido apenas como um fabuloso contista e novelista. Bento de Jesus Caraça é de origem rural alentejana, tão humilde como a do seu homónimo transmontano, mas teve a possibilidade de fazer estudos completos, concluídos com enorme brilhantismo. Em 1929 é nomeado professor catedrático da 1ª cadeira (Matemáticas Superiores - Álgebra Superior - Princípios de Análise Infinitesimal - Geometria Analítica) no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (ISCEF), em Lisboa. É já investido de todas as honras universitárias que Caraça inicia o seu apostolado cívico, cultural e político. Militou na Liga Contra a Guerra e Contra o Fascismo, no Socorro Vermelho Internacional, na Frente Popular, no MUNAF e no MUD.
Está hoje bem estabelecido que fazia parte do Núcleo de Trabalhadores Intelectuais do PCP, embora por vezes se distanciasse das posições do partido, nunca tendo compreendido o pacto germano-soviético, por exemplo. Ligou-se em idade muito jovem, e desde a sua fundação, à Universidade Popular Portuguesa (UPP), da qual assumiria a direcção em 1929. Transformou então radicalmente a sua missão, dando-lhe como objectivo contribuir para o “despertar colectivo das massas”. Para tal, a difusão e promoção da “cultura integral” constituem, simultaneamente, o veículo e o objectivo final. Deu numerosas conferências que se tornaram acontecimentos públicos, na UPP mas também em associações culturais e sedes sindicais. Dirigiu um projecto enciclopédico de cultura popular, ímpar no país, a Biblioteca Cosmos, que publicaria 114 títulos, com uma tiragem global de 793.500 exemplares. Animou diversas publicações e sociedades científicas, mas colaborou também regularmente em publicações culturais como Seara Nova, Vértice, o quinzenário O Globo, que fundou juntamente com Miguéis, ou os semanários O Diabo e A Liberdade. Bento Caraça é o primeiro, e provavelmente o único, pensador marxista português realmente grande. Em primeiro lugar porque não era um mero intelectual, mas alguém que transportava em si distintos traços de santidade. Era um ser humano completo feito de uma única peça, na qual todas as células vibravam em uníssono com as secretas harmonias do cosmos e a ridente malícia do porvir. Era daquele tipo de pessoas que encarna de tal forma as suas ideias e convicções que renegá-las se torna uma impossibilidade física. E tanto mais quanto elas formam um conjunto coerente e articulado, composto por conhecimentos e meditações provindos de todos os campos do saber. A cosmovisão de Bento Caraça não é, aliás, integralmente marxista. A sua concepção da história, por exemplo, integra elementos do que poderíamos considerar uma teoria das elites. Para Caraça a história das sociedades humanas pode resumir-se ao conflito entre o individual e o colectivo, as forças da atracção solidária e as forças da dispersão egoísta. Ele admitia como inevitável que as revoluções populares triunfantes fossem traídas a partir de dentro, pelos seus próprios dirigentes. No entanto, não se trata de um movimento cíclico em círculo fechado, como o rolar da pedra de Sísifo. Na sua concepção, de patamar em patamar histórico, vamo-nos aproximando cada vez mais de um horizonte de transparência e liberdade completas, em que cada indivíduo poderá apropriar-se do conjunto do património cultural da humanidade e desenvolver todas as suas potencialidades humanas até ao limite7. Todavia, ele não era um determinista, afirmando com clareza que “não há fatalidade em história”, pois que “o que acontecerá é sempre determinado pelo jogo dos elementos em presença”. De uma forma completamente independente, Caraça desenvolveu ideias que o aproximam da corrente do chamado “marxismo ocidental” e, pela sua visão historicista, pode colocar-se ao lado de um Lukács, de um Korsch ou de um Gramsci. Se o quiséssemos aproximar do outro Bento seu contemporâneo e camarada (este mais por aquilo que foi do que por aquilo que
escreveu), teríamos aqui uma filosofia humanista da práxis baseada numa ontologia do trabalho. Não seria esse, porém, o caminho trilhado de seguida, com a geração do neo-realismo, que basicamente recepcionou a produção intelectual de um estalinismo afrancesado que nos chegava então veiculado por revistas como La Pensée e Clarté. O marxismo português não tornaria a percorrer caminhos de tamanha audácia e originalidade como na era dos dois Bentos. 1) Fernando Gouveia, ‘Memórias de um inspector da PIDE’, Roger Delraux, Lisboa, 1979, págs. 59-61. 2 ) João Arsénio Nunes, ‘Sobre alguns aspectos da evolução política do Partido Comunista Português após a reorganização de 1929 (1931-33)’, in Análise Social, vol. XVII (67-68), 19813.º-4.º, p. 715-731. 3) Até à data da última e final prisão de Bento Gonçalves não estavam editadas em francês obras completas de nenhum destes autores. Havia os Morceaux Choisis de Karl Marx, editados em 1934 pela Gallimard, 463 páginas, preparados por Henri Lefèbvre e Norbert Guterman, as Oeuvres Politiques et Philosophiques de Karl Marx traduzidas por J. Molitor, as Pages Choisies de Lenine publicadas em 1926, em dois volumes, por Pierre Pascal e começara apenas a publicar-se um projecto, que logo se interromperia, de Oeuvres Complètes de Lenine com tradução de Victor Serge. É esta última, sem dúvida, a obra cujo tomo IV Bento Gonçalves cita no artigo ‘O sentido da nossa política’ publicado em Julho de 1930 no nº 32 de O Proletário. 4) Cf. Bento Gonçalves, Escritos (1927-1930), Recolha, Introdução e Notas de António Ventura, Seara Nova, Lisboa, 1976. 5) AAVV, Os comunistas - Bento Gonçalves, Ed. A Opinião, Porto, 1976; Bento Gonçalves, Palavras Necessárias, Ed. Inova, Porto, 1974; Bento Gonçalves, Inéditos e testemunhos, ed. Avante!, Lisboa, 2003, com introdução, recolha e bibliografia de Alberto Vilaça. 6) Esta tese de António Pedro Pita foi “relativizada”, mas no fundo mantida, em relação a uma formulação anterior mais categórica, no seu ensaio ‘A recepção do marxismo pelos intelectuais portugueses (1930-1941)’, incluído agora, com alterações, em António Pedro Pita, Conflito e unidade no neo-realismo português, Campo das Letras, Porto, 2002, pp. 37-79, em especial nas pp. 73-79. Não se está a ver, também, como é que esta suposta matriz cientista-estalinista do marxismo português facilitaria os entendimentos do PCP com a oposição republicana, tida como filosoficamente positivista. Basta pensar que a sensibilidade filosófica dominante nos democratas republicanos era a dos “budas” seareiros. Não é sublinhando laboriosamente passagens de Estaline ou Bukharine que se avançaria na construção da Frente Popular em Portugal. 7) Cf. ‘A cultura integral do indivíduo - problema central do nosso tempo’, in Bento de Jesus Caraça, Cultura e emancipação (1929-1933), 1º volume da Obra Integral de Bento de Jesus Caraça, Campo das Letras, Porto, 2002, p. 97-128. Acessível em linha em http://www.dorl. pcp.pt/images/SocialismoCientifico/texto_ 7 bjcara%E7a.pdf.
Que são os “mercados”?
RELENDO... ENGELS
ANTÓNIO DOCTOR Quando o capitalismo perdeu o seu impulso inicial e começaram a revelar-se todas as misérias e contradições que transportava nos seus “genes”, abriu-se uma brecha entre o seu discurso e a realidade. Aquilo a que chamaram “ciências económicas” foi perdendo o carácter humanista que ainda tinham os seus primeros analistas para refugiar-se na econometria, com a construção dos modelos matemáticos, a teoria marginal, a dos jogos, etc. etc. Entretanto, a vida económica seguia o seu curso e as sucessivas crises evidenciavam a inutilidade da tentativa de travar o capitalismo e dirigi-lo conscientemente. A única coisa que conseguiu afectá-lo foi a aparição do socialismo na URSS primeiro e nos países que o Exército Vermelho atravessou na sua perseguição às tropas alemãs a caminho para Berlim. Apareceu um inimigo, que adquiriu rapidamente um carácter mundial. Um factor externo e inesperado, alheio a todas as suas “teorias”. Agora estava en xeque a própria sobrevivência do capitalismo e havia que procurar evitar as crises e oferecer um lado amável do sistema. Assim surgiu Keynes, assim ganhou terreno nos governos a social-democracia, e com ela o chamado Estado de Bem-estar Social. Um processo que ia ao arrepio do desenvolvimento natural do capitalismo. De um ponto de vista global, aquilo eram concessões transitórias da burguesia, cuja duração ficava na dependência do resultado da luta a que se lançou contra as ideias comunistas. De momento, luta de ideas enquanto se armava até aos dentes até chegar a ocasião de lançar-se noutra carnificina. Não é que fosse um processo planificado. Tratava-se de abrir caminho aos reformadores de toda a espécie, sempre e quando rechaçavam explicitamente as ideas comunistas. Assente isto, as críticas ao capitalismo são postas de lado: como a sua sangrenta história corrobora uma e outra vez a sua verdadeira natureza – dando razão aos comunistas – ninguém levanta a bandeira do capitalismo para os atacar. A palavra “capitalismo” passa a ser um tabu, um conceito restringido ao vocabulário dos comunistas. E quando algum despistado se esquece disso, como Sarkozy quando propôs a “refundação do capitalismo”, mandam-no calar.1 Foi a época (aproximadamente a década de 60) em que floresceram as teorias “optimistas”, por assim dizer, que vaticinavam uma convergência dos gestores das grandes empresas com os governos (recordemos “a revolução dos gestores”), a paulatina redução da jornada laboral, que nos levaria às 30 horas por semana (a “civilização do lazer”) e outros delírios semelhantes. A luta não aparecia como um enfrentamento entre capitalismo e socialismo, antes se disfarçava como luta entre democracias e ditaduras, embora contassem com várias destas nas suas próprias fileiras. Não importa, não as cita8 mos. Foi durante a chamada “guerra fria”
que tomou vulto próprio o eufemismo “Ocidente” (dando-lhe um sentido como a parte civilizada do mundo). Que haja que incluir o Japão não é obstáculo. Diz-se Ocidente mais Japão e já vale. Desde a escola primária, Ocidente era o lado oposto a Oriente. Pobres meninos, que não sabem o que dizem. A enorme expansão dos meios de comunicação levou aos quatro cantos do mundo esse eufemismo e os que se seguiram. Pouco a pouco meteram-nos num mundo irreal, onde os conceitos que se utilizam não correspondem nem de longe ao que com eles se menciona. E este processo agravou-se com a queda da URSS e outros países, quando os reformadores se esfumaram ou se passaram com armas e bagagens para o inimigo. No meu entender, esta é a génese do uso e abuso actual da palavra “mercados” para referir um punhado de especuladores de alto gabarito, que ninguém sabe como actuam. Para uns poucos que colocam aspas em “mercados”, a grande maioria dos jornalistas e políticos (inclusive de esquerda) citam “mercados” ou “mercados financeiros”, sem mais. Parece que deram por assente que todos sabem a quem se referem. Mesmo que assim fosse, que não é, isto significa um verdadeiro atentado à razão. A realidade: trata-se de uns especuladores de alto nível, que dispõem da tecnologia mais avançada que há e todos os dias muito cedo se colocam (ou colocam os seus esbirros) diante dos ecrãs dos computadores, e percorrem todas as bolsas do mundo e os últimos indicadores do estado da dívida dos países para lançar-se sobre a presa mais débil. A comparação mais próxima seria a da pantera que vigia uma manada de gazelas para observar qual é a mais fraca por estar doente ou ser jovem, para encurralá-la, separá-la da manada e saltar sobre ela. Chamar a isto sem mais “mercados” é um verdadeiro insulto à razão. Nunca antes na história se submeteram os governos à classe dominante da manera que o fazem agora. De acordo em que são o braço armado da burguesia desde o começo, mas tinham uma certa margem de manobra para poder figurar como representantes dos eleitores. Isso acabou, e as “diferenças ideológicas” que davam origem aos partidos políticos esfumaram-se. Se não houver reacção, o que vem aí é o fascismo puro e duro. O ascenso do PP nas eleições catalãs, com um discurso abertamente xenófobo e a estrepitosa queda da esquerda, com características semelhantes ao resultado das últimas eleições na Suécia (que foi paradigma da superação do capitalismo sem dar um só tiro) já nos anunciam o que nos espera. 1) Possivelmente para não ofender ninguém, os documentos dos três últimos Congressos Confederais das CC OO nem uma só vez referem a palavra “capitalismo”.
A família monogâmica Nasce (…) no período de transição entre a fase média e a fase superior da barbárie; o seu triunfo definitivo é um dos sintomas da civilização nascente. Baseia-se no predomínio do homem; a sua finalidade expressa é a de procriar filhos cuja paternidade seja indiscutível; e exige-se essa paternidade indiscutível porque os filhos, na qualidade de herdeiros directos, entrarão, um dia, na posse dos bens do pai... A desigualdade legal, que herdamos de condições sociais anteriores, não é causa e sim efeito da opressão económica da mulher. No antigo lar comunista, que compreendia numerosos casais com filhos, a direcção do lar, confiada às mulheres, era uma indústria socialmente tão necessária quanto a busca de víveres, de que ficavam encarregados os homens. As coisas mudaram com a família patriarcal e ainda mais com a família individual monogâmica. O governo do lar perdeu o seu carácter social. A sociedade já nada tinha a ver com ele. O governo do lar transformou-se em serviço privado; a mulher converteu-se na primeira criada, sem participação na produção social… Hoje, na maioria dos casos, é o homem que tem de ganhar os meios de subsistência da família, pelo menos nas classes possuidoras; e isso dá-lhe uma posição dominadora, que não exige privilégios legais especiais. Na família, o homem é o burguês e a mulher representa o proletário. (…) O carácter particular do predomínio do homem sobre a mulher na família moderna, assim como a necessidade e o modo de estabelecer uma igualdade social efectiva entre ambos, só se manifestarão com toda a nitidez quando homem e mulher tiverem, por lei, direitos absolutamente iguais. Então é que se há-de ver que a libertação da mulher exige, como primeira condição, a reincorporação de todo o sexo feminino na indústria social, o que, por sua vez, requer a supressão da família individual enquanto unidade económica da sociedade. Friederich Engels, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, 1884