Suplemento PO 128

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SUPLEMENTO

JAN. /FEV. 2011 Nº 128

Completando-se este ano 77 anos sobre o levantamento do 18 de Janeiro, parece oportuno fazer a divulgação destas notas rascunhadas por FMR. Este texto inédito foi transcrito de um conjunto de 10 páginas manuscritas em papel quadriculado, com indicação na primeira página de “falta o começo”, escritas na Cadeia de Peniche para fins de estudo e discussão entre os presos, provavelmente nos anos 70. O título e subtítulos são da responsabilidade da redacção da PO.

O 18 de Janeiro e a luta de tendências no movimento operário FRANCISCO MARTINS RODRIGUES

Em Julho de 1932, Salazar, que era ministro das Finanças, toma a chefia do governo. A ditadura toma novo impulso contra o movimento operário e popular: publica o “plebiscito” forjado da nova Constituição fascista, promulga o Estatuto do Trabalho Nacional (ETN), copiado da “Carta del Lavoro” italiana, e cria os “Sindicatos Nacionais”, grémios e corporações (Setembro de 33). O ETN estabeleceu que os sindicatos livres seriam encerrados e que os seus bens reverteriam para os SNs. Era um golpe fortíssimo da burguesia contra as liberdades conquistadas em meio século de luta pelo movimento operário. A camada mais activa do proletariado reage, mostrando-se disposta a resistir e a defender os seus sindicatos. Perante a hesitação e os adiamentos da direita do Partido, é decidido um apelo à greve geral, que os sectores anarco-sindicalistas da CGT tendem a transformar numa greve insurreccional. O movimento, desencadeado em 18 Janeiro de 1934, é rapidamente sufocado pela repressão. Há esboços de greve e atentados à bomba em Coimbra, Lisboa, Silves, Covilhã, Entroncamento, Barreiro, na Marinha Grande, operários armados apossam-se facilmente da vila, elegem um soviete e hasteiam a bandeira vermelha, mas a vila é tomada de assalto por forças do exército; destacam-se no movimento da Marinha Grande Manuel Esteves de Carvalho (morre um ano depois,

tuberculoso), António Guerra, José Gregório e outros. São feitas muitas prisões e deportações para Angra. O aparelho repressivo fascista vai-se estruturando. A nova polícia política, a PVDE, dirigida pelo facínora Catela, começa a distinguir-se pelas torturas e assassinatos. O militante Vieira Tomé, um ferroviário, é morto em 1934.1 Após o começo da guerra de Espanha, surgem a Legião e a Mocidade, milícias fascistas; cria-se uma rede de bufaria nas fábricas, excita-se a histeria anticomunista. Em 1935, durante um comício-relâmpago em Alcântara, o militante comunista Manuel dos Santos mata um polícia a tiro (Manuel dos Santos passou 10 anos na Penitenciária, de onde se evadiu para morrer pouco depois, tuberculoso). Em Agosto de 1936, no ambiente de agitação causado pelo começo da guerra de Espanha, dá-se a revolta da Armada. Os marinheiros, orientados pelos comunistas, amotinam-se, prendem os oficiais e apossam-se de dois navios, mas são bombardeados ao tentar sair a barra e rendem-se. São feitas muitas prisões e a organização revolucionária na marinha é destroçada. 1) Durante o 18 de Janeiro, segundo parece (greve dos ferroviários). Cite-se a morte na PIDE de Ferreira Marquês, do Comité Regional de Lisboa.


Presos do 18 de Janeiro no navio Carvalho Araújo, a caminho da prisão de Angra do Heroísmo

movimento. (Classificou o 18 de Janeiro depreciativamente como “mais uma anarqueirada”), defendendo como alternativa a táctica defensiva face ao fascismo ascendente: Frente Única de todos os trabalhadores e da pequena burguesia republicana, aproximação das massas proletárias por meio da luta económica, aproveitamento das organizações legais fascistas, nomeadamente dos SNs, a que aconselhava uma adesão massiva.4

Esta revolta fora preparada pela ORA (Organização Revolucionária da Armada), ligada ao Partido, e pelo seu jornal Marinheiro vermelho, de que circulavam centenas de exemplares. Na ORA, distinguiu-se Manuel Guedes, militante comunista. Existia também a ORE no Exército. Ainda por reflexo desta corrente que procurava o caminho da luta armada contra a ditadura, dá-se o atentado contra Salazar (1937)2, organizado por um grupo anarquista.

a linha política da direcção do Partido, que era atacada por outro lado pelos partidários das tentativas insurreccionais contra o fascismo. Bento Gonçalves, à frente da maioria da direcção do Partido, lutava simultaneamente contra os sindicalistas e contra os anarquistas: criticava o movimento sindical clandestino3, alegando que este tinha cada vez menos influência de massas, e condenava os golpes armados que acusava de desorganizarem o

LUTA DE TENDÊNCIAS

2) Julho de 1937, feito pela Legião Vermelha – tese oficial. 3) É preciso definir posição quanto ao movimento sindical clandestino, questão que continua actual. A ideia de manter sindicatos clandestinos era errada e irrealizável, levava a perder o contacto com as massas. Mas isso é só uma parte da questão: porque não boicotar os SNs, uma vez que as massas não estavam lá, nem queriam estar? Porque não criar comissões sindicais ilegais ou semilegais, com os seus jornais? Mostrar que nesta segunda batalha em defesa dos sindicatos (a primeira foi o 18 de Janeiro) a direcção do Partido tomou também uma via errada. 4) Bento Gonçalves aceitou a linha de boicote dos SNs; o seu informe ao 7º Congresso defendia os sindicatos clandestinos, boicote aos SNs, não incluía a Frente Unida. Foi no próprio Congresso que o informe foi criticado por camaradas estrangeiros e redigido de novo, de acordo com a linha apresentada por Dimitrov. Não é verdade, portanto, dizer que Bento Gonçalves defendia a linha da Frente Única e de entrada nos SNs. Pelo menos, não temos provas de que o fizesse enquanto esteve em actividade, entre 1934 e 35. Quando regressa do 7º Congresso é preso e não tem ocasião de defender essa linha; defende-a depois em Angra no julgamento. A classificação de “anarqueirada” ao 18 de Janeiro é feita mais tarde, no Tarrafal. Fica portanto um ponto a esclarecer: que linha defendeu de facto Bento Gonçalves em 1934-35?

A ilegalização dos sindicatos e o fracasso das acções armadas, quando a Espanha se debate numa grande guerra civil, provocam uma aguda luta de tendências no movimento operário e no interior do Partido. Os elementos sindicalistas agrupados na CIS e dirigidos por José de Sousa, membro do Secretariado do Partido, lançam-se no movimento sindical clandestino. No período de 1934-36 dezenas de sindicatos esquivam-se à ordem governamental de dissolução e conservam-se em actividade semilegal; mais de uma dezena de jornais sindicais (dos ferroviários, dos metalúrgicos, da construção civil, etc.) continuam a sair clandestinamente. Esta corrente estava na 2 continuação das tradições sindicalistas, atacava


No 7º Congresso da Internacional Comunista (IC), onde Bento Gonçalves foi em 1935 chefiando a delegação do PCP, Dimitrov apresentou um informe indicando a necessidade duma política de Frente Única para deter o avanço das ditaduras fascistas na Europa e impedir o isolamento e aniquilamento dos comunistas. Foi essa orientação que Bento Gonçalves trouxe para Portugal e que foi adoptada pelo Partido.5 A experiênci1a posterior mostrou que esta táctica abriu o caminho às tendências oportunistas de direita e pacifistas dentro do Partido. Se, em vez de se travar e abandonar a vanguarda proletária, se tivesse canalizado o seu espírito de luta para acções tácticas de combate (que, ao contrário das revoltas locais, poderiam ter êxito), poderia ter-se conjugado a acção pacífica com a acção armada. Ao mesmo tempo que condenava as aventuras armadas, o Partido começou a descurar a luta contra o oportunismo de direita e afastou-se da perspectiva da conquista do poder.

Bento Gonçalves

panha Manuel Guedes, Pires Jorge (preso pelos franquistas e entregue ao governo português, cumpriu três anos em Angra do Heroísmo) e Álvaro Cunhal. Os sucessivos golpes no Secretariado (foram presos Francisco Miguel, no regresso da URSS, Alberto Araújo e outros) acabaram por desorganizar a direcção do Partido. Em 1939 esta era composta por elementos que não tinham a confiança do proletariado, muitos deles intelectuais sem experiência nem capacidade política; deram-se casos graves de infiltração de provocadores e aventureiros no aparelho clandestino do Partido.12 O aparelho dirigente não orienta a luta prática, envolve-se em questões e intrigas pessoais. O nível político da imprensa baixa. O Partido tende a transformar-se num agrupamento radical pequenoburguês, sem verdadeiro cunho proletário revolucionário.13 Por fim, a Internacional Comunista corta relações com o PCP, cuja direcção não lhe merece confiança. 1939 é um dos pontos mais baixos do movimento operário português.

CRISE DO PARTIDO Aos golpes que sofre o movimento operário com o esmagamento das revoltas de 1934 e 1936, juntam-se os golpes policiais sobre o Partido: ao chegar do 7º Congresso da IC, Bento Gonçalves é preso juntamente com os comunistas José de Sousa e Júlio Fogaça (1 de Novembro de 1935); em Setembro de 19366 abre o campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, para onde são enviados 150 militantes operários, entre eles Bento Gonçalves, Militão Ribeiro*, Sérgio Vilarigues, Américo de Sousa da JC, os dirigentes da CGT Mário Castelhano e Januário, assim como muitos marinheiros. O Partido, cuja estrutura clandestina era frágil, pois assentava só no Secretariado e nas tipografias, fica momentaneamente decapitado. Em 1936 recompõe-se o Secretariado, com Manuel Guedes (que se evadira do tribunal quando era julgado), Pires Jorge e Álvaro Cunhal(?), estudante, dirigente da Juventude Comunista). Este Secretariado é destroçado por novas prisões, outro lhe sucede que é destroçado passado pouco tempo.7 Os métodos de trabalho clandestino tinham-se atrasado em relação à máquina aperfeiçoada da polícia.8 A organização do Partido mantinha-se, embora abalada, na região de Lisboa e Alentejo, além de se começar a estender aos estudantes. Fazia-se uma intensa agitação política em torno da guerra de Espanha: o Avante! chega a publicar 10 mil exemplares semanais, recorde que não voltou a ser batido.9 O período de 1936-40 é aquele em que o movimento de massas atinge o seu ponto mais baixo, devido à derrota das acções armadas, à dispersão da vanguarda proletária, pelas prisões, pela deportação e pelo exílio, e também a uma certa estabilização do nível de vida10 das massas trabalhadoras, que haviam sentido duramente a crise de desemprego em 1930-33. É de referir que bastantes trabalhadores comuns e anarquistas portugueses combateram em Espanha contra o fascismo e alguns lá deram a vida.11 Estiveram nesta época em Es-

5) Surge aqui um problema complicado: a linha adoptada pelo 7º Congresso da IC. Não há dúvida de que a sua aplicação entre nós atirou com a direcção do Partido para o oportunismo de direita nos anos seguintes. Põe-se a questão: fazemos crítica à linha do 7º Congresso considerando que é um assunto histórico que não dá prejuízo criticar? E nesse caso, que crítica fazemos? 2ª hipótese: apoiarmos como correcta a linha Dimitrov e criticarmos apenas a aplicação feita em Portugal, não citando as emendas no informe de Bento Gonçalves. 3ª hipótese: dizermos que a linha do 7º Congresso foi provavelmente correcta, que não temos elementos para a apreciar, mas que houve indiscutivelmente transposição mecânica para o nosso caso, provocando graves desvios; seriam responsáveis por isso: a direcção da IC (?) que aconselhou à alteração do informe; Bento Gonçalves (e José de Sousa que ia com ele) porque não tinham poderes para alterar um informe político do CC transformando-o num documento totalmente diferente. Parece-me melhor esta 3ª posição de pôr o problema. Sublinhar daqui como lição que nas relações entre os partidos se deve pôr de lado toda a ingerência ou paternalismo e compreender que cabe a cada partido elaborar a sua linha dentro dos princípios marxistas-leninistas; citar a propósito o caso semelhante de Humbert Droz em 1924 e as más consequências que trouxe. 6)Era a data citada no Avante! mas parece-me duvidoso, dado que os marinheiros só são julgados em Outubro. Terão ido os principais para o Tarrafal antes do julgamento? Nesse tempo era vulgar. * Militão Ribeiro era operário têxtil, trabalhou no Brasil, onde estava integrado na direcção (?) do PC, é enviado para Portugal e integrado na direcção do Partido. 7) Secretariados até 1939: sei que passaram por lá Francisco Miguel, (Francisco Ferreira), Alberto Araújo, Ludgero Pinto Basto. Cinco secretariados em 4 anos: 1936-39. 8) Este é um aspecto classicamente mencionado por Cunhal; nós devemos pôr em destaque que, por detrás da fraqueza conspirativa, havia a perda da ligação entre o Partido e o proletariado depois de 1934-36, a infiltração de elementos burgueses na direcção, e sobretudo a queda da direcção para a direita. Quanto aos métodos conspirativos, citar os encontros nos bancos da Avenida, os cafés da Baixa, a aceitação como normal do mau porte na PIDE, os encontros de rua enfiados uns nos outros. Parece necessário citar o porte firme de Francisco Miguel e o impulso positivo que trouxe. 9) Mencionar a criação de O Militante em 1935. Parece que foi de início um órgão político e teórico do CC, passando depois a mero “boletim de organização” onde praticamente não se debatiam problemas políticos nem ideológicos. Porquê esta mudança? Suas consequências? 10) Isto é uma ideia no ar, tem que ser verificada, pode não ser verdade. 11) Seria de citar algum nome mais destacado, mas de eliminar os de Cunhal, Pires Jorge e Guedes que foram apenas a contactos com o PCE. 12) O provocador Loureiro entregou a tipografia; Carolina Loff amantizou-se com um pide. 13) É preciso basear, citando a linha política da imprensa partidária da época, dirigida só para a unidade com a burguesia. Acentuar que o Partido (a sua direcção) volta periodicamente à invencível atracção dos oportunistas pequeno-burgueses infiltrados no movimento operário. Sonha com um acordo com a burguesia liberal para que esta tome a cabeça da luta contra o fascismo: por meio de eleições, por golpes militares, seja como for. Frisar que é esta tendência para sujeitar o proletariado à burguesia liberal que é a chave que esclarece toda a luta de tendências no Partido ao longo de 50 anos: Rates, os dirigentes dos anos seguintes, as direcções de 1936-40; Cunhal em 44-49; os ultra-direitas em 1953-59; Cunhal em 60-63 até à liquidação total do Partido. 3


DUAS LINHAS, DUAS IDEOLOGIAS O movimento operário é surpreendido pela reacção fascista da burguesia no momento em que a corrente anarquista estava em declínio e quando a corrente comunista ainda não ganhara raízes nem amadurecera ideologicamente. A resistência ao fascismo trava-se sob aguda luta de tendências no interior do proletariado. Sob a repressão cada vez mais apertada da polícia, a vanguarda do proletariado desgasta as energias em acções desencontradas, sem uma linha comum, oscilando do aventureirismo ao oportunismo de direita e quebrando os laços com as largas massas. Depois de, sob o impulso de Bento Gonçalves, ter formado um bom núcleo de militantes (José Gregório, Guedes, Pires Jorge, Fogaça, Cunhal), o Partido mergulha numa grave crise. Cerca de 1930, o destino do anarquismo está traçado. Os comunistas orientam já um sector operário significativo e, apoiados nos sindicatos sob sua influência (CIS), conquistam aos anarquistas as suas cidadelas tradicionais na região de Lisboa. Esta passagem do proletariado de vanguarda para as fileiras comunistas não reflecte contudo a assimilação do marxismo-leninismo e a superação das ideias anarquistas, como se tem dito. Isto só em parte é verdade. Foi sobretudo um reagrupamento imposto pelas condições novas de ilegalidade. A corrente anarquista é desarticulada pelo facto de o movimento operário ser

atirado para a clandestinidade e ser privado da sua única base orgânica – os sindicatos. O anarquismo não podia viver fora deles. Ao defrontar o assalto fascista, o anarquismo tenta desesperadamente entrincheirar-se nos sindicatos clandestinos. Quando estes são destruídos, a corrente anarquista tende a desarticular-se por falta de base orgânica. Os comunistas tinham compreendido que a base de toda a actividade é o Partido, que sem Partido não pode haver movimento operário coerente, e dedicaram-se à tarefa de o construir. Em 1936 o Partido é parcialmente desmantelado pela polícia e é só a partir de 1941 que os métodos de organização clandestina são efectivamente adoptados, que passa a existir de forma permanente um partido operário capaz de sobreviver na ilegalidade. O Partido Comunista veio trazer ao movimento operário uma actividade séria na condução da luta diária, começou a aplicar métodos adequados de actividade clandestina, formou um núcleo de firmes militantes antifascistas. Mas esta eficácia no plano orgânico foi acompanhada por um sério enfraquecimento no plano político e ideológico. A necessidade de um destacamento sólido, disciplinado, centralizado, gerou a tendência para colocar em segundo lugar as questões de orientação e para afrouxar a vigilância de classe. Ao mesmo tempo, o Partido, sendo a única organização antifascista actuante, tornava-se um centro de atracção para todos os que pretendiam lutar contra a ditadura. Uma massa especial de elementos radicais da pe-

PAULA GODINHO | MIGUEL CARDINA | LUÍS FARINHA | JOÃO MARQUES LOPES | INÊS FONSECA | ANTÓNIO BARATA

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quena burguesia (estudantes, sobretudo) entram para o Partido e nele entram com a sua ideologia própria.14 O desejo de salvaguardar a todo o custo o núcleo clandestino que assegurava a continuidade da luta antifascista veio a enraizar o estilo típico do movimento operário português destes 30 anos, em que as questões de organização comandam e se sobrepõem às questões políticas e ideológicas. Foi à sombra deste estilo errado que penetraram profundamente no Partido duas correntes antimarxistas: por um lado, as ideias anarquistas e anarquizantes, que vieram a ser durante anos ainda a ideologia efectiva da base operária do Partido, e por outro lado, as ideias radicais da pequena burguesia que, cobertas com uma fraseologia marxista,

14) A partir de 1935-36, por efeito da política de Frente Única adoptada no 7º Congresso da IC, do governo de “Frente Popular” em França, etc., é quando nos meios estudantis e intelectuais se começa a activo movimento antifascista (Liga Anti-Fascista, Universidades Populares, Diabo e Sol Nascente, etc.). Isto é positivo. Mas é negativo que elementos saídos desta corrente subam rapidamente a postos responsáveis no Partido: Cândida Ventura, Ludgero, etc.


Familiares dos presos do 18 de Janeiro pedindo a sua libertação no Governo Cívil de Leiria, em 1935

cristalizaram nos sectores intelectuais e em breve ascendiam à direita do Partido.15 Assim, o Partido começa a ser disputado entre duas correntes não marxistas. E, no ambiente de aguda luta política contra o grupo anarquista, a direita do Partido veio a decair para o oportunismo de direita que se infiltrara lentamente através de uma série de posições erradas: 1) O anarquismo agitava ruidosamente a bandeira vermelha e a revolução, favorecia o emprego indiscriminado da greve e do bombismo, sem ser capaz de elaborar um plano de 15) De novo: a infiltração de ideias radicais burguesas sob fraseologia marxista nos sectores intelectuais do Partido é normal e não constitui perigo desde que se reeduquem esses membros e sobretudo se feche a torneira quanto à sua subida à direcção do Partido. O mal não foi haver um sector intelectual e estudantil no Partido; o mal foi a direcção não estar vigilante e lhe ter aberto as portas. É preciso vincar mais as responsabilidades do CC, se não a coisa toma ar de fatalidade.

batalha sério nem de pôr de pé o exército proletário; mas a direita do Partido, ao reagir contra este “esquerdismo” superficial e ao defender a necessidade de uma acção tenaz, minuciosa, diária, passou a banir como supérflua e prejudicial a propaganda da revolução e da ditadura do proletariado; a insurreição e a conquista do poder passam a ser consideradas de tal modo longínquas que não se lhes vê qualquer ligação com as tarefas tácticas. Daí que a direita do Partido não se preocupe em estudar e definir o carácter da revolução, elabore a linha táctica segundo a inspiração do momento e caia no praticismo acanhado que abriu a porta a toda a espécie de desvios. 2) O anarquismo conduzia o proletariado a uma política de desprezo e mesmo por vezes de hostilidade para com as massas camponesas e a burguesia pobre das cidades, sobretudo o semiproletariado e a semiburguesia, levando o proletariado a bater-se isolado dos seus aliados potenciais, enquanto dava a sua confiança a aventureiros burgueses; mas a direita do Partido, ao combater este falso esquerdismo, caiu em muitos erros semelhantes, pois que, proclamando uma política de larga aliança

antifascista, continuou na prática a desprezar a ligação com as grandes massas trabalhadoras do campo e voltou as suas atenções para os pequenos grupos da burguesia liberal; em breve, a sobrestimação da influência destes grupos, a ânsia de os atrair a uma frente única, começavam a provocar a perda de iniciativa política do proletariado, dominado por tendências seguidistas. 3) O anarquismo estimulara o emprego da violência, não com vistas ao agrupamento do exército proletário, mas ao serviço de explosões momentâneas e de curto alcance, desgastando assim inutilmente as forças do proletariado; mas a direita do Partido, ao opor-se ao aventureirismo dos anarquistas, veio a cair na posição de só considerar admissível a violência quando chegasse o momento da insurreição, após um larguíssimo período de acção pacífica; daí até considerar a violência como o oposto da acção de massas e cair no pacifismo ia uma pequena distância que em breve foi percorrida pela direita do Partido. Além disso, a indefinição duma linha para a aliança com os povos das colónias, linha que era essencial para educar o proletariado e ajudá-lo a romper com a men- 5


talidade imperialista. O Partido desarmou-se para resistir aos assaltos da ideologia burguesa, menos espectaculares que as ofensivas policiais, mas mais perigosos ainda. O praticismo, o seguidismo político, o pacifismo, formam um pólo em torno do qual cristaliza lentamente uma tendência oportunista de direita. E, pelo seu lado, como reacção contra as tendências direitistas dos seus dirigentes, de que se apercebe confusamente, a base operária do Partido alimenta as tendências anarquizantes em que julga ver a perpetuação do espírito revolucionário de classe. Assim, no momento da prisão de Bento Gonçalves e José de Sousa (1935), começa a tornar-se sensível a existência de duas linhas e duas ideologias no Partido. A base operária exprime os seus pontos de vista através da tentativa insurreccional de 1934 na Marinha Grande, da revolta dos marinheiros da Armada em 1936, do movimento sindical clandestino, acções que representam nítida continuidade do espírito de revolta misturado de improvisação característico dos anarquistas. Quanto à direita, ela exprime os seus pontos de vista na linha “oficial” que dá ao Partido (contra o putchismo e o terrorismo, pela conquista dos SNs, por uma Frente Única que englobe todas as correntes anti-salazaristas), linha que só muito parcialmente é seguida. Da luta entre os grupos anarquista e comunista para ganharem a direcção do proletariado, passara-se à luta de tendências no interior do Partido, opondo o oportunismo de “esquerda” ao oportunismo de direita. O movimento radical da burguesia ameaçava controlar o movimento operário que, como defesa, se refugiara no “esquerdismo” anarquizante. O proletariado não era ainda guiado pela corrente marxista-leninista. BENTO GONÇALVES Dirigiu o Partido de 1929 a 1936. Imprimiu-lhe pela primeira vez uma actividade coerente e criou uma tradição de trabalho organizado dentro do melhor estilo político proletário. Pode dizer-se que o Partido em Portugal começa a ter expressão como partido operário de vanguarda em 1929. Mas Bento Gonçalves e o núcleo dirigente são também responsáveis por o Partido ter sido lançado em sérios desvios oportunistas. Bento Gonçalves não esboçou um plano estratégico em que assentasse a acção proletária para a conquista do poder. Nos seus escritos do Tarrafal encontra-se uma análise lúcida da actividade clandestina do Partido no impulso à luta económica, mas nada há sobre a mobilização do proletariado para a luta política superior. Fazendo uma apreciação totalmente negativa do movimento insurreccional do 18 de Janeiro (que classificou como “pura anarqueirada”), Bento Gonçalves lançou as bases para o florescimento do pacifismo que veio a verificar-se mais tarde. Na sua defesa em tribunal, Bento apaga notavelmente o carácter de classe do Partido e não faz qualquer referência ao objectivo final do proletariado – a ditadura sobre as classes exploradoras.16 Nesse documento exprime-se pela primeira 6 vez entre nós, ainda em esboço, a concepção

de uma luta antifascista que “supera” a luta de classes, concepção que mais tarde viria a ser plenamente desenvolvida por Álvaro Cunhal. O clamoroso desvio de direita contudo na “política nova” proposta no Tarrafal por Bento Gonçalves cerca de 1940 (ele admite aí o carácter patriótico da burguesia nacional e defende o apoio táctico do Partido à ditadura salazarista na hipótese de invasão alemã!) não é mais do que o fruto podre das suas incompreensões anteriores; da tendência para reduzir os interesses do proletariado ao campo económico, ele veio a cair na defesa duma acção política comum proletariado-burguesia; da noção utópica duma frente antifascista conseguida pela concordância dos comunistas, anarquistas, socialistas, republicanos, católicos, ele passara para o sonho reaccionário duma frente nacional única.17 As posições políticas de Bento Gonçalves foram marcadas pelo facto de ele nunca ter superado inteiramente a mentalidade sindicalista “economista” do primeiro período da sua actividade. Tendo compreendido os prejuízos do anarquismo e tendo lutado energicamente contra eles, Bento Gonçalves veio contudo a cair no campo oposto ao apoiar-se em elementos burgueses como Júlio Fogaça, que em breve deram um impulso ao oportunismo de direita dentro do Partido. O lugar de Bento Gonçalves no movimento operário português como organizador do Partido e como combatente antifascista abnegado é incontestável, mas isto não significa que os comunistas devam venerar as suas ideias sem espírito crítico e ocultar os seus erros, como se faz há 20 anos. Dessa veneração serviram-se os oportunistas para conseguir novas posições dentro do Partido. Não é por acaso que os revisionistas saíram furiosamente em defesa dele nos últimos anos. Ao contrário do que sucede em Espanha, onde se trava uma grande batalha de classes, em Portugal o movimento operário está em estagnação quase total no princípio da guerra. Explicação dessa estagnação: 1) Crise ideológica no interior do Partido e do movimento operário; o insucesso das acções armadas de 1934 e 1936 origina a agonia do oportunismo de direita voltado para a acção económica e para o seguidismo político, encoberto sob consignas democráticas sem conteúdo de classe bem definido (corrente saída do sindicalismo e marcada por taras reformistas). É esta corrente que ganha o controle do Partido (Bento Gonçalves, Manuel Rodrigues da Silva, José de Sousa). É uma fase de grande confusão e instabilidade em que qualquer das correntes é oportunista, visto que ambas descuram os interesses a longo prazo do proletariado e submetem as tarefas estratégicas aos interesses momentâneos. 2) Crise de organização – O aparelho estatal (policial?) da ditadura torna-se mais eficaz. Assiste-se ao desmantelamento do Partido e do movimento operário. Em 1936, 150 dirigentes e activistas vão para o Tarrafal e há um corte na continuidade do movimento, prólogo de uma crise prolongada. Novas exigências do trabalho clandestino. Perda de controle da situação e desarticulação do aparelho clandestino. No princípio da guerra mundial, a Internacio-

nal suspende os contactos com o PCP,4 dada a situação extremamente confusa na sua direcção. 3) Estabilização do nível de vida da classe operária a partir de 1934 – Durante cerca de 20 anos, as massas tinham suportado sucessivamente a especulação, a carestia e a fome na Primeira Guerra, depois a inflação, a desvalorização vertical da moeda, a vaga de desemprego de 1930/ 33, resultante da crise mundial do capitalismo. À extrema agitação e combatividade da maior parte deste período começa a suceder a acalmia gradual e uma certa tendência de expectativa das massas.18 Verifica-se um certo isolamento dos sectores mais avançados, a sua neutralização e uma prolongada crise de reagrupamento interno. A agitação provocada pela guerra de Espanha não se materializa em nenhuma acção importante.19 A inércia e a desmoralização alastram com a vitória do franquismo. O Partido evolui para uma posição democrática pequeno-burguesa. As condições de anarquia criadas pela ofensiva policial tendem a transformá-lo num grupo radical burguês sem influência séria nas massas. A direita do Partido cai em 1939-40 nas mãos de elementos suspeitos – culminância do período de crise ideológica sobretudo. A crise do movimento operário repercutese na correspondente crise na direcção.20

16) O Partido toma o carácter de uma organização progressista pairando acima das classes, idealistas servidores do povo. Não me recordo exactamente [FMR escreve este texto na Cadeia de Peniche, sem acesso a documentação], mas é esta a impressão geral. A preocupação dele em acentuar que os comunistas são os continuadores dos homens de 1640, da revolução liberal e do 5 de Outubro. Qual é o sentido disto? Acenar à burguesia republicana, atraí-la. 17) Deverá referir-se a tenebrosa história do documento assinado e entregue à direcção do campo para o enviar ao governo? E a história da colaboração no busto ou baixo-relevo do Carmona? A pergunta justifica-se pelo seguinte: na medida em que estes actos não tiveram repercussão política e ficaram quase ignorados, será correcto desenterrá-los agora, demolindo totalmente o nome não só de Bento Gonçalves, mas praticamente de todos os comunistas do Tarrafal? 4) Tenho uma informação de que a IC teria suspendido os contactos com o Partido em 1936 e considerado este dissolvido em 1939. Julgo que Cunhal não apresenta assim as coisas. Não me recordo de se falar da interrupção de contactos em 1936. 18) Cuidado! Verificar melhor. Em 1935 há grande crise de sobreprodução na agricultura. Em 1936 Salazar fala num discurso na “miséria das populações” devido à crise do trabalho (no campo). Qual a situação na indústria? 19) A revolta dos marinheiros é directamente relacionada com o início da guerra de Espanha. 20) A questão está posta de maneira que apaga as responsabilidades da direcção. Não é ao movimento operário que temos que pedir contas, mas à direcção do Partido, órgão investido na tarefa de estado-maior supremo de toda a classe.


A abstenção e os dilemas da esquerda ANTÓNIO BARATA Sem candidato próprio e não se revendo em nenhum dos que se apresentaram às eleições, parte da esquerda extraparlamentar apareceu a poucos dias das eleições presidenciais a defender que se devia votar contra Cavaco, porque – diziam – ele não é igual aos outros candidatos, existem diferenças substanciais entre eles e não podemos ser indiferentes a uma vitória da direita. No essencial, uma forma encapotada e indirecta de carrear votos para Alegre ou Francisco Lopes, quando se tornou claro que não haveria segunda volta. Este é um raciocino viciado, assente num pressuposto falso – o de que na sociedade portuguesa há uma clivagem política entre os partidos da esquerda e da direita governativa e parlamentar ao nível das propostas e saídas para a crise (de um ponto de vista anticapitalista e anti-sistema) e que essa clivagem constituiu o cerne das plataformas e das discussões eleitorais. Entra pelos olhos dentro que tal não é verdade – nenhum candidato apresentou um programa popular de combate à crise, opondo-se a que ela seja paga pelos trabalhadores, nem se pronunciou contra o alinhamento político e militar de Portugal com as aventuras imperiais dos EUA e a UE, nem contra a permanência na NATO. A única diferença com alguma substância foi entre os que defendem que a crise tem de ser paga pelos trabalhadores, como advogam o PS, PSD e CDS, e o acham que ela deve ser paga a meias, com ricos e pobres unidos num esforço patriótico e de esquerda (PCP e BE). Ou seja: uma discussão que não põe em causa nem acarreta qualquer ruptura com a ordem institucional e social vigente nem com o sistema político e económico burguês existente. Todos os candidatos disseram que eram pela estabilidade e não queriam abrir qualquer crise política, chegando a criticar Cavaco por, com a sua caturrice, indiciar tal vontade ao afirmar que iria ser um presidente mais interventivo. Nenhum deles disse o que faria relativamente à continuidade de Sócrates à frente da governação nem que iria derrubar o governo do PS e trabalhar para a formação de um outro que pusesse fim à ofensiva contra os pobres e os trabalhadores, declarando-se disposto a afrontar a burguesia portuguesa e os seus patrões do Banco Central Europeu e do Ecofim e a impedir a entrada do FMI no país.

Nenhum deles afirmou que só daria posse a um governo que elaborasse outro orçamento de Estado, favorável aos que menos têm e virado contra os ricos e o grande capital. Excluindo o candidato do PCP – que, não alinhando no coro geral a favor do orçamento, ficou-se, como o seu partido, por uma espécie de meia esquerda sempre de mão estendida a qualquer compromisso favorável aos interesses da “economia nacional”, do pequeno capital e de uma mitificada burguesia patriótica –, não tem qualquer relação com a realidade afirmar que havia diferenças políticas substanciais entre os candidatos. Os factos mostram o contrário – desde a adesão à União Europeia, todos os governos sem excepção aplicaram políticas de direita; sempre houve continuidade nessas políticas, fosse qual fosse a cor política do governo; as decisões fundamentais da política nacional são decididas em Bruxelas e não pelos governos portugueses, que já não são mais que meras comissões executivas. Por isso falar em governos de esquerda ou de direita no nosso país é desde então mero eufemismo. Não é por acaso que há muito não se consegue saber o que distingue o PS do PSD e se fala de um bloco central de interesses, entidade não formal transversal a estes partidos e que gere o país de acordo com as imposições comunitárias. Também por isso a campanha foi aquele vazio de soluções e ideias face à crise e à governação do país. Sendo assim, então por que não apelar ao voto no candidato do PCP, como um voto útil contra Cavaco e a direita? Pela simples razão de que a solução para os problemas dos trabalhadores não está no entendimento destes com o grande capital sobre a repartição dos custos da crise, nem é do seu interesse dar-lhe suges-

tões e conselhos sobre como deve gerir os seus negócios. Poderá ser de uma elite operária e sindical profundamente funcionalizada e burocratizada, mas não da esmagadora maioria dos proletários portugueses. A lógica do mal menor está profundamente enraizada na esquerda portuguesa que, em nome da derrota da direita, da unidade (por cima), e do “não nos deixarmos isolar das massas”, tem sistematicamente abdicado de intervir politicamente e sindicalmente com um programa que isole e diferencie os interesses próprios, de classe, dos proletários. Ao ponto de actualmente a esquerda já não pensar nisso e ser consensual apelidar de sectários e ultrapassados os que não se vergam ao oportunismo ou ao reformismo e persistem neste tipo de preocupações. O drama do proletariado português não está na falta de unidade contra a direita nem na falta de derrotas da direita. Todas as “vitórias” eleitorais da esquerda (isto é, do PS) resultaram em governos e políticas de direita. Delas não veio qualquer benefício para os trabalhadores que, desde o 25 de Novembro, têm vindo a ter os seus direitos, salários e condições de vida continuamente reduzidos e a ver crescer a flexibilização, os despedimentos, a precariedade, as limitações às liberdades sindicais, etc. Por isso o que há a fazer é não continuar a alimentar sonhos – que nunca se concretizam – de que um dia o PS, os liberais e os social-democratas tenham um abalo de consciência e comecem a fazer seus os interesses das classes trabalhadoras. Enquanto não existir no nosso país uma corrente revolucionária política e ideologicamente independente, não será possível aproveitar uma campanha reformista para intervir numa campanha eleitoral e jogar no terreno do adversário com a táctica do voto crítico. Sem forças para tal, qualquer veleidade nesse sentido é inócua e serve apenas para instilar o reformismo e a descrença entre os deserdados deste país. Como ficou demonstrado no período que decorreu entre o 25 de Abril e o 25 de Novembro, a burguesia portuguesa só fará concessões se a isso for obrigada por um movimento operário e popular autónomo que a afronte. Por isso, votar contra Cavaco não era votar num dos outros candidatos. Era não votar, engrossar a abstenção, amesquinhar e apoucar o vencedor. 7


Tempos de barbárie ANTÓNIO DOCTOR Está a surgir, pela mão de estudiosos de Marx, um novo ângulo de visão dos seus trabalhos. Sendo como são um corpo vivo, é mais que evidente que não podem subtrair-se à passagem do tempo, ao devir da história, que cria situações novas e coloca novas interrogações. O debate entre economistas e intelectuais de esquerda está a girar em Espanha em redor de um extenso trabalho de Carlos Fernández Liria e Luis Alegre Zahonero que, depois de uma elaboração que durou mais de dez anos, saiu à luz com o título El orden de El Capital (Edições Akal), livro de 650 páginas. A web “Rebelión” já publicou diversas críticas e comentários, alguns dos quais foram respondidos pelos autores. Tratando-se de uma obra tão extensa, da qual apenas li 120 páginas, não posso ainda estabelecer conclusões globais sobre o valor intrínseco desta obra; por outras palavras, se nos impele para diante, leva-nos (ou tenta fazê-lo) para atrás, ou deixa-nos onde estávamos. Em princípio, as teses iniciais despertaram-me grande interesse. Fizeram-me recordar a época em que, há 45 anos, me entreguei intensamente à leitura de Marx e despertou o meu interesse pelos mais relevantes filósofos, desde Aristóteles a Hegel. Fizeram-me recordar, principalmente porque já naquele tempo me atraía muito o desenvolvimento do processo de conhecimento, desde a simples percepção de algo através dos nossos sentidos até à formação de um conceito acabado, aquilo que Hegel desenvolve extensamente em Fenomenologia do Espírito, zurzindo sem piedade o empirismo considerado por muitos filósofos como o meio ideal para “descobrir” o que nos rodeia. Disto tratam os primeiros capítulos do livro de Liria e Zahonero. Acusam Marx de inventar a lei do valor, porque, para dizê-lo de maneira tosca, os produtos que se trocam no mercado não têm inscrito o tempo gasto no seu fabrico. Não se quer entender que a ciência não pode guiar-se pela aparência de uma coisa, antes tem que partir de um esforço por elevar-se em graus de abstracção (não determinados por nós, mas como exigência da própria coisa) para chegar ao concreto. Reactivada a memória, recordei que já Marx, não recordo onde, afirma que a economia não tem aparelhos de ensaio (como a física, a química ou a matemática) com os quais possa corroborar em qualquer momento a verdade de uma afirmação ou um teorema e que só a especulação (no seu sentido original, como observação atenta) é que pode levar-nos a descobrir a verdade da coisa. A dimensão e profundidade dos seus estudos e descobrimentos levam estes autores a estabelecer um paralelismo entre os seus contributos para a 8 ciência com Galileo Galilei.

Creio que a intenção dos autores é tirar a obra de Marx dessa espécie de cárcere (conceptual e epistemológico) em que o meteu a burocracia soviética por meio da Academia de Ciências de Moscovo, enlatada e distribuída por todo o mundo pela Internacional Comunista: os anos de ferro que vivi devem ser muito semelhantes aos que viveu Galileo, quando qualquer desvio da doutrina oficial partilhada pela IC era de imediato considerada como revisionismo, o que te condenava ao ostracismo dentro do mundo dos comunistas. Do que se trata hoje é de abrir as janelas para ventilar a casa. Para os autores, Marx parte do republicanismo e do projecto político do Iluminismo, a Democracia com maiúsculas, precocemente abortado na Revolução Francesa com o julgamento de Robespierre e o golpe de Estado do Thermidor. O advento do capitalismo altera de imediato o carácter original do conceito “democracia” ou, dito de outro modo, aplica essa palavra a um certo estado de coisas. O primeiro parágrafo de O Capital reza assim: “A riqueza das sociedades em que impera o regime capitalista de produção surge-nos como um “imenso arsenal de mercadorias” e a mercadoria como sua forma elementar. Por isso a nossa investigação parte da análise da mercadoria.” Para o capitalismo, essa é a essência da democracia, do Estado de direito, a esfera do mercado, onde os homens se movem livremente para intercambiar os seus produtos. A existência ou não dessa liberdade na esfera da produção não conta para nada. E assim foi entendido nos últimos dois séculos até hoje. O capitalismo não quer reconhecer-se no espelho que Marx lhe põe diante porque se considera como a única sociedade possível, com o mercado como fundamento da liberdade individual e do Estado de direito. Inclusive não lhe importa nada se esse “mercado” perdeu os seus valores iniciais e foi adquirindo esse carácter selvático que hoje o caracteriza. Nada tem de estranho nem de aberrante (se não partirmos de outros princípios que não os seus) que tenha amparado e protegido e inclusive imposto a sangue e fogo regimes como os de Pinochet, Suharto, Mubarak, Somoza, Lobo, os sátrapas da Arábia Saudita e tantos outros em que o sacrossanto mercado não foi posto em questão. Só demoniza os que tentam escapar da ditadura do mercado, recuperando os valores iniciais da democracia, e, para maior escárnio, em nome do seu próprio e aberrante conceito da mesma. Recuperar essa democracia original acaba por ser o que defendem os autores do livro.

RELENDO... ROSA Na inflamada atmosfera da revolução, as pessoas e as coisas amadurecem com incrível rapidez. Há apenas três curtas semanas atrás, quando a conferência dos conselhos dos trabalhadores e dos soldados terminou, parecia que Ebert e Scheidemann estavam no auge do seu poder. Os representantes das massas dos trabalhadores e soldados revolucionários por toda a Alemanha renderam-se cegamente a seus líderes. A convocação da Assembléia Nacional, da qual as “pessoas nas ruas” foram barradas, a degradação do Conselho Executivo, e com os conselhos, a figuras cómicas — que triunfo para a contra-revolução de todas as maneiras! Os frutos do dia 9 de Novembro pareciam ter sido desperdiçados e jogados fora, a burguesia mais uma vez suspirou de alívio, e as massas foram deixadas perplexas, desarmadas, amarguradas e, certamente, em dúvida. Ebert e Scheidemann imaginavam-se no auge do poder. Que tolos cegos! Nem mesmo vinte dias se passaram desde então, e seu poder ilusório, de um dia para o outro começou a oscilar. As massas são o autêntico poder, o verdadeiro poder, em virtude da coação de ferro da história. (...) Qualquer um que testemunhou a manifestação da massa de ontem na Siegesallee, que sentiu esta dura convicção revolucionária, este ânimo magnífico, esta energia que as massas transpiraram, deve concluir que, politicamente, os proletários cresceram enormemente através de sua experiência das semanas recentes, nos últimos acontecimentos. Eles tornaram-se conscientes do seu poder, e tudo o que resta é eles beneficiarem-se deste poder. Ebert-Scheidemann e seus clientes, a burguesia, que incessantemente clamam golpe, estão neste momento experimentando a mesma desilusão sentida pelo último Bourbon quando seu ministro respondeu a seu indignado clamor sobre a “rebelião” do povo de Paris com as palavras, “Senhor, isto não é uma rebelião, é uma revolução!” Sim, é uma revolução com todo seu desenvolvimento externo caótico, com sua alternada decadência e fluidez, com surtos momentâneos rumo à captura do poder e também momentâneas recessões dos transgressores revolucionários. E a revolução está traçando o seu caminho passo a passo através de todo este aparente movimento em ziguezague e está marchando à frente de maneira invencível. Rosa Luxemburgo, O Que os Líderes Estão Fazendo?, 7 de Janeiro de 1919


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