Um olhar adolescente sobre as tramas da vida 1
“ Lugares, pessoas, amores, sorrisos e lágrimas... Nisso consiste minha história. Não a minha, mas a nossa seria egoísta dizer que a construí sozinha...”
Um olhar adolescente sobre as tramas da vida Edição do Autor 3
Copyright © 2010 Marcela Millan É proibida a reprodução total ou parcial do livro, por qualquer forma, sem autorização da autora.
Projeto gráfico: Patricia Millan Revisão: Marina Teixeira de Mello Ilustração da capa: Patricia Millan sobre foto de arquivo do Shutterstock Images
Contato com a autora: marcelamillan@ig.com.br
Agradecimentos
Por todos os conselhos construtivos, um agradecimento super especial à minha avó, Marina, que tão pacientemente revisou todos os meus textos. Ao meu pai, Alberto, por me apoiar desde sempre e à minha mãe, Patricia, que sempre dava aquele empurrãozinho quando eu pensava em desistir ou quando tinha a famosa “crise de escritor” – sem ela esse livro provavelmente não estaria pronto. E à amiga Luiza que – coitada! – me aturou falando e falando sobre esse meu sonho que estava se realizando. Ah, mas existem tantos outros que eu queria citar aqui...! São muitos mesmo, alguns até anônimos. Na realidade acho que precisaria agradecer a todo mundo, porque foram as pessoas que conheci que me permitiram viver experiências que, de um modo ou de outro, tornaram-se histórias. 5
Sumário Prefácio 9 O Céu de Isabel 11 Carta ao Irã 18 Ansiedade 20 Reviravoltas 21 O Tempo 52 Cores 53 Se Eu Tivesse 54 Jogos da Vida 55 Chuva 117 O quê, entrevista?! 118 Mesmice 120 Olhos Eternos 121 Conversa Vai, Conversa Vem... 151 Mundo Fake 154 Literatura 155 Por uma Noite 156 Sombras do Destino 157 Um dia de Estrangeira 170 Melodioso Fim 171 O Circo 172 Ana e o Mar 176 Declarações 177 Amiga Solidão 178 Nacirema 183 Lamentável 184 Mudanças 196 Marionete 198 O Início de Tudo 199 Como uma Estrela 200 Leva Tudo 201 7
Prefácio Quando minha filha Patricia me pediu que revisasse uns textos escritos pela Marcela, pois pensava publicá-los em um livro, tive uma grata surpresa. Eu sabia que minha neta adorava ler e escrevia bem - já havia lido algumas de suas crônicas. Mas ali estavam nada menos que 30 textos entre contos, reflexões, poesias e crônicas, numa linguagem tão desenvolta e correta que, praticamente, nada havia para editar. Em estilos diversos, os textos nos transportam às emoções da adolescência: os primeiros amores, amizades intensas, peripécias no colégio... Inquietudes, risos e lágrimas. Em alguns contos, Marcela deixa a imaginação voar e envereda por tramas de suspense e ficção. As reflexões poéticas revelam a delicadeza e a maturidade dessa menina paulistana de 15 anos, capaz de ver a vida com humor e sensibilidade. É com muito prazer e orgulho que apresento a vocês este livro... Que ele seja o primeiro de muitos!
Marina Teixeira de Mello
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O Céu de Isabel
– O que é o céu, mamãe? Como ele é? Descreva-me... Detalhes. Uma imensidão, infinito, liberdade. Está tão perto, e ao mesmo tempo tão longe... na escuridão, noite, ao clarear, dia. E eu posso vê-lo, a meu modo. Posso mergulhar no ouro do sol e andar nas cordas de nuvens. Eu posso. Lugares, pessoas, amores, sorrisos e lágrimas... Nisso consiste minha história. Não a minha, mas a nossa – seria egoísta dizer que a construí sozinho. Posso vê-lo se perguntando: “E o que isso tem a ver comigo? Por que perderia meu tempo lendo sobre a vida de alguém que não conheço?”. Francamente, essas são perguntas que eu mesmo me faço, e ainda não encontrei alguma resposta convincente para lhe dar. Mas, vamos, leitor, acho que posso leválo a um lugar bem interessante. Quem sabe, quando terminarmos, eu tenha uma resposta para você. Acho propício iniciar minha descrição aqui. A escola. Não que eu goste dela, longe disso. Mas a escola é onde passamos grande parte de nossos dias, e é onde construí grande parte de minha história. Está me vendo ali? Última fila, tagarelando sem parar? Isso, esse mesmo. Vamos a uma descrição mais detalhada: sempre bronzeado pelo sol; aquele jeitinho levemente desleixado, cabelo desfiado para todos os lados, olhos quase verdes – digo quase, porque depende mesmo é da luz em que você olha –; nem gordo, nem magro; relativamente alto. Conhecido como “o bom mau aluno”, o que quer dizer que tiro notas boas e sei o conteúdo, porém não presto atenção às aulas nem por um minuto. Provavelmente você está vendo ao meu lado uma garota. Uma gatinha, não acha? Feições angelicais, cabelos cor do sol, olhos cativantes e misteriosos – até para mim. Esta é Bel. “Bel? Bel de quê?”. Somente Bel – deixei de usar seu nome inteiro faz muito tempo. Se eu disser a você que somos amigos, isso é pouco. Ela e eu somos praticamente a mesma pessoa. E é sobre essa amizade que eu quero lhe falar. Foi com ela que aprendi o básico sobre a vida. Foi com ela que conheci as pessoas
mais inusitadas e importantes para mim. E foi com ela que entrei nas piores roubadas. Foi com ela que perdi o meu “BV”. Foi com ela que fiquei horas ao telefone, falando sobre nada. E foi também com ela que briguei inúmeras vezes, chorei no seu colo, dividi as fofocas, vivi os melhores momentos. Vou lhe contar sobre isso agora. Todos os pais esperam ansiosamente o nascimento de seu filho, mas, quando a criança nasce cega, ou fica cega pouco depois do nascimento, claro que ficam chocados. Por vezes ficam mesmo esmagados pelo enorme desgosto. Não conseguem conceber a idéia de não conseguir ver. Pensam que a criança sentirá a cegueira da mesma forma que eles. E estão completamente enganados. Foi em uma sexta feira. Como sempre, eu e alguns amigos nos encontrávamos no clube, para jogar uma partida antes da balada. Ocorreu tudo normalmente, algumas lesões aqui, machucados ali. Fiquei de passar na casa de Tavinho para irmos juntos à festa. Eu andava – ou melhor, mancava – por entre as quadras do clube, sem nenhum destino definido. Ainda estava cedo, e eu não queria voltar para casa – sabendo que uma mãe cheia de problemas e uma adolescente temperamental me esperavam, por que iria querer voltar? Então meus olhos foram atraídos para o ginásio. Eu nunca a vira ali, como poderia deixar de reparar? Ela parecia uma deusa, com seus cabelos louros e ondulados soltos as costas, movimentando-se com o vento. Seus movimentos graciosos por sobre as barras lhe davam uma estranha leveza... Quem era ela? Aproximava-me, cauteloso, tomando cuidado para não distraíla. Não ousaria tirar sua concentração. Mas, por mais silencioso que eu fosse, ela havia me notado. Interrompeu sua dança, virando-se para mim. – Olá? – sua voz tinha uma curiosidade visível. – Er... oi... desculpe incomodar. – andei ao seu encontro, tímido, sentindo meu rosto corar. Notei que os olhos da jovem não me olhavam diretamente. Pareciam ver através de mim. – Não, tudo bem. Não incomoda. – e sua voz parecia verdadeira. Ela sorria para mim, um sorriso lindo e angelical. – Posso ajudá-lo? – Ah... eu... hum... – Que foi? Não sabe por que veio aqui? – ela parecia estar 11
se divertindo comigo. Por mim tudo bem. Mas então seu rosto mudou, ficou um pouco mais sério. – Se machucou? Acho que esta mancando... – Não foi nada... só torci o tornozelo no jogo. Da pra notar? – Só um pouco... você esta pisando um pouco mais forte com o pé esquerdo. – deixei essa passar. Ela era bem observadora. Notar o som dos meus passos... bom, acho que poucos faziam isso. Estava tão distraído com meus pensamentos e com aquela linda garota, que demorei a notar que ela voltara a falar. – Meu nome? Lucas... e você é... – Isabel... Conhecemo-nos assim, e então nossa amizade se intensificou. Não lembro ao certo qual foi minha reação quando ela me contou que era cega. Muita coisa fazia sentido. Lembro-me de quando ela me perguntou como eu era. – Eu? Vamos ver... sou um deus, lindo sabe! – Sei... Convencido. – Não, sério! Sou bonito mesmo... Tentei me descrever o melhor possível, era uma coisa engraçada. Não sabia que imagem ela tinha de mim, e isso era estranho. Quando terminei de falar, ela se aproximou, tocandome. Não era a primeira vez. Ela passava a mão em meu rosto, seguindo sua forma, tentando montar em sua mente minha imagem completa. Eu não me incomodava, mas no fundo queria mesmo que ela pudesse me ver. Juntos, íamos a todos os lugares – sem restrições. Eu era como seus olhos, descrevia tudo o que me perguntava, e não me importava por isso. Com o passar dos dias, ficava fácil saber o que o outro pensava – era como se nossas mentes estivessem interligadas. Não havia necessidade de falar, o outro apenas sabia. Ela era hilária, geralmente não falava coisa com coisa. Uma completa palhaça. – Então você não sabia dessa? Vazou pelo colégio todo! – Realmente não... O Caio, Caio mesmo? Aquele com jeito de santo? – É... fez a maior bagunça. Acabou suspenso, acho... – um leve zumbido se iniciou no telefone. – Bels, acho que a linha esta bem ruim... – O que? – Esse barulho... acho que vou tentar ligar outra vez.
– Esta falando desse zumbido ao fundo? Não liga Lucas, sou eu! – Como assim você?! – àquela hora, estava mesmo intrigado. Às vezes era difícil entende-la. – Estou falando com você enquanto tomo banho. Não se ofenda... – Enquanto... espere, como? – por essa eu não esperava. – Exatamente isso que entendeu... Deve me achar uma louca. – Não... só uma desequilibrada. – risos ao fundo, nenhum de nós pode evitar. – Amanhã vou te levar para conhecer o Tih. – Quem? Quem é esse Tih? – eu fingia ciúmes – Olha, Isabel Medeiros, não me traia com ninguém! Não suportaria isso. – Bobinho – ela sempre sabia quando eu estava brincando. – Thiago, meu primo... Uma breve descrição de Thiago: grandalhão – e quando digo isso é porque ele é grande mesmo. Tem cabelos longos, no estilo punk. Meteria medo se não fosse seu jeito amigável. Uma figura, assim como a prima. Quando nos conhecemos percebi que mais uma grande amizade se formara. Ele simplesmente chegou me cumprimentando, como se já me conhecesse de tempos, bem assim: – Hei, cara! Tudo bom? – toque de mão – E o futebol, ainda pratica? – uma cena engraçada de se ver. Fomos a muitos lugares juntos, e ele tornou-se como um tio para mim. Entre eu e Bels, não havia malícia. Já escutara muitas vezes meus amigos falando sobre isso. Eles não acreditavam que eu ainda não tinha “ficado” com ela. Idiotas... eles não compreendiam o nosso tipo de amizade. Ela era família para mim. Mas aquilo ficou martelando em minha cabeça, mais do que qualquer outro pensamento. Era algo que, inconscientemente, eu sabia que queria tentar. E um dia... bem, vamos aos detalhes. Eu estava muito para baixo, triste mesmo. Tavinho estava estranho, suspeitávamos que ele andava usando drogas. Aquilo mexeu comigo, e, quando ela me encontrou, percebeu no ato que algo me incomodava. – Lu...? – ela estava meio hesitante. – Sim? – pela expressão dela, minha voz não saíra tão normal quanto eu queria. – O que é que está te incomodando? Sou eu? Fiz algo de errado? – eu fiz uma careta, mas não havia raiva em meu rosto, 13
como ela poderia estar imaginando. Eu olhava para a poeira do chão, e chutava o pneu do carro de alguém, com um ritmo constante. – Não, não é você... é o Gustavo. – O que tem ele? – Bom... – agora, as palavras saíam apressadas. Contei-lhe tudo, absolutamente. Notei que ela mordia os lábios – ela se preocupava tanto comigo... E, no meio de meu relato, ela me abraçou. Um abraço forte, cheio de sentimento, que eu tenho certeza que guardarei para a vida inteira. – Conte comigo, tudo bem? – ela sussurrou a meu ouvido, e eu concordei com a cabeça. Bel deve ter sentido o movimento, pois relaxou um pouquinho. – Belzinha, eu... – não sabia o que era, talvez o momento, ou os sentimentos, mas de repente eu precisava tentar. Eu queria, mais do que tudo. Não percebi quando é que me movi, só me dei conta quando já havia feito. Eu a beijava, suavemente, esperando ver sua reação. Houve um momento de choque - ela, mais do que eu, estava confusa -, mas fui recebido e nós nos unimos de tal maneira naquele instante que eu jurava que éramos um. Sei, isso é meio brega, mas era isso mesmo que eu sentia. O constrangimento veio em seguida. Por mais que eu soubesse que ela não me veria, eu evitava um contato direto com seus olhos. Me desculpava a cada segundo. – Hei, Lu, calma. Para de se desculpar! – ela falava, mas eu demorei a entender o que dizia. – O que? – Eu gostei Lu, agora pare de se desculpar por nada! – É... sério? – Claro. Mas... bem... – vi seu rosto ficar ligeiramente avermelhado – Não sei se é isso que eu quero... é estranho... sempre fomos amigos, e tal... – Não, tudo bem... eu também não sei o que deu em mim. Só amizade, ta legal? Naquele instante eu me esquecera dos problemas. Bel era tão boa para mim que fazia minha mente voar. E eu a queria mais do que tudo, porém, por enquanto, teria de me contentar com a amizade. Não contamos a ninguém o que aconteceu, e tudo continuou normal. Normal, por várias semanas. Saímos com Thiago mais algumas vezes, estudamos em minha casa e fomos a baladas.
Basicamente o de sempre. Mas eu não sabia de um detalhe. Um grande detalhe que ela não me contou, e eu também não descobri. Uma tia distante dela estava em coma, já há muito tempo – isso eu tinha conhecimento – mas uma grande parte de sua família queria desligar os aparelhos. Ela era contra, mas era minoria. Acho que entendo por que nada foi falado sobre isso. Ela estava sofrendo, e não deixava transparecer nada. Nadinha. Eu não pude notar, até ela explodir comigo. Foi do nada, achei que era somente TPM. Ela gritou, falou que não queria me ver, que não gostava mais de mim. Falou que para ela eu estava morto. Isso doeu muito, muito mesmo. Saí da casa dela com lágrimas nos olhos, e não me envergonho disso. Fiquei trancado em meu quarto por alguns dias, e também não me envergonho. Foi a pior briga que tivemos. Demorei muito para atender aos seus telefonemas, e, quando o fiz, desejei não ter sido tão rancoroso. – Ah, Lu... – ela começou, assim que apertei o botão verde do celular. – Me desculpe! Não era com você! – sua voz estava chorosa, quase não existia. Na hora fiquei preocupado. Ela me contou tudo, e eu fui para sua casa. Me senti tão mal por tê-la evitado... Agora era eu quem a estava consolando. É engraçado como o mundo dá voltas, e, nesse vai e vem, as histórias se repetem, como um filme. Entre os sorrisos e lágrimas, amizade e solidão, cá estamos nós, exercendo nosso papel – e que papel - essencial por si só. Antes era ela, agora era eu. Nossa história ainda não acabou – continuamos amigos inseparáveis e, por mim, sempre seremos – mas eu quero lhe relatar uma última coisa. Um último acontecimento. Para mim, quase um milagre. Começou com um susto. Grande susto. Estávamos andando pela avenida quando um grupo de assaltantes nos abordou. Não só nós, mas um grupo de pessoas. Logo entreguei meu dinheiro, mas ela tinha de resistir! Não podia ver que eles estavam armados... e, quando Bel o fez, um deles avançou sobre ela. Não a machucou, ainda bem, mas meu coração nunca bateu tão acelerado. Achei que era aquele o dia em que eu a perderia. Bel desmaiou, os bandidos fugiram. Corri ao seu encontro, mas ela não me respondia. Ao menos ainda respirava. Quando vi seus olhos cor do céu se abrirem, não contive a alegria. Lágrimas nos olhos, sorriso no rosto. Mas eu pude ver algo mais em seu olhar. Algo maior. – Bel, tudo bem? – perguntei, preocupado, passando a mão 15
por seu corpo, a fim de fazê-la se sentar. Ela não me respondeu imediatamente, o que me deixou mais aflito. – Eu estou vendo, Lu! – ela exclamou, em tom baixo, mas muito alegre. – O que? Acho que você bateu mesmo a cabeça... preciso levar você a um médico... – Não, Lu! É verdade... – Ela sentou-se, e levou as mãos ao meu cabelo. Segurou-o, mexeu, depois olhou para si. Contemplava nossos corpos como uma criança que ganha um doce. – Sempre soube que você era um gato! – Bel, é verdade?! Você esta me vendo! Você esta vendo! – eu comecei a gritar, rir, tudo ao mesmo tempo, sem me importar com que os outros que estavam a nosso redor pudessem imaginar. Ela olhava agora o céu, com um jeito pensativo, e depois voltou a olhar para mim. Seu rosto continuava exuberante, mas os olhos perdiam o brilho. – Isso foi... a melhor coisa do mundo! – Nem acredito que você pode me ver! – A melhor visão que vou guardar para sempre. – o sentido duplo de suas palavras demorou muito para ficar claro. Eu não queria acreditar nisso. – Então... acabou? – Quase... está tudo muito fora de foco... somente pontos coloridos... mas isso é bom para mim. Foi perfeito! Eu a abracei como nunca havia feito antes. Por mais que não fosse para sempre, ela tinha minha imagem em sua mente. E, melhor, sabia como eu era e ainda assim ficara comigo. Dividira comigo sua maior alegria, e eu serei sempre grato por isso. Não sei se respondi suas perguntas, muito menos se consegui passar a você o que queria. Mas fico grato se chegou até aqui, leitor, porque agora você faz parte de mim. Sabe quem eu sou, e um pouco do que penso. Sabe o que vivi e o que espero. E eu só queria mostrar isso a você. A vida pode ser bem interessante, não é? Por mais difícil que seja... Então, se este for meu único livro – por que, realmente, da um trabalhão fazer isso – acredite que esta tudo bem comigo, e mesmo quando não estiver, ficará logo depois. E eu acredito que seja assim com você também. 2008
Carta ao Irã Caro Jamil Sou estudante, assim como você. Desde que me lembre fui criado para pensar que onde vivo é um lugar bom, pelo qual vale a pena lutar. Eu acreditava nisso... Pretendia mesmo sacrificar minha vida e história em nome do Islã. Pretendia matar muita gente e fazer parte de uma guerra, achando que seria um ato heróico. Épico... Levava isso como um objetivo de vida. Só que vi que tudo o que pensava não passava de uma ilusão... Eu mudei meu pensamento há pouco tempo. Não sei por que resolvi assistir a um filme – filme que, por acaso, é proibido. Acho que fui movido por aquela adrenalina de fazer algo diferente e errado. Sou criança, ainda levada por impulsos... E quando assistia aquela história - para mim inovadora -, me deparei com você. Idêntico a mim. Acabei me vendo espelhado em sua vida. E isso mexeu comigo... Por esse motivo estou escrevendo essa carta. No final ela pode não acrescentar nada a você, mas eu espero realmente que seja o contrário. O filme se chama Persépolis, e é narrado por Marjane, que desde pequena tinha muitas idéias avançadas. Ela é conhecida de sua mãe... Durante todo o tempo vemos como ela cresce, amadurece e cria sua própria opinião sobre o Irã e sua maneira de lidar com as pessoas, leis e religião. Conforme fui vendo tudo o que acontece com ela, fui tomado por um sentimento estranho e novo. Revolta. E, pior ainda, revolta contra a minha pátria. Vou lhe explicar o porquê. Vivemos em um país governado pela República Islâmica, o que quer dizer que leis e religião se misturam. Só que existe um grande problema aí... Já parou para pensar que o Islã pode ser interpretado de várias maneiras diferentes...? Por mais que eu siga a religião, posso vê-la de um modo mais liberal ou mais rígido. Isso é o que acontece em muitos outros lugares onde o Estado é laico. Já aqui no Irã não. Ninguém pode contradizer as leis, a política, e como esta e a religião estão lado a lado, ninguém pode ir contra os princípios religiosos adotados. Há uma opressão, o que impede 17
a diversidade religiosa. Não podendo expressar o que pensam, alguns adeptos se revoltam e são presos, reprimidos ou condenados. Pude ver isso várias vezes no filme... e não achei justo. Onde está a liberdade de expressão? E a diversidade de pensamentos? Percebe quão ilógica é essa tal República? O Estado impõe regras. Nós temos que obedecê-las de qualquer maneira. Quem não o faz é reprimido, muitas vezes de forma violenta. Penso que religião e violência nunca poderiam ser aliadas... Percebi que vemos nosso Irã mascarado. Pensamos nele como perfeito, e defendemos seu governo. Criamos guerras por isso, muitas que ainda não acabaram. Tiramos a liberdade individual de nosso povo, acabamos com uma ideia de democracia. E eu só fui perceber isso quando vi nossa realidade retratada de um outro modo. Eu, como expectador, vendo tudo de fora. Persépolis acabou sendo, para mim, uma forma de conhecer mais a fundo o lugar em que vivo... Algo que chamou muito minha atenção no filme foi que este, por mais sério que seja, é uma animação. Isso é muito interessante... De algum modo conseguimos abstrair nossos conceitos já tomados quando vemos um desenho, o que torna mais fácil a compreensão do objetivo do mesmo. Chegamos mais fácil à conclusão que ele quer nos passar. Não pense que estou julgando nossa religião aqui. De modo algum. O islamismo não é mais rígido do que qualquer outra religião. O Estado que a adota sim. Foi a interpretação feita das leis religiosas que tornou a República Islâmica uma ditadura, que tem que ser seguida de qualquer modo. Como qualquer ditadura é completamente incoerente. Nesse caso, religião e política se misturam, e a corrente xiita assume o poder. Entretanto temos outros casos em que o islamismo pode ser interpretado diferente, e então a corrente sunita se destaca, por ser mais liberal. Só queria mostrar a você, Jamil, como nossa idéia de morrer pelo Estado é ridícula. Completamente sem fundamentos. Oprimir nunca é a chave para se conseguir a paz... Desde já agradeço sua atenção. Hadji. 11/2009
Ansiedade
O tempo parece estar irritado comigo. É, só pode ser a explicação. Achava que ele era meu amigo... Mas agora só aumenta minha aflição. O que é isso...? Que agonia! Quase um vício. Coração bate em demasia. Ah, não passa a hora... Olho o relógio e o ponteiro para. Porque não anda sem demora? Não posso! – dispara. Observo a dona paciência. Pequenina, escondida... cheia de carência. Vaise embora sem que eu mande. Deixa a outra, que se expande. Ah, ingrata e grande! Em mim, não mande. Não há necessidade, ansiedade. Não com tanta vitalidade. Porque antecipar o futuro, se quero o presente? Não é muito coerente. Mas se fazes isso, ansiedade, é porque tens necessidade...? Minha companheira, os problemas são muitos... Imagine os do presente e passado juntos! Ah, ingrata e grande! Em mim, não mande. Não há necessidade, ansiedade. Não com tanta vitalidade. O que queres com isso? – questionarão. A resposta – perfeição. Mas és muito dura, amiga. Assim jamais acabará a briga. Não posso com isso, não sozinha. Vira uma sina minha... Que não quero levar. Não há outro modo disso acabar? Ah, ingrata e grande! Em mim, não mande. Não há necessidade, ansiedade. Não com tanta vitalidade. Se queres fazer parte de mim, não ligo. Te aceito, dou abrigo. Mas nos entendamos, ansiedade! Precisa haver adaptabilidade. Ficas comigo, queres meu bem... Mas não sejas tão dura, também! Venha, ansiedade... unamo-nos em prol da felicidade... 04/2010
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Leva Tudo... Às vezes bate aquela tristeza vinda do nada. Incomodada. Vem procurar onde não foi chamada. Destrói a morada, casa amada. Leva tudo, sobra nada. Porque veio eu não sei. Para onde foi... também. Sei que me fez o maior estrago. Me invadiu, consumiu, rasgou-me toda e sumiu. Deixou-me em prantos e lamentos, quebrou-me de todos os jeitos. Tristeza, ó ingrata! Leva tudo, sobra nada. O que queria é mistério. O que me fez... muito sério. Deixou-me pensando, imaginando. Ela, o que era? Erva daninha, praga só minha... Ódio enterrado, problema disfarçado? Tristeza, ó ingrata! Leva tudo, sobra nada. Querias tu, Ordinária, tirar-me da linha da razão? Puxar-me, derrubar-me no chão? Pois conseguiu, ingrata tristeza, arrancar-me os trilhos, Apagar os caminhos do meu coração. Tristeza, ó ingrata! Leva tudo, sobra nada. Agora o que faço? Me arrasto. Energia consumida em um lamento de dor. Invadida, corrompida... um horror. Tristeza ingrata, Ingrata tristeza... por que fazes isso, Amor? Transfigura-se, muda sem pudor. Amor... Ó amor ingrato. Leva tudo... 2010
Reviravoltas
Aparentemente um dia normal, só mais um entre tantos no ano, que demoraria a passar e que não me traria nada de novo. Quando acordei foi isso que pensei, e nunca poderia imaginar que estaria tão enganada. 24 horas. Esse foi o mísero tempo que mudou minha vida para sempre. Não vou chegar a tempo! Eu estava atrasada, como sempre. Já era muito natural, porque fazia de propósito. Claro que os professores não sabiam – não deixava assim tão à vista. Mas dessa vez exagerara, então estava quase correndo pelas ruas vazias. Cheguei no colégio com a respiração descompassada e o coração acelerado, mas ninguém me viu. É, isso sempre foi assim também. Eu era invisível ali. Andei pelo caminho que me levava à sala em um silêncio profundo, perdida em pensamentos. Não queria estar ali, e isso era óbvio. Deixava visível em meu rosto que odiava aquele lugar. E as pessoas... bem, eu até que tentava me enturmar, mas fora condenada por todos, e não teria direito a fiança. Não havia nada que tornasse aquele colégio diferente dos outros. Longos corredores pintados de branco com fileiras de armários, e várias salas. Bem tradicional. Talvez o fato de ele ainda oferecer a opção de internato fosse relevante, mas esse recurso era mais utilizado para pessoas que faziam intercâmbio – o que acontecia frequentemente ali. Era uma vantagem e tanto... Às vezes um garoto fofinho precisava de ajuda com algumas matérias... Uma pena que eu não fosse uma boa indicação. A porta da sala estava fechada quando cheguei esbaforida. Mau sinal. O professor já devia ter entrado... Mas não. Abri a porta bem devagar, tentando não fazer barulhos que denunciassem minha chegada na hora errada, e acabei dando de cara com uma cena que preferia não ter visto. – Hei... isso é ciúme, inveja ou o que? Sabe, não ligo para o que vocês pensam ou deixam de pensar sobre mim! Só porque 21
sou diferente, só porque mal tenho condições de pagar este colégio e porque serei muito mais bem sucedido futuramente, vocês... – ele não teve tempo de concluir a ideia, pois um soco atravessou seu rosto. O garoto caiu no chão, enquanto outros já faziam um círculo em volta dele e dos valentões. Chutes e mais socos eram desferidos sobre o pobre rapaz simplesmente por falar. Não precisava olhar para reconhecer a vítima – Marco, o rapaz novo. Desde seu primeiro dia fora alvo de bullying, devido aos seus cabelos estranhamente descoloridos e sua voz melódica que acabava por atrair a atenção de garotas – inclusive a minha -, ainda mais quando ele começava a cantar - coisa que fazia constantemente. Ele era baixo para um garoto de quinze anos, e um pouco magro, fazendo com que ficasse indefeso contra os “valentões” que adoravam provocá-lo. –TRETA! TRETA! TRETA! – rapazes gritavam euforicamente, e o sangue espirrava no chão, enquanto Marco tentava se defender. A cada golpe a dor fazia com que seu corpo adormecesse um pouco mais, cada vez mais fraco... Antigamente poderia dizer que achava isso bem normal. Não ligava para as brigas que ocorriam diariamente ao meu redor, muito menos para os feridos, e para as histórias. Não era problema meu, era? Só que acabei me envolvendo com alguém que me obrigava a encarar essas situações com mais frequência... O ver ali não foi surpresa nenhuma. O que me chocou – reação que não foi só minha – foi aquele estranho objeto que ele segurava... Um agressor tirava um canivete do bolso e puxava uma faca do mesmo... O silêncio foi feito na sala, como se para respeitar o poder da arma, piorando o suspense. Outros dois valentões se afastaram e o círculo foi ampliado, quase desfeito. Ninguém ousava sair da sala, tomados pelo medo. – Isso é para aprender, idiota. Você é só um merda que quer aparecer e agora pagará por isso. Você me irrita. - a voz ecoou por toda a sala, e eu me encolhi. Era Victor, meu namorado. Meu coração deu um salto, enquanto a realidade me atingia. Aquela ameaça explicita... Marco, Victor... Costumávamos apenas implicar com as pessoas, mas nada chegara àquela dimensão. Meu instinto agiu antes de mim. Não veria alguém ser ferido na minha frente, não assim. Não seria responsável por isso. Minhas pernas se moveram ao centro do circulo, e todos os espectadores abriram
espaço para eu passar. –Vic, isso é idiota! – minha voz saiu muito baixa, e eu percebi que segurava sua mão com o canivete. Tive medo. Meu braço tremia, e minha mão estava muito fria. E se ele se rebelasse contra mim? Não sabia o motivo de tudo aquilo... – Fernanda, não se mete! – ele bradou, livrando-se de minhas mãos com um movimento brusco. Meu corpo não teve como lutar contra sua força. Tombei no chão, caindo sentada entre Marco e meu namorado. Algo pegajoso sujou toda a minha mão, mas eu fingi não reparar. Era apenas um detalhe, se comparado ao que acontecia. –Você vai parar! – falei, mais alto dessa vez. – U-hu-hu, quer me dar ordens...! – ele riu, acompanhado pelos outros idiotas que o seguiam. – Fê, se tiver algum bom senso vai sair daqui agora! Notei o garoto recobrando o fôlego atrás de mim, ainda deitado no chão. Se ao menos pudesse ganhar tempo para ele se recuperar já estaria bom... Meus olhos se desviaram para a porta, como se suplicassem que alguém fosse pedir ajuda. Mas claro que ninguém o fez. Eu era um nada ali, apesar de namorar um dos rapazes mais cobiçados de meu ano. Levantei-me logo em seguida, lançando o olhar mais gélido que consegui. –Você é ridículo! Como pude me enganar tanto? – havia raiva, muita raiva em minha voz – Tenho nojo de você, Victor... – Vadia. Achei que me entendesse, Nanda... – Não me chame assim! – bradei – Agora larga isso, já! – Ou o que...? – ele me provocou, com um sorriso presunçoso. E veio em minha direção. A reação foi me afastar, claro. Um passo de cada vez, a um dele. Infelizmente havia uma parede ali. Ele colocou as mãos apoiadas nela – uma com o canivete -impedindome de sair. – Victor... – nem de longe consegui manter o tom autoritário de antes. Nojo, repulsa e medo vieram, me impedindo de manter a voz firme. – Assim esta melhor – aprovou ele, dando uma mordida no lóbulo de minha orelha, a qual não tive como desviar. Nesse instante a porta se abriu, e o professor viu o que não imaginara encontrar. Meu olhar de medo se desviou para ele, encontrando os olhos dele, completamente surpreendidos. – Victor, Fernanda, Marco, para a direção, já! 23
A autoridade estava ali, no tom de voz alto, mas eu tinha certeza que não passava de um disfarce. Aprendera que quanto mais alto alguém fala, menos convicto está. Apenas quer esconder isso das pessoas, como um bom jogador de pôquer. E pela primeira vez – e última - na minha vida, eu estava aliviada por sair dali. Aliviada por ser chamada para a sala da diretora. Estranho, não? O silêncio que se seguiu, enquanto nós três – eu cabisbaixa, tremendo involuntariamente; Victor com a expressão de mais pura raiva e Marco pálido, porém já melhor – foi muito estranho. As pessoas evitavam um contato visual direto, principalmente comigo. Parecia uma marcha fúnebre. –Vocês dois outra vez? A diretora não parecia tão surpreendida assim. Talvez um pouco, por me ver em um estado tão deplorável. Ela estava acostumada com minha figura agitada e respondona, cheia de energia. Agora eu parecia submissa, e ela não conseguia entender o porquê. – Acho que falar já não está mais surtindo efeito, não é? Nem ao menos seus pais conseguem impor limites... – ela tinha um jeito calculista e direto, o que, para mim, era bem pior. Houve uma pausa naquele momento, como se ela esperasse alguma interrupção. De minha parte, nada. – Não me importo que ligue para meus pais, tios, avós, quem quer que seja. – Victor tinha seu tom desafiador de sempre. Será que ele nunca o tirara da voz e eu só notava isso agora? – Nem que me reprove, ou qualquer coisa do tipo. Não preciso desse colégio. – Interessante... – ela anotou alguma coisa, e voltou o olhar para mim. A única coisa que fiz foi me afundar na cadeira e senti meu braço roçar no de Vic. Instantaneamente eu me joguei para o outro lado. – Hum, diretora? – pela primeira vez, quem sabe, Marco falava com ela em uma situação assim. Já estivera naquela sala, eu sabia, mas nunca precisara tomar a palavra. Me perguntava o que ele iria dizer... – Será que pode parar de olhar a Fernanda assim? Ele conseguiu um olhar interessado e especulador da mulher de longos e lindos cabelos ruivos. De mim, o mais puro choque. Porque ele iria me defender? Não me conhecia, sabia que eu era “revoltada”, e que não tinha um histórico tão desejável. E, pior, namorava o rapaz que o agredira – a veracidade desse último item
poderia não existir mais depois de hoje. – Ela me defendeu, diretora. Realmente o fez. Talvez estivesse bem pior do que agora se ela não tivesse chegado bem naquele momento... – Isso é verdade? Marco, você não precisa falar o que eles querem que eu escute aqui. Eles não vão contra você, porque se o fizerem eu vou ficar sabendo. Então é melhor que me conte toda a verdade. Sem omitir nada. Não adianta se submeter a eles e... – Diretora, o que eu falei é verdade. Ele iria me cortar com o canivete se Fernanda não o tivesse impedido. Depois disso ela o desafiou, e eu tive como conseguir me recuperar... – Idiota. Eu estremeci na cadeira, completamente encolhida para o lado de Marco. Não queria ficar perto dele. Cortar a sangue frio... Quem era Victor? – Você não sabe o problema que esta se metendo... As ameaças vinham em um tom que todos podiam escutar. Como eu consegui namorar alguém assim? Estava louca? Ou cega...? – Para fora, já, Victor! Espere até eu o chamar mais uma vez. Era a primeira vez que ela levantava a voz com alguém. Perdia toda aquela autoridade que mostrava... Parecia... vulnerável. Mas eu a entendia bem. Aquele era um caso sério. Um caso que fugia de problemas normais de escola. Sozinhos, eu consegui relaxar. Soltei o ar com força, sentando em uma posição mais confortável. – Então agora voltamos a você – falou a diretora, olhando fundo em meus olhos. – A namorada. – Juro que desta vez eu não sabia de nada... Nunca apoiaria algo tão... insano. – Entendo... Então você não sabia que ele levava um canivete. – Não mesmo! – meus olhos transmitiam o horror da lembrança da visão que tive daquele objeto reluzindo na luz. – Arma, corte, sangue... Isso é demais. Nunca imaginei que uma provocação por diversão chegaria a algo assim. – Então bater em pessoas é divertido... – A senhora não me entendeu! Eu nunca apoiei isso! Só que o que eu poderia fazer? Não sei de onde tirei a coragem de hoje para enfrentar Victor... Ele sempre me intimidou. Não é à toa 25
que nosso namoro fosse sempre tão... turbulento. Eu acabava me submetendo a ele. Às vezes não queria, mas ele me forçava... E eu nunca fui forte. Encolhi-me mais uma vez, abraçando meu corpo com força. Ele nem de longe parecia ameaçador. Uma menina esguia e magra, só que com força de vontade. Contra alguém esportista não oferecia perigo nenhum... Não perdi o olhar de Marco em mim, uma mistura de pena e compreensão. Eu não precisava disso! A pior coisa do mundo é se sentir digno de pena. – Pode falar mais sobre isso? – Posso não querer? – rebati. – Fernanda, você sabe que eu vou ter que entrar em contato com seus pais... Mesmo que dessa vez você seja mais uma vitima. – Ela é mais a heroína... – comentou Marco. – Foram muitas ocorrências – continuou ela, como se não tivesse escutado o comentário – E eu até que estou sendo muito compreensiva. Se não mudar, vou ter que tomar uma atitude mais drástica.
Em casa, inicio da tarde. – A diretora ligou, mais uma vez. Foi isso o que escutei quando abri a porta de casa, dando o primeiro passo para dentro dela. Boa tarde para você também, mãezinha querida – pensei. – É? – Não se finja de desinteressada. Você sabia que ela faria isso. – Ok, mãe. O que quer que eu faça? – O que eu quero? Fernanda Chagas Freitas, você sabe muito bem. Já cansei de pedir. Até de exigir. E agora minha paciência acabou. Se não tiver jeito estou pronta para tomar uma decisão. – Decisão? – parei meu movimento no meio, segurando uma caixa de suco com a porta de geladeira aberta. De algum modo eu sabia que ela falava muito sério. Se ela falou meu nome completo... mau sinal. – Eu e seu pai achamos que são as más influencias que estão te fazendo assim. Se for necessário acho que o internato é a melhor opção. – Como é? – falei, a expressão atenta se transformando em um riso baixo – Tudo bem, mãe, eu quase acreditei. Agora fala sério...
– Mais sério do que isso? Seu pai foi logo cedo para seu colégio, assim que recebemos o telefonema. Ao que parece a diretora concordou... Ela também acha que algumas influências te mudaram muito. A propósito, te proíbo de namorar Victor. – Até aí, mãe, esta atrasada. Eu não quero nem olhar para ele! Alguns minutos antes de eu chegar ali, Victor me procurara, interceptando meu caminho. Seu aperto forte em meu braço deixou uma marca vermelha que me renderia um machucado bem feio. Discutimos, e ele me ameaçou também. Grande coisa. Pior do que agora não poderia ficar... Mas eu tinha medo. Mesmo. Apesar disso nada me faria submissa a ele mais uma vez. Nunca mais. – Então está decidido. Hoje, agora. Vai arrumar suas coisas. Fiquei olhando para o rosto sério de minha mãe, a mão em riste, apontando para a escada. Não podia ser verdade... Meu mundo desabou ao meu redor: sonhos, planos, amigos, festas, diversão. Eu, no colégio interno. Por culpa daquele filho da mãe. Não percebi que derrubara o suco até sentir algo molhado e pegajoso em minha calça. – Puta merda! – peguei um pano, tentando diminuir os estragos e subi para meu quarto, batendo os pés bem forte. Marchando. Marchando para o fim da minha vida. Não demorei muito para arrumar várias malas, tacando simplesmente tudo o que eu tinha. Desde roupas, sapatos, maquiagem, secador, chapinha. Tudo. Até mesmo meus livros preferidos, e um caderno que eu nunca mostraria a ninguém. Tinha a expressão mais emburrada do mundo e não pretendia abrir minha boca para me despedir. Se quisessem falar comigo – pensei – deveriam ter me escutado quando tinha muito o que contar. Agora era tarde. O caminho inteiro eu fiquei encarando o vazio, sem ver nada. Ainda bem que o trajeto de carro demorava pouco mais de dez minutos. Sem cerimônias peguei minhas malas, e meu pai algumas outras, e entramos por aquele portão conhecido, que agora seria minha casa. Eca! Aquilo não se parecia com a casa de meus sonhos... Apesar de tudo, eu me impedi de chorar. Era só meu orgulho. Sabia que assim que ficasse sozinha em qualquer lugar perderia o controle e desabaria. Afinal, nunca fui forte... Da parte burocrática eu fui privada. Enquanto meu pai assinava 27
papeis e acertava pagamentos eu fui encaminhada para uma parte daquele prédio que eu jurava não precisar cruzar nunca. Subindo por uma escada em caracol me deparei com o mesmo corredor, com as mesmas cores e a mesma distribuição de salas. O que mudava era a quantidade de portas, aparentemente um número muito maior do que previra. – Cada um tem seu quarto, e há o horário em que você deve estar dentro dele. As luzes são apagadas às onze, mas a luminária do quarto não. Há a hora do almoço, jantar e lanche, assim como alguns momentos de lazer. Hey, relaxe... isso aqui não se parece com os filmes. Você pode levar quem quiser para seu quarto. Só não pode dormir com ele lá... O segundo sentido não passou despercebido por mim, mas eu nem mesmo sorri. Viver em meu colégio? Corta essa! Nem mesmo a imagem dos garotos fofinhos conseguiu me animar. E se não tivesse nenhum agora? Se o período de intercambio tivesse acabado? Minha vida social terminara naquele instante. – Fins de semana são livres, contanto que se respeite os mesmos horários de sempre. Dependendo de como for, podemos abrir exceções para caso de festas, ou algo assim. Mas você perde o direito se voltar drogada ou algo do tipo. – Agora posso me matar? – perguntei, e a funcionária riu. Eu não pretendia que aquilo fosse engraçado... Sozinha. No meu quarto. Novo lar. Lar? Duvidava muito. Até que era bem arrumadinho, com uma cama confortável, uma mesa antiquada e um banheiro pequeno, mas com espelho. Melhor do que imaginara, mas ainda assim ruim. Como costumava dizer, menos pior. Aquilo poderia ficar com o meu estilo, era só questão de tempo. Comprar pôsteres, colar desenhos, recortes de entrevistas, fotos de ídolos e amigos. Ao menos ficaria mais... familiar. As paredes muito claras precisavam desaparecer já! Elas não me traziam conforto algum... Pareciam apenas ressaltar o lugar onde estava. Queriam me engolir... – Ai, merda... Encolhida em um cantinho da cama, eu não queria sair para lugar nenhum. Tomara o cuidado de trancar a porta para poder ficar alguns preciosos minutos a sós com meus pensamentos. Como
pudera estragar tanto minha vida? Está certo que minhas notas tinham decaído, que eu me envolvera com um grupo violento e que voltara chapada de muitas e muitas festas... Mas isso era o normal na minha idade, não era? Todo mundo tinha seu período assim, cedo ou tarde. E, apesar de tudo, eu nunca fora violenta. Via tudo, mas não fazia nada. Talvez tivesse rido e apoiado com palavras algumas vezes, mas isso só porque estava bêbada demais. Normalmente eu fugia de qualquer parada que envolvesse sangue. E por que? Pavor, simplesmente. Essa revelação fez Victor cair na gargalhada, e se tornou um ótimo trunfo. Descobrindo meu ponto fraco era fácil me manter a seu lado... até hoje. Que filho da puta. Do pior tipo. Além disso tudo, eu era incompreendida. Não podia mais contar quantas vezes tentara me abrir para meus pais, mas eles me ignoraram. Quantas vezes chegara machucada e eles nem ligaram. Custava perguntar o que acontecera? Demonstrar preocupação? Eu não acharia ruim... Mas o pior não era isso. Ser tratada como mentirosa me tirava do sério. Porque era tão difícil acreditar no que sua própria filha falava, mesmo quando a prova estava bem ali, em um arranhão ou corte novo? Engraçado como a palavra dos outros tem mais valor... E eu via Victor sair ileso mais uma vez, me instigando a ficar a seu lado, me obrigando a beijá-lo e... Nesse ponto o pensamento travou, e eu saí correndo para o banheiro, vomitando tudo, até sobrar apenas bile. E vomitei mais, mesmo sabendo que não havia mais nada a por para fora. Quando terminei enxagüei a boca, e voltei meio cambaleante, com o corpo suando. – Como pude deixar ele fazer isso...? Nossa intimidade era muita, apesar de tudo. Ele me machucava, mas eu cedia. De algum modo parecia gostar daquilo. Ou ao menos era burra demais para não enfrentá-lo antes. Ou então queria fama, acima de tudo. A garota que dormiu com Victor Santos. Era um título e tanto. Mas que exigia muitos sacrifícios... – Fê... Fernanda? Não esperava que viessem me procurar tão cedo. Agradeci mentalmente por ter pensado em trancar a porta, porque, agora, a última coisa que queria era a companhia de alguém para escutar um sermão. Não precisava que me punissem com palavras, porque eu mesma já fazia isso. Pior do que escutar é ter consciência de tudo de errado que fizera, e das escolhas ridículas de minha vida. 29
– Fernanda, sei que está aí... Eu só queria me desculpar. Tudo o que aconteceu foi culpa minha. Então eu reconheci. Devia estar muito distraída para não atribuir aquela voz doce e melodiosa ao dono na primeira vez que ele falara. Pigarreei antes de falar, tentando tirar qualquer vestígio de que eu havia chorado. – Para de atribuir a culpa para você porque isso só piora as coisas, Marco. Eu sei o que fiz, e sei o que mereço. Agora me deixa em paz... –Também sei o que você fez. Me protegeu. E eu quero retribuir o favor... Havia tanto carinho naquela voz que ela acabara me parecendo acolhedora. Uma luz naquela escuridão que eu não aguentava mais. Ainda relutante me levantei, ansiando para trazê-lo para mim, mas sabendo que não merecia sequer aquela preocupação. Ele só está tentando me recompensar por algo que, de algum modo, eu estava envolvida. Não é justo... Abri a porta vagarosamente, dando espaço para ele entrar. Não falei nada depois disso, apenas deixei meus olhos vermelhos voltarem a produzir as lágrimas que pareciam não pretender me deixar tão cedo. Nada mais inconveniente do que chorar na presença de um garoto... ainda mais um garoto de quem você está a fim. – Ah não... – falou ele, entrando e fechando a porta. Sem falar nada – e nem mesmo pedir – ele me puxou para seus braços, me envolvendo em seu corpo esguio, acariciando meu cabelo de um modo bem suave. Ele era forte apesar de não aparentar. – Desculpa... – falei, a voz fraquinha – Normalmente não sou assim... – Valentona? – Mais ou menos... – eu me encolhi um pouquinho em sua direção, sentindo um arrepio indesejado. Nesse mesmo instante eu senti o corpo dele enrijecer e se afastar, me deixando perdida no meio do meu quarto. Isso durou apenas alguns segundos, até eu me refazer e voltar ao meu cantinho da cama. Não precisei indicar para que Marco sentasse – ele o fez logo em seguida, só que no canto oposto. – Se quiser me contar algo, estou aqui... Aliás, finalmente vou ter alguém que fala minha própria língua para conversar. – Quer dizer que...
– Lógico! Por que acha que estaria aqui, nesta hora, se não fosse interno? Não tenho condições de pagar um colégio, então consegui uma bolsa... – Aluno aplicado, então? Não devia andar comigo... Se ele pretendia mudar de assunto e, consequentemente, me aliviar, conseguira. O peso que sentia continuava ali, mas não era o centro de minha atenção naquele momento. E era bom ter uma conversa mais ou menos normal em um dia tão estranho. – Má companhia? Acho que sair um pouco da linha pode ser bom... Ele piscou para mim, e eu sorri em resposta. Sorri! Caralh... – interrompi a palavra no meio, não sei exatamente porque. – Olha, isso aqui não é tão ruim. Tem os computadores... a tarde inteira à disposição. As quadras também... E os fins de semana são livres. Podemos ir a barzinhos! Baladas até... só que para elas precisamos de uma autorização. Fiz uma careta que fez Marco rir mais uma vez. – Algo me diz que além de valentona e má companhia você é baladeira... Nada pior do que isso para mim. – Ainda há tempo de desistir, mocinho... – Infelizmente não, garota. Já me envolvi com você. Agora vou até o final. Nós dois rimos mais uma vez, apesar de nada ser tão engraçado assim. Não sei o que aconteceu ali, mas houve uma aceitação tão grande entre eu e Marco que era de espantar. Como se alguém controlasse meus sentimentos, trazendo à tona só o que era bom. Não tinha o que reclamar disso... Então o dia que se tornara preto e branco mais uma vez ganhou cor. O dia seguinte. Não parara de pensar nisso assim que fiquei sozinha mais uma vez em meu quarto. Depois do jantar, onde eu conheci os poucos internos - que me pareciam, sim, garotos fofinhos e meninas perfeitas – eu me recusei a ficar com eles para o último horário livre antes da “hora da soneca”, como eu decidira chamar. Impedi Marco de vir comigo e me tranquei lá mais uma vez, pegando no sono em poucas horas. Mas agora não podia adiar mais. O dia chegara. A primeira vez que encontraria todos que conhecia, mas com uma diferença. Para eles, agora, eu era uma interna. 31
Não devia ser tão ruim assim... Eu não mudara nada, não é? Bem, só não namorava mais o garoto popular. Talvez o tivesse metido em um problema bem grande, e agora fosse sua pior inimiga. Afora isso, nada. Encontrei Rachel pegando alguns livros no armário. Começara a falar com ela quando entrara para o “time” de Victor, e ela se tornara uma amiga e tanto. Também com notas ruins e um cabelo perfeito, ela era muito parecida comigo. Entretanto tinha um físico que, apesar de delicado, conseguia impor algum respeito. Ela punha medo, porque, de algum modo, parecia mais forte. – Hey... Não saber o que dizer era estranho, ainda mais com ela. Como éramos as únicas meninas que andavam com aquele grupo acabamos nos aproximando muito, e qualquer coisa era assunto para nós duas. Desde a maior fofoca até a nova cor de esmalte, não importava. Parei de frente para Rachel, sorrindo, mas ela só continuou a pegar seu material. – Tudo bem? – perguntei, pedindo atenção, e não tive resposta mais uma vez. – Olha, Quel, eu sei que acabei deixando Victor na pior, mas você me entende, não é? Sabe que eu só fiz aquilo porque... Quer parar de me ignorar?! Acabei não conseguindo deixar de me sobressaltar. Se ela estava assim, imagina as outras pessoas... Isso é um pesadelo! – pensei. – Fê, escuta, não vou falar mais de uma vez... isso não tem nada a ver com você. – ela bateu a porta do armário, me encarando de um modo meio incomodado, trocando a mala de ombro – Eu gosto de você, somos amigas, mas... – O que esta acontecendo aqui? A voz vinda de trás me surpreendeu e eu a reconheci logo. Encolhime, mas parecia que Victor não estava interessado em mim. – Nada. Vamos... – Rachel respondeu no ato, se afastando com ele, sem nem olhar para mim. Grande filho da puta! Acabara com a minha vida e ainda levara minha única amiga verdadeira junto com ele! Não acredito que Rachel preferira acreditar na história contada por ele sem nem escutar minha versão... era ridículo! Ou será... Uma nova ideia passou por mim. Será que é medo? Eu bem sabia como Vic podia ser intimidador... Afinal convivera com ele por bastante tempo. Não me surpreenderia ver Rachel como seu novo brinquedinho.
Se fosse esse o caso eu não teria muito o que fazer – enfrentálo para defendê-la, sem saber se era isso o que ela queria parecia a ideia mais idiota que eu já tivera. Andando com a cabeça baixa eu fui até a minha sala, sem falar com ninguém. Lá sentei no fundo, no canto mais isolado. Minha cabeça doía - era muita informação para um tempo tão curto. Quando percebi já estava rabiscando no caderno, sem prestar mais nenhuma atenção no professor lá na frente, explicando algo que tinha a ver com genética – ou será que era botânica? Eu nunca fora uma garota popular. Quando começara a andar com Victor experimentei aquele gostinho do reconhecimento, e gostei. No início era só um grupo de garotos ricos que promoviam as melhores festas, e eu era uma convidada VIP. Com eles eu aprendi a me valorizar, e mudei o visual. Meu corpo sempre fora bonito, só que eu nunca dera importância... o escondia com roupas largas. Aquela foi a época de renovar o armário. Depois de fazer isso os olhares se voltaram para mim. Alguns sequer acreditavam que era eu mesma. Também mudara o cabelo. Sempre o usara longo, mas ele nunca tivera muita forma... Liso demais, escorrido demais. Então o cortei. E, nossa, ficou a coisa mais perfeita que eu já vira. Repicado, com várias pontas, e ainda ruivo... não havia quem não olhasse. Nem mesmo Victor pode deixar de sentir certa atração... Atração que evoluiu durante o tempo, e se tornou namoro. Agora sim eu era poderosa... As festas não tinham mais graça, beber já se tornara normal. Então uma nova fase se iniciou. A madrugada tornou-se nossa companheira, e nós saíamos em busca de confusão. Qualquer coisa servia... Eu só não gostava de brigas. Apesar disso evitá-las foi se tornando impossível, e eu me obriguei a me acostumar. Aventuras sexuais também faziam parte, e nós nos arriscávamos em diversos lugares, só pelo gostinho da adrenalina. Só que teve a hora que isso se tornou demais... Minhas notas caíram. Meu comportamento piorou. Eu nunca imaginara que pudesse mudar tanto em tão pouco tempo. Só que demorei muito a perceber... Quando isso aconteceu comecei a ficar mais distante, cada vez mais preocupada comigo mesma. E Victor notou minha mudança. Para não me perder tornou-se mais violento, e eu me redimi, com medo. Foi a época em que tentei – muitas vezes – falar com meus pais. Só que eles não 33
acreditavam mais em mim... Sem saber o que fazer eu apenas deixei a vida me levar, ficando cada vez mais encolhida em meu canto, completamente perdida. Até aquele dia em que a coragem surgiu, junto com a raiva reprimida. – Fernanda, será que pode me dizer qual é a resposta que eu acabei de ditar? O professor interrompeu meus devaneios, e eu fiquei olhando para ele, completamente confusa. – Desculpe, senhor... – Vou ter que anotar seu nome. Dei de ombros quando ele falou aquilo, sem ter como impedi-lo. – Você devia ter me procurado antes... Estava sentada no refeitório junto com Marco, e ainda nem tocara na comida. Ficava jogando-a de um lado para o outro no prato, mas não levara nenhuma garfada à boca. Ele percebeu isso, e parecia não estar muito satisfeito. – Não queria te incomodar com minhas reclamações. - levantei o olhar, encarando-o com um sorrisinho sem graça – O fato é que eu não sei como agir... – Se ela não quer falar com você é porque realmente não é sua amiga. – aquilo parecia muito óbvio para ele. – Mas eu acho que Victor esteja... – Eu sei, mas mesmo assim... Ela poderia enfrentá-lo. Você fez isso. – ele apontou para mim, para dar ênfase ao que falava. – Mas eu demorei muito tempo para criar coragem. Era muito bom poder contar tudo o que sentia a alguém. Achava que explodiria antes do fim do dia se não o fizesse. E eu confiava em Marco. Depois de ontem sabia que ele seria mais um dos poucos amigos verdadeiros que tinha. Atento, compreensivo e com bons conselhos, era a melhor pessoa para pedir um “refúgio”. – Acho que não vamos concordar dessa vez... – falei, suspirando alto. – Mas mesmo assim obrigada. – Por que? Eu não fiz nada... sou seu amigo, Fernanda. – Por isso mesmo. Meu sorriso tornou-se mais doce dessa vez. Empurrei o prato para longe, espreguiçando logo em seguida. Depois do almoço era tempo livre. Como ainda não me
sentia muito bem com minha nova vida voltei para meu quarto, me trancando ali mais uma vez. Tornara-se um hábito fazer isso. Procurei nas minhas coisas o caderno que trouxera e fui me sentar na cama. Fiquei lá por horas, que passaram rapidamente. Acho que em algum momento eu cheguei a chorar mais uma vez, mas nada muito compulsivo. Ao menos não parecia mais catatônica. Algo que eu descobrira que gostava e que me ajudava nos piores momentos era escrever. Começara com um diário, mas aquilo evoluiu a tal ponto que eu tinha histórias de muitas páginas escritas, com começo, meio e fim, e muitos personagens. Era meu tesouro e segredo. Nunca mostrara aquilo a ninguém... Principalmente porque, em muitos momentos, a personagem principal era eu, e minha vida estava descrita ali. Claro que exagerava em muitas coisas, e que criava alguns “felizes para sempre”, mas só de imaginar alguém lendo meus pensamentos era algo horrível. Eu também tinha meu momento de descontração. Nada melhor para sorrir do que se imaginar bem, não é? Então eu tinha um jogo... “Como seria sua vida perfeita?”. Ou então... “Sua primeira vez com o homem mais lindo do mundo”. Reler alguns momentos me fazia rir bastante. “Finalmente estava pronta, com a nova blusa, o colete lindo que aumentava meus seios, as botas, colar, batom – em um vermelho mais forte do que pensei que tinha comprado, mas que deixava minha boca mais sexy do que a de Angelina Jolie – e os cabelos compridos, sedosos e brilhantes que dariam inveja a qualquer mulher daqueles anúncios de xampu da Seda. Andava com convicção total, ao encontro de meu namorado perfeito, Ian Somerhalder...” Ah, eu podia sonhar...! Um alarido do lado de fora me fez abrir a porta. Algo me indicava que coisas fora da rotina aconteciam. Só que eu não estava tão interessada assim. Apenas queria silêncio para meus pensamentos... Bem, pensava assim até ver o que vi. A cena parecia um replay do que acontecera há um dia atrás, só que, dessa vez, quem batia era Marco. – Isso é para aprender a não mexer com ela. Ele parecia em fúria, o rosto transfigurado. Victor, surpreendido, apanhava de verdade pela primeira vez. Eu estava em choque. Mãos geladas, corpo trêmulo e pesado. Não conseguia reagir 35
a nada que acontecia a minha volta. A impotência era algo que me irritava profundamente. Gritei para Marco. Pela sua expressão, vi que ele me escutara. Com um último soco, levantou-se, vindo em minha direção, pegando minha mão. – Não me tire do sério mais uma vez – falou, lançando um olhar mortal para Victor. – Ontem, eu não reagi. Hoje, mostrei do que sou capaz. Mas da próxima vez... Não respondo por mim. E então me puxou para meu quarto, batendo a porta com força atrás de si. Transtornado, jogou-se na minha cama, tentando se acalmar. Eu apenas sentei-me em um cantinho, dando tempo a Marco. – Não queria que você visse aquilo... – comentou ele, depois de um tempo. – Nem eu queria ver – soltei. – Achei que você era... diferente dele. – Mas eu sou! – exclamou Marco, surpreso com minha fala – Eu sou... É que você não ouviu o que eu ouvi, Fernanda. Não tem noção do quão perverso ele foi. Eu não podia deixá-lo sair numa boa depois daquilo... não podia mesmo. – Ah, tudo bem então! O que ele disse? – estava um pouco irritada também. Gostara de Marco por ele ser diferente. Calmo, equilibrado... Aquilo que vira acabava com toda sua imagem. – Não vou repetir, Fernanda! Mas, por favor, confie em mim. Eu tinha motivos. – Aaaah, tudo bem! Desisto, Marco. Ao escutar isso, ele deu um pequeno e discreto sorriso de canto. – Me desculpe, de qualquer jeito – falou, enquanto pegava, distraidamente, um caderno que estava esquecido em cima de minha cama. Começou a folheá-lo, lendo aqui e ali. Foi só então que eu vi o que era. – Marco, não leia! – falei, indo para seu lado, tentando pegar meu caderninho. – Isso é legal... – falou, pensativo. Quando tentei pegar o caderno de sua mão, ele só desviou. – Sério, devolve...! – Nanda, não sabia que você era escritora... – Para de ler! Meus protestos só o faziam sorrir mais, de um jeito malicioso que o deixava lindo. Cansada de pedir – e sabendo que isso de nada adiantaria – aproximei-me mais dele, debruçando-me sobre
seu corpo, tentando alcançar o caderno. – Vai, Marco... Não tem graça! – Para mim tem. Então ele passou a perna sobre meu corpo, prendendo meus braços e me mantendo deitada na cama, de um jeito bastante desconfortável. Protestei, xinguei e amaldiçoei-o, mas nada o fez me soltar. Marco somente ria, já tendo deixado de lado meu caderno. – Você não parece tão valentona assim... – falou, olhando para mim. – Na realidade, parece-me bastante vulnerável. – Idiota...! – a palavra soou como uma brincadeira, quando a soltei. Por um momento, ficamos apenas nos encarando. Havia algo diferente, quem sabe uma tensão em nosso olhar, tão forte que era quase palpável. Mas então ele me soltou, espreguiçou-se e se levantou, indo para a porta. –Tenho que resolver algumas coisas... Mas hoje é sexta, então... Sei lá, a gente poderia ir a algum lugar. – Claro! – falei, e, quando estava me levantando, ele assentiu e foi embora. Não sei que roupa vestir! O dilema era grande. Primeiro porque não sabia para onde iríamos. Segundo, porque não sabia do que Marco gostava. Esportiva? Arrumada? Um tantinho provocante, quem sabe...? Mas isso nem é um encontro! – me repreendi. Argh! Como odiava essa dúvida... Voltei a olhar meu armário, analisando. Essa não, essa não, e essa também não. Poderia por o vestido, mas ele me deixava meio baixinha. O casaco era quente demais. A saia... Ah, nem sabia porque a comprara! Irritada, acabei pegando qualquer roupa, e fui para o banheiro me arrumar. Iniciou-se um ritual. Banho, secar o cabelo, passar a chapinha, maquilagem... Consultei o relógio. Marco deveria estar me esperando agora, e eu não conseguia decidir se estava bem assim ou não... Usava uma blusa branca decotada e um colete jeans escuro justinho, que delineava minhas curvas perfeitamente. A calça skinny era de um tom mais cinza, e a bota ostentava uma marca bastante conhecida. Além disso usava uma gargantilha, e brincos, delineador, um perfuminho gostoso com um cheiro adocicado... Tinha que estar bom – pensei, enquanto saía do banheiro e pegava minha bolsa. 37
Estava uma pilha de nervos quando cheguei no pátio do colégio. Procurava Marco entre as outras pessoas que estava ali. Engraçado como o clima mudava na sexta feira... – pensei. Todos pareciam mais normais. Adolescentes que estão prontos para se divertir. Alguém tapou meus olhos com a mão. Como não esperava por isso, acabei levando um pequeno susto, mas que logo passou. – Você é mesmo bastante idiota... – Obrigado – respondeu Marco, deixando-me ver novamente. Acabei descobrindo que acertara no look, porque ele e eu estávamos até mesmo combinando. Calça jeans, blusa regata branca e uma camisa aberta por cima – ah, ele sabia como se vestir... – Onde vamos? – perguntei, curiosa. Marco sorriu, estendendome um papel. – Diz se eu não sou demais...! Li o conteúdo do papelzinho, curiosa, e meu sorriso aumentou. Uma autorização! Poderíamos voltar tarde, então...! – Marco! Como conseguiu?! – Essa é uma das vantagens de ser bom aluno... – disse de modo provocativo. Minha resposta foi um leve soco em seu braço. A balada estava ótima! Tudo bem que lotada, mas todas o são. Só que a música era contagiante, a bebida deliciosa e meu companheiro perfeito. Dançávamos juntos há bastante tempo. Nossos corpos se entendiam, em movimentos complexos. Mais uma vez senti aquela tensão, olhares fixos. Meu corpo formigou, e eu senti certo calor tomar conta de mim. Sabia o que era... mas por que? Eu o conhecia há pouquíssimo tempo... Como poderia me apaixonar de verdade? Antes era apenas uma atração... Marco tem charme. Só que eu sabia que a atração mudara para outra coisa. Necessidade. Eu o queria mais do que tudo. – Vamos sair daqui... – falou ele ao meu ouvido, estendendo-me a mão. Segurei-a, e ele me conduziu para fora da pista, um lugar menos tumultuado. Não tive tempo de reagir. Ao ficarmos livre da aglomeração de pessoas, Marco me empurrou contra a parede. Encarava-me. Seus cabelos descoloridos caíam sobre o rosto de forma bagunçada. De forma bela... Ele é lindo...! Um sorriso veio a meus lábios, enquanto eu o observava, sem conseguir desviar o olhar. Havia graça e beleza nele. Hipnotizava. Marco aproximou o rosto. Seu corpo pressionava-se contra o meu, de forma deliciosa.
Nos beijamos. A festa de ontem se estendeu até a madrugada. Eu me permiti dançar muito. Bebi, me diverti, e beijei como nunca antes. Por que? Simplesmente porque estava muito, mas muito bem comigo mesma! E, claro, porque quem estava comigo era Marco. Quando chegamos na escola, e ele me deixou em meu quarto, dormi no ato, de maquiagem e tudo. Estava exausta... Agora, acordada, me sentia um porre. E sabia que não era por causa da bebida... - eu era daquelas pessoas que não tem problema em beber muito. Era por algum outro motivo... Fui tomar um banho para espantar aquela sensação estranha. Não mudou muita coisa. Sozinha, o quarto parecia vazio demais... Foi então que eu ouvi o barulhinho do meu celular, anunciando uma mensagem de voz. Estranhamente, aquilo me animou, e eu corri para ver o recado. Era um amigo, falando da festa, pedindo para ligar para ele. Agradeci mentalmente. Precisava falar com alguém - com qualquer pessoa. Quando liguei, porém, nada de atenderem. Merda...! Parte de minha animação se foi. Depois de muito enrolar no quarto, tive que sair para tomar o café da manhã – minha barriga roncava e, se eu demorasse muito mais, perderia o horário do mesmo. Ah, essas regras! Era tudo muito metódico. Quando cheguei no refeitório, Marco estava lá. Ele acenou para mim, e eu sorri de volta – sorriso que meus olhos não acompanharam. Tenho certeza que ele notou isso, pois parte daquela alegria contagiante dele se foi. Aproximei-me de onde ele estava, e sentei-me à sua frente. – De ressaca...? – perguntou, preocupado. – Não sei... Só me sinto meio estranha. – Eu posso tentar curar isso... – falou ele, voltando a sorrir, enquanto apertava minha coxa por baixo da mesa. – Não sei, Marco... – mordi o lábio inferior enquanto pensava – Seria muito ruim se eu pedisse para ficar sozinha hoje...? – Um pouco, né? Mas se precisar... Peguei um pedacinho de pão e levei a boca. Precisava? Talvez... Provavelmente sim. Ou será que...? Caralho, Fernanda, como você está barroca! – pensei.
“O que se faz quando se perde tudo, mas, depois, ganha algo 39
reconfortante? Como ver seu navio naufragar... – vidas, sonhos, pertences, tudo – mas ter a chance de estar em um bote salvavidas...? Tudo o que te importa não existe mais, mas, mesmo assim, você tem a chance de continuar...”. Parei de escrever nesse momento - não conseguia mais me concentrar em nada. Mordi a tampa da caneta, enquanto pensava, e depois acrescentei apenas uma pergunta: vale a pena? Não sabia o porquê de tudo aquilo. Somente me sentia vazia, de um modo estranho. Parecia que eu fizera algo errado – muito errado – e que mentia para mim e para outras pessoas. Para Marco... Isso me preocupava, e muito. A partir do momento que me relacionara com Victor, eu perdera minha vida. Naufragara. Agora tinha Marco, meu salva-vidas, mas isso não parecia certo. De algum modo, eu ainda era presa a Vic, o meu karma... E estar com Marco parecia, a meu ver, que o estava usando. Não era certo... Ah! Joguei o caderno no chão, em um lugar qualquer, e abracei meu travesseiro. Estava mal, realmente. E ficar só, por enquanto, era a melhor opção. Passaram-se algumas semanas, e nesse meio tempo descobri que o internato era realmente uma bosta – até aí, sem surpresas... Nos finais de semana eu ficava em casa, com meus pais, mas não era nada interessante. Perdera minha popularidade. Quel ainda me ignorava. Victor era o mesmo, e não perdia a chance de me provocar – um dia me abordara com tanta violência que eu voltara com um roxo enorme e feio no braço, onde ele me segurara. Marco estava chateado comigo, e eu não conseguia arranjar uma maneira de fazer tudo voltar ao normal. Ele não merecia alguém como eu, mas eu o queria. E, curiosamente, isso era recíproco, mas eu não podia estragar a vida dele... Dentro das poucas regras que eu me impunha, a mais importante era cuidar de quem se gosta. Manter-me longe dele era a melhor opção. Uma opção difícil pra caralho, devo dizer! Então, para não ser tentada a cada dia, resolvi me afastar de Marco. As horas se arrastavam, e o que eu queria era morrer. O tédio tomava conta de todos os meus dias, e sair já não tinha graça. Quando ia a uma balada, mesmo bebendo, mesmo não estando em meu estado normal, já não via graça em pegar vários garotos. A noite não tinha aquele brilho especial de antes. Era chata...
Vez ou outra me via no meio de uma briga, e era escoltada para a diretoria... mas isso também não me trazia nada. Estava apática, vivendo sem viver. Até que aquilo aconteceu... Deveria ser uma noite de sexta comum. Saíra com os poucos internos para um barzinho qualquer, fingira prestar atenção em algumas conversas e rira sem vontade. Em um momento, porém, me cansara de tudo isso – segurar a máscara da felicidade é bastante difícil, e, se eu não saísse de lá, sabia que ela iria cair. Então inventei uma desculpa para ir embora mais cedo, sozinha. O caminho era curto, não deveria ter problema... Isso se Victor não aparecesse. – Ingênua... sempre no lugar errado. Parece que você quer mesmo é me encontrar, Fê... parece que sente falta de mim. comentou ele, fazendo um fato incrivelmente simples ter impacto com a indiferença de suas palavras. Segui meu caminho sem olhar pra trás, apressando um pouco o passo. Quando estava chegando em uma curva da rua, senti a mão dele roçar o meu braço. Assustada, comecei a correr, sem pensar em mais nada. Somente o medo tomava conta de mim, e a certeza de que, se algo desse errado, eu não poderia lutar. – Você é mesmo ridícula, não é? - disse Victor, ao me segurar, dessa vez com força. – Me larga! - gritei, e isso só serviu para ele aumentar a pressão de suas mãos. Meu coração apertou-se no instante em que nossos olhos se cruzaram. Procurei fingir não sentir pavor, mas meu corpo me traía. Era frágil... sabia que nunca ganharia. Súbito, fez-se silêncio – eu tinha medo de gritar, mas, mesmo se o fizesse, nada passaria de um grunhido em minha garganta seca. Da parte de Victor, ele vinha como uma lembrança de que tudo seria como ele desejava. Eu lutei, deliberadamente, tentando me desvencilhar daquelas mãos, mas Victor era forte, e sabia como me dominar facilmente. Violento, empurrou-me contra a parede fria da rua – de um modo totalmente diferente de Marco naquela noite... Com ele, eu sentira desejo. Agora, era pavor. Sua mão apertou minha cintura, e eu me encolhi... Tentei empurrá-lo, mas foi em vão. Ele me pressionava contra seu corpo, murmurando ao pé de meu ouvido que minha resistência só o excitava... Sua mão avançava. Tateava. E então...
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Marcela Millan nasceu em São Paulo, em 1994. Aos 10 anos descobriu a leitura e desde então passou a ler um livro atrás do outro - diversos autores, temas e estilos. Aos 13 começou a escrever com um jeito próprio, que nos faz vivenciar e enveredar pelo mundo da adolescência. Leva Tudo é a sua estreia literária.
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Leva Tudo é uma coletânea de textos que inclui crônicas, poesias, contos e impressões sobre a vida, numa explosão de sentimentos característicos da adolescência.