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Prevenção de acidentes: o reconhecimento das estratégias operatórias dos motociclistas profissionais como base para a negociação de acordo coletivo Acc i dent prevention: recognition of motorcycle couriers’ work strategies as the basis for collective bargaining
Eugênio Paceli Ha tem Diniz 1 Ada Ávila As sunção 2 Fra n c i s co de Paula An tunes Lima 3
1 Fundação Jor ge Du prat F i g u ei redo de Seg u rança e Medicina do Tra b a l h o, Cen tro Regi onal de Mi n a s G erais. Rua dos Gu a ja ja ras 40/14o andar, 30180-100, Belo Horizon te MG. eu gen i o. d i n i z @ f u n d acentro. gov. br 2 Dep a rt a m en to de Medicina Preven tiva e Social da Fac u l d ade de Medicina da Un ivers i d ade Federal de Minas Gerais. 3 Dep a rt a m en to de E n gen h a ria de Produ ç ã o da Un iversidade Federal de Minas Gerais.
Ab s tract The aim of this stu dy is to pre sent, as opera tional stra tegies, the co n tribu i tion to el a b ora te some preven tion measu res to prote ct the professional motorcycl i s t s , popu l a rly known as “m otob oys”, against acci d en t s . The authors pre sent a cri tic to the human error co n ception that is hegemonic to the experts at wo rk security. The re su l t s come from an Ergonomics stu dy that started over an Union demand of the professional moto rc yclists in Minas Gera i s . The total come to 85 professional moto rci clists who were intervi ewed and observed. The procedures were: report the activity filmed in the city streets and avenues; selfconfrontation of the scenes and of the map rutes, and of some aspects obeserved in the two selected companies. Finally the authors discuss the limits of the se c u rity rules wi t h out co n s i d ering the knowledge obtained by the workers themselves. The measures to change the situation that make the acci d ents happen were used to el a b o ra te the collective work co nvention. These measures were su ppo rted by a det a i l ed stu dy of the impl em en ted strategies by the individuals who were analised. Key word s Professional moto rcycl i s t s , Motob oy, Labor accidents, Traffic accidents, Ergonomics Analysis of Labour
Resumo O objetivo deste arti go é apre sentar como o estudo das estra t é gias opera t ó rias contribui pa ra elaborar medidas de prevenção dos aci d entes sof ridos pelos motociclistas profissionais, conhecidos popu l a rm en te como “m otob oys”. Os auto res apre sentam uma cr í tica à co n cepção do erro h u m a n o, hegemônica dentre os especialistas em seg u rança do tra balho. Os re sultados apresen t ados fo ram obtidos de um estudo ergo n ô m i co iniciado por demanda do sindicato dos motociclistas profissionais de Minas Gerais. No total, 85 motociclistas profissionais fo ram observados e entrevistados. Os pro ced i m en tos adotados fo ram: registro da atividade por meio de filmagens nas ruas e avenidas da cidade; auto co n f rontação das cenas do filme e das rotas elaboradas em mapas, e de certos aspe ctos das atividades de tra balho observadas na expedição das duas em presas sel e ci onadas. Ao final, os autores discutem os limites das normas de seg u rança pre scritas que não co n s i d eram o saber desenvolvido pelos próprios trabalhadores. As medidas de tra n sfo rmação das situ a ç õ e s gera d o ras de aciden tes el a b o radas com apoio no estudo detalhado das estra t é gias impl ementadas pelos su jei tos estudados servi ram pa ra a el a b o ração da convenção coletiva de trabalho. Pa l avras-ch ave Motociclistas profissionais, Motoboy, Acidentes de trânsito, Acidente de trabalho, Análise Ergonômica do Trabalho
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In trodução: Por uma abord a gem com p reen s iva dos aciden tes com motociclistas O obj etivo de s te arti go é apre s entar como o estudo das estra t é gias operatórias con tri bui para el a borar medidas de prevenção dos ac i den te s sofridos pelos motociclistas prof i s s i onais, conhec i dos popularmente como “motoboys”. As medidas de transformação das situações geradoras de aciden tes foram fundamen t adas em uma pe s quisa er gonômica (Diniz, 2003), cujos re su l t ados ori entaram, den tre outras recom endações, a elaboração de uma convenção coletiva de tra b a l h o, firm ada em 31 de março de 2005. Esta convenção é objeto de discussão mais detal h ada na con clusão de s te arti go, cujo corpo está organizado em qu a tro partes principais: (1) após apresentarmos, nesta introdução, uma alternativa crítica à con cepção do erro hu m a n o, hegemônica dentre os especialistas em segurança do trabalho, (2) discorremos brevem en te sobre os proced i m en tos metodo l ó gicos e (3) de sc revemos os re sultados da análise er gon ô m i c a do trabalho dos motociclistas, rel a t a n do ao final (4) o qu ad ro insti tu c i onal de negociação da convenção co l etiva de trabalho e os avanços mais sign i f i c a tivo s . A negociação desta convenção co l etiva, inédita no Brasil, ori en tou-se, em seus pon tos substantivos, pelos re sultados da análise da ativi d ade co tidiana dos motociclistas profissionais, e foi direcionada para a criação de condições de trabalho que os auxilie na gestão dos diversos inciden tes que se apre s entam no decorrer de seu trabalho e na el a boração de estratégias de preven ç ã o. As cl á u sulas de saúde e s eg u rança proc u ra ram ampliar a margem de liberd ade na regulação da ativi d ade cotidiana, de forma a aliviar a pressão temporal que está na ori gem dos ac i den tes sofri dos por esta categoria profissional. Parti n do de uma demanda do sindicato do s motoc i clistas prof i s s i onais de Minas Gerais, a pesquisa teve início em meados de 1999. Na oc a s i ã o, o presiden te do sindicato relatou o expre s s ivo crescimen to do setor, a situação dos ac i den tes graves e fatais e a ausência de reg u l am entação das condições de trabalho e dos serviços re a l i z ados pela categori a . Trad i c i on a l m en te , os ac i den tes de trabalho são analisados ten do como pre s su po s to a ideologia do ato inseg u ro, cuja con cepção data da d é c ada de 1930. No caso dos motoc i clistas profissionais, essa visão é legi ti m ada pelo senso comum, m a n i fe s t ado nas páginas dos jornais ou
nas opiniões das pe s s oa s , que se referem aos m o toc i clistas prof i s s i onais em termos de “impru d ê n c i a”, “ousadia”, “irre s pon s a bi l i d ade”, “ i ncivi l i d ade”, “prazer por fortes emoções” etc. Eis alguns ju l ga m en tos típicos: a médica que participou da pesquisa do Ipea sobre custos de aciden tes de tr â n s i to, a f i rma que o go s to dos motob oys pelo risco da vel o cidade se co m pa ra ao rapel dos adolescen tes da cl a s se média (Folha de S. Pa u l o, 1o de junho de 2003); o jornalista Larry Ro h ter sintetiza o sen ti m en topopular dos paulistas em relação a este “privilegiado” grupo que escapa aos obstáculos do trânsito: z ig u ezag u e a ndo entre os carros parados, ign o rando as d em a rcações de faixa s , sem á fo ros vermelhos e sinais para pa ra r, eles ameaçam regularmente os pedestres e en f u recem os motoristas enquanto passam às pressas por ruas e avenidas co n ge s tionadas (Rohter, 2004). O mais inquiet a n teé que não apenas a mídia e a soc i ed ade em gera l , mas também os especialistas em seg u rança no trâns i to e no trabalho referem-se ao ato inseg u ro qu a n do analisam e ju l gam o com portamento e o perfil dos motociclistas profissionais. Os adjetivos atribuídos ao modo de transitar pelas ruas das cidades indicam que algumas das estratégias e os modos operatórios implementados pela categoria, inju s ti f i c á veis e inaceitáveis do ponto de vista do observador, não são vistos como algo cuja origem é determinada fora do trânsito em si. Ao con tr á rio, defen demos a te s e de que o comportamen to dos motociclistas prof i s s i onais decorre das fortes exigências e do s l i m i tes impostos à ação e à gestão dos ri s cos a que estão submeti do s , determinados por relações sociais mais amplas, que devem ser analisadas e transformadas. A opinião pública em relação aos motociclistas prof i s s i onais revela uma verd adeira “h ipoc risia social”: avaliamos po s i tiva m en te o seu tra b a l h o, mas negativamen te seu com portam en to, como se um e outro ex i s ti s s emsep a radamen te : Todos od eiam os motob oys , exceto quando precisam de um. Quando ele está levando às pressas um documento seu pela ci d a d e , então el e se torna seu salvador, um herói, e você adora o sujeito (Caíto Ortiz, diretor do curta Motoboys: vida loca. In Rohter, 2004). Essa visão do senso comum repete-se também entre especialistas da saúde ocupac i on a l . As abord a gens trad i c i onais interpretam o ac iden te de trabalho como sen do um even to simples e determinado por uma causa única (ou por uma causa imediata, qu a n do se recon h ecem múltiplas causas). A dico tomia e superfi-
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cialidade da ideologia do ato inseg u ro – fator pessoal de insegurança x condição insegura – explicam por que os ac i den tes são tra t ados predom i n a n tem en te pelo viés do simples recei tu ário de equipamen tos de segurança individual ( E PIs) e da divulgação de cartilhas que obj etivam a con s c i en tização dos ri s cos e, con s eq ü entem en te, a mudança do com port a m en to. As s i stimos, nos mais variados ambi en tes de trabalho, à divu l gação de normas que preten dem intensificar a fiscalização e ameaçam os trabalhadores com punições. Os ro teiros de inve s tigação são baseados na verificação do cumprimento ou não de normas internas e legais, isentando-se de identificar as condições e as formas de interação dos compon en tes dos sistemas que levaram à ocorrência do even to. No caso dos motociclistas profissionais, as ações re sumem-se a reforçar a fiscalização ou prom over cursos de direção defen s iva . A prática preven c i onista trad i c i onal assume uma con cepção rac i onalista do com portam en to hu m a n o, como se este fosse determ i n ado exclusiva m en te pela consciência. As s i m , toda falha decorreria de uma decisão hu m a n a , don de as ações de controle para evitar os desvios e a formação para reforçar o comportamento seguro. Ora, os estudos mais recen te s , em vários campos, con f lu empara a com preensão da “falha técnica” como sen do o re su l t ado de circunstâncias e decisões anteriore s : o aciden te, como qu a l quer outro even to, tem anteceden tes e uma história complexa (Perrow, 1984; Re a s on, 1990; Wisner, 1994; Amalberti, 1996; Co llins & Pinch , 1998; L l ory, 1999). A interrupção precoce da análise, s em identificar as determinações mediatas das falhas, a m p uta a identificação da trama com p l exa de fatores causais do ac i den te , com con s eq ü ê n c i a s n ega tivas para a prevenção (Lima & As su n ç ã o, 2002). O grau de aprofundamento da análise de aciden te é uma con s trução social e o avanço do conhecimento sobre os riscos e as margens para i m p l em entação das medidas de segurança podem tornar inacei t á veis as escolhas de abord agens que não con s i derem aspectos sociais e organizacionais (Almeida, 2003). In felizmen te , ainda predominam nas empre s a s , nos órgãos ge s tores do trânsito e nas instituições afetas à saúde e segurança no trabalho, a concepção tradicional de que as regras governam as ações dos a tores soc i a i s . Como nos ensina a etn om etodol ogia, essas explicações en ten dem o com port am en to do indivíduo como fruto de regras po stas em pr á tica no mom en to da ação, e os atores
s ociais agiriam em con form i d ade com as alternativas de ação – obrigatórias e pree s t a bel ecidas – como se fossem “idiotas cultu rais”, ado t a ndo condutas autom á ticas e impen s adas (Co ulon, 1995). As s i m , qu a n do ocorre um erro ou acidente, são investigados os desvios em relação às regras prescritas ou proc u radas regras inadequ adas, o que insti tui a regra como modelo da atividade e da prevenção. Da perspectiva da análise cogn i tiva do ac iden te aqui proposta (ver abaixo), aex p l i c i t a ç ã o dos “desvios” permite, apenas, evidenciar a ruptura dos “com promissos cognitivo s” qu e culminou num acidente, sem alcançar as razões dessa ru ptu ra . O estu do da ativi d ade co tidiana dos motoc i clistas prof i s s i onais em situação real perm i tiu com preen der as situações de trabalho normais e o con tex to social e or ga n i z ac i onal em que se de s en rola seu tra b a l h o, e não apenas as con d ições de perturbação do processo próximas, e spacial e tempora l m en te , ao ac i den te . A todo instante, os mecanismos cognitivos e as habilidades pr á ticas dos tra b a l h adores são co l oc ados em ação de forma a garantir os objetivos da produção e os seus pr ó prios obj etivo s . A situ ação é mantida sob con trole por um esforço ativo dos tra b a l h adore s , qu e , com base em reg u l ações e microrregulações, ad m i n i s tram a vari abilidade e as disfunções, i n evi t avelmen te presen tes em qu a l quer processo produtivo. Eles agem mobi l i z a n doos seus recursos cognitivo s para analisar a situ a ç ã o, con s tituir uma repres entação do ri s co de aciden te no proced i m en to em curs o, verificar o nível de exigência do resultado desejado e ainda con s i derar o seu estado de fadiga e sua capacidade, de forma a el aborar uma ação apropriada, em um processo com p l exo den om i n ado de “com promisso cognitivo” (Amalberti, 1996). As habilidades práticas e os processos cognitivos implicados na ação po s s i bilitam ao trabalhador estabelecer um com prom i s s o, quase sempre eficaz, entre três objetivos, às vezes con trad i t ó rios: a sua seg u rança e a do sistema; o desempenho acei t á vel; a minimização dos efei tos fisiológi cos e mentais (Ibi d . ) . A adoção de um com promisso cogn i tivo inadequ ado poderá provocar de s em penho insu f i c i en te , fadiga exce s s iva, perda do controle da situação e, em caso extremo, desencadear um aciden te . Em função da or ganização do trabalho, do ambi ente e da consciência de sua própria capac i d ade, os trabalhadores de s envo lvem uma verd adei ra arte de gerenciar de manei ra dinâmica os com-
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prom i s s o s , m a n tendo a situação sob con tro l e , na maior parte do tempo (Amalberti, 1996). Essa con cepção nos serviu de base para analisar estratégias e modos operatórios construídos pelos motoc i clistas prof i s s i onais na ten t ativa de conciliar as exigências do tra b a l h o, sobretu do rapidez e pon tu a l i d ade, e a sua pr ó pria segurança. O reconhecimento desses modos operatórios e estratégias subsidiou po s teri ormen te a el a boração das cl á u sulas da convenção coletiva do trabalho.
M é todos e proced i m en to s Para en ten der as exigências do trabalho do motociclista profissional e as estratégias que ele el a bora e implementa, re a l i zou-se um estudo er gonômico cujos princípios teóricos e metodo l ó gicos con s i deram a distinção en tre “o qu e” foi estabel ec i do para os trabalhadores exec ut arem e “como” eles re s pon dem às exigências do trabalho (Diniz, 2003). A Análise Ergon ô m i c a do Trabalho (AET) é definida como a de s c ri ç ã o das atividades de trabalho ou dos trabalhadores a partir da observação de todos os comportamen tos – perceptivo, m o tor ou de comunicaç ã o. A análise da ativi d ade é aprof u n d ada em uma segunda e fundamental etapa, a partir de dados obtidos por meio da autocon f rontação dos trabalhadores com regi s tros e descrições dos com port a m en tos ob s ervados pelo er gon omista (Gu é rin et al. , 2001). Em outras palavras, uma vez que a ativi d ade não pode ser reduzida ao que se consegue observar (Assunção & Lima, 2003), uti l i zou-se da autoconfrontação dos resultados das ob s ervações sistem á ticas a fim de aceder aos aspectos não-obj etiv á veis do trabalho. A autocon f rontação é uma estratégia que bu s c a , na palavra livre do trabalhador, compreen der os senti dos que ele pr ó prio imprime aos resultados obtidos pelo pesquisador. À luz desses princípios ergon ô m i cos que nortearam a pesquisa que deu origem, entre outro s , a este artigo, adotaram-se os seg u i n te s proced i m en tos: reuniões com repre s entantes do sindicato de tra b a l h adores com o intuito de se obter um conhecimento mais aprofundado da demanda e informações gerais sobre a categori a ; pe s quisa das estatísticas de ac i den tes em órgãos oficiais (Hospital João XX I I I , Progra m a de Sa ú de do Tra b a l h ador, Gru po de Re sga te do Corpo de Bombei ro s , Detran-MG – em Belo Horizon te e Hospital de Clínicas de Uberlândia) vi s a n do avaliar a gravi d ade da questão le-
va n t ada pelo repre s en t a n tedo sindicato. E ainda entrevistas abertas com motociclistas prof i s s i onais em um re s t a u ra n te popular municipal, indicado pelo representante do sindicato de trabalhadores por ser um local onde eles co s tumam se reunir para almoçar. As entrevistas gravad a s , posteriormen te tra n s c ritas e analisad a s , tinham como obj etivo obter uma visão geral da or ganização do tra b alho, os probl emas enfren t ados pela categoria, a percepção do ri s co e as re s pectivas estratégias de defesa utilizadas para a prevenção de aciden te s ; regi s tro da ativi d ade por meio de filmagens nas ruas e avenidas da cidade, documentando aleatoriamen te motociclistas profissionais, ora seg u i dos de carro, ora filmados de cima de passarelas e viaduto s . As filmagens bu sc avam iden tificar os gestos de ação (modo de pilotar o veículo), ge s tos de ob s ervação (movimen tos da cabeça e, em parte, dos olhos) e os gestos de comunicação (expressões verbais e corporais); autocon f rontação das cenas do filme com os motociclistas profissionais no re staura n te popular. E s te procedimen to bu s c ava obter com os motociclistas a significação dos ge s tos de seus pares doc u m en t ados em vídeo, t a n to do pon to de vista da produção qu a n to do pon to de vista da carga de trabalho, explicitando “o que faz”, “com que finalidade – para qu e” e “por qu ê ” ; estu do e autocon f rontação das rotas el a boradas em mapas que foram forn ec i dos aos motociclistas. A autocon f rontação das rotas vi s ava con h ecer as estra t é gias e modos operatórios implementados pelos trabalhadores para planejar e executar os deslocamen tos no tr â n s i to ; en trevistas (gravad a s , tra n s c ritas e depoi s , a n a l i s adas) com motoc i clistas e or ga n i z adores da produção das em presas com o prop ós i to de se con h ecer a organização do trabalho; ob s ervações abertas da tarefa foram re a l i z ad a s na ex pedição das duas empresas selecionadas, local estrategicamen te esco l h i do, já que é ali on de se fazem o acompanhamento e o con tro l e dos serviços de de s l oc a m ento dos motoc i cl i s t a s e on de eles têm a ra ra oportu n i d ade de en contrar seus pares por alguns instantes. As ob s ervações e posterior autocon f rontação dos fatos ob s ervados na ex pedição tinham como prop ós i to obter elementos para a compreensão do trabalho re a l i z ado e de como o trabalhador coloca em prática sua demanda. Os gestos de ação, ob s ervação e comunicação que os motoc i clistas faziam pe s s oa l m en te ou por rádio/telefone, com seus colegas, com a itineralista ( operadora de rádio e encarregada de rep a s s a r
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e receber as ordens de serviço) e com o coordenador foram registrados em papel para po s teri or autocon f ron t a ç ã o. E s tu dou-se uma empresa em Belo Horizon te, e s pecializada em serviços de motof rete ( em presa A) e que tem 160 motoc i clistas prof i s s i on a i s . Do total de motoc i cl i s t a s , 140 pre stam serviços por hora como terceiri z ados nas em presas con tra t a n te s . Os demais aten dem ao setor de ex pedição da em presa A, na exec u ç ã o de serviços por de s l oc a m ento. A em presa A, ind i c ada pelo repre s en t a n te do sindicato de trabalhadores, foi escolhida por ser uma prestadora de serviço de motof rete com um número s i gn i f i c a tivode tra b a l h adores que atendiam diversos tipos de demandas tanto de pessoas jurídicas qu a n to de pe s s oas físicas. De modo a ser veri f i c ado se os probl emas en f ren t ados pela categoria e as regulações elaboradas se assemel h avam às encontradas na capital, a pesquisa foi realizada também em uma em presa de uma c i d ade do interi or (em presa B), que conta com 115 motociclistas. A opção pela empresa B se deu pelo número de trabalhadores e sua indicação con tou com auxílio de repre s en t a n te do s i n d i c a tode trabalhadores da In d ú s tria do Fumo de Uberlândia. A cidade de Uberlândia foi s el ec i on ada em razão do número ex pre s s ivo de m o toc i cl etas na cidade e da constatação in loco de alguns ac i den tes nas vias públicas envo lvendo esse veículo. Em re sumo, foram envolvidos 85 motocicl i s t a s , ob s ervados e autocon f ron t ado s , totalizando 60 horas de ob s ervações e entrevistas. Além dos motoc i clistas, en trevistaram-se: uma esposa de motociclista; dez organizadores da produ ç ã o, en tre el e s , quatro em presários e doi s d i retores. Foram realizadas quatro horas de film a gens em situações reais de trabalho (também analisadas) e 24 rotas foram tra ç adas e autocon f ron t adas com os trabalhadore s .
Estratégias, regulação e modo s operatórios: um com p romisso eficaz en tre produção e segurança As entrevistas, as observações e as autoconfrontações eviden c i a ram os mecanismos cogn i tivos co l ocados em ação pela categoria para atingir os objetivos de produção com segurança. À medida que o con h ec i m en to tácito vai se con s o l idando, o motociclista profissional apren de a avaliar a situação para não ser dom i n ado pel a s urgências: Não adianta apavo rar, a pavo ra m en to
muitas ve zes leva ao aciden te . Você tem que andar calmo e tra n q ü i l o, re s peitando os veículos e a sinalização. A experiência perm i te ao motoc i clista el aborar estratégias que dão su s tentação ao compromisso eficaz en tre a produção e a seg u ra nça: Você, conhecendo o trajeto e sabendo cortar os caminhos, você en c u rta o pra zo da en trega. A pessoa que não sabe vai tentar a diferença no acel erador. Os extratos das entrevistas reproduzidas acima confirmam os re su l t ados das autoconfrontações das rotas. O con h ec i m en to das vias perm i te aos motoc i clistas utilizar caminhos altern a tivos em vez de proced i m en tos que increm entam os ri s cos de ac i den tes.
O planeja m en to temporal Uma das formas en con tradas pelos motoc i cl i stas profissionais para superar os desafios da produção material foi o planejamen to temporal das taref a s . Con h ecen do as re s trições de horário das rep a rtições, eles pri orizam certos serviços. Eu procuro dar prioridade ao banco. Órgão público você tem que dar prioridade também po rque fecha às quatro horas e só vive lot a d o. Precisando ir a dois bancos simu l t a n e a m en te, eles dividem o tempo disponível en tre as duas taref a s : Você pega uma sen h a , vai em outro ba nco e reto rn a . Pa ra lidar com a bu roc racia das rep a rtições p ú blicas e privadas, a ex periência é fundamental para o bom planejamen to das taref a s . Um motociclista fala das dificuldades en f ren t adas no início da prof i s s ã o : Hoje sei o que fazer, antigamente eu tinha probl em a , é órgão públ i coque eu não sabia onde é que era, era falta de assinatu ra. Além das estratégias e dos modos opera t órios mostrados no planeja m en to tem poral, os procedimentos adotados pelos motociclistas profissionais em relação à rota também proporc i onam maior agilidade na execução dos s erviços, con forme será vi s toa seguir.
A elaboração da rota: qu a n do saberes e solidaried a de se cruzam A análise e a autocon f rontação das rotas tra ç adas nos mapas co l ocou em evidência diversas estratégias e modos operatórios implementados pelos motoc i clistas profissionais para planejar e exec utar os de s l oc a m en tos no tr â n s i to.
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Os motoc i clistas recebem de seus superiores as informações sobre as taref a s . A partir daí, a n tes de saírem para a ru a , eles planejam a seqüência de deslocamentos, buscando equilibrar aten d i m en to com presteza, pon tu a l i d ade e econ omia de com bu s t í vel . Pa ra el a boração da ro t a , eles com entam qu e é nece s s á rio con h ecer a localização das ruas, o sen ti do do tr â n s i to, os locais de convers ã o, os caminhos alternativos mais curtos etc.: Pelo conheci m en to que você já tem , a gen te já sabe o caminho mais curto. Con tu do, o caminho mais curto nem sempre é o esco l h i do. An a l i s a n do-se a rota el a borada, foi po s s í vel identificar deslocamentos em semicírculos, em detrimen to de um perc u rso l i n e a r; teori c a m en te mais econ ô m i coem tempo e com bu s t í vel. O motociclista escl a rece por que esco l h eu o tra j eto O probl ema todo é que no caso dessa rota [alternativa], não tem rua que f avo re ce...onde o tr â n s i toé mais livre. Nas em presas pesquisadas foi observado que os motoc i clistas mantêm uma intensa rede solidária de ajuda mútu a . Eles trocam inform ações com seus pare s , pessoalmen te , pelo tel efone ou rádio, proc u rando saber como chegar a determ i n ado en dere ç o. Para localizar uma ru a de s conhecida, eles con sultam também o mapa ou guia da cidade. Um dado importante para se el a borar a rota é con h ecer a localização do núm ero desejado nas qu ad ra s . An tec i p ad a m en te , os motociclistas planejam o acesso a ruas que permitirão ch egar o mais próximo po s s í vel do ponto desejado. Os motoc i clistas que en tregam mala-diret a analisam antec i p ad a m en te os endereços e ordenam as correspondências na mesma seq ü ê ncia da rota planejad a . A rua escolhida para iniciar a distri buição é aquela com maior número de malas-diretas. Ele explica que faz entregas nessa rua e também nas cabeceiras das vias perpen d i c u l a re s : Eu mato a ponta aqui, ó. Se eu já estou passando aqui, eu faço duas en tregas ou três nel a . Fei to isso, ele retorna, em ziguezague, pelas ruas perpendiculares e com p l eta as en tregas pen den te s . Um motoc i clista enu m era as va n t a gens que ele obtém fazen do o seq ü en c i a m en to pr é vio das malas-diret a s: Ganho tem po, ganho co m bu s t í vel , eco n o m i zo bastante. Também é melhor a gen te perder um pou co de tem po aqui, colocando em ord em certa, do que a gen te fazer uma coisa correndo e ter que sair co rrendo na rua, que é peri go so. En t ã o, a ord em ficando bem - feita, não pre cisa a gen te andar co rrendo na ru a. E ssas palavras con-
firmam que o planejamento da rota é um dos proced i m en tos ado t ados pela categoria a fim de obter maior agi l i d ade na atividade e uma alternativa ao comport a m en to de ri s co no tr â n s i to. Com o tem po, a rota ori ginal el a borada para distri buir jornais é mod i f i c ada. Ao descobrir atalhos e caminhos mais flu en te s , o motoc i cl i sta ajusta o iti n er á ri o, torn a n do-o mais econ ôm i co em termos de tem po e com bu s t í vel. Os inúmeros procedimen tos e estratégias ado t ados pelos motoc i clistas em relação à rota têm como finalidade encontrar perc u rsos men ores e/ou tr â n s i tomais flu en te , vi s a n dore a l izar a tarefa com men or tem po de de s l oc a m ento. E tal prop ó s i to é alcançado pelo con h ecim en to do trânsito e das vias, das redes sociais de cooperação e do planejamen to baseado na ex periência ac u mu l ad a .
Tempo e “petr ó l eo”: os determ i n a n tes que predom i n a m Eles [ cl i en te s ] sem pre falam o seg u i n te: “A mercadoria sai da China, aqui ela gasta 24 hora s”. Às vezes eu gasto um dia pa ra fazer a entrega. Eles questionam essa parte. Por quê?” (Motoc iclista en trevi s t ado). O rel a to do motociclista contém uma das principais qu eixas apre s en t adas pelos cl i en te s , que ch egam a comparar o serviço de motociclista com serviços aéreos. Os atrasos não são com preen d i dos pelos cl i en tes até mesmo para tarefas que envolvam transações em mais de uma rep a rtição públ i c a , local trad i c i onalmente c a racterizado por filas ex tensas e aten d i m en to demorado. O coordenador dos motociclistas da em presa A exem p l i f i c a : O clien te passa quatro serviços pa ra el e . Se ele pa rar em dois ba n co s em dia de pico, o clien te acha que ele está en rolando com o servi ç o. A impaciência manifestada pelos clientes revela como a sociedade da era virtual descon h ece as condições con c retas do trabalho dos motoc i clistas. A ativi d ade imaterial não exclu i , p a ra a sua efetivação, a produção material (Lima et al., 2002). O ato de negociar ou dem a ndar serviços por meio de tecnologias informac i onais não se fecha em si mesmo; sua efetivação depen de de ações materiais cuja dinâmica esbarra em bu roc racias, variabilidades, determ i n a n tes não con tro l á veis e de s l oc a m en tos no e s p a ç o. São constrangimen tos que ninguém pode negar, mas que os “cliente s” menosprezam ou de s con h ecem a real gra n deza.
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Diante das exigências de tempo por parte dos cl i en te s , as em presas adotam uma orga n i z ação da produção que su bm ete os motoc i clistas a el evada den s i d ade de tra b a l h o. Observou-se qu e o rádio e o tel efone são uti l i z ados ininterru pt amen te pela iti n eralista da em presa A. A remu n eração por de s l oc a m en to asseg u ra à em presa qu e os motoc i clistas também façam con t a to da ru a , informem o término de cada tarefa e se ofereçam para realizar outra s . As s i m , mesmo a distância e dispondo de um número reduzido de trabalhadores para aten der à exped i ç ã o, a empresa A consegue manter o ritmo de trabalho em níveis el evado s . Isso torna o trabalho do motoc i clista uma luta ince s s a n te contra o tempo, pois cada minuto econ om i z ado representa, além de ganhos financeiros, corre s ponder à ex pect a tiva do cl i en te por um pron to atendimento. Ao lado do tem po, o dispêndio de com bust í vel é outro import a n te fator a ser con s i derado pelo motoc i clista prof i s s i on a l . Ju n tos con stituem os elementos determinantes no momen to em que ele planeja e exec uta o trabalho. A autocon f rontação das rotas confirma: Ten h o que olhar o tem po que eu ga s to, o petróleo que eu quei m o. En t ã o, quer dizer, é tem po e petr ó l e o, a minha prioridade. Para economizar tempo e combustível, os m o toc i clistas também se apóiam freqüentemen te no coletivo de trabalho. Na ex pedição da em presa A , foi ob s ervado que eles ficam atentos às demandas apre s entadas aos co l egas. Um deles passou a sua tarefa ao co l ega e solicitoulhe que a exec utasse. Ao ser interrogado sobre s eu gesto, ele esclareceu: Po rque ele ia passar pr ó ximo lá, eu ia pa ra outro lugar, ele ia fazer mais rápido pa ra mim. Quando ele precisar, eu faço pa ra ele a mesma co i s a. Em fren te à em presa A , foi observado que um motoc i cl i s t a , após ter recebi do a ordem de s ervi ç o, empurrava sua motocicl eta de s l i gada, beira n do o meio-fio, na con tramão do trânsito. Ele ju s tifica seu ato: Eu pa s so de um quarteirão pa ra o ou tro em pu rrando ela no canti n h o, no pa s seio, e eco n o m i zo de cinco a seis quilômetro s. E enu m era as va n t a gens: Evito fazer um deslocamen to maior, eco n o m i zoga sol i n a , ganho mu ito mais no fim do mês e eco n o m i zo tem po. Por isso que eu sou rápido. A busca por agilidade e econ omia de combu s t í vel se traduz em proced i m en tos e modo s operatórios distintos. Alguns não aumentam os ri s cos de ac i dentes: con sultam o guia da cidade; não desligam a motocicleta ao colocar a correspondência na caixa do correio; empur-
ram a motoc i cl eta desligada sobre passarelas e faixas de pede s tre s ; solicitam auxílio do co l etivo de trabalho. O utro s , ao con trário, apesar de alcançarem os re su l t ados pretendidos, i n c rementam os riscos: andam na contramão do tr â n s i to e transitam nas calçadas e passarelas de pede s tres com a motoc i cl eta ligad a .
As estratégias e modos operatórios para evitar aciden tes no tr â n s i to Mesmo qu a n do estão se deslocando no tr â n s ito, os motoc i clistas desenvo lvem várias regras de prudência. Eles identificam o melhor momen to para ultrapassar o veículo à frente: É quando o veículo perm i te que você pa s se . Você está sendo vi s to pelo moto rista. Pa ra con f i rmar se foi vi s to pelo motorista, seus ge s tos de observação antecedem os modos operatórios: Pelo retrovi so r, você vê se o moto rista te vi u. Se ele não te vi u , você dá um toquinho na bu z i n a. Recon h ecen do um ri s comaior de aciden te s nos cru z a m en tos, um motoc i clista ex peri en te da empresa A detalha o modo operatório implem en t ado qu a n do preten de seguir em fren te sem a l terar a direção: Todos os cru z a m en tos que tiver, você tem que pa ra r, ob serva r. Mesmo você estando certo, você se to rna errado, po rque se aco n te cer um acidente quem vai sair no prej u í zo é vo c ê. Pelas filmagens e ob s ervações re a l i z adas nas ruas, con s t a tou-se que um dos procedimen to s mais uti l i z ados pelos motoc i clistas para evitar ac i den tes é ac i onar a buzina antes das ultrapassagens, adotada também para chamar a atenção de pedestres que atravessam a rua sem olhar para os lados ou que perm a n ecem nas vias atrapalhando o tr â n s i to. Nos meses de junho a setem bro, os motoc iclistas utilizam uma ou duas antenas met á l i c a s na fren te do veículo para evitar ac i den tes provoc ados por linhas de pipa com cerol (mistura de pó de vidro e cola utilizada por crianças e ado l e s centes na linha de pipa para cortar a do advers á ri o ) . As linhas com cerol podem ferir as art é rias cervicais do motociclista e causar a sua morte .
Discussão: por que os motoc i clistas se aciden t a m ? Os depoimen tos dos motociclistas apre s entados revelam que os ac i den tes são even tos re su ltantes de interações de sistemas soc i o t é c n i cos
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com p l exos, como fazer en tregas no qu ad ro da a tual “s oc i ed ade da inform a ç ã o” que se de s envo lve sobre um espaço urbano não transform ado. A ativi d ade dos motoc i clistas profissionais re s pon de a demandas técnicas (serviço com qu a l i d ade e no tem po certo) no interi or de relac i on a m en tos sociais de trabalho e de proce ssos intersubjetivos dominados pelas relações com os cl i en tes. As inúmeras estratégias e modos operatórios que a categoria implementa para evitar ac i den te s , em bora assim pareça, rara m ente corre s pon dem a uma ação mecânica e totalmente eviden te (Llory, 1999). Encontrase, aqui, mais uma razão para que as em pre s a s dei xem uma margem de liberd ade na or ganização do trabalho, perm i ti n do que os motoc i cl i stas possam não só desenvo lver, mas, também, m obilizar as suas com petências. O uso das antenas é mais uma comprovação de que os motociclistas profissionais não são “ Lo u cos pelo peri go” ( Revista Veja, 7/7/99); sua preocupação em aten der os clientes não perm i te atribu i r-lhes um com port a m en to anti-social, como foram estigmatizados pelos ve ículos de imprensa e pela sociedade em geral. Mesmo com reduzida margem de liberdade, eles procuram improvisar medidas que estão ao seu alcance para re sg u a rdar sua segurança. Ao ad qu i ri rem ex periência, os tra b a l h adores modificam seus comportamentos, passando aos poucos a assumir ati tu des mais ousad a s . As modificações do com port a m en to diante das disfunções do processo produtivo são, comumente, os únicos meios que os trabalhadore s d i s p õ empara avaliar os seus limites de ad a pt aç ã o, con s ti tu i n do um fator importante para o de s envo lvi m en to de habi l i d ades e de k n ow - h ow profissional (Rasmu s s en , 1987). Desse modo, os trabalhadores se ex perimentam e ad qu i rem ex periência. Nessas situações, o erro está rel ac i on ado à impossibilidade de rec u pera ç ã o, por ocasião dos “ex perimen to s” con s c i en tes e subcon s c i entes co l ocados em pr á tica pelos trabal h adores (Ra s mu s s en , 1987). O interesse exclusivo nas normas pre s c ri t a s faz com que a dimensão su bj etiva de s envo lvida pelos trabalhadores não seja percebida pelos inve s ti gadores dos ac i den te s . A iniciativa, a ded i c a ç ã o, a criatividade, a inven tivi d ade, o domínio de si e a mobilização – ou s avo i r-faire de prudência –, os con h ecimen tos tácitos e as regras não formais mobilizados pelos trabalhadores escapam aos olhos dos investigadore s (Llory, 1999). Daí certos comportamen tos e h á bi tos do tra b a l h ador não serem com preen d i-
dos por aqu eles que analisam e/ou julgam os aciden tes e com port a m en tos. A visão que sobressai na análise é, port a n to, p a rcial e incri m i n a t ó ria, pois está cen trada nos de s vios (con tu do, s em pre inevi t á veis) do qu adro prescri to. O resultado é a el a boração de um conjunto de regras que pre s c revem tarefas e con dut a s , acom p a n h ada da ten t a tiva de obri gar os tra b a l h adores a se conform a rem com a execução rigorosa de normas pre s c ritas (Llory, 1999). Essas normas acabam não sen do cumpridas de acordo com o esperado, pois as instruções de s consideram certas propriedades – como ori entação cognitiva, seqüencialidade, temporalidade – somente percebidas quando as regras são colocadas em prática (Coulon, 1995). Nessa pers pectiva, não são os erros isolado s que devem ser particularmente considerados c ri t é rio absoluto de fra gi l i d ade hu m a n a , pois o tra b a l h ador se pro tege con tra eles e até mesmo os provoca (Am a l berti, 1996), qu a n do experimenta e se experimenta. Por conseguinte, o s i n toma de disfunções não é cometer erro s , mas não mais detectá-los ou recuperá-los (Ibid.). E isso sobrevém quando os processos de trabalho não dispõem de todas as defesas, ou qu a n do os níveis metacogn i tivos, ou seja o con h ec i m en to que o trabalhador tem daqu i l o que já sabe , e os processos de confiança se conf u n dem, acei t a n do-se mu i tos riscos. As defe s a s podem não funcionar por falta de competência, de tempo ou de con ju n turas emocionais parti c u l a res como estresse, hiperm o tivação etc. ( Am a l berti, 1996). A pesquisa re a l i z ada evidenciou que “os m odos de andar a vida”, nos termos de Tambellini (1978), dos motoc i clistas consti tu em uma reação construída e moldada em função das peculiaridades e dos estímulos sobre os quais a a tividade se estrutu ro u : a pressão dos cl i en tes por serviços rápidos, pontuais e de confiabilid ade; a el evada demanda de serviços; as prec árias relações de trabalho; a ocorrência de gra nde número de circunstâncias não con tro l á veis; o uso da motocicleta como meio de deslocamento rápido no trânsito con ge s tionado das gra n des cidade s . Os re sultados obti dos ex p l i c a ram o modo opera t ó rio de ri s co implem en t ado no tr â n s i to pelos motociclistas profissionais como o último rec u rso da categoria, não como um proced i m en to de ro tina, mas como forma de ação d i a n tede circunstâncias especiais relac i on adas à or ganização do tra b a l h o, que deve , port a n to, ser obj eto de transformação.
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A remu n eração por de s l oc a m en toé um fator de risco, no en t a n to, menos forte do que a pressão das em presas e dos clientes para que os m o tociclistas cumpram as tarefas nos tem po s determinados. As exigências por um atendimen to com pon tualidade , pre s teza e con f i a bi l id ade é que leva os motociclistas a adotar procedimentos de ri s cono tr â n s i to. Viu-se que os proced i m en tos geradores e poten c i a l i z adores dos riscos de aciden tes são recon h ec i dos pela categoria como efei to da organização do tra b a l h o, e não uma nece s s i d ade pe s s oal de sen tir fortes emoções. Ao con tr á ri o, os re su l t ados obtidos com a análise da ativi d ade real não apenas revelam a importância da or ganização do trabalho, mas também a nece ss i d ade de se alarga rem suas “m a r gens” trad i c i onais, recon h ecen do e fac i l i t a n do os ajustes qu e os motociclistas profissionais con s troem para c u m prir os obj etivos estabel ec i dos, como as redes sociais solidárias no planejamento das rotas, no con trole tem poral das tarefas e nas negociações das demandas de serviço com ch ef i a s e clientes. Em vista disto, os mediadores do acordo co l etivo formu l a ram cl á u sulas de saúde e segurança que fac i l i t a s s emesses aju s tes pra ticados pelos motoc i clistas. Som en te qu a n do as m a r gens de liberd ade deixadas pela or ganização do trabalho são estreitas, não levando em con s i deração as exigências de tem po e os con strangimentos do espaço, os motoc i clistas profissionais alteram o modo operatório de pilotar com vistas a aumentar a agilidade. A re a l i d ade vivida pela categoria consti tu i , dessa forma, uma exigência social passível de tra n s form a ç ã o, não determ i n ada pela característica intrínseca da profissão ou do perfil do tra b a l h ador, ao con trário da percepção nega tiva da soc i ed ade e dos especialistas em seg u ra nça a re s pei to dos motoc i clistas prof i s s i on a i s .
Con clu s ã o : negociação social e mel h oria das condições de trabalho dos motociclistas profissionais A mudança do foco de análise, do comportamen to do motoc i clista para as condições materi a i s , or ga n i z ac i onais e sociais de realização de sua atividade, d i reciona igualmente as transformações para as condições de trabalho, compreendidas nesta pers pectiva mais ampla. Assim, em termos práti co s , a partir da pesquisa, foram formuladas recom endações que cobrem vários aspectos determinantes do comporta-
m en to dos motoc i clistas prof i s s i on a i s , das rel ações con tratuais às relações com os clientes, passando por medidas de reorganização das vias de trânsito. Todas essas recomendações têm como obj etivo último aliviar os con s tra ngimentos materiais, organizacionais e sociais, perm i ti n do que os motoc i clistas prestem serviço com agilidade, mas sem nece s s i d ade de assumir com port a m en tos de alto ri s co. Pelo fato de ser um trabalho relativa m en te recen te, a i nda não reg u l a m en t ado, por se realizar em vias públicas e por ser um serviço pre s t ado diret amen te a um cl i en te que exige pre s teza e qu a l idade, todas essas mudanças exigem negoc i ações sociais para serem efetivad a s . Nos limites de s te arti go, a pre s entamos alguns re su l t ados da negociação da convenção co l etiva, assinada recen temen te en tre o sindicato dos motoc i clistas prof i s s i onais e os em pre s á rios do setor. A negociação se deu com a intermediação do Fórum Estadual de Saúde e Segurança do Tra b a l h ador de Minas Gerais (FESSTMG), coorden ado peloMi n i s t é rio Públ i codo Trabalho. In s ti tu í do em ago s tode 2000, o Fórum tem por objetivo principal aglutinar agentes sociais e instituições em torno de ações con juntas de promoção de melhorias das condições de trabalho num processo de negociação social das questões relativas à saúde do tra b a l h ador (Lima, 2003). O que motivou a criação do FESSTMG foi a con s t a t a ç ã o, com p a rtilhada por espec i a l i s t a s de diversas insti tuições rel ac i on adas à saúde do tra b a l h o, da ineficiência das ações de prevenção e de mel h orias das condições de trabalho tal como elas vêm ocorren do. Apesar de todo o esforço realizado no Brasil nos últimos 30 anos, tanto para compreender os problemas qu a n to para implementar programas de prevenção e legislação sobre o assu n to, os índice s de ac i den tes e doenças rel ac i on adas ao tra b alho con ti nuam el evado s . No caso dos motoc i cl i s t a s , o Ministério Público do Trabalho, a Fu n d acen tro e a Del egac i a Regi onal do Trabalho negoc i a ra m , em con ju n to, os termos de uma convenção coletiva do tra b al h o, com repre s en t a n tes dos trabalhadores e de empregadores do setor de motof rete . O início do processo se deu com a realização de mesa-redon d a , re a l i z ada no Mi n i s t é rio Públ i co do Trabalho, em setem bro de 2004, quando os re su l t ados da pe s quisa foram apre s entados aos a tore s sociais da área de saúde , de trabalho e de tr â n s ito, repre s en t a n tes dos tra b a l h adores e em pregadores. No even to foi ex p l i c i t ada a comp l ex i d ade
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do probl em a , a nece s s i d ade de um novo model o de atuação, n ece s s á rio para a mel h oria das condições de saúde e trabalho da categori a . A parti r daí, 12 reu n i õ e s , ora qu i n zen a i s , ora semanais, num total de 60 horas, foram efetivadas com a m ediação e coordenação do FSSTMG e parti c ipação da Fu n d acen tro, Del egacia Regional do Trabalho e os representantes dos tra b a l h adores e empregadores. O termo básico da convenção foi produzido pelo Mi n i s t é rio Públ i co do Trabalho a partir de algumas con tri buições dos repre s entantes da categoria patronal e dos trabalhadores. Co u be à Fu n d acen tro el a borar as cl á u sulas rel a tivas às questões de saúde e seg u ra n ç a . A norma coletiva foi finalizada em março de 2005, com 67 cl á u sulas. Destas, 34 são pertinentes à s eg u rança e saúde no trabalho (Quad ro 1), repre s en t a n do uma conquista importante para esta categoria prof i s s i on a l , até então tra b a l h a ndo sem nenhuma reg u l a m entação em âmbito federa l , estadual ou mu n i c i p a l . Esse con s ti tui o pri m ei ropasso que, cert a m en te , s erá o em brião de futu ra legislação federal e municipal sobre o
a s su n to, cujo conteúdo de segurança e saúde no trabalho é inédito no país. Os re su l t ados da análise er gonômica da ativi d ade mostraram os motociclistas profissionais sob uma ótica produtiva, desenvolvendo uma gestão eficaz dos com promissos cognitivos. Ou seja, a atividade foi analisada em condições normais, com os motoc i clistas co l oc a n do em pr á tica – nas empre s a s , no trânsito, nas rep a rtições e nos con t a tos com os cl i en tes – inúm eros modos opera t ó rios e estra t é gias que su stentam o processo produtivo e a sua seg u rança, assim como as circunstâncias que os levam a adotar comportamen tos de alto risco. Esse conhecimento mostrou ser bem mais profícuo para as ações de prevenção do que as investigações clássicas dos ac i den tes, com a vantagem de recon h ecer o saber de s envo lvido pelos pr ó prios trabalhadore s , con tra s t a n do com as normas de s eg u rança pre s c ri t a s , gera l m en te incom p a t í vei s com a atividade. Tanto o con te ú do qu a n to a con s trução social desta norma co l etiva não teriam sido po s s í veis sem esse mergulho no cotidiano dos motociclistas profissionais.
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Quadro 1 S í n tese das cl á u sulas de Segurança e Saúde da Convenção Co l etiva . Condições de trabalho
Quesitos da convenção co l etiva de trabalho
Formação
Cursos com con te ú do e carga hor á ria def i n i dos e ministrados por: m o tociclistas ex peri en te s , Fu n d acentro, pre s t adores de serviço em direção defen s iva
Prêmio de produ ç ã o - competi ç ã o
Proi bi do qu a l qu er sistema de premiação que esti mule com port a m en tos de ri s co no trânsito
E s t í mulo às regras de soc i a bi l i d ade no tr â n s i to
Prêmio para o motoc i clista que não com eter infração de tr â n s i to
E nvo lvi m en to dos cl i en tes dos serviços
E l a boração de guia de ori entação ao usu á rio In formação ao cl i en te sobre po s s í veis atrasos De s con tos para cl i en tes que prop i c i a rem aten d i m en to rápido ao motociclista L i m i te de tem po de espera para o cl i en te aten der motoc i cl i s t a
Apoio ao co l etivo de trabalho e redes solidárias
E s t í mulo e incen tivo por parte das em pre s a s
O r ganização do trabalho
Tem po pre s c ri todiferen c i ado con forme a ex periência do motoc i cl i s t a , dia do mês, pré e pós feri ado, condições meteoro l ó gicas e logrado u ros Tem po para nova tos acom p a n h a rem motoc i clistas ex peri en tes Ta refas com pra zo críti co re a l i z adas por dois motoc i cl i s t a s L i m i te de tem po para acei te de tarefas urgen te s Proi bição de locar os serviços de um mesmo motoc i clista para dois ou mais cl i en tes simultaneamen te Su gestão para com p a rti l h a m en to de tarefas com outras em presas em bairros disti n tos ou cidades vi z i n h a s Possibi l i d ade de negociação da demanda e do tem po pre s c ri tosem represália aos motoc i cl i s t a s , mesmo na condição de terceiri z ado In formação às em presas cl i en tes para cumpri rem também os termos da CCT Hora ex tra de 100%
Con forto
Repo u s o : local de espera nas em presas con tra t a n tes dos servi ç o s Proi bi do o tra n s porte de caixas e baús su s ten t ados nas costas do motoc i clista
Mo to e ace s s ó rios
Tem po livre semestral para manuten ç ã o, s em descon to em salário Fiscalização da doc u m entação e condições do veículo Cores cl a ras para roupas, baús e capacete s Dispositivos ref l etivos Baús térm i cos para con s ervação da tem peratura dos produtos e alimen tos Obri ga toriedade de uso de antenas e dois retrovi s ores Fornec i m en to de mapas
E PI
Fornec i m en to, por parte das empre s a s , de todos os EPIs , capacetes fech ados e cintas ref l etivas para trabalhos notu rn o s
Condições específicas de saúde
Vacina con tra gri pe Seg u ro - s a ú de Proi bi do o serviço de rua em estado febril ou sob efei to de sed a tivos Auxílio-lanche
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Co l a bora dore s EPH Diniz realizou o trabalho de campo. Autor da dissertação de mestrado que deu ori gem a este arti go, ele foi orientado por AA Assunção e FPA Lima. Todos os autores participaram da elaboração do artigo.
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Artigo apre s en t ado em 15/06/2005 Aprovado em 4/07/2005 Versão final apre s en t ada em 27/07/2005