Modos, medos e mitos no tempo de Cabral

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M U L T I S S E N S O R I A L

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Modos medos E mitos no tempo de Cabral

Casa do Brasil 10.07. 2015 | 30.04.2016 c a t á l o g o


Organização

Mecenato


Há cidades assim. Berços de heróis do mar e cenários de façanhas ultramarinas. Capitalizadoras de novos paradigmas de ação, de renovadas visões, de empreendimentos mobilizadores, de perenes renascimentos. Há cidades assim. Ricas em património construído e em nobre povo. Fecundas nos campos agrícolas, como no campo das ideias. Insustentáveis na sua leveza de ser, de crer e de fazer. Há cidades assim. Nações valentes, embora mortais. Pátrias de várias pátrias. Mães de povos sem raça e de todos os credos. Há cidades assim. Únicas na dinâmica criadora. Aptas a metamorfosear as fraquezas em forças. Vencedoras sobre os tiques derrotistas e os egos exacerbados. Há cidades assim. Capazes de ousar sonhar. Orgulhosas do seu passado e confiantes no seu futuro. Alfas e Ómegas do milenar projeto humano de ir mais além. Há cidades assim …

A Vereadora da Cultura

Susana Pita Soares


Título

Modos, Medos e Mitos no tempo de Cabral Comissariado

Carlos Amado (coordenação e design) José Raimundo Noras (produção) Luís Mata (investigação e museologia) Sonoplastia e imagem em movimento

Jorge Sá, Tremoço Productions Textos

Ana Avelar, Carla Varela Fernandes, Francisco Pato Macedo, Jorge Custódio, José Meco, José Paiva, José Raimundo Noras, Lia Nunes, Luís Mata, Manuel Gandra, Maria José Azevedo Santos, Pedro Canavarro, Saúl Gomes Mecenato

Montepio Geral – Associação Mutualista Colaborações

Ana da Silva, Associação Internacional Luso Brasileira de Integração Arte e Cultura, Círculo Cultural Scalabitano, Centro Nacional de Exposições, Correio do Ribatejo, Daniel Ferreira, Domingos Durães, Escola Profissional Vale do Tejo, Francisco Noras, Instituto de Emprego e Formação Profissional de Santarém, Leitão e Irmão Joalheiros, Liliana Felix, Polícia de Segurança Pública de Santarém, Museu Diocesano de Santarém, Museu Nacional de Arte Antiga, Museu de S. Roque, Quinta da Ribeirinha, S.L. Seguros, Santa Casa da Misericórdia do Porto, Sociedade Numismática Scalabitana, W Shopping, Viv’arte Fotografia

Francisco Noras, José Pessoa, Luís Moutinho, Luísa Oliveira, Nuno Moreira, Pedro Clérigo Lettring/Impressão digital

Adesivo Apoio à produção

Conceição Branco, Orlando Abreu Montagem

Câmara Municipal de Santarém (Departamento Técnico e Gestão Territorial, Serviço Municipal de Biblioteca, Arquivo e Património, Serviço Municipal de Cultura e Turismo) Animação e recreação histórica

Conservatório de Música de Santarém, Grupo Scalabitanus e Veto Teatro Oficina do Círculo Cultural Scalabitano Protocolo e divulgação

Gabinete de Relações Públicas e Comunicação


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Modos Foi, de facto, admirável o Novo Mundo em que Cabral viveu. Ao atavismo medieval, fechado de espaços e de ideias, este mundo novo ripostou com a dinâmica experimentalista e a curiosidade científica, com a conquista de dois oceanos e quatro continentes, com a globalização de credos, raças e espécimes. A aventura das descobertas de além-mar foi também o momento em que o Mundo se redesenhou com os atuais contornos. Um Mundo governado por príncipes renascentistas, eruditos e protagonistas, mecenas das artes e dos negócios, com acesso ‘democrático’ ao livro e à leitura. Um Mundo paulatinamente mecanizado, centralizado e uniformizado, multidisciplinar no modo de produzir e aplicar conhecimento, ávido do exótico e do assombroso. Um Mundo humanista mas que descobriu o ‘outro’ também para o escravizar, para o abater com armas pirobalísticas, para lhe impor os grilhões da intolerância religiosa e do preconceito. Começava um novo paradigma nos modos de ver, de ter, de ser e de poder …

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Natureza morta I Josefa de Ayala e Cabrera. 1676 Pintura a óleo sobre tela (pormenor) Legado Braamcamp Freire Museu Municipal de Santarém

Alimentação Pedro Álvares Cabral, Vasco da Gama e Cristóvão Colombo são os principais responsáveis, entre outros, pela difusão de ‘alimentos novos’ na Europa, em particular, no reino de Portugal. As Descobertas criaram, nas mesas abastadas dos fins do século XV - inícios do século XVI, gostos diferentes que passaram, sobretudo, pelo acesso fácil e pelo uso frequente do açúcar e das especiarias. O primeiro revolucionou o apetite pelas sobremesas exuberantes de jantares e ceias (tigeladas de leite, ovos de laços, marmelada, manjar-branco, confeitos). Por sua vez, as espécies do ‘outro mundo’ – cravo-da-índia, pimenta, canela, gengibre – alimentaram, de modo igual, o doce e o amargo numa representação de cores, perfumes e paladares, levada à quinta-essência.

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Ciência Revolução científica | Os avanços da Matemática, da Cartografia e da Astronomia viabilizaram, a partir do século XV, uma revolução científica à escala planetária. Um conhecimento cada vez mais assente na observação direta e na experiência rapidamente foi transposto e difundido na arte.

Nesta iluminura, que representa o teólogo e exegeta Nicolau de Lira (1270-1349), o artista invoca, quer a simbologia do poder imperial lusitano (esfera armilar), quer algumas das bases científicas do novo paradigma do conhecimento (sextante, astrolábio, planisfério e relógio mecânico). Ao mesmo tempo alude ao diálogo entre Religião e Ciência, que o radicalismo doutrinário emanado de Trento (1545-1563) acabaria por inviabilizar. Cartografia | A cartografia conheceu avanços sem preceden-

tes durante a expansão portuguesa. Os novos conhecimentos foram transpostos para mapas à escala do mundo: os planisférios. Assinados por Pedro Reinel, Lopo Homem, entre outros, tinham já desenhos rigorosos das novas terras. O trabalho dos cartógrafos era essencial ao desenvolvimento das viagens marítimas, por isso, também neste âmbito, se manifestou a ‘política de sigilo’ associada às descobertas. O planisfério de 1502, atribuído ao mestre italiano Cantino, terá resultado de um furto ou de uma ação de espionagem na Casa da Índia.

Nicolau de Lira na cátedra Bíblia dos Jerónimos, volume I. Frontispício (pormenor) 1495 PT/TT/MSMB/A/L67 Mapa da costa do Brasil (pormenor) Lopo Homem-Reinéis 1519 Atlas Miller Paris, Bibliothèque Nationale

Progressivamente, os novos saberes cartográficos espalharam-se pela Europa, assumindo particular importância na Holanda, facto a que não foi alheio o exílio dos judeus portugueses. Náutica | A viagem em mar aberto era mais rápida em tempo e

mais confortável para a tripulação. Um dos grandes avanços da náutica de Quinhentos consistiu em aumentar o nível de exatidão da localização das embarcações. O astrolábio e o quadrante permitiam calcular a latitude pela altura dos astros. Porém, quando a medida em graus não era exata, o nível de erro aumentava. O Nónio desenvolvido pelo matemático Pedro Nunes minimizou este problema: ao introduzir 44 escalas paralelas à escala principal, passou a permitir o cálculo de 2500 posições distintas, com intervalos teóricos de dois minutos, o que garantiu extrema precisão na localização dos navios.

Choque tecnológico | As inovações que viabilizaram a aventura ultramarina lusitana resultaram de avanços científicos de ponta. Um escol de matemáticos, cartógrafos, astrónomos e técnicos navais, de várias nações e credos religiosos, desenvolveram em Lisboa instrumentos e conhecimentos ancestrais, reinventando-os com base nas novas funções e nas novidades que se iam sabendo pelos marinheiros.

Quadrante Astronómico munido de Nónio C. 1595 (réplica) Prata 37,5 x 33 x 33 cm Leitão & Irmão, Joalheiros Astrolábio Séculos XV/XVI (réplica) Estanho 27,8 x 18 cm Casa do Brasil | Casa Pedro Álvares Cabral

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É disto exemplo a simplificação do astrolábio, que foi despojado de símbolos do zodíaco, inúteis à navegação em mar aberto. A sua adaptação tornou possível determinar a localização da embarcação num dado momento. Paralelamente, o estudo dos ventos, correntes e marés e as novas cartas marítimas (portulanos) iriam permitir determinar a época mais propícia às viagens, fazendo dos portugueses os senhores absolutos de além-mar. Arcabuz de muralha (calibre 26 mm) Século XVIII Madeira e Metal 141 cm x 29,5 cm Proveniência desconhecida Museu Municipal de Santarém

Guerra Pirobalística | O armamento pirobalístico conheceu uma revolução tecnológica na Idade Moderna, no campo terrestre como naval. Os avanços feitos em Portugal a partir do reinado de D. João II na ‘indústria da guerra’, ao nível mineiro, metalúrgico, pirotécnico e balístico, geraram armas de fogo mais avançadas na cadência de tiro, no alcance e precisão do disparo e no modo de carga (retrocarga).

Espingardas, arcabuzes e mosquetes – no caso das armas de fogo ligeiras – ‘colobretas’ (bombardas), ‘camelos’ (canhão pedreiro), ‘falcões’, ‘berços’ e ‘rocas de pedra’ – no caso das pesadas – foram algumas das inovações documentadas pela iconografia e pela cronística. Essas novas armas alteraram completamente as regras militares ao nível da infantaria e da artilharia, assegurando aos portugueses o domínio das terras e dos mares dos quatro continentes, no confronto com exércitos e armadas francamente mais numerosas, mas tecnologicamente bastante mais atrasadas. Fortalezas | Os heroicos feitos militares conseguidos pela

alta nobreza nos territórios ultramarinos eram imediatamente difundidos pela Europa de maneira quase oficial, fosse através de uma literatura de «atualidade», divulgada em latim ou publicada nos centros cosmopolitas, fosse através de registos visuais, de que as tapeçarias são um bom exemplo.

Cortejo triunfal de D. João de Castro na cidade de Goa, em 22 de Abril de 1547 (pormenor) Bruxelas, c. 1555-1560 Tapeçaria (reprodução) 350 cm x 385 cm Kunsthistorisches Museum Wien

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Esta mitificação épica das figuras nacionais traduz um esforço póstumo de devoção e de prosápia. Ao mesmo tempo, permitiu a execução de fontes iconográficas de grande importância para a questão do armamento. Nesta tapeçaria, que documenta a entrada triunfal de D. João de Castro em Goa, são visíveis quatro dos vinte ‘tiros de metal’ ou das ‘trinta e cinco peças de artilharia’ documentalmente referidas. Em primeiro plano desfilam os espingardeiros, com os seus polvorinhos ao pescoço.


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Geopolítica Tratados | O surto expansionista dos reinos ibéricos originou

a necessidade de delimitação de zonas de influência. Depois de Alcáçovas (1479), Tordesilhas veio reacender a polémica das terras descobertas e por descobrir, tanto mais que a política geoestratégica da Coroa portuguesa assentava no ‘princípio do sigilo’.

Assinado a 7 de Junho de 1494, num contexto de afirmação do poder real face à supremacia política da Santa Sé, o novo tratado procurou resolver os conflitos que se seguiram à descoberta do Novo Mundo por Cristóvão Colombo. Garantia a Portugal o domínio das águas do Atlântico Sul e permitiria a ultrapassagem do cabo da Boa Esperança e a chegada à India, em 1498.

Tratado de Tordesilhas 1494 Pergaminho (réplica) Coleção particular

Outras potências europeias contestariam a lógica de mare clausum associada ao tratado. Francisco I de França, ironizando, terá requerido a cláusula do “Testamento de Adão” legitimadora de tal partilha do Mundo.

Arte Arquitetura | O reinado d´O Venturoso deixou, como poucos na nossa história, uma forte presença material. O amplo programa de obras públicas, alargado a todo o território nacional, usou, em elementos estruturais da arquitetura (pilares, colunas, arcos, frisos e cornijas) um formulário estético facilmente identificável e promotor de identidade.

Este interesse dado à arquitetura tinha objetivos ideológicos bem delineados. A par das festas públicas, era a arquitetura que melhor se impunha aos olhos do povo e de todos aqueles a quem se queria fazer chegar a mensagem de poder.

Capitel Século XVI Pedra calcária 26,5 x 46 x 28 cm Mosteiro de S. Domingos dos Frades Museu Municipal de Santarém

Chave de abóbada com a empresa de Mem Cerveira 1520 Pedra calcária 32 x 66 cm Mosteiro de S. Domingos dos Frades (capela de S. Bartolomeu) Museu Municipal de Santarém

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Cenotáfio de D. Duarte de Meneses (pormenor) Mestre Gil Eanes. C. 1477 Pedra calcária (reprodução) Mosteiro de S. Francisco (Capela das Almas) Museu Municipal de Santarém

Microarquitetura | O prelúdio da modernidade viu renas-

cer o fenómeno da microarquitectura, explorando-o no campo da escultura tumular, da ourivesaria e da iluminura, em espaços progressivamente extravasantes do edificado religioso e com expressões artísticas paulatinamente mais abstratas e complexas. O túmulo de D. Duarte de Meneses é um bom exemplo da utilização da microarquitectura, bem presente nos baldaquinos, sendo estes o último refúgio no processo de contração da presença da arquitetura miniaturizada na produção tumular. Estética | A decoração arquitetónica manuelina, na esteia do gótico flamejante de Trezentos, ganhou em importância e exuberância. Por todo o país multiplicaram-se os exemplos de sobrecarga ornamental, onde o recurso temas naturalistas se torna frequente.

Capitel Século XVI Pedra calcária 38 x 33 x 28 cm Mosteiro de S. Domingos dos Frades Museu Municipal de Santarém

Padrão 2x2 azulejos, Mudéjar Final do séc. XV Cerâmica vidrada em corda-seca 30 x 30 cm Alcáçova de Santarém Museu Municipal de Santarém Padrão 2x2 azulejos, tipo Brocado Início do séc. XVI Cerâmica vidrada em aresta 30 x 30 cm Proveniência desconhecida Museu Municipal de Santarém

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A gramática do manuelino, iniciando-se como linguagem estética do monarca, rapidamente foi assimilada, nas suas correntes e ritmos, pelas elites aristocráticas. À medida que o número de construções foi aumentando, tanto por ação do mecenato dos grandes senhores, como pela existência local de estaleiros de obras e de grupos profissionais, os pressupostos ideológicos manuelinos multiplicam-se paulatinamente.


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Azulejaria | O século XVI foi paradoxal também na sua relação com o Islão. Se a nível geopolítico Granada deixa de ser, desde 1492, o último reduto muçulmano, a nível artístico assiste-se a uma recuperação de formas decorativas de origem islâmica, sobretudo andaluzas, com o recrudescimento da arte dita mudéjar.

Padrão 2x2 azulejos com Laçarias Mudéjares Final do séc. XV Cerâmica vidrada em corda-seca 30 x 30 cm Proveniência desconhecida Museu Municipal de Santarém

Portugal foi o maior cliente da azulejaria hispano-mourisca sevilhana, nomeadamente durante o reinado de D. Manuel I, num modismo que então se vinha impondo no reino de Castela, especialmente nos círculos cortesãos. Um pouco pelo país permanecem numerosos conjuntos, preciosos pela variedade ou raridade dos exemplares ou pela originalidade da aplicação e cujo objetivo foi criar ambientes arabizantes.

Padrão 1x1 azulejos com laçarias e elementos vegetais Início do séc. XVI Cerâmica vidrada em aresta 30 x 30 cm Proveniência desconhecida Museu Municipal de Santarém

Centros pictóricos | A conjuntura artística portuguesa

tardo-medieval apresenta-se com um complexo cruzamento, mais sincrético que sintético, de diversas propostas estéticas. A pintura, em particular, revela este gosto moderno, de raízes no goticismo flamengo e alemão que, em sintonia com a crescente voga de espiritualidade cristocêntrica da devotio ocidental, acabará por triunfar no futuro imediato, retardando, por algumas décadas, a plena aceitação do modo romano ou antigo. A crescente influência comercial da Europa numa fase de expansão marítima, de hegemonia e de poder político e económico, permitirá paulatinamente o acesso à inovação dos grandes centros pictóricos, designadamente a Inglaterra, a Borgonha, a Flandres e as Repúblicas italianas.

Azulejos de cercadura com decoração naturalista Início do séc. XVI Cerâmica vidrada em aresta 30 x 30 cm Proveniência desconhecida Museu Municipal de Santarém Padrão 1x1 azulejos com fitas e elementos vegetais estilizados 1ª metade do séc. XVI Cerâmica vidrada em aresta 30 x 30 cm Proveniência desconhecida Museu Municipal de Santarém Padrão 2x2 azulejos com coroa octogonal renascentista 1ª metade do séc. XVI Cerâmica vidrada em aresta 30 x 30 cm Proveniência desconhecida Museu Municipal de Santarém Padrão 2x2 azulejos com hexágonos, decorado por laçarias 1º quartel do séc. XVI Cerâmica vidrada em aresta 30 x 30 cm Proveniência desconhecida Museu Municipal de Santarém

Baptismo de cristo Pieter Coecke Van Aelst (1502-1556) 1ª metade século XVI Pintura a óleo sobre madeira 196,90 x 142,70 cm Legado Braamcamp Freire Museu Municipal de Santarém

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Reforma administrativa Metrologia | A centralização do poder real e a revolução

Pilha de pesos Século XIX Latão 4,5 cm x 3,4 cm Proveniência desconhecida Museu Municipal de Santarém

comercial europeia da Idade Moderna explicam as diversas tentativas de uniformização ponderal. Os descobrimentos mais acentuaram a necessidade de dispor de padrões metrológicos de referência, destinados a aferir, a partir de modelos europeus, a diversidade de pesos e medidas em vigor na geografia-mundo. No caso de Portugal foi durante o reinado de D. Manuel I que se implementaram as novas unidades metrológicas, tendo o monarca determinado a aferição dos pesos e medidas pelos padrões de Lisboa - acentuando o papel da capital nas rotas marítimas -, cujas regras aplicou também nos reformados forais. A reforma manuelina materializou-se na criação de um protótipo do padrão de quintal (58,752 kg), uma caixa de pesos de múltiplos e submúltiplos tendo por unidade de medida o arrátel (0,459 kg). A partir dos protótipos em bronze de 1499, replicaram-se pilhas de pesos de diferentes escalas e dimensões, destinados aos ourives, às boticas, aos hospitais e ao comércio de drogas, envolvendo submúltiplos do arrátel, como a quarta, a onça, a oitava, o escrópulo (24 grãos) e o grão (0,0000498 kg). Este novo sistema de pesos teve reflexos nas ilhas atlânticas, na Índia e no Brasil e aplicou-se a nível concelhio, tendo vigorado até aos meados do século XIX.

Horologia | A necessidade de medição do tempo - durante

muito tempo associada à astronomia e à astrologia - nasceu na Antiguidade. Teve como símbolo o relógio de sol, cujas variáveis incluem o relógio de sol portátil e a ampulheta. Em relação aos seus congéneres, o relógio mecânico teve o condão de transformar a própria consciência do tempo do final da Idade Média. Seguiu os passos iniciados pelo relógio de água, onde quase tudo se experimentou antes da horologia mecânica.

Relógio de sol portátil João da Silva. Século XIX 7,5 x 4,5 cm x 1,8 cm Madeira, vidro, papel, magnete e chumbo Coleção particular Museu Municipal de Santarém Ampulheta Século XX Madeira, vidro, metal e areia 22,8 x 12,5 cm Proveniência desconhecida Museu Municipal de Santarém Relógio esqueleto Inícios do século XIX Madeira, mármore e vidro 43 x 33 cm Proveniência desconhecida Museu Municipal de Santarém

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Tendo por base o escape e um motor regular (inicialmente de pesos), este tipo de relógios foi-se aperfeiçoando, complexificando (mecanismo dos toques horários em sinos) e miniaturando (do relógio de mesa ao de bolso). Em pleno Renascimento inventa-se o relógio de molas, um novo motor mais eficaz. Nobres, bispos e reis partilham inicialmente da génese destas invenções, com o concurso de ferreiros, serralheiros, astrónomos e matemáticos. De objetos de prestígio, os relógios passam a ser medidores de tempo urbanos, difundindo-se pela sua função pública entre os séculos XIV, XV e XVI. Forais | Das reformas estruturais implementadas por D. Manuel I, a dos forais terá sido uma das mais importantes. Para a mudança concorreram a necessidade de uniformizar a normativa administrativa e judicial e a vontade de implementar o justo pagamento dos direitos reais devidos à Coroa ou a donatários.


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PORTUGAL. Rei, 1495-1521 (Manuel I) – [Foral de D. Manuel: dado a Santarém em 1 de Fevereiro de 1506] [Manuscrito]. 61 f.

A reforma foi implementada através de uma estratégia política consequente, forte e centralizadora e de uma estratégia social assente na criteriosa manipulação das doações, graças e privilégios dadas à aristocracia. Por outro lado mobilizou um número considerável de preparadores de pergaminho, escrivães e iluminadores e representou um grande investimento financeiro dos principais scriptoria medievais. Numismática | Embora de rara aparição, o universo numismático dos séculos das descobertas surge retratado em algumas iluminuras. O fólio que retrata a Adoração dos Magos constitui o mais antigo documento conhecido que o atesta. Miniaturizadas pelo artista numa escala perfeitamente concordante com a sua dimensão real, as 49 moedas iluminadas na tarja deste fólio representam os numismas correntes em Portugal e Espanha. De cima para baixo e da esquerda para a direita identificam-se os excelentes de Granada, os ducados (Fernando II de Aragão), os meios-vinténs (D. Manuel I), os cruzados (Afonso V), os vinténs (D. João II), os tostões (D. Manuel I), o meio-tostão (D. João III), os portugueses de ouro (D. Manuel e/ou D. João III) e os vinténs (D. João III).

Ceitil - Ceuta D. Afonso V Cobre Anverso: [R]X: PORTUGALIE:ALG (…) Escudo com quatro quinas cantonadas por quatro castelos sobre cruz de Aviz. Reverso: [AL]FONQ:EDOMINNQ:CE (…) Três torres banhadas pelo mar. Letra monetária C. Coleção particular Ceitil - Lisboa D. Afonso V Cobre Anverso: ALFONQ: EDOMINO Escudo com quatro quinas cantonadas por quatro castelos sobre cruz de Aviz. Reverso: AVITOR(…) Três torres com muralhas banhadas pelo mar. Coleção particular

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Ceitil - Porto D. Afonso V Cobre Anverso: [AD]IUTOR:[M]EO: DE(…) Escudo com quatro quinas cantonadas por quatro castelos sobre cruz de Aviz. Reverso: ALFQ:(…)[PO]RTUGA Três torres com muralhas banhadas pelo mar. Letra monetária P. Coleção particular Justo D. João II Ouro Anverso: IOHNAES:I.I.R.PORTVGA-LIE:ET:A:D:GVINE Escudo real, coroado, em campo ornamentado. Reverso: IVSTVS:VT:PALMA:FLOREBIT: O rei sentado em trono de espaldar gótico, empunhando espada na mão direita. Reprodução. Coleção Particular Ceitil - Lisboa D. João II Cobre (Lisboa) Anverso: IOANES: II: R:P:ET:A:D:G Escudo com as quinas cantonadas por castelos Reverso: IONES: II: REX: PORTVGA Três torres com muralhas, banhadas pelo mar. Coleção particular Ceitil D. Manuel I Cobre Anverso: I EMANUEL: R: P: ET: A Escudo com quinas cantonadas por castelos. Reverso: EMANVEL: R:P: ET AD GVINE Três torres com muralha banhadas pelo mar. Coleção particular Português D. Manuel I Ouro Anverso: I:EMANVEL:R:PORTUVGALIE :AL:C:VL:IN:A:D:G//C.N:C ETHIOPIE: ARABIE:PE RSIE:I: O escudo coroado e ladeado por dois aneletes. Reverso: IN::HOC::SIGNO::VINCES A cruz da Ordem de Cristo com ponto ao centro encimada por três pontos. Réplica. Coleção Particular

A intenção simbólica da iluminura é evidente. O conjunto de moedas, encabeçadas pelos imponentes portugueses de ouro, no centro do pé da tarja, representam a oferta de D. João III ao menino-Deus. O seu valor não receia confrontações com as moedas de outros reis, equiparando-se ao dote original dos magos. A presença dos excelentes de ouro dos reis Católicos, colocados tão em evidência no topo superior esquerdo da tarja, evocam, por outro lado, não apenas o apreço que tiveram na circulação monetária nacional, como a ilustre ascendência da jovem rainha de Portugal, D. Catarina («a infanta de Tordesilhas»), que D. João III desposaria em Fevereiro de 1525.

Horas da Virgem - Adoração dos magos António de Holanda (atrib.). 1524-1526 Livro de Horas [dito] de D. Manuel I (Horae Beatæ Maria Virginis), fol. 87v (reprodução) Museu Nacional de Arte Antiga Foto DGPC/ADF/José Pessoa

Cultura

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Tipografia | Quando Cabral chegou ao Brasil cerca de 20

milhões de livros tinham sido já impressos. Número impressionante se pensarmos que a imprensa tinha sido inventada apenas cinquenta anos antes, na oficina de Johannes Gutenberg, para uma minoria alfabetizada.


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A massificação do livro teve efeitos colaterais a vários níveis. Implicou uma redução substancial dos custos de produção, abriu caminho à democratização da aprendizagem e à laicização da cultura, criou novos ofícios e novos públicos leitores, intensificou as trocas culturais e disseminou a produção intelectual em relação aos seus centros tradicionais. Para além disso lançou as bases materiais para a revolução científica e serviu de instrumento reformista evangelizador das populações dos territórios Além-mar. Pela mudança de paradigma que permitiu a imprensa pode ser considerada uma das maiores invenções da Modernidade. Escrita e escrivães | Na plenitude dos tempos medievais,

a escrita serviu dominantemente, mas não em exclusivo, o Sagrado. Nesses séculos, multidões de copistas e de iluminadores produziram, nos scriptoria de catedrais e de mosteiros, de palácios e de universidade, belos códices, escritos em pergaminho, para maior louvor de Deus. A par deles, sobretudo em paços senhoriais ou em audiências de municípios, laboraram outros tantos exércitos de tabeliães e escrivães ao serviço de chancelarias e de paços ou escrivaninhas públicas notariais. Escreviam sobre pergaminho ou sobre papel, usando penas e tintas adequadas, desenhando letras ornamentadas e coloridas ou simples e depuradas, seguindo figurinos de abecedários de alfabetos ora redondos e espiralados (letras carolinas), ora de traços finos e grossos, contrastantes e angulosos (letras góticas) ora, no declínio desses tempos, alfabetos renovados de letras finas e suaves (humanísticas).

Escrita e imprensa | O texto manuscrito imperou nos séculos

medievais. Textos que resultavam de cópias morosas e dispendiosas. Em Quatrocentos, a Europa testemunhou uma enorme revolução nesse campo com o aparecimento da tipografia ou da imprensa mecânica.

RESENDE, André de - L. Andr. Resendij Carmen endecasyllabon ad Sebastianum regem serenissimum. Olisipone : apud Franciscum Garcionem : in officina Ioãnis Barrerae, 1567. 45 f. Missale iuxta vfum & ordinem Almae Bracarenfis Ecclefiae Hifpaniaru Primatis, fummo ftudio arque diligentia nouirer excufum , & multis infuper.... Lugduni : Biblioteca Régia Lusitana, 1558. CCL f. MARCOS, de Lisboa, O.F.M ...Chronicas da Ordem dos Frades Menores do seraphico padre Sam Francisco seu instituidor & primeiro ministro geral que se pode chamar Vitas patrum dos Menores. Em Lisboa : per Antonio Ribeyro : a custa de Ioam de Espanha & Miguel de Arenas, 1587. 3 v. PORTUGAL. - Leys e provisoes que elRey dom Sebastiã nosso senhor fez depois que começou a gouernar. Em Lixboa : per Frãcisco Correa, 1570. [8], 223 [i.é 195], [1 br.] p. BRANDÃO, Hilarião, O.S.A. - Voz do amado. Em Lyxboa : per Ioão Fernandez, 1579. [8], 237 f. Allegações de direito que se offereceram ao muito alto e poderoso Rei Dom Henrique nosso Señor na causa da socessão destes Reinos por parte da Senhora Dona Catherina sua sobrinha filha do Iffante dom Duarte seu irmão a 22 de Outubro de MDLXXXIX. Em Almeirim : per Antonio Ribeiro & Francisco Correa, 27 de Fevereiro 1580. [6], 128 f., [2] f. grav. CASTANHEDA, Fernão Lopes de História do descobrimento & conquista da India pelos portugueses. Coimbra : João Barreyra, 1554-1561. 2.vols BARROS, João de - Asia [primeira quarta decada] de Joam de Barros dos fectos que os portugueses fizeram no descobrimento & conquista dos mares & terras do Oriente. Em Lixboa : per Germão Galharde, 1552-1615. 3 vol.

Oficina de impressor. C.1520 Gravura. Paris, Biblioteca Nacional.

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Públia Hortênsia de Castro (Vila Viçosa, 1548 - Évora, 1595) André Peres (atrib.). C. 1595 Pintura a óleo sobre cobre 25 x 18,70 cm Legado Braamcamp Freire Museu Municipal de Santarém

Foi Johannes Gutenberg que inventou os caracteres ou tipos gráficos móveis, metálicos, que permitiam imprimir páginas e páginas de livros num tempo curto e com custos significativamente baixos. Os abecedários do passado, tanto quanto as imagens gravadas, multiplicavam-se e reinventavam-se, agora, nos seus estilos e formas, nas oficinas de tipógrafos que proliferavam por toda a parte. O livro tornava-se acessível a um sempre crescente número de leitores, democratizando-se o saber e a cultura. Os livros saídos dos prelos tipográficos até 1500 levam o nome de incunábulos, tendo, nos cimélios produzidos pelo veneziano Aldo Manuzio (+1515), os seus expoentes mais perfeitos e belos. Humanismo no feminino | À semelhança de Espanha e Itália, também em Portugal a ascensão das mulheres na ‘República das Letras’ se iniciou na segunda metade do século XV, normalmente nos círculos aristocráticos dos principais centros culturais do reino, de que Évora é exemplo.

O crescente número de mulheres letradas na Hispânia ficou a dever-se, quer ao aumento dos vernáculos como línguas literárias, 14


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quer ao advento da imprensa em Segóvia, em 1472. O primeiro aspeto permitiu a disseminação da alfabetização com objetivos não religiosos. O segundo garantiu a multiplicação dos títulos publicados e a rapidez com que circulavam entre os eruditos.

Religião Arcanjo Miguel | Chefe das milícias celestes na eterna luta

do Bem contra o Mal, o arcanjo S. Miguel é uma das figuras mais acarinhadas pela Cristandade, em cuja proteção vinha frequentemente nos campos de batalha. A sua devoção cresceu com Joana d`Arc, dado que esta heroína terá inscrito o nome do arcanjo no seu estandarte, em nome de quem tentou libertar França. O seu culto substituiu os das divindades pagãs como Anúbis e, especialmente, Mercúrio, como divindade guerreira, ou Hermes, como divindade psicopompa (que auxilia o destino das almas no Além). A liturgia católica atribui-lhe três tarefas: pesar as almas para separar os puros dos amaldiçoados e condenados; conduzi-las ao Céu, protegendo-as do demónio; e, por último, guardar as portas do Paraíso. Tal como noutras imagens do arcanjo, apresenta lança (já ausente) para ferir de morte o demónio, enquanto segura a balança com que pesa os pecados e virtudes das almas no dia do Juízo Final.

S. Miguel Arcanjo Século XVI Pedra calcária 71 cm X 29 cm X 21,5 cm Igreja de Santa Maria da Alcáçova Museu Diocesano de Santarém

Dulia | De origem oriental, St. Antão está associado à capaci-

dade de vencer as tentações das forças demoníacas, motivo pelo qual, durante a Idade Média, foi um dos santos mais venerados, já que as doenças do foro psíquico eram associadas a possessões. Deu origem à Ordem dos Antoninos, cujo livro da Regra o segura com uma mão, veste hábito da ordem, e segura o colar de contas. Era também popular como curador, em particular de doenças da pele (fogo de St. Antão) e da peste.

Reforma | A publicação, em 1517, das 95 Teses Contra as Indulgências por Lutero abalou os alicerces dogmáticos do catolicismo.

Por outro lado, a descoberta de novos territórios diversificou o universo religioso, pondo o ocidente cristão em contacto com religiões perfeitamente estruturadas, de base politeísta ou filosófica (hindus, budistas, xintoístas, pagãos, entre outros), seguidas por milhares de crentes e em concorrência com o catolicismo. A resposta do papado romano chegou, pouco depois, no movimento da contrarreforma. O ataque dos novos credos fez relançar a imagética doutrinária da Igreja de Roma. Cenas como a do Calvário, as da vida de Cristo ou da Virgem e, ainda, da simbologia eucarística tornaram-se constantes. Procuraram-se, pelas formas de ver, estratégias renovadas de evangelização, na Europa e no Mundo, em combate às heresias do novo tempo.

Santo Antão Século XVI Pedra calcária policromada 58,4 x 19,5 x 17 cm Museu Municipal de Santarém

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Medos Tão antigo como a Humanidade, o medo do sobrenatural povoava ainda as mentes do homem renascentista, evocando inumeráveis ecos inconscientes de ‘demónios interiores’. A rutura com o passado só muito gradualmente afastou as sombras apocalípticas do imaginário. A mesma geração que ousava sonhar o futuro, numa evidente atitude de rebeldia contra o imobilismo medieval, perpetuou na modernidade alguns preconceitos então consolidados. As cristas dos mares ignotos eram rasgadas, quer pelas embarcações dos marítimos, quer pelas garras de criaturas mitológicas. As orações exorcizavam ainda as ameaças de bruxas e demais agentes do diabo. Relíquias e ex-votos atafulhavam os mesmos porões onde se traziam as especiarias que aprimoravam o palato. Procissões, apelos à misericórdia e conversões coletivas de nativos conviviam com torturas e autos de fé perpetrados contra os hereges. Esta aparente contradição revela a complexidade do espirito de uma época em que coexistem a par, nos mesmos agentes, a moderna vontade de mudança e os vínculos profundos do passado. Ousar e acatar. Linhas paralelas em que se desenvolve um século (XVI) que é necessário saber interpretar no paradoxo.

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Demonologia | A credulidade ‘moderna’ deteta-se na perse-

guição violenta movida na Europa contra as bruxas (mas também contra mágicos, curadores, feiticeiros e bruxos), bem como na grande quantidade de manuais e tratados de demonologia que então se publicaram sobre esta matéria.

O sabbat das feiticeiras Francisco de Goya. 1820-1823 Óleo sobre tela (reprodução) Museo del Prado, Madrid

As bruxas eram criaturas ‘más’, ‘parasitárias’, ‘diabólicas’, ‘criminosas’, propensas ao sexo, que constituíam uma poderosa organização de inimigos da Igreja e do Estado. Os seus malefícios atemorizavam a maior parte da população, desde os mais humildes aos mais poderosos, que as puniram com severa violência, um pouco por toda a Europa, por vezes condenando-as à morte pelo fogo. O número total de julgamentos oficiais de bruxas na Europa que acabaram em execuções foi de cerca de 12 mil. Embora supostas bruxas tenham sido queimadas ou enforcadas num intervalo de quatro séculos — do século XV ao século XVIII —, a maioria foi julgada e morta entre 1550 e 1650, nos cem anos mais histéricos do movimento. Bruxaria | Na sociedade misógina do Antigo Regime a mulher

era vista como um agente privilegiado do Diabo. Entre elas, bruxas e feiticeiras eram o símbolo por excelência da maldade e poder diabólicos. Os seus poderes eram interpretados pelas elites eclesiásticas como resultado da realização de um pacto com o diabo. As reuniões de bruxas (os sabbats) era uma das conspirações malignas cujo objetivo era a destruição dos reinos cristãos através de magia e envenenamento. Na altura surgiram também rumores de conspirações por parte dos muçulmanos e de associações entre judeus e leprosos ou judeus e bruxas. Os judeus que por toda Idade Média tiveram liberdade de religião começaram a ser vistos com desconfiança pela população, com as correspondentes perseguições e julgamentos pela inquisição.

As Quatro Feiticeiras Albercht Dürer. 1497 Gravura a cobre (reprodução)

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Superstição | No dealbar da Idade Moderna tinha-se ainda do mundo uma concepção animada e não legalista, onde a noção de impossibilidade e de acaso estava ausente e o medo dos ‘poderes’ ocultos de alguns influenciava o comportamento de muitos.

Visão mágica que outros pretendiam controlar, alterar, cristianizar. Que se topa na utilização da soteriologia astrolátrica, como forma de descodificação e explicação da realidade, principalmente quando se trata de justificar a desgraça e o insólito. Que se aplicava face à doença e sua cura, ao amor, à amizade, ao ódio, ao negócio, ao destino, à morte.

Estela funerária Século XV Pedra calcária 43,5 34 x 8 cm Freguesia de Areias, Ferreira do Zêzere Museu Municipal de Santarém

Esta soteriologia astrolátrica estava repleta de elementos do sagrado ortodoxo cristão (gestos, palavras, objetos), deixando entender, no quadro da religiosidade popular e pagã, um longo processo de assimilação, transformação e adaptação das doutrinas catequéticas de Trento. Misticismo | O misticismo religioso foi um tema recorrente da

arte renascentista. Num século profundamente dividido entre a ortodoxia doutrinária e a vertigem da inovação científico-cultural, entre o apelo do Espírito e a tentação da Matéria, Bosch retrata, numa alegoria moral, o eterno confronto dialético entre o Bem e o Mal.

Evocando os quatro elementos primordiais (ar, água, terra e fogo) e lançando mão do fantástico e do monstruoso, mas também da fauna exótica dos recém-descobertos continentes, o tríptico mostra três passos da hagiografia de Santo Antão, tentado e seduzido pelo mundo terreno até encontrar o caminho para a salvação através da experiência eremítica.

Tentações de Santo Antão Jheronymus Bosch (Hertogenbosch, 1450/60-1516) c. 1500 Óleo sobre tela (reprodução) Museu Nacional de Arte Antiga

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A composição da pintura ajuda a criar uma atmosfera estranha e luarenta, que sublinha a desolação da paisagem e acentua a inquietante certeza de um domínio generalizado do mal.

Monstruoso | De raízes clássicas, o monstruoso tardo-medieval hiperbolizou a figura do demónio, muito ligado ao medo, aos pecados e à morte, fruto da visão teológica do cristianismo.

A omnipresença do pecado e da punição no quotidiano e nas sensibilidades dos modernos ocidentais tornou familiares as representações extraterrestres, onde os demónios defendem o mundo infernal e reclamam para si os seres criados por Deus, tentando-os ou flagelando-os eternamente.

Gárgula (par) Século XV Pedra calcária 33 x 123 x 70 cm Igreja de Nossa Senhora de Marvila Museu Municipal de Santarém

Para esta popularização do monstruoso muito contribuíram os bestiários medievais, onde a distinção entre animais reais, familiares ou exóticos e as criaturas imaginárias era inexistente. Em consequência, a arte dos escultores, pintores e gravadores quatrocentistas revela uma crescente proliferação (quase obsessão) pelo demoníaco. Uma obsessão que evolui progressivamente para o diabólico, engendrando uma nova geração monstruosa que vai conviver, explicando-a, com a tendência votiva ao arcanjo S. Miguel. Inquisição | Instituída no século XIII, a Inquisição tornou-

-se particularmente persecutória na Época Moderna. Sob o seu escrutínio caíam não apenas as heresias, as apostasias ou a prática de bruxaria, mas também os desvios ao pensamento e à moral dominante, tais como a bigamia ou a sodomia. No contexto da contra-reforma católica, em que passou a denominar-se Santo Ofício, foi particularmente ativa em Espanha, França, Itália e em partes do Sacro Império. Estima-se que cerca de 3.000 inquiridos tenham sucumbido às várias torturas praticadas pelos Inquisidores. Em Portugal, embora inicialmente pedida por D. Manuel I, apenas foi implantada em 1536, no reinado de D. João III, tendo tido a sua primeira sede em Évora. Gradualmente desmembrada ao longo do século XVIII, só em 1821 foi formalmente extinta.

As torturas da inquisição 1807 Xilogravura (reprodução)

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Além-túmulo | Para o homem de Quatrocentos a morte de

um chefe (de uma família, região, ou país) constituía um acontecimento profundamente ameaçador da comunidade, afetando todos os membros que dele dependiam (material e socialmente) para a continuidade no tempo.

Muito mais que honoríficos para os mortos, túmulos e monumentos eram sobretudo referências permanentes para os vivos, sinal visível de uma coesão que se pretendia indestrutível e tão petrificada como o jacente. Na sua linguagem muda, mas eloquente, os túmulos evocam a sacralidade estática e inalterável do poder dos tumulados. Mais do que evocar o passado, incitam pois a uma cadeia ininterrupta que deverá continuar no futuro por tempo indefinido.

Sarcófago Século XV Pedra calcária Mosteiro das Donas de S. Domingos Museu Municipal de Santarém

Cenotáfio de D. Duarte de Meneses (pormenor) Mestre Gil Eanes. C. 1477 Pedra calcária (reprodução) Mosteiro de S. Francisco (Capela das Almas) Museu Municipal de Santarém

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Mitos Embora fosse um dos mais experimentados de toda a Europa, tivesse ao seu alcance técnicas de navegação, embarcações e instrumentos náuticos cada vez mais desenvolvidos e aperfeiçoados, possuísse um conhecimento profundo das rotas, das correntes e dos ventos, o homem do mar português não era imune ao imaginário. Um pouco por todo o lado, em todos os géneros artísticos, o reino do fantástico e do mitológico permaneceu nas consciências dos marítimos. Monstros, híbridos, compósitos, esfinges, hidras, quimeras, dragões, licórnios, grifos, sereias, centauros, tritões, pégasos, fénixes e outros animais estranhos povoavam as alturas e as profundezas, os ares e as águas. Para a sua exorcização muito contribuíram as façanhas dos descobridores e as fantásticas notícias que traziam das suas jornadas. Em contrapartida, os relatos de viajantes, a descoberta de novas regiões e os contactos com o exótico (povos, faunas e floras), renovaram a gramática iconográfica do fabuloso. A realidade superava o sonho.

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Imaginário Fantástico | Em paralelo com os avanços científicos, sem-

pre alicerçados no experimento, a odisseia das descobertas fez sobreviver o imaginário fantástico num Universo mitológico renovado pela literatura renascentista.

Adamastor Júlio Vaz Júnior (1877-1963). 1927 Pedra calcária (reprodução) Miradouro de Santa Catarina. Lisboa

A aventura desses heróis do mar desenvolveu-se através do maior guardião do espaço, inspirado de todos os medos, o Oceano. Por isso surge o Adamastor, síntese de todos os medos do Cabo das Tormentas, eternizado nos Lusíadas. Renascem as sereias povoando o litoral metropolitano, evocadas por Damião de Góis, ou os orientes longínquos de que nos chegam relatos misteriosos. Todos eles corporizavam a angústia que cria a alucinação e nessa medida assumiam-se como o teatro dos espíritos, no seio do qual floresce o mistério e o insólito. Mitologia marítima | Até aos Descobrimentos lusos, o alter orbis era considerado um lugar contranatura. Porque desconhecido (terra incognita), era o habitat das maravilhas (mirabilia) e dos milagres (miraculum) da natureza. Ora, o oceano, imerso na escuridão, prestava-se peculiarmente à efabulação e ao mito.

Monstro marinho Século XVI Pedra calcária 40 x 86 x 34 cm Quinta das Gameiras, Santarém Museu Municipal de Santarém

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As criaturas que povoavam os caminhos oceânicos de Quatrocentos compilam tradições recuperadas da herança clássica e adaptadas à realidade tardo-medieval pelos doutores da igreja. A esta herança a modernidade acrescentará descrições científicas distorcidas e erróneas e relatos puramente imaginários de animais reais (como os cetáceos), dando assim origem a seres cuja monstruosidade era inquestionável e pelos quais se tinha um terror sobrenatural. Porque cada criatura era o seu próprio lugar, o monstro marinho espelhava o próprio mistério do oceano, pois ele era o oceano.


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Fauna | A exuberância da fauna ultramarina que inundou a Europa através da Rota do Cabo e que tanto fascinou as Casas reinantes, não apenas possibilitou o alargamento do conhecimento científico, como abriu caminho ao colecionismo. Foi portanto sem surpresa que a animália exótica cedo foi transporta para as artes, como nos dá conta a célebre xilogravura do alemão Albrecht Dürer, datada de 1515, que retrata o primeiro rinoceronte-indiano chegado a Lisboa.

Da profusão de animais excêntricos, o elefante representou sem dúvida um dos mais admirados. Damião de Góis assegura que D. Manuel I fora o primeiro monarca europeu a adquirir alguns exemplares, com os quais gostava de se exibir nos cortejos da corte, tendo chegado a enviar um deles ao Papa Leão X. Na tumulária o elefante era também sinónimo de realeza e de ligação profissional à Índia. Patronos | S. Vicente tornou-se simultaneamente padroeiro da capital e do desígnio da nação. As andanças marítimas e a eterna companhia dos corvos, a juntar ao antigo milagre da flutuação do corpo depois de lançado às águas, estarão na origem da iconografia nacional, cujo exemplo mais antigo data de 1233.

Suporte zoomórfico Pedro Nunes Tinoco (atrib.). Século XVII Antraconite 84 x 150 x 61 cm Mosteiro da Santíssima Trindade de Santarém (?) Museu Municipal de Santarém

A popularidade e difusão do culto deste diácono aragonês, especialmente entre os marinheiros e os pescadores, explica-se pelo seu nome de baptismo (interpretado como símbolo de vitória) e também pelas trasladações das suas relíquias. Os hagiógrafos facilmente encontraram argumentos para desenvolver o tema de «Vicente, o Invencível». Vencedor da morte, Vicente era também senhor das águas e das jornadas marítimas, reunindo nos seus atributos a vocação de um povo exímio nas coisas do mar e nas viagens. Preste João | Divulgada na Europa desde finais do séc. XI por

viajantes, mercadores, aventureiros, missionários e peregrinos, a lenda do Preste João alimentou o imaginário dos portugueses desde o infante D. Henrique, que se convenceu encontrá-lo na costa atlântica, em África. Figura mítica, misto de autoridade religiosa e política, sacerdote cristão e monarca oriental poderosíssimo, a reinar em lugares incertos, inacessíveis e misteriosos, o Rei dos Reis representava o apoio estratégico ao ocidente que o ajudaria a romper o assédio do Islão. Zan e Preste, era lenda, mito e história eivada de estórias. Fazendo encarnar no Negus o mítico monarca, D. Manuel precedeu a política habilíssima dos monges de Cister, mais tarde aprimorada pelos Jesuítas portugueses, de incarnar a missão messiânica de salvação da cristandade. Em 1540, com a publicação e divulgação, pela Europa, do relato da sua estadia de seis anos, no reino do Preste João, o padre

São Vicente Século XVI Pintura a óleo sobre madeira 88,5 X 47 cm Igreja do Espírito Santo do Malhou Museu Diocesano de Santarém

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Embaixada manuelina ao Negus David Gravura Verdadeira informação das terras do preste João das Índias, de Francisco Álvares, Lisboa, Oficina de Luís Rodrigues, 1540 (frontispício)

Francisco Álvares dava, porém, o golpe de misericórdia naquele que foi criação mítica surgida de um anseio coletivo, no tempo das Cruzadas. Um mito condutor e produtor de alargamento de horizontes, num precisar de conhecimentos geográficos e históricos. Antropofagia | Os contactos europeus, nomeadamente portugueses, com a América desenvolveram-se numa dupla acepção: a do encontro com o Paraíso Terreal e com a bestealidade das práticas antropofágicas. Coexistem a visão eufórica e a disfórica do ameríndio em textos como as cartas de Pero Vaz de Caminha (1500) ou Amerigo Vespucci, ou ainda outras descrições da América como a de Hans Staden (1557).

«Cerimónias com as quais os selvagens matam e comem os seus prisioneiros. VI». Gravura aguarelada em America tertia pars memorabile provinciæ Brasiliæ Historiam contines germanico primum sermone scriptam a Joanne Stadio … (relato da viagem de Hans Staden ao Brasil, 1549-1555, 1ª edição em Malburg, 1557) Teodore de Bry Frankfurt, 1592 Fotografia do Service Historique de la Marine, Vincennes

O Homem selvagem Século XV Pedra calcária 81 x 71 x 56 cm Proveniência desconhecida Museu Municipal de Santarém

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Este Outro, ainda puro e inocente como Adão, materializa, eleva e supera, nos ensaios de Montaigne, a utópica poetização da Idade de Ouro dos antigos Platão e Licurgo, a Utopia (1518) que Thomas More consagra neste atlântico espaço de encontro com um Mundo Novo.

Multiculturalidade O outro | A presença portuguesa nos espaços extraeuropeus, seja nas costas africanas, asiáticas ou americanas, consolidou-se a partir do séc. XVI, tendo levado, desde os primeiros contactos, à descrição de outras realidades físicas e humanas. A representação do “mundo do Outro” foi construída a partir do ponto de vista do europeu, que agora tinha acesso a outros espaços. Os artefactos que chegaram até nós, como as gravuras, esculturas, pinturas ou objectos do quotidiano, participam da reconstrução do momento do encontro e permitem-nos compreender o modo como se foi incorporando a diferença cultural num mundo que se ia intuindo à escala global.


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Extraeuropeismo | A pintura portuguesa incorporou rapidamente o universo extraeuropeu nos seus temas religiosos. A perspetiva variou porém entre a sedução e a desconfiança, entre o fascínio e o medo.

O Inferno c. 1510-1520 Óleo sobre madeira de carvalho (reprodução) Museu Nacional de Arte Antiga

Nesta peculiar imagem do Inferno, o ‘outro’ é utilizado para simbolizar os anjos do mal: Lúcifer veste-se com um toucado de penas ameríndias, senta-se numa cadeira africana e segura uma trompa de marfim de aparência africana; outro demónio veste-se também com plumagem. A pintura invoca o tema dos suplícios eternos relacionados com os pecados capitais: a Vaidade aparece figurada através de três mulheres nuas; a Luxúria surge simbolizada pelos amantes unidos por um laço. Na obra são notórias as influências de fontes clássicas (Apolo) e modernas (Dante), comprovando a variedade iconográfica dos artistas modernos.

Diáspora África | A chegada dos europeus à região subsaariana, a partir de meados do século XV, potenciou ambiguidades na relação dos povos ocidentais com os africanos negros. A bula papal concedida a Afonso V, em 1450, acabou por legitimar o monopólio real da escravatura, a pretexto do financiamento das cruzadas e da evangelização dos próprios escravos.

Embora sendo, desde a Idade Média, uma instituição civil assumida na Ibéria e em todo o mediterrâneo, permitida como parte de uma ordem social universal, santificada pela Bíblia e pela lei canónica e romana, a verdade é que a escravatura se torna, na europa renascentista, uma realidade explorada do ponto de vista económico.

Chafariz d’el-rei em Alfama c. 1570-80 (?) Óleo sobre madeira (reprodução) Coleção Berardo, Lisboa

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Os negros vendidos em Portugal e na Espanha eram principalmente adquiridos através do comércio pacífico com os próprios Africanos. Raros europeus punham em causa a legitimidade deste tráfico, questionando a justiça das guerras africanas que produziam os cativos. O aumento do número de escravos negros foi particularmente notado em Portugal. No século XVI chegaram a representar 10% da população de Lisboa, aparecendo representados em quase todas as categorias sociais e económicas e coexistindo no quotidiano citadino. Adoração dos Magos Vasco Fernandes e Francisco Henriques Século XVI [1501-06] Pintura óleo sobre madeira (reprodução) 130,2 x 79 cm Retábulo da Sé de Viseu Museu Grão Vasco (Viseu)

Biombos Namban 1º par: selo de Kano Naizen (15701616), c. 1606 2º par: Kano Domi (atrib.) Japão, períodos Momoyama (15681603)/Edo (1603-1868) Engradado de madeira revestido de papel, folha de ouro, pintura policroma a têmpera, seda, laca, cobre dourado 178 x 366,4 x 2 cm (1º par); 172,8 x 380,8 x 2 cm (2º par) Proveniência: Compra (mercado de arte, Paris), 1954/1953; (mercado de arte, Japão), 1952 MNAA, inv. 1640-1641 Mov; 16381639 Mov

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América | O relato de Pero Vaz de Caminha disseminou-se por

várias formas no Portugal de Quinhentos, alimentando a imaginação de ‘paraísos terrestres’ ou de ‘cristãos perdidos’. Na sua oficina em Viseu, Vasco Fernandes (Grão Vasco) teve notícia do achamento das terras da Índia e de novas gentes ‘inocentes e simples’ um ou dois anos depois da viagem de Cabral. Na sua pintura A Adoração dos Magos, retrata o ameríndio (neste caso o índio brasileiro tupinambá) representando-o, numa perspetiva positiva e tolerante, como rei mago. O vestuário do indígena mistura referências europeias e exóticas, tipificando a visão europeia do outro que se pretendia cristianizar.

Oriente | A chegada dos portugueses ao Japão, em 1543, ori-

ginou um intercâmbio comercial e cultural com reflexos importantes na história luso-nipónica. Para além de estabelecerem relações comerciais entre os dois países e de levarem o Cristianismo ao Japão, os Portugueses proporcionaram o primeiro contacto com uma cultura diferente e com o Outro, contra o qual a identidade japonesa começou a ganhar forma.


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A arte nipónica fez eco deste encontro de culturas, retratando a curiosidade e o ambiente festivo pela chegada do barco negro dos namban jin (os ‘bárbaros do sul’, como eram designados os portugueses) ao porto de Nagasáqui. A minúcia com que são representados os vários intervenientes, a descrição da nau e da sua valiosa carga e a presença dos missionários jesuítas, determinante neste contexto, tornam estas peças uma importante fonte iconogáfica.

São Francisco Xavier pregando na corte japonesa do Príncipe Yamaguchi André Reinoso. 1ª metade do século XVII Pintura a óleo sobre tela 140 x 58 cm Igreja de São Roque (Lisboa)

Jesuitas | Criada no contexto da contrarreforma, a Companhia de Jesus esteve intrinsecamente ligada ao proselitismo e ao ensino doutrinário ultramarino. Em menos de um século encontramo-la no Brasil, na China, na Índia, no Tibete, em Angola, no Congo, na costa Oriental de África ou no Japão, quase sempre associada à exploração do interior.

São Francisco Xavier foi pioneiro no contexto da missionação jesuítica do Japão, país onde a Companhia chegou precocemente e onde liderou a estratégia imperial de aquém e além-mar. Como emissário do Vice-rei da India contactou o senhor feudal Oouchi Yashita, levando-lhe presentes de Portugal (relógios, instrumentos musicais, vinho, entre outras coisas) e um pedido para pregar a doutrina cristã. Apesar da oposição dos monges budistas, foi-lhe concedida a permissão e o próprio senhor feudal se converteu ao Cristianismo. Este esforço de divulgação universal da verdadeira fé também chegou à arte. Simbolicamente, no teto da Igreja do antigo Colégio Jesuíta de Santarém (atual Sé Diocesana), foram representados os quatro continentes, onde os padres da companhia tiveram missões. 27


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Iconologia Manuelino | Os pressupostos ideológicos de D. Manuel tiveram na arquitetura um dos seus máximos expoentes. Mais do que um estilo artístico de feição nacionalista e marítima, como certos estudiosos pretenderam apresentá-lo, o manuelino afirmou-se como ‘estética propagandística régia’. Uma estética que floresceu no clímax do projeto imperial lusitano, paradigma da esperança e da universalidade, de que a esfera armilar se tornou ícone. Bandeira Inícios do século XVI Pedra calcária 72 x90 x 24 cm Mosteiro de S. Domingos dos Frades Museu Municipal de Santarém

A gramática feérica que caracteriza a decoração arquitetónica manuelina portuguesa tem paralelos evidentes nas restantes nações europeias. Cá como lá, as tendências ornamentais do gótico final passaram a capitalizar para a arquitetura as temáticas naturalistas, mediante a multiplicação (e, por vezes, desenvolvimento exuberante) dos motivos vegetalistas. Sacralidade dinástica | A arte quinhentista, em particular a pintura, tende a concretizar plasticamente, numa operação clara de autorreconhecimento do poder, a institucionalização de uma tradição de sacralização da função régia e dos fins últimos

Fons Vitae ao eixo Coljin de Coter. 1515-1517 Pintura a óleo sobre madeira de carvalho (reprodução) 267 x 210 cm Santa Casa da Misericórdia do Porto

Calvário Século XVI Pedra calcária 85 x 62 x 23 cm Proveniência desconhecida Museu Municipal de Santarém

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que se atribuía a Nação Portuguesa, ou a classe dirigente em seu nome. Esta sacralização estava presente na ‘missão de Deus’ que o próprio poder real e a legitimidade dinástica assumiam. Mesmo o nome do monarca (Manuel ou o Emanuel, que quer dizer “Deus em mim”), imitava Cristo, anunciando uma nova redenção à cristandade em crise, o surgimento de uma brilhante idade do ouro: o Império do Espírito Santo. Por isso, a representação física do rei torna-se obsessivamente frequente, mesmo em cenas de inspiração bíblica, como a do Calvário.

Sonho de Constantino Ambrósio Dias (Mestre da Romeira) Século XVI Óleo sobre madeira 114,5 x 98 cm Igreja de Santa Iria da Ribeira Museu Diocesano de Santarém

Devoção e Império | D. Manuel I encarnou conscientemente um projeto político imperial equiparado ao dos Césares, materializado na expansão do território e da fé verdadeira. Na festiva embaixada que enviou ao papa Leão X, em 1514, o Venturoso assume-se como o braço ativo e visível da expansão da Roma cristã. Um desígnio de cariz profético e messiânico e repetido, de forma quase obsessiva, quer nas páginas dos seus panegiristas, quer nos títulos com que se adornou.

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O ressurgimento na arte, em Quinhentos, do tema da vitória de Constantino sobre Maxêncio na batalha na Ponte Mílvia, em 23 de Outubro de 312, após um sonho premonitório com o deus dos cristãos, deve pois ser entendido na lógica da estratégia propagandística da casa real portuguesa. Uma estratégia conscientemente pensada, sobretudo desde que a tomada de Constantinopla pelos turcos, em 1453, fez ressurgir a necessidade de defesa armada da respublica christiana. Descobrimentos | A epopeia dos Descobrimentos foi verdadeiramente um desígnio nacional que arrancou Portugal da medievalidade e o fez entrar, em definitivo, na época moderna, antecipando em meio milénio a era da globalização.

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Nuno Gonçalves, pintor régio de D. Afonso V, parece evocar esse desígnio nos Painéis de S. Vicente. Eles retratam uma solene e monumental assembleia de 58 figuras da Corte e dos vários estratos da sociedade portuguesa da época, em ato de veneração ao patrono e inspirador da expansão militar quatrocentista no Magrebe. Neles se representam o milhão de autóctones que permitiram conhecer a real dimensão da Terra; a diversidade dos seus habitantes, plantas e animais, desfazer mitos e criar sonhos.

Painéis de São Vicente Nuno Gonçalves. C. 1470 Pintura a óleo (?) e têmpera sobre madeira de carvalho (reprodução) 207,2 x 64,2 cm; 207 x 60 cm; 206,4 x 128cm; 206,6 x 60,4cm; 206,5 x 63,1 cm Mosteiro de S. Vicente de Fora Museu Nacional de Arte Antiga

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M O D O S , M E D O S E M I T O S N O T E M P O D E C A B R A L

Atividades complementares 2015 “Conversas no Brasil” Ciclo de palestras 21.07 – 21h00 José Manuel Garcia (historiador) “De Ceuta ao Brasil: a propósito de dois homens sepultados na Igreja da Graça” 26.09 – 16h00 Pedro Nunes (sociólogo, produtor cultural) “Bossa Nova e a Transformação da Música Brasileira” 24.10 – 16h00 Jorge Custódio (historiador) “A ferraria da Foz do Alge (fins do século XVII-1834) e a fundição de ferro nos primeiros altos-fornos do Brasil” 21.11 – 16h00 Teresa Cláudia Tavares (professora de literatura) “Os almanaques luso-brasileiros no século XIX” 12.12 – 16h00 José Miguel Noras (economista e historiador) “Cidades com o nome Santarém na Europa e na América”

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Design e paginação Carlos Amado Coordenação de Edição: Carlos Amado, Luís Mata Coordenação de textos Luís Mata Revisão José Raimundo Noras, Luís Mata Impressão gráfica A Persistente – Artes Gráficas



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