CAMP: NOTAS SOBRE NOSSO TEMPO

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CAMP: NOTAS SOBRE NOSSO TEMPO Camila Marchetti EBAC 2019


O baile de gala e o frisson da vez

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ao mesmo tempo também não poderia ser mais apropriado à estética dos tempos atuais. Ao ler o texto que inspirou o tema do Met Gala deste ano, escrito em 1964 pela escritora americana e ativista pelos direitos humanos Susan Sontag, “Notes on Camp”, é possível concordar que o camp, em última instância é uma estética, mas que defini-la simplesmente restringe suas possibilidades. Porém, uma vez que a própria Sontag já “traiu” o Camp ao falar sobre ele (mas, ao fazê-lo, trouxe ao tema um selo de dignidade intelectual) e que agora, em 2019, o Metropolitan Museum reafirma sua importância ao menos no mundo da moda, é possível então discorrer livremente sobre o assunto tanto quanto a liberdade intrínseca ao próprio Camp. Sendo assim, tudo torna-se possível. É possível encarar o Camp, por exemplo, como uma porta para outros mundos, realidades paralelas. É a possibilidade de um mundo onde não só a noiva é a personagem principal do casório, mas o noivo também por acaso pode passar meses a pensar qual seu traje especial, diferente de todos os outros da festa, e como será sua entrada triunfal para a cerimônia. Isso porque o Camp não é uma estética “fashion”, é a atitude de assumir o teatro da própria vida. É ter coragem de destaque, não se acanhar em discrição pública, não passar batida na festinha. Pode ter até a ver com a insistência narcísica do capitalismo avançado dos dias de hoje, onde o sujeito individual e ensimesmado é encorajado, a autenticidade do

oda primeira semana do mês de maio, desde 1948, um evento de moda - superexclusivo e organizado pela revista Vogue - acontece no Metropolitan Museum of Arts de Nova York, o Met Gala. A finalidade deste baile de gala é angariar fundos para o departamento de moda do museu. Contudo, para além de tal objetivo, desde que assumida a revista por Anna Wintour, o Met Gala recebe uma curadoria tanto pautada pelo tema do evento que se reflete depois em exposição no museu, quanto de quem serão os convidados para a festa e qual será o vestuário de cada um, já que os corpos das celebridades presentes no evento se tornaram importantes outdoors para a divulgação de peças das grandes marcas da alta-costura. As escolhas polêmicas da temática do Met Gala e da exposição, vêm causando nos últimos anos certo frisson nas redes sociais e veículos de comunicação. Em 2018, por exemplo, o tema foi “Corpos celestes: moda e a imaginação católica”, que rendeu um tapete vermelho onde a cantora Rihanna, celebridade escolhida como anfitriã desta edição do evento, usou literalmente uma mitra emprestada pelo cardeal Timothy Dulan, diretor da diocese católica de Nova York. Em 2019, a tradição se repete e a audácia faz questão de não faltar ao baile: o tema performado pelo evento e seus convidados foi o famigerado estilo “camp”, que não poderia ser mais deslocado do que se espera de um evento de luxo e

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Rihana papisa no Met Gala 2018.


Greta Garbo. Nesse caso, o gosto Camp inspira-se numa autenticidade do gosto em grande parte não reconhecida: a forma mais refinada de atração sexual (assim como a forma mais refinada de prazer sexual) consiste em ir contra a corrente do próprio sexo. O que há de mais belo nos homens viris é algo feminino; o que há de mais belo nas mulheres femininas é algo masculino... Aliado ao gosto Camp pelo andrógino existe algo que parece bastante diferente mas não é: uma tendência ao exagero das características sexuais e aos maneirismos da personalidade.[...] “ Sontag, Susan . Notes on “Camp”, 1964

“seja você mesmo”, do autoconhecimento, do mundo das redes sociais e atitudes de branding que parecem abraçar as diferenças mas que em última instância são marcas que vendem produtos e querem dinheiro através do afeto de marketing, mas o fato é que o Camp vive se alimenta disso. Ele vive para os freaks, se alimenta da sujeira do pop e enaltece com sensibilidade e elegância a estranheza que é de fato a realidade do mundo. O Camp é encantador e terrível. É cafona, é inutilizável, incompreensível e extremamente fora do padrão, briga com os costumes, chama atenção demais, é quase ofensivo por ser inadequado. Mas, se é o ápice do inadequado, quando se torna tema, perde sua essência?

“ [...] 9. Como gosto pessoal, o Camp responde em particular ao marcadamente atenuado e ao fortemente exagerado. O andrógino é seguramente uma das grandes imagens da sensibilidade Camp. Exemplos: as figuras lânguidas, esguias, sinuosas da pintura e da poesia pré-rafaelita; os corpos delgados, fluidos, assexuados das estampas e dos cartazes Art Nouveau, apresentados em relevo em lâmpadas e cinzeiros; o vazio andrógino que paira na beleza perfeita de

É possível julgar que, ao escolher como tema de um evento o Camp, essa escolha estaria fadada a anulálo, pois parece que o Camp só se vale quando atua como contraposição à tendência básica e pasteurizadora da vida. Porém, se ele mesmo é a regra hegemônica da noite, quem pode superá-lo? Quem consegue ser camp num reduto camp? É aí que entra a atitude dos grandes ícones historicamente camp no Met Gala 2019: Cher e RuPaul. Ela,

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Ezra Miller vestindo um tuxedo-dress de Thom Browne, alta costura primavera/verão 2018.


“ [...] 10. O Camp vê tudo entre aspas. Não é uma lâmpada, mas uma “lâmpada”, não uma mulher, mas uma “mulher”. Perceber o Camp em objetos e pessoas é entender que Ser é Representar um papel. É a maior extensão, em termos de sensibilidade, da metáfora da vida como teatro. [...] “ Sontag, Susan . Notes on “Camp”, 1964

deusa definitiva do pop, mulher-ícone para as drag queens, vestiu calça jeans no evento de alta-costura da Vogue, sendo assim camp por não sê-lo. E ele, a mãe das drags, apareceu sem sua montação e peruca, mas claro, com cores e brilhos, sendo Camp por nascer assim, simplesmente. Lady Gaga também entendeu o que fazer. A ‘mãe-monstro’ do pop fez uma longa performance e foi sua atitude que se tornou o grande camp dentre os wanna-be-camp e não necessariamente sua roupa que traduziu o camp sozinha tanto que ela terminou só de lingerie, sem roupa num evento em que todos apostam justamente na roupa. Contudo, todo tapete vermelho é um pouco ou muito campy. Todos esses evento midiáticos em que as pessoas exageram propositalmente em suas produções, têm alma camp. Como Sontag definiu, o camp é se levar a sério entre aspas e não tem nada mais asqueroso e ao mesmo tempo adequado do que usar aspas em certos momentos.

O mundo hoje está muito Camp. A moda está muito Camp. Quase qualquer desfile de alta costura dos últimos anos apresenta peças facilmente adequadas para o tapete do Met Gala 2019. Parece que esse mundo em que tudo é camp e portanto quase nada é, já é real.

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Viktor & Rolf alta-costura primavera/verão 2019.


‘Campish undertakings’

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Fanny Park foi Frederick Park, crossdresser vitoriano do século 19, que se correspondia e relacionava com Stella, Thomas Boulton, também crossdresser. Por suas escolhas de vestimenta e pela suspeita de que praticavam sexo anal, ato considerado crime na época, foram presos e tiveram os bens femininos confiscados em 1870. É na correspondência de Fanny um dos primeiros registros do uso do termo campy, historicamente associado à cultura queer. O Camp é a estética logo reconhecida das drag queens e de personalidades andrógenas. Ele se sente à vontade nos palcos de boate, em concursos de drag e nos filmes de John Waters. É o glamour e irreverência de uma sensibilidade estética que enaltece figuras marginalizadas por sua orientação sexual ou identidade e expressão de gênero.

magine o Rei Sol e sua corte desempenhando a promenade nos jardins de Versailles, performando o que é ser a nobreza francesa no século XVII em um logradouro projetado exatamente para tal finalidade. Esta é talvez a cena Gênesis do Camp. O Camp tem a ver com assumir o teatro da vida. Entender que se quer assumir a performance de viver quem você é ou realizar quem gostaria de ser. O teatro acontece todos os dias e se vestir para o mundo é escolher o figurino da vez. Se não for assim, a vida parece não ter muita graça e perde a razão de ser real. Porque existimos, se não for para existir de verdade, sem se levar tão à sério?

“My ‘campish undertakings’ are not at the present meeting with the success that they deserve; whatever I do seems to get me into hot water somewhere but, n’importe, what’s the odds so long as you’re rappy?” Fanny Park, em 1868.

“O camp, nas suas origens, não pode ser chamado de fundamentalmente gay, mas especialmente neste século tornou-se um elemento definidor, sem ser totalizador, da identidade homossexual.” Lopes, Denilson. Terceiro manifesto camp.

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Fanny&Stella


daquelas figuras que ao posar para eles são resumidas à suas imagens e que para estarem ali pagaram ao menos 30.000 dólares para o Metropolitan Museum, sem adicionar o custo de seus looks. A mesma reunião de marcas e celebridades que fazem este investimento para uma só noite, não age nas mesmas proporções financeiras em relação à população trans ou gay ou soropositiva que está sendo marginalizada, violentada e morta pelo mundo afora. Contudo, nesta edição Camp do Met Gala, Anna Wintour meticulosamente vetou a presença do presidente Donald Trump, personalidade habituè da festa, que na edição de 2004 pediu a primeira-dama Melania Trump em casamento durante o jantar no Metropolitan - uma atitude certamente campy. Por mais que Trump seja a própria imagem do camp - com seu topete (ou peruca) loiro à cajú, sua gravata vermelha imensa com altura totalmente inadequada e que se senta de maneira péssima, porém icônica da imagem de si próprio - ele é uma das figuras representativas do crescimento da extrema direita no mundo hoje em dia. Sabe-se que Wintour apoiou e financiou as campanhas de Barack Obama e Hillary Clinton nas eleições estadunidenses. Isto posto e observando a ausência da família Trump no Met Gala dos últimos anos, conclui-se que a editora chefe da Vogue e dona do evento prioriza por vezes sua postura política.

“Thanks to Sontag, camp came to symbolize the new, liberal attitude toward sexuality, politics, and society that we associate with the 1960s. Today, when we read “Notes on ‘Camp,’” it seems fun, funny—and not a little dated. But when it was published, many people responded with outrage. As the birth-control pill threatened male supremacy and the black civil rights movement threatened white supremacy, “Notes on ‘Camp’” was a threat to heterosexual supremacy. “Notes on ‘Camp’” was part of a broader movement to overthrow established hierarchies. Camp was resistance.” Moser, Benjamin. Para Town&Country, 2019.

Sendo assim, é importante ressaltar que a escolha de um tema como o Camp para um evento como o Met Gala é paradoxal. Exaltar a cultura queer em um evento tão visível, divulgado e consagrado numa sociedade transfóbica é muito valioso. Contudo, a bajulação das celebridades durante o Met Gala é notória, pois este é um dos tapetes em que mais os paparazzi trabalham, ávidos para divulgar as fotografias

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Divine competindo pelo título de ‘Pessoa mais repugnante do mundo’ no filme Pink Flamingos, de John Waters, 1972.


Trump, que se senta sem desabotoar o paletó.


A crise também é estética

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Em um ensaio para o Suplemento Pernambuco, Thiago Soares defende que a política da extrema direita é justamente a que trata a estética camp no contemporâneo. Contudo, antes dos ‘bolsominions’ fagocitarem a lógica do camp da cultura pop, já tínhamos no Brasil nossos bons ícones campy, como Carmen Miranda, Elke Maravilha, Ney Matogrosso ou Falcão, o cantor de brega - uma espécie de primo torto do camp. Assim como o brega, o camp do século XX é geralmente associado a um universo de cultura popular, com produções muitas vezes de baixa qualidade e exageros dramáticos. Basicamente tudo aquilo que traga um sentimento de que “é tão ruim, que é bom”. Essa descrição pode nos lembrar de muita coisa, desde o cafona e maravilhoso girassol gigante na lapela do cantor Falcão até os tantos e tantos memes que já passaram pelas timelines de todas as redes sociais possíveis. A cultura digital atual nos bombardeia de informação. Dentre elas, existem notícias relevantes, alarmantes, inúteis, foto da sua tia distante na última viagem para a Bahia, memes irônicos sobre qualquer assunto, memes engraçados sobre qualquer coisa, propagandas, selfie da sua colega de infância que você nem lembrava o nome e outra de um bebê que acabou de nascer e você ainda nem entendeu quem foi que postou essa foto. As redes são um verdadeiro espetáculo hipnotizante, onde as informações parecem estar facilmente alcançáveis. Porém, esta é uma lógica é traiçoeira, já que à

oje também temos nossa própria versão made in Brazil de um presidente campy. Bolsonaro em si, o pão sem prato que ele come no café-da-manhã com café passado sem filtro, a camiseta do Palmeiras por baixo do terno...toda sua estética é impensável para um presidente do Brasil. A própria rede de lojas de departamento Havan - do empresário Luciano Hang, um dos grandes apoiadores do governo bolsonarista, que enfeita seus estabelecimentos na beira de estradas Brasil afora com uma réplica diminuída da estátua da liberdade de Nova York é mais um exemplo de como a estética camp pode ser hoje também relacionada às figuras da atual extrema direita.

“ O argumento central de Mauriès é que o camp seria calcado numa sensibilidade profundamente ambígua que parece tratar de neblinas estéticas em tempos de dureza e divisão. “ Soares, Thiago. Sobre o ‘Segundo manifesto camp’, de Patrick Mauriès.

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Unidade da loja Havan realizando o sonho americano em Itajaí - SC.


da elaboração lógica. A gente não pode assumir que foi uma coisa amadora – aquilo é extremamente profissional, feito a partir de pesquisa qualitativa”, argumenta.” Cavalcanti, Amanda. Vice Brasil, em 9 de novembro de 2018.

medida em que as informações são sintetizadas em posts e depois em memes, o embasamento para se argumentar assuntos complexos é encurtado ou simplesmente negligenciado, e um bom meme, um meme que seja “lacrador”, parece já resolver respostas e provar verdades para aquela sua tia distante que tirou as fotos na Bahia e postou no facebook no começo deste parágrafo.

Na contramão, este excesso de informação também pode ser associado diretamente, por exemplo, com o programa RuPaul’s Drag Race, um concurso de drag queens televisionado vencedor de 9 Emmy Awards. O camp do exagero, humor, a ironia, a paródia, a extravagância, o fantástico e a performance que aparecem em vídeos, memes e posts nas redes sociais, vêm no programa da RuPaul demonstrar a cultura drag de modo digno, valorizado profissionalmente, diferente do camp associado às táticas políticas declaradamente homofóbicas e misóginas de Bolsonaro ou governos similares. Pincelando um pouco superficialmente a conjuntura histórica em que nos encontramos nos dias atuais no Brasil, é possível analisar que - além de bi-polarizado o debate político de modo geral - geralmente, as organizações políticas mais à esquerda não estão desempenhando tão efetivamente um diálogo horizontal com as camadas

“Para o semioticista e professor da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP) Vinicius Romanini, a tática da direita brasileira é um pouco mais complexa do que apenas a combinação de diferentes fontes e cores patriotistas. O pesquisador acredita que dispensar o design gráfico disseminado por essa ala política como simplesmente “feio” ou “mal-feito” pode ser perigoso. “Essa estética, simples, sentimentalista e que usa ícones do repertório de classes que eles querem atingir – evangélicos, pessoas de classe média – compõe uma mensagem que, embora pareça tosca, é muito sofisticada do ponto de vista

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Propaganda política travestida de meme.


ápice do mundo ocidental comprobatório da futilidade e superficialidade dos interesses midiáticos dos dias de hoje, mas é fato que as pessoas são sedentas por suas fotografias. O ser humano parece realmente ter uma sede por imagens, querer rolar o feed por mais e mais alimento imagético e um evento como esse entrega quase que a melhor sobremesa do mundo. O tema Camp talvez diga absolutamente sobre o próprio evento, sobre o estilo de vida que essas celebridades vivem e o “conteúdo” midiático que elas geram. No tapete do Met Gala, cada qual expressou seu “camp interior”, sua leitura do tema, que pareceu ser passível de aceitar qualquer leitura. O Camp é tudo o que as pessoas querem ver nos feeds da era da pós-verdade, quando cada um tem sua marca de expressão garantida e imaculada por si mesmo. Nada mais choca. Trump presidente não choca mais, Bolsonaro presidente é o meme que virou realidade. A vida surrealista é a vida real. A miséria não choca. O Camp pelo menos ainda tenta chocar, então em certa medida ele funciona, conversa com o mundo e atualiza o feed.

populares da sociedade. Em contrapartida, a direita atual se adequou com sucesso à linguagens mais abrangentes e obteve respostas positivas na maior parte da população. Nesse sentido, a escolha do Camp como tema do Met Gala e os 9 Emmys de Rupaul tem sua relevância política à medida em que estas entidades trazem de fato uma estética marginalizada para holofotes, de modo tanto popularizado - quando se está na televisão ou em todas as mídias; quanto embasado culturalmente - na medida em que se ganha prêmios e nomeações e em que se está dentro de um dos museus mais importantes do mundo ocidental contemporâneo. Elevar a cultura Drag é, por exemplo, uma boa atitude a se copiar dos Estados Unidos da América, e não sua estátua ou seu presidente… Uma vez que a ambiguidade é intrínseca ao camp, fica realmente difícil distinguir se hoje ele se contrapõe à onda da extrema direita ou se é fagocitado por ela, tornando-a atraente. Neste sentido, pode ser até possível questionar se é realmente válida essa análise do Camp por seu aspecto político contemporâneo. No entanto, se há indícios de que esta pode ser a estética que mais parece traduzir a mídia hoje e se a mídia é tão presente em nossas vidas funde-se com o cotidiano palpável, talvez sim, seja válido o julgamento político do assunto. As redes sociais se alimentam de todas as pautas, incluindo o registro do Met Gala - que pode até ser o evento-

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Janele Monae de Christian Siriano no tapete millenial pink do Met Gala 2019.


Drag queen não é bagunça

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“ 41. A questão fundamental do Camp é destronar o sério. O Camp é jocoso, antisério. Mais precisamente, o Camp envolve uma nova e mais complexa relação com o “sério”. Pode-se ser sério a respeito do frívolo, e frívolo a respeito do sério.

exposição do Metropolitan Museum passa por uma linha do tempo de vestuários e acessórios Camp, acabando com um vestido tubinho curto de paetês pretos com a um ponto de interrogação estampado em paetês brancos, como quem diz “mas afinal, o que é Camp?” e deixa a livre interpretação do público que sai ao mundo com a pergunta. Será então que o Camp hoje é tudo ao mesmo tempo, fagocitando todos os bizarros do mundo? Se o Camp é passível de interpretações personalizadas num mundo narcísico e individualizado, será que ele não acaba se tornando uma boa base estética? O camp diverte, distrai ou enaltece, mas se ele cumprir positivamente a pergunta acima, deixa de ser divertido. O camp posto assim em seu sentido mais frívolo parece ter o poder memético de resolver problemas complexos com soluções simples, o perigoso mecanismo da pós verdade, que nega a intelectualidade. No entanto, o camp parece, mas não é bagunça, Olavo de Carvalho que é bagunça. O Camp que realmente importa é menos sobre líderes políticos bizarros populistas e de extrema-direita e mais sobre endossar ilusão com ironia. Drag, por exemplo, é performar uma ilusão com graça e sátira. A pós verdade direitista é acreditar em ilusões, é não encarar a realidade dos fatos científicos ou jornalísticos e viver em conspiração, é ficar bêbado de rede social e viciado em memes.

42. Sentimo-nos atraídos pelo Camp quando percebemos que a “sinceridade” não é suficiente. A sinceridade pode ser simples vulgaridade, estreiteza intelectual. 43. Os recursos tradicionais que permitem ultrapassar a seriedade convencional — ironia, sátira — parecem fracos hoje, inadequados ao veículo culturalmente supersaturado no qual a sensibilidade contemporânea é educada. O Camp introduz um novo modelo: o artifício como ideal, a teatralidade. 44. O Camp propõe uma visão cômica do mundo. Mas não uma comédia amarga ou polêmica. Se a tragédia é uma experiência de hiperenvolvimento, a comédia é uma experiência de subenvolvimento, de distanciamento.

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Sasha Velour, vencedora da nona temporada de RuPaul’s Drag Race.


“Eu adoro os prazeres simples, são o último refúgio do complexo.” Woman of No Importance 45. O distanciamento é a prerrogativa de uma elite; e como o dândi é o substituto do aristocrata em questões culturais, no século XIX, o Camp é o moderno dandismo. Camp é a resposta ao problema de como ser um dândi na era da cultura de massa. “ Sontag, Susan. Notes on Camp. Inverter significados se utilizando de aspectos considerados feios, estranhos e de mal-gosto para o senso comum, assumindo-os como um fenômeno edificante e ainda por cima prazeroso na medida em que é irônico com o convencional, só pode significar inteligência atrela à sensibilidade. O Camp apresentado como blockbuster pode ter a força de conversar com as massas e apresentar uma alternativa atraente ao conservadorismo sexista.

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Victor&Rolf.


Bibliografia Sontag, Susan . Notes on “Camp”, 1964. Campos, Denilson. O terceiro manifesto Camp. 2002. Moser, Benjamin. Why Susan Sontag Would Have Hated a Camp-Themed Met Gala. Town&Contry, 2019. Soares, Thiago. A estética do Camp e aspectos da extrema direita. Suplemento Pernambuco, 2019. Friedman, Vanessa. Met Costume Institute Embraces ‘Camp’ for 2019 Blockbuster Show. New York Times, 2018. Podcast Não Pode Tocar. Crise Estética na crise política. S02E02. Cavalcante, Amanda. No governo da nova direita, a crise também é estética. Vice Brasil, 2018.

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