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Quando a iniciativa privada assume o papel de agente social e cultural
A ideia de uma empresa assumir sua Responsabilidade Social não é algo novo. Desde os anos 90 do século passado, esse conceito povoa as mentes e corações de empresários bem sucedidos. Implantar um projeto dessa natureza de maneira gradativa e perene, como é o caso do Centro Cultural Special Dog, no entanto, é um feito ainda raro no mundo das corporações.
Veja na conversa que mantivemos com Priscila Pegorer Manfrim, diretora administrativa da Special Dog, como a empresa conseguiu traduzir sua maneira de ver o mundo em um projeto que não é apenas bem sucedido, mas está consolidado e, por essa razão, se tornou uma atividade que se perpetuará na trajetória de sucesso da marca.
360: Como se chega a essa ação de criar uma estrutura independente para atividades comunitárias?
Priscila Manfrim: Desta fundação, a empresa teve esse olhar muito genuíno para pessoas, pro ser humano. A princípio, há 22 anos, o foco era no colaborador, nas pessoas que faziam parte do negócio e como essas pessoas precisavam também prosperar, junto com a empresa. Com o desenvolvimento da empresa e também através de muito aprendizado, de literatura e do interesse dos fundadores em aprender, em evoluir, conseguimos expandir o nosso olhar também para a comunidade de Santa Cruz, que é a casa da empresa e a cidade de origem da família. Foi mais ou menos assim que surgiu a iniciativa.
360: Você falou em prosperidade dos funcionários. Quer dizer que vocês acreditam que cultura é um item importante para alguém prosperar?
Priscila: Sem dúvida. A cultura é uma ferramenta transformadora. Eu enxergo a cultura como uma ferramenta de educação que transforma vidas. Crianças e jovens em situações de vulnerabilidade, por exemplo, têm a oportunidade de descobrir um talento que não seria descoberto se não não fosse por uma instituição, uma organização, e esse talento pode se transformar em uma profissão. Então que está muito relacionado à prosperidade. E mesmo que isso não aconteça, o desenvolvimento cultural sempre agrega benefícios em todos os campos, inclusive no âmbito profissional, ampliando o olhar para sociedade, a visão de mundo, e isso contribui muito no ambiente de trabalho.
360: Nesses 10 anos, quanto o Centro Cultural ocupa a estrutura de recursos humanos e financeira da empresa?
Priscila: A gente enxerga ao Centro Cultural como parte da estratégia de negócio da empresa. Ele está presente no nosso planejamento estratégico como principal braço do indicador que visa contribuir para o desenvolvimento socioeconômico e ambiental da comunidade onde estamos inseridos. E o Centro Cultural, por ser o principal investimento social-privado, tanto em termos de recursos financeiros como em atenção, por ser algo diretamente 100% mantido pela Special Dog. Ele segue um orçamento anual, que é construído na diretoria da empresa de acordo com o resultado operacional da companhia e um percentual que a gente destina ao nosso investimento social-privado, que chamamos promoção social.
360: O que o Centro Cultural rende em termos de negócios?
Priscila: Não medimos um retorno financeiro. O Centro Cultural traz um retorno em valores intangíveis, como reputação da marca. Reputação é algo muito amplo e também muito importante para ter uma imagem positiva, de empresa cidadã, que se preocupa e se ocupa de uma forma bem holística de públicos, entre os quais está a comunidade. É um retorno que está totalmente alinhado à nossa estratégia de negócio, ao nosso propósito como empresa, que é impactar positivamente a nossa cadeia de valores, a comunidade em que estamos inseridos. A Special Dog tem como propósito “alimentando pets por um mundo melhor”, é muito genuína a nossa preocupação em impactar positivamente, ser uma empresa que gera um retorno positivo.
360: Vocês se valem dessa ação para trabalhar públicos como autoridades, clientes, fornecedores, parceiros?
Priscila: O Centro Cultural faz parte de todos os roteiros de visita à empresa. Todos os meses, realizamos o Special Day, quando recebemos em torno de 40 clientes para conhecer nossa realidade, que inclui visita às nossas fábricas para conhecer nosso processo produtivo, para conhecer nossas boas práticas de fabricação, nosso controle de qualidade, quanto isso impacta na produção de um alimento de qualidade, que é o nosso Core Business. E o Centro Cultural faz parte desse roteiro, onde as pessoas conhecem não somente a estrutura, o prédio, mas têm a oportunidade de ver uma aula de coral, de viola, o que estiver acontecendo ali no momento e também conhecer um pouco da história, dos números, do propósito por trás do Centro Cultural. E a sensação sempre é de encantamento, de surpresa mesmo que a empresa é responsável por tudo aquilo, um olhar que é tão sensível, tão preocupado e tão genuíno. Acho que o Centro Cultural permite mostrarmos como a empresa quer contribuir positivamente.
360: As empresas podem usar parte do valor de impostos para financiar projetos culturais, sociais, esportivos através de leis de incentivo fiscal. Quanto vocês investem desses recursos no Centro Cultura?
Priscila:A maior parte dos recursos aplicados em cultura através de leis de incentivo fiscal, como a lei Rouanet e o PROAC são aplicados nas demandas do Centro Cultural, mas não nos restringimos a isso. Esses recursos também contemplam projetos de terceiros. E mantemos um comitê multidisciplinar para avaliar e analisar todas as propostas que chegam. EE essa análise não é somente quantitativa, mas qualitativa, para os projetos estarem alinhados à nossa estratégia de negócio e de investimento social-privado. Contamos também com parceiros externos que conhecem todo o trâmite, para nos ajudar a viabilizar os projetos.
360: Quanto do valor anual que vocês investem no Centro Cultural corresponde a recursos de incentivo fiscal?
Priscila: Em termos do orçamento anual do Centro Cultural, cerca de 30% faz parte de recursos via leis de incentivo. E 70% advém de recursos próprios da empresa.
360: Dá para fazer só com leis de incentivo?
Priscila: Da maneira que nós temos o Centro Cultural e que nós mantemos, não. É feito um aporte de recursos próprios.
360: Você acha que para uma empresa que nunca teve uma ação própria, dá para estabelecer um projeto social-privado como o Centro Cultural Special Dog? Dá para começar pequeno?
Priscila: É totalmente possível. É algo que vai ter evolução gradativa.
360: Por onde se deve começar?
Priscila: O primeiro passo seria entender a vocação da empresa. Entender o que expressa a visão de mundo da empresa, como ela quer contribuir para a comunidade. Pode ser a cultura, educação, esporte, pode ser o setor de bem estar social. E pode ser por público também. Eu posso atuar com o PCD, com jovens em situação de vulnerabilidade, com idosos... O principal é que cada empresa entenda a sua vocação. E começar a direcionar um investimento para isso.
* O dia a dia do Centro Cultural Special Dog é intenso, com aulas diurnas e noturnas de preparação cênica, gastronomia, conto coral, viola, corte e costura, ballet, atividade es da melhor idade, orquestra, percussão, formação de bandas entre outras. Para participar basta se inscrever. Havendo vagas, é feito processo de admissão *
360: Você acha fundamental criar uma fundação, como ocorre com a Special Dog?
Priscila: Uma vez identificada a vocação da empresa, você não precisa começar por criar uma instituição. Você pode buscar parcerias com ações que já existam. Por exemplo, pode contribuir com o desenvolvimento de uma instituição, de um projeto, de uma iniciativa, de uma campanha. E, gradativamente, buscar evoluir se isso fizer sentido dentro da estratégia da empresa. Mas acho que o principal, é ter um interesse genuíno e querer fazer acontecer. Porque demanda recursos, não só financeiros, mas de tempo, de pessoas. Se não for genuíno, de verdade, acho que é muito difícil de manter.
360: Vocês são procurados por empresas que gostariam de criar um projeto social bem estabelecido como o da Special Dog?
Priscila: Eu não me lembro, pode ser que você já tenha acontecido de ter havido essa demanda, mas não foi diretamente comigo. Mas já participamos de um ou dois eventos com o objetivo de compartilhar as boas práticas da empresa. E dentro do ESG (Environmental, Social and Governance, que significa Meio Ambiente, Social e Governança) da empresa, certamente o Centro Cultural é a iniciativa de maior relevância.
360: Você frequenta o Centro Cultural?
Priscila: Frequento para cursos esporádicos de gastronomia, mas não sou aluna regular. Da minha família, quem participa regularmente é a minha mãe.
360: Como avalia a atividade da sua mãe?
Priscila: Eu vejo muito a questão da realização pessoal, de algo que é um talento que ela sempre teve. Então não foi algo que ela buscou para aprender, foi uma oportunidade de inserir na rotina dela um talento que ela tem, um prazer, um hobby, que é o canto, que é a música. Eu vejo como algo 100% positivo, porque além do coral promover esse reencontro com algo que é tão importante para a vida dela, é também a oportunidade de conhecer pessoas novas , de conviver com pessoas que talvez ela não teria chance se não fosse pelo coral. Essa questão do convívio social, eu acho que é muito importante. E tem também a questão da disciplina, do compromisso com as aulas semanais. Por não haver mensalidade, eles pedem um comprometimento, uma de frequência mínima. Uma exigência que é bem rígida, até porque existe uma fila de espera.
360: Dentro da sua equipe, você tem pessoas que participam, pais de pessoas que participam, rola algum burburinho que envolva o Centro Cultural?
Priscila: O Centro Cultural é muito vivo dentro da empresa, até porque todos os eventos e atividades são divulgados no nosso canal oficial de comunicação interna. Tudo é muito disseminado dentro da empresa. Como eu falei, é um braço da Special Dog, a gente não enxerga como algo separado, só está fisicamente em um outro local. A época da Cantata de Natal, sem dúvida, é o ápice, porque é o maior evento anual, mas o público da empresa, da minha área, se interessa muito pelos cursos de gastronomia, tem pessoas que fazem aula de instrumento, às vezes filhos de colaboradores, ou irmãos, primos, então existe sim esse burburinho.
360: Vocês lançaram uma nova marca para o Centro Cultural focada no prédio, uma edificação histórica da cidade que vocês restauraram. Acha que isso pode distar a imagem dessa atividade comunitária da marca Special Dog?
Priscila: Foi algo que decidimos envolvendo a equipe de marketing da empresa e do Centro Cultural. Quisemos dar uma identidade própria à instituição, reforçando a imagem do prédio que tem tanto a ver com o Centro Cultural. A nova marca tem inclusive uma versão quando avaliarmos ser o caso.
360: Dessa nossa conversa, o que você acha que é importante destacar?
Priscila: Eu acho vale destacar, como já falei, que as iniciativas do Centro Cultural não acontecem de forma aleatória. Seguimos um caminho que envolveu primeiro entender a vocação da empresa, o nosso propósito. E nosso foco é mesmo educação e cultura, com ênfase na primeira infância, porque sabemos a importância do processo de formação, se desde o início as crianças tiverem uma educação de qualidade, acesso à cultura e à educação de qualidade isso fará diferença na vida delas. A gente também faz filantropia, doações pontuais, porque elas são importantes, mas grande parte dos nossos recursos de promoção social, de investimento social-privado, são destinados às ações que estão relacionadas à nossa estratégia de negócio e à nossa visão de mundo, aos nossos valores.
360: Você é uma jovem executiva, tem formação em marketing, viajou muito antes de iniciar sua carreira profissional, visita muitas empresas, enfim, tem uma vivência abrangente do mercado. Se fosse para decidir por uma ação social agora, sob sua gestão, você criaria um Centro Cultural, com todas as demandas de recursos humanos e financeiros que ele envolve?
Priscila: Sem dúvida. Acredito piamente que o papel da empresa vai muito além de gerar lucro, que é algo essencial justamente para você conseguir viabilizar todo o restante. Na minha visão de mundo, o papel das empresas é contribuir para uma transformação positiva da sociedade. A gente fala muito de governo, das obrigações do poder público. Eu acredito que a transformação só vai acontecer de uma forma consistente, de uma forma perene e sustentável, por meio das parcerias público-privadas. Então é algo que precisa andar junto e o pilar social é muito importante, é o transformador.
360: Então você entende que é uma necessidade do país?
Priscila: Exatamente. O país tem um índice de desigualdade social enorme, onde a educação de qualidade para a grande parte da população é precária, infelizmente. Então a empresa que conseguir contribuir, independente do seu porte, independente de como será essa contribuição, mas se conseguir contribuir de alguma forma para essa transformação da sociedade estará cumprindo um propósito que eu acredito ser o papel de uma empresa, deveria ser de todos nós.
O investimento social gera retorno de imagem e desenvolvimento urbano
Juliana Manfrim, gerente do Centro Cultural Special Dog, nos conta como funciona o projeto social da marca
Um relato tão claro e objetivo merece ser reportado na primeira pessoa:
Como gerir um Centro Cultural – A cultura é um organismo vivo. Então estamos sempre buscando nos reinventar naquilo que a gente já faz. Por exemplo, o Canto Coral, que foi com o que começamos, em em 2015, hoje ele já é cênico, já envolve teatro, porque foi caminhando para esse lado. Então vários fatores são levados em consideração. Fazemos muita pesquisa, a gente precisa assistir muita coisa para elaborar as nossas ideias e desenvolver projetos. Tem que pensar também na formação de plateia, tem que pensar como fidelizar nossos alunos. Então temos que inovar. Somos uma área da empresa, como todas as outras. Tudo é reportado para a Special Dog através de relatórios. Eles fazem todo o acompanhamento do orçamento. Eles acompanham tudo. E estamos indo bem.
De onde vem os recursos – Temos recursos que são um investimento da empresa, que gira em torno de 70% do nosso orçamento anual, e também obtidos por leis de incentivo fiscal, como Proac e Lei Rouanet. O planejamento de 2024, por exemplo, que estamos fazendo agora, já contempla isso. Claro que, assim como já falei, a arte é um organismo vivo, então eu não consigo definir já o repertório da cantata do ano que vem, mas eu consigo fazer uma prévia, por exemplo, do que eu posso gastar, em que mês que eu quero fazer um determinado espetáculo. Então vou elaborando o orçamento de acordo com que a Special Dog pode disponibilizar.
Este ano precisei de recursos para a ampliação do Centro Cultural. Mesmo tendo o benefício do PROAC, porque tivemos inflação e os recursos do incentivo não foram suficientes, cobriram 70% da obra. O restante, a Special Dog completou. A lei Rouanet a gente usa para a formação da orquestra. O valor cobre 90% dessa atividade, o restante também vem de recursos diretos da Special Dog. Temos uma empresa que nos presta consultoria para os projetos a serem contemplados por leis de incentivo dentro da empresa.
Atendimento comunitário – Temos cerca de 600 alunos, entre colaboradores e familiares da Special dog, que representam 30% dos alunos, e pessoas da nossa comunidade, que são a maioria. Atendemos todas as faixas etárias, a partir de três anos e seguimos até a turma mais longeva, com o o grupo da melhor idade. As atividades são Canto Coral, Corte e Costura, Gastronomia, Circo, Ballet e Música, esta com muitas atividades, como a orquestra, a percussão e o atendimento a todas as idades. A ampliação que fizemos foi para atender melhor quem já está conosco, não para aumentar as vagas.
Trabalho em equipe – Tenho uma gestão muito aberta. Hoje trabalho com 30 pessoas e converso muito com os professores. Temos uma equipe extremamente profissional e qualificada. A gente conversa muito para criar as atividade. O Natal, por exemplo, envolve o diretor cênico, o professor do Circo, do Balé, do Canto Coral e também a turma da Costura, que desenvolve o figurino. Também envolvemos o pessoal da iluminação. E assim criamos de forma conjunta e harmônica, falando de tudo.
Sempre nos reunimos para trabalhar na parte de pesquisa, de elaboração dos nossos espetáculos, checar o que é legal colocar nas vozes das crianças, o que que é bacana ensinar, como trabalhar e os ganhos na parte pedagógica. Enfim, tudo é muito conversado. A gente precisa ouvir quem é da área. É importante a gente ter essa troca, é isso que nos faz crescer e evoluir artisticamente.
Muitas coisas são levadas para o marketing também. Quando vamos fazer um material de vídeo, passo para eles. Muitas ideias vêm deles. O novo logo, por exemplo, foi sugestão do marketing usar a iamgem do prédio. Eu gosto muito dessa relação, é super importante. Temos um entrosamento entre as áreas que é muito, muito favorável mesmo.
Repercussão pública – Esse braço social da empresa é extremamente bem visto. Na cidade, na região, o Centro Cultural já tem um grande reconhecimento e eu acho muito importante que a Special Dog tenha essa ação em conjunto. Quando tem visitantes na empresa, eles fazem questão incluir o Centro Cultural. No Special Day, que traz lojistas para conhecer a empresa, eu tenho o maior orgulho do Centro Cultural fazer parte. É muito gratificante.
Vamos completar 10 anos e é muito bacana o que a gente tem de retorno. Inclusive na parte pedagógica. O quanto tem surtido efeito nas famílias que estão com a gente. Porque acho que o principal que
Retorno para a empresa – Em termos de retorno, é medido o impacto social, o alcance das nossas atividades. Por isso temos um planejamento envolvendo as ações e público atingido. E quando encontramos alguma dificuldade, como este ano a falta de teatro, que está em reforma, temos que nos reinventar para dar essa devolutiva para a empresa. Tenho que colocar esses alunos no palco. Porque é frustrante você estar frequentando os ensaios, se dedicando e não ter o aplauso da plateia. Isso que impulsiona as nossas crianças, adultos, todos os públicos, todos os nossos alunos. Para eles é importante esse reconhecimento, essa troca de energia que só a arte proporciona.