Cadernos de estudo 1

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Cadernos de Estudo o aprender  o ensinar  a arte



o aprender o ensinar a arte A ideia para o fanzine se iniciou com o exercício de tradução do capítulo 5, Ensinar e aprender como Formas de Arte, do livro Fluxus Experience, de Hannah Higgins, publicado em 2002. Neste capítulo a autora trata de possíveis contribuições do Fluxus para a pedagogia em geral. A necessidade de traduzir esse texto foi consequência do desejo de sistematizar e de verbalizar os modos como venho integrando a prática artística à prática didática na área de Artes Visuais. Esta breve apresentação pretende sublinhar alguns pontos e trazer para a discussão do ensino de Artes Visuais algumas questões que considero fundamentais. No exercício de tradução e de considerações dos motivos pelos quais esse texto me interessa, sempre me vinha à memória professores com os quais convivi. A prática desses professores se somava à minha leitura, não como uma ilustração mas como uma corporificação, sobrepondo outros tempos e espaços: cada minuto, luz do dia, olhares, dúvidas, conversas, ações, relações com o grupo. Daí, a presença de uma entrevista. Em decorrência desse exercício de leitura e tradução, um primeiro ponto para marcar é a valorização da experiência primária, que desdobro para o que denomino prática ou fazer. Uma inteligência que vem do corpo em contato direto com as plasticidades do mundo em um dado tempo vivido. Entre o fazer e o pensar, que se encontram num mesmo plano, podemos traçar uma rede de linhas. Essa imagem talvez auxilie num outro desenho: o da relação entre prática artística e a prática didática e aqui também não há hierarquias. Há, sim, complementaridade que garante entusiasmo e capacidade criativa. A não ser nos casos em que ensinar seja apenas um modo de ganhar a vida e não um aspecto crucial de sua prática artística. A horizontalização se amplia até um outro plano, que são as abordagens comunitárias e coletivas, ou seja, o conhecimento que se constrói junto ao outro, fundamentando-se no repertório e no imaginário do grupo. Não se trata de ditar como o mundo deve ser experienciado, não se trata de homogeneizar (e esta é uma grande habilidade das Institui-

ções). Estou fazendo uma lista para possíveis papéis para um professor: mediador, provocador, motivador, mobilizador, potencializador, propositor de ações. Em qualquer caso, é importante acolher a riqueza da diversidade do material humano. Vários pontos de partida, vários resultados. Essa reflexão sobre acolher o outro eu desdobro ainda na pergunta: Quem as Escolas de Arte formam? Somente artistas? Sendo que a resposta para tal questionamento não deve servir como justificativa para diluir o conhecimento trabalhado nas escolas. Aqui um rabisco: a importância da emoção. Algo como o amor, a solidariedade, a identidade. Toda objetividade é muito necessária e pretensa e a subjetividade inevitável e estruturadora das relações objetivas com o mundo. São duas direções, para dentro e para fora, e de novo não se opõem e sim se complementam. A essa altura já começo a pensar que um de nossos maiores problemas é classificar tudo em termos de oposições incomunicáveis e como solução paliativa padronizamos, homogeneizamos e hierarquizamos. Uma ação contrária a isso é a interdisciplinaridade, uma capacidade de emaranhar, desdobrar, sobrepor, colar e descolar. A intermídia do Fluxus é uma potência para essa pesquisa. Aqui vale sublinhar que o conhecimento não se dilui, cada área de conhecimento a partir de um ponto-essência se abre para diálogos com as outras. Esse é também o espaço para mencionar as múltiplas inteligências. Lidamos com o mundo usando pelo menos sete formas diferentes de inteligência: linguística, lógico-matemática, musical, corporal-sinestésica, espacial, interpessoal e intrapessoal em graus variados. Por que tendemos a ensinar de um único modo? O planejamento de aula de um Professor Artista não deveria estar atrelado aos seus processos de criação artística e aos processos de criação de seus alunos? As habilidades individuais de cada um devem ser estimuladas e também devemos nos arriscar em campos que não dominamos. E por falar em habilidade, há uma grande mácula na formação em Artes Visuais que é o Dom. O Dom como uma facilidade para algo, e que pode ou não ser bem utilizado. Como vejo a formação em Artes Visuais, trata-se muito mais de uma questão que defino como Vocação: um desejo, uma necessidade de realizar o trabalho. Nós que entramos nesse percurso das Artes Visuais temos todos uma necessidade de praticar a estruturação do mundo através de uma questão plástica, o que pode nos permitir atuar em várias áreas. Percebam que assim fica muito mais fácil considerar a formação de quem inclusive não quer ser e não será artista. Estas reflexões partem da área de Artes Visuais, se expandem para a Educação e para nossa atuação e relação com o conhecimento no mundo. Apresento a seguir a primeira parte da tradução do Capítulo 5, Ensinar e aprender como Formas de Arte, e em seguida uma entrevista com o Professor Artista Eugênio Paccelli Horta. 3


Ensinar e aprender como formas de arte O fato de que a experiência Fluxus existe no âmbito da Arte indica que a experiência em si tem alguma importância para esse campo — a informação primária é um contraponto positivo em relação à esmagadora preferência na cultura ocidental pelas formas secundárias de informação e análise. A experiência Fluxus, portanto, tem uma função discursiva, ela tem o seu significado dentro do contexto de um argumento — mesmo que dada sua base na informação primária e na sua estrutura compartilhada, ela não consegue dizer qualquer outra coisa de modo consistente. A seguir, gostaria de falar sobre essa função discursiva. Em particular, vou explorar algumas possíveis aplicações da experiência Fluxus e o ideal comunitário, indo além do Fluxus, e mesmo além do mundo da arte. Para isso, desenvolverei um modelo pedagógico amplo baseado na pedagogia experimental de muitos artistas do Fluxus ou, de algum modo, ligados a ele. Isso não é apenas uma estratégia de ação, mas tem uma justificativa histórica: o Fluxus, afinal, originou-se de certo modo nas aulas de John Cage em Nova York (e em menor grau nas aulas de Stockhausen, em Dusseldorf), e muitas figuras associadas ao Fluxus posteriormente passaram a ver sua arte através das lentes da pedagogia.

Considerações gerais

Um artista, apesar de não ser uma figura central do Fluxus, dedicou muitos de seus talentos à educação. Allan Kaprow frequentou o curso de composição de Cage na New School, em 1957; ele já era professor no campus Douglass, na Universidade de Rutgers, quando se juntaram a ele os artistas Geoffrey Hendricks e Robert Watts, ambos ligados ao Fluxus. Kaprow depois se transferiu para a Cal Arts, na Universidade da Califórnia, em San Diego. Como professor de arte, ele pensava que seu papel era envolver os estudantes numa atitude crítica; em um “Manifesto” ele escreveu que “quando a arte se torna menos arte, ela assume o papel da filosofia como crítica da vida”. Do mesmo modo, Joseph Beuys, um artista tardiamente associado ao Fluxus, que en4

sinou arte na Academia de Dusseldorf durante praticamente toda sua carreira artística, disse: “Ser professor é minha maior obra de arte.” Para Kaprow e Beuys, ensinar não é apenas um modo de ganhar a vida, em vez disso, é um aspecto crucial de sua prática artística. Esta distinção é importante, pois implica em um fundamento altamente motivado, e, por extensão, criativo, para suas respectivas pedagogias. Na sua introdução para Teaching and learning as perfoming arts, Robert Filliou descreve a aplicabilidade do Fluxus, e de outras formas de arte semelhantes, em uma pedagogia experimental: “O propósito deste estudo é mostrar como alguns problemas inerentes ao ensino e à aprendizagem podem ser resolvidos, ou, digamos, facilitados, através da prática de técnicas participativas desenvolvidas por artistas em muitos campos: happenings, events, action poetry, ambientes, poesia visual, filmes, performances de rua, música não-instrumental, jogos, correspondências etc.” Como Beuys coloca na parte I do livro de Filliou: “A concepção ampliada de arte inclui toda ação humana.” Do mesmo modo, John Dewey destaca o envolvimento experiencial quando descreve o artista como o criador de experiências e o público como cocriador: “Nos tornamos artistas nós mesmos quando... nossa própria experiência é reorientada.” Seguindo essas ideias, Filliou, em um convite literal para o leitor criativo (afinal, a leitura também é uma forma de performance), deixa aproximadamente um terço do seu livro vazio. O espaço, ele explica, é direcionado para a interação do leitor: “É claro que o leitor é livre para não fazer uso deste espaço. Mas espera-se que ele esteja disposto a entrar no jogo da escrita como um performer ao invés de um mero espectador... Este é um grande livro curto para se continuar escrevendo em casa.” É claro que experiências coproduzidas são mais fáceis de dizer do que de fazer. Nesse projeto pedagógico, no entanto, a experiência Fluxus tem um valor especial, ao promover, em primeiro lugar, um aprendizado experiencial, mas também uma exploração interdisciplinar, um estudo autodirigido, um trabalho coletivo e trocas de ideias não-hierárquicas. Finalmente, ao promover tal liberdade, evita-se a influência homogeneizante de instituições formais de ensino e de academias de arte. Tal abordagem para a educação, além disso, não precisa ser informacionalmente fraca ou estruturalmente indisciplinada. Pelo contrário, na modalidade Fluxus, a informação (incluindo fatos científicos e históricos) é tratada como uma forma de conhecimento entre outras, todas elas podendo fazer parte da produção de uma experiência através do mecanismo criativo chamado arte. Uma abordagem comunitária também é importante nesse projeto. Numa entrevista no livro de Filliou, John Cage argumenta que “quanto maior o número de pessoas, maior a quantidade de troca de informação ou de experiências; esta é exatamente a situação que agora vivemos, a de abundância de ideias e experiências”. Para Cage, ensinar e aprender são atividades que caminham juntas, com um grupo de pessoas trabalhando igualmente para realizar uma transformação ativa no materialmente diversificado ambiente humano.



Seu uso da frase “abundância de ideias e experiências” para caracterizar o que está sendo trocado traz um grande e acessível universo de materiais para troca. Esses materiais não são apenas os tradicionais, como livros e informação especializada, mas todas as formas de invenção humana: modelos poéticos ou conceituais, música, comida, dança, até mesmo a interação direta com o ambiente local, para apenas citar alguns. Enfim, tais modos de troca não-literária formam a base ontológica da narrativa humana. O valor do aprendizado reside, portanto, em questionar ativamente os materiais do seu próprio ambiente, com uma atitude expansiva e profusa. Neste ponto de vista, não pode haver uma perspectiva única do que constitui o ambiente: o conhecimento adquirido por um questionamento ativo é relacional, promovendo uma apreciação de interesses, objetivos e experiências singulares e compartilhados. Tal aprendizado tem como objetivo um entendimento mútuo (que é distinto do acordo), um ponto que vai contra os modelos tradicionais de educação em que os experts ditam como o mundo deve ser experienciado. Como afirma a crítica educacional D. Emily Hicks, emprestando de Gilles Deleuze e Félix Guattari a noção, carregada politicamente, de sujeito desterritorializado: “Tomar decisões compartilhadas é mais parecido com tomar lugar num ambiente em que sujeitos com uma multiplicidade de perspectivas são capazes de se engajar em encontros prazerosos.” Do mesmo modo, Kaprow descreve os benefícios emocionais de um tal sistema intersubjetivo quando declara que “a experiência de todo mundo deve, de algum modo, estar conectada com o amor de cada um, o que quer que isso seja”. A comunidade im-

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plicada por essa declaração, que é ao mesmo tempo celebradora de diferenças individuais, sugere uma variedade de encontros possíveis entre realidades objetivas e subjetivas, observações racionais e experiências emocionais, e identidades pessoais, políticas e cívicas, tendo como resultado desejado um “senso de solidariedade”. O professor de educação e neurologia Howard Gardner, da Universidade de Harvard, estudando o problema das diferenças individuais num nível cognitivo, teorizou que os seres humanos lidam com o mundo usando pelo menos sete formas de inteligência fundamentalmente diferentes. Além das formas linguísticas e lógico-matemáticas privilegiadas pelos testes padronizados em todos os níveis do sistema educacional do primeiro mundo, os seres humanos também possuem inteligência musical, corporal-cinestésica, espacial, interpessoal e intrapessoal em graus variados. A inteligência linguística é a habilidade de sintetizar e brincar com a linguagem: é o dom dos poetas. A inteligência lógico-matemática é a habilidade de raciocinar, discernir padrões matemáticos abstratos ou elaborar uma teoria científica: é o dom dos cientistas e talvez seja a forma de inteligência mais valorizada no Ocidente hoje. A inteligência musical envolve padrões tonais e suas relações: é o dom dos compositores e dos cancionistas. Através da inteligência corporal-cinestésica, resolvemos problemas usando o nosso corpo: é o dom de bailarinos e atletas. A inteligência espacial permite lidar com o espaço mentalmente e fisicamente: é o dom dos marinheiros, cirurgiões, engenheiros, escultores e pintores. As inteligências interpessoal e intrapessoal envolvem a habilidade de compreender os outros e a si mesmo,


respectivamente: a primeira é o dom dos professores, políticos, clérigos e vendedores e em algum grau todos nós possuímos o dom da última. Gardner propõe uma efetiva reforma no ensino fundamental e médio através de currículos individualizados dirigidos às formas de inteligência dominantes encontradas em cada estudante, o que permitiria, através dos interesses e dos talentos naturais, um maior acesso individual ao mundo dos fatos. Como ele diz: “As inteligências são potenciais ou inclinações que são ou não realizados... A inteligência, ou inteligências, sempre são uma interação entre as inclinações biológicas e as oportunidades de aprendizado que existem em uma cultura.” Uma vez que as inclinações variam imensamente, a instrução deve incluir muitas formas diferentes de comunicação: “Pois mesmo que os próprios cursos sejam regulamentados, não há motivo para se ensinar do mesmo modo... Uma aula de história pode ser apresentada através de modos de conhecimento linguístico, lógico, espacial e/ou pessoal, até mesmo uma aula de geometria pode se basear em competência espacial, lógica, linguística ou numérica.” E não nos esqueçamos das emoções que, do mesmo modo, tem um papel importante no aprendizado e na receptividade, de acordo com a teoria de Gardner. Como outro teórico da educação, David Gerlenter, que escreve (sobre a inteligência artificial): “As emoções não são uma forma de pensamento, nem um modo adicional de pensar, nem um bônus cognitivo especial, mas são fundamentais para o pensamento”. As inclinações naturais de Gardner e as observações de Gerlenter de que as emoções subjazem todo pensamento

dão um forte crédito ao enganosamente simples “amor” como chave para o aprendizado de Kaprow. De fato eu tenho visto isso repetidamente em meus próprios alunos: as coisas começam a despertar para eles quando se sentem apaixonados pelo material, quando eles o amam. Aprender, em outras palavras, envolve compromissos: para uma identidade interna em desenvolvimento (seja a sua própria ou a dos outros), para um sentido de lugar, seja no mundo social ou neste planeta. Educação, no melhor dos casos, é transacional e performativa para professores e alunos: pois é apenas através dessas transações, dessas performances que nós criamos o nosso senso subjetivo de sentido de vida compartilhado. De acordo com o teórico da educação Danny Wildemeersch (escrevendo sobre educação de adultos): Aprender pode ser entendido como um processo de troca contínua entre vida-mundo dos sujeitos e a realidade objetiva, que está presente na sociedade como um todo. Os agentes mais importantes desse processo de troca são os grupos que fazem parte do mundo externo objetivo, mas ao mesmo tempo estão ligados intimamente à realidade subjetiva de uma pessoa. É especialmente o processo de interação entre indivíduos e os grupos a que pertencem que permite a mediação entre um mundo objetivo e subjetivo... Os grupos a que pertencemos, como eles são compostos de muitas realidades subjetivas, representam segmentos da realidade objetiva que são relevantes ao entendimento subjetivo da vida.

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Longe da pretensa objetividade e baseado nos modelos atuais de ensino superior, Wildemeersch afirma a importância de uma função interpretativa que conecte a realidade subjetiva e objetiva: “Podemos pensar em uma educação de adultos (...) como um diálogo transacional entre participantes que trazem para o encontro experiências, atitudes e diferentes modos de olhar para os seus mundos pessoal, profissional, político e recreativo e uma grande variedade de propósitos, orientações e expectativas diversas.” O objetivo de toda educação de fato deve ser estabelecer um senso de continuidade entre o self e o mundo. O oposto dessa abordagem produz alienação, como Beuys cruamente declara: “O homem encara o seu companheiro como um estranho.” Este modelo educacional, que busca agrupar o nosso self objetivo e subjetivo (normalmente dividido), com certeza suscita problemas para os assim chamados standards movement, especialmente quando se aplica ao ensino superior e ao processo em que o futuro sucesso é “quantificado” por testes padronizados (por exemplo, SAT e GRE). Como aponta o jornalista e economista Peter Sacks: “Os testes tradicionais reforçam uma rotina passiva de aprendizado de fatos e fórmulas em oposição ao pensamento crítico ativo que muitos educadores agora acreditam que deve ser encorajado nas escolas.” Assim, essa fixação em testes como porta de entrada para uma educação avançada reforça não apenas a sobrevalorização das formas de inteligência lógico-matemática e linguística, mas também padroniza as mentes dos estudantes e roubam outras habilidades críticas e criativas que eles precisam ter para lidar com o mundo complexo de hoje. O psicólogo ambiental Edward S. Reed coloca deste modo: “Como todas as nossas oportunidades para experiências primárias diminuem, desde as habilidades manuais e sociais até o aprendizado sobre natureza, sociedade ou trabalho, nos tornamos cada vez mais incapazes de atuar no mundo real”. Psicólogos cognitivos distinguem entre pensamento de “superfície”, que requer apenas resposta rápida e repetição, e pensamento cognitivo “profundo”, “que envolve a síntese e a análise de uma variedade de fontes de informação para interpretar um dado, resolver um problema complicado, e possivelmente até mesmo criar algo novo e interessante”. A cultura de testes, que evita o reino bagunçado de informações processadas empiricamente e das múltiplas inteligências, promove a superficialidade cognitiva. Essa situação é, no mínimo, irritante, dada a importância para a democracia de uma preparação intelectual verdadeira. Muitos estudantes inteligentes, mas “fora do padrão”, são afastados, ostracizados ou deixados fora deste sistema (nos termos de Ricks, eles são “empurrados para fora”), e até mesmo entre os que aderem ao sistema pode haver estudantes com pouca ou nenhuma profundidade de pensamento. Essas questões permanecem em grande medida ignoradas na academia, uma situação que considero particularmente aflitiva nas humanidades. Como podemos reverenciar a produção criativa de nossos poetas e artistas, músicos e dançarinos, se falhamos em estabelecer modos efetivos de cultivo dessas formas associadas de inteligência? Não deveria haver algum valor em aprender história da arte com um 8

artista, ou ainda tentar fazer uma história da arte dirigida para a inteligência espacial? É lógico que uma cultura tão diversa como a nossa poderia se beneficiar ao educar todas as formas de inteligência. Nós podemos, como afirma Stephen J. Gould, aprender uma coisa ou duas com a evolução e o valor da biodiversidade para a continuidade da vida no planeta. Mas o que dizer da expertise, que afinal de contas enfrenta uma certa ameaça diante de uma forte valorização da aprendizagem experiencial? Talvez seja melhor perguntar — deixando de lado o medo de perder nosso trabalho — para que servem realmente os padrões de expertise? Leon Botstein, presidente do Bard College, aponta as causas econômicas para a atual estrutura de poder e o impulso em direção à especialização no ensino superior: “Os departamentos que são os centros de poder nos colégios e universidades não vão abandonar o seu controle sobre o tempo dos estudantes porque o tempo significa matrículas, e matrículas significa dinheiro e cargos na universidade, e estes dois itens juntos constituem poder e influência.” Ele continua, trazendo para a reflexão a teoria das múltiplas inteligências de Gardner assim como a noção de “amor”, de Kaprow: “As faculdades possuem uma oportunidade que acarreta consequências cívicas e é completamente independente do sistema de especialização (...) Desenvolver a disciplina e autoconfiança seriamente além da mera aparência sempre significa privilegiar um assunto sobre outro. Isso quer dizer que os estudantes poderiam seguir o curso natural dos seus próprios interesses.” E isso traz outra questão: é possível teorizar a ideia de intermídia do Fluxus como um campo fértil para interações de múltiplas inteligências, e também como um modo de ir além dos talentos naturais de cada um? Eu diria absolutamente que sim. Imagine um mecanismo aberto de diagramas para abordagens pedagógicas dentro das linhas do “Intermedia Chart” (gráfico intermídia), permitindo um tipo de treinamento cognitivo cruzado através da criatividade exploratória. Eu vi um manual de atividades para aplicar a teoria das múltiplas inteligências na sala de aula da escola primária que começa a se aproximar dessa ideia. São muitos os paralelos com Fluxkits e Events, com instruções para fazer caixas de cheirar, por exemplo, ou para medir objetos cotidianos tendo como referência objetos logicamente não relacionados (expressando o tamanho de uma luva utilizando como medida de comprimento clipes de papel, por exemplo). Uma correlação particularmente forte existe em uma série de exercícios de “poema sensorial” que resultam em poemas com o formato das coisas ou expressando experiências ricas que envolvem visão, audição, tato, paladar ou cheiro. Os exercícios (que lembram muito “gêneros de vanguarda”, como a poesia visual) trabalham diferentes formas de inteligência, combinando habilidades literárias com as inteligências espacial e cinestésica. Assim como a teoria da intermídia pode ser aplicada em sala de aula, também a teoria das múltiplas inteligências pode ser utilizada para compreender produções Fluxus. Por exemplo, o Fluxkit Valoche / A Flux Travel Aid, de George Brecht, envolve uma clara interação de inteligências espacial


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e lógico-matemática. A própria partitura de Event – como as Piano Activities (1962), de Philip Corner, uma peça que tem os performers escalando o piano e movendo-se pelo chão – utiliza as inteligências musical, linguística, espacial e corporal-cinestésica, assim como um tipo de “inteligência cultural”, pois interage com expectativas culturais da música e da performance. A professora de biologia Carla Hannaford tem estudado um mecanismo de retroalimentação cognitiva estruturador da inteligência corporal-cinestésica, chamado de propriocepção, que “dá o retorno necessário para manter otimizada a contração e o relaxamento dos músculos em equilíbrio em nosso ambiente”. Quando a propriocepção é maximizada através do movimento autoconsciente (em oposição ao movimento incidental) ocorre um relaxamento, centramento e um significativo aumento na receptividade e atividade cerebral em todos os lugares associados com as várias formas de inteligência. Ao completarem uma série de 26 exercícios físicos dirigidos (agrupados em um programa chamado “Brain Gym”), estudantes com dificuldade de aprendizagem, cansados ou mais lentos foram capazes de obter êxito em áreas aparentemente sem relação entre si. Isso ocorre porque o córtex cerebral, que cobre o cerebrum como uma casca de laranja, é estimulado pelo movimento e serve como um filtro e distribuidor de todas as informações sensoriais (exceto cheiro) para o complexo de lobos que constitui o cérebro. As implicações para a educação são vastas: os diferentes tipos de inteligência ativam umas as outras quando recebem o estímulo e a interação adequados. Hannaford descreve, por exemplo, como o senso de toque aumenta o potencial de aprendizagem em outras partes do cérebro: “Meus alunos na faculdade comentaram que ter argila disponível para manipular durante uma palestra permitiu a eles guardar informação mais facilmente. Em qualquer situação em que o toque esteja combinado com os outros sentidos, muito mais partes do cérebro são ativadas, construindo assim uma rede nervosa mais complexa e atingindo um potencial maior de aprendizagem.” Imagine uma Finger Box em cada carteira! Em um nível secundário, o estudo interdisciplinar também pode ser importante. Ele vai além do mero salpicar de um assunto com tempero de outro, na esperança de que alguém que esteja interessado em, digamos, literatura possa se interessar por matemática. Muitos objetos e Fluxus Events podem ser entendidos como a expressão material da interdisciplinaridade, pois criam oportunidades para um jogo expandido e interativo de diversas funções cognitivas. De fato, as múltiplas inteligências, especialmente com ênfase nas inteligências interpessoal e intrapessoal, e a interdisciplinaridade podem muito bem permitir aos estudantes aplicar a sua base de conhecimento em suas próprias vidas. Como descrito por Leon Botstein, esta função do ensino superior rotineiramente negligenciada deveria ser o seu propósito primário: “Em sua forma ideal, os anos de graduação deveriam ser o tempo em que um indivíduo, como adulto, liga o aprendizado com a vida... naquele clássico par freudiano amor e trabalho.”

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Eugênio Paccelli Horta Eugênio Paccelli Horta Artista e Professor do Departamento de Desenho da Escola de Belas Artes, UFMG. Daniela Maura Artista e Professora. Entrevista realizada em 10 de setembro de 2013.

Daniela Então, uma primeira questão que pensei é como e quando você percebeu seu interesse pelas Artes Visuais? Pode ser desde um acontecimento na infância ou em qualquer outro momento. Eugênio Na infância não sei dizer conscientemente, mas já sabia que gostava. Eu gostava de desenhar. Então, já era uma presença das Artes Visuais. E tem dois eventos que gosto muito de lembrar com relação a essa coisa da experimentação, da imaginação. Um foi uma vez na roça, tinha uma menina que comentou comigo que conseguia desenhar um pato debaixo d’água, submerso na água. Eu achei isso superinteressante e pedi para ela me mostrar, aí, ela pegou uma pedra irregular e fez o desenho de dois patos, e eram uns patos debaixo d’água, achei o máximo, os efeitos, a ideia de usar um outro material, uma pedra pra fazer um desenho com uma linha torta, achei superinteressante. Quando criança gostava de ficar brincando num campo que tinha perto da minha casa, com raízes de árvores e ficava imaginando, arrancava as raízes da grama e tinha formas muito interessantes. Essa era uma coleção de bonecos que eu tinha, e ficava ali muito tempo brincando com isso e imaginando as formas. Então, mais inconscientemente foi assim que percebi, nessas situações, que eu tinha um gosto por essa coisa do inventar, criar a partir da imaginação. Com coisas muito simples eu conseguia criar universos, pra uma criança, muito sofisticados e desse jogo eu gostava muito. Conscientemente, fui descobrir que gostava de arte quando comecei a fazer dança, achei muito interessante, foi quase que um vício, e pra mim o mais interessante não era nem pensar do ponto de vista profissional. Tinha isso também, mas era algo não só prazeroso, era vital, descobri que eu não podia viver sem aquilo. Foram nesses momentos que comecei... Quando criança pensava muito, falava muito que queria ser desenhista quando crescesse, mas foi na dança, mais tarde, que pensei mesmo que poderia ter uma vida profissional com a arte. A origem é mais ou menos essa.

Eugênio Paccelli Horta Daniela Mas e a passagem da dança para o desenho, como é que foi? Eugênio Ah, eu acho que na verdade tudo é quase a mesma coisa. Daí voltando pra infância tinham coisas que eu gostava de desenhar, gostava de desenhar na areia, por exemplo. Na minha infância morei num subúrbio de Belo Horizonte que misturava essas coisas, você tinha acesso a coisas de uma capital, mas vivia também numa roça. Então tinha campo, gramado enorme, tinha áreas de areia. Nessa época gostava muito de desenhar com as duas mãos, fazendo desenhos assim ... como é que fala, aquela coisa, quando um lado é parecido com outro? Simetria. É eu adorava fazer desenhos simétricos, usando a mão, e gostava muito de desenhar com pedras no chão de casa, no quintal. E tinha desenhos de grande proporção também, eles naturalmente traziam isso, essa coisa do próprio corpo, essa ideia do próprio corpo em ação. Mas, a pergunta é sobre a dança, a relação que eu faço de dança com o desenho. Daniela Hum, hum. Eugênio É isso, acho que tem a ver com a intenção do movimento. Pra desenhar você pensa no movimento também. Tem a imagem mais estereotipada do desenhista que talvez venha pela ideia da iluminura, que é uma pessoa que desenha, que faz os desenhos sentado. Mas isso é uma relação equivocada com o desenho, ainda mais do ponto de vista histórico, se a gente for pensar nas coisas mais primárias, em desenhos que eram feitos em cavernas, em lugares de grande proporção, e que tinham a demanda com o corpo que era grande. Então a relação que faço é essa, talvez por ter tido uma formação institucional mais forte com a dança, e depois ter entrado na universidade pra trabalhar o desenho eu tenha criado essa relação com o corpo em movimento de maneira mais explícita, ou talvez a universidade não tenha me condicionado a pensar o desenho daquela forma estática, assim sentado na mesa desenhando. Daniela Por que hoje você desenha e não dança? Uma vez você comentou da questão de que o trabalho plástico deixa alguma coisa, um vestígio. Eugênio É, por exemplo, se eu for olhar do ponto de vista separando as práticas de uma forma mais explícita eu poderia dizer que eu não danço mais. Mas se eu for pensar o desenho de uma maneira mais ampla, eu poderia dizer que eu nunca deixei de dançar, que na verdade a minha prática de desenho aqui na escola foi uma continuidade. Tanto que até nas aulas isso acaba acontecendo. E é uma coisa interessante que cria uma demanda muito grande na escola, os 11


alunos têm um desejo muito grande de fazer a disciplina. Eu acho que posso pensar nas duas práticas enquanto dança. Mas a prática do desenho utilizando os materiais do desenho, deixa um registro gráfico que a dança na maior parte das vezes não deixa, e esse registro, poderei chamar de matéria, ele atende uma demanda minha particular que durante um tempo a dança deixou de preencher, que é o desejo de ter um registro explícito do seu trabalho, que possa servir até como uma referência crítica. No caso da dança tem esse registro em vídeo, mas, na minha opinião, não é dança é vídeo. Respondida sua pergunta? Daniela Eu estava pensando em uma questão, que não vejo você falar muito sobre, mas percebo essa questão presente, que é a importância da prática. Seja a sua prática de produzir imagens, ou a dos alunos em aula. Peço para que você fale um pouco disso, da importância da prática na formação. Da relação com a técnica. Da relação com os materiais. Do tempo nisso. Eugênio Tá. Então eu vou falar pra você desta forma aí. Eu acho que nada, nenhuma ideia, nenhum pensamento vem gratuitamente. Acho que ele passa por um empirismo, por experiências, por uma relação próxima com as coisas, por ter os sentidos atuantes. Por exemplo, com relação ao desenho que tem muito a ver com o movimento, acho difícil você pensar sobre ele lendo um livro. Nas minhas experiências específicas com o desenho nunca encontrei uma definição de desenho no livro, mas sim na prática, nela consigo encontrar uma definição que é indizível, que não está no universo das palavras. Então, pra mim, a prática é importante pra isso, pra você ter um contato com essa inteligência que é distinta. É muito curioso porque fico pesquisando livros de desenho pra mostrar pros alunos e nenhum é satisfatório o suficiente, tem livros muito bons, mas nenhum dá conta dessa coisa do desenho, nada é tão completo quanto a prática mesmo. Você sentar, ou caminhar, ou desenhar. Desenhar da maneira como é, da maneira mais possível. Aí eu fico pensando, mas não dá para desenhar com o pensamento? Dá. Mas, aí, por exemplo, na minha opinião atualmente o desenho precisa de uma, uma ... acho que eu ia falar uma coisa contraditória, meio que precisa de uma matéria. Mas não, se eu penso a dança, se eu penso que dança é desenho também, então eu não posso exigir essa matéria do desenho, não acho que todo o desenho tem que ter. Mas percebo que do ponto de vista didático a matéria é importante, esse traço, esse registro, acho que é legal. Daniela Acho que essa matéria auxilia a dar corpo a um processo, para que o aluno possa refletir sobre ele depois. Tem uma coisa da dança que é interessante e perigosa ao mesmo tempo, que é um condicionamento pra realizar determinados movimentos ou determinadas proposições na dança, tem que se estar condicionado. Uma coisa que eu não acredito no desenho, tem gente que acha que sim, que você tem que ter condicionamento para fazer determinados tipos de desenho, mas eu não acredito nisso. Mas, acho que o próprio registro dessa matéria...ela é o registro material para a reflexão, que te leva de repente a entender de maneira mais rápida o seu processo criativo. 12

Na dança eu acho difícil essa percepção, eu percebo só mais atualmente. Sinto que é preciso maturidade, e é muito curioso, porque, por exemplo, no caso da dança do ponto de vista profissional, e até algumas pessoas acreditam muito nisso, você tem uma idade pra dançar. Eu não vejo um grupo de dança com a média de idade de 50, 60, 70 anos, gostaria até de participar de algum, ou então fundar um grupo assim. Mas eu acho que essa coisa do registro é importante sim. No caso pra você ter uma referência sobre a sua prática. Daniela A importância da técnica. Como é que você vê isso, a relação com a técnica? Eugênio A técnica é saber fazer, é conhecimento também. Não vejo técnica como condicionamento, porque muita gente acha que é; condicionamento é diferente, técnica você pensa, ela está associada a conhecimento anterior, então são formas de fazer. E se quero, por exemplo, pintar e sei que existe a possibilidade de determinadas tintas e determinados pincéis, eu acho que meu vocabulário amplia, não só do ponto de vista pessoal, mas de entender uma prática que é anterior à minha. Então, eu acho que a técnica nos leva a pensar que outras pessoas fizeram, pensaram determinadas possibilidades. Mas talvez num período modernista do ensino, a técnica virou um “vilão”, uma prática condicionante e a pessoa tinha que ser espontânea, e a partir dessa espontaneidade ela criaria, mas eu não acredito só nessa espontaneidade, como professor eu não acredito, acho que inclusive ela é até perigosa, porque às vezes a pessoa acha que está sendo espontânea e ela está condicionada a um vício individual próprio, um vício pessoal, uma forma de fazer muito restrita. Quando você tem um universo das possibilidades técnicas à sua frente você percebe que tem muita coisa pra ser investigada, que o que você faz já foi pensado, já foi estudado, e é isso. Daniela Um comentário que vi você fazendo e não resisti de lembrar, que é sobre como nas aulas a proposta, que é uma só, acolhe resultados muito diferentes dos alunos. Eu acho que isso também revela uma relação enriquecedora com a técnica num certo sentido. Eugênio Pra mim, vejo a técnica como algo que amplia, até no caso da experiência com dança é interessante, porque tem as escolas diferentes, existem escolas de dança moderna, escolas de dança clássica, e agora atualmente algumas pessoas comentam sobre a técnica da dança contemporânea, que eu acho que é até questionável, há várias proposições muito questionáveis, mas, por exemplo, eu tive um entendimento muito interessante sobre equilíbrio, planos, com a experiência da dança clássica. Enquanto homem contemporâneo, a dança clássica abriu muitas perspectivas pra mim, eu fico pensando se todas as pessoas tivessem possibilidade de ter acesso a esse tipo de prática ligada a determinado século, e que ainda funciona, tanto que ainda tem gente fazendo dança clássica, experimentando. Tem coreógrafos ditos contemporâneos que trabalham especificamente com a dança clássica. No caso da Pina Bausch, as audições pra participar do grupo dela consistem em fazer sequências de dança clássica. A gente percebe



essa técnica nos próprios bailarinos, a gente vê que eles têm um conhecimento da dança clássica. É muito notável pra quem já trabalhou um pouco com isso, acho que existe condicionamento e existe técnica, e são duas coisas muito diferentes, e às vezes a pessoa acha que é espontânea não usando técnica, mas ela está condicionada, e às vezes a pessoa tem muita técnica e não tem nenhum condicionamento. Assim como os grandes bailarinos, o Baryshnikov, por exemplo, que você vê que é uma pessoa que tem um conhecimento técnico muito grande do próprio corpo, das práticas de dança, mas que consegue ... não tem condicionamento nenhum, você não vê isso nele. Daniela E como é que foi se perceber professor? Eugênio Me perceber professor? Daniela É. Eugênio Ontem me perguntaram isso, ah, eu nunca pensei em ser professor, inclusive eu imaginava que, pensava que seria um fracasso como professor, porque sempre fui muito impaciente com o outro. Mas aí, aqui na escola tive algumas possibilidades, algumas experimentações na área do ensino e em lugares muito distintos. E houve um período em que dei aulas de expressão corporal numa clínica psiquiátrica onde as pessoas tomavam uma medicação que deixava o corpo delas num estado muito específico, às vezes menos receptivo até pra ser trabalhado. Porque interferia na coordenação motora e tudo. Acho que foi nesse período que eu comecei a ter uma experiência mais interessante no ensino, porque eu tinha que ser alguém muito atraente, muito sedutor pra conseguir trabalhar com essas pessoas. E aí de repente descobri um lado teatral de ser professor, tem um lado lúdico de você conseguir ... não sei se a palavra é captar, mas, despertar a atenção do outro. Eu acho que tem um lado professor que é meio circense, que eu acho muito legal. E é divertido, então eu me divirto sendo professor. E aqui na escola teve outra questão, quando eu comecei a dar aula notei uma resposta dos alunos, e aí você começa a perceber que ... um diálogo, você começa a criar um diálogo com o outro. Que de repente a situação, você está num lugar, mas ela se inverte, você começa a aprender com as pessoas também, porque você está em contato com formas de pensar distintas, às vezes um aluno resolve, ele tem uma solução que é diferente, que você não imaginava. Então, tem esse lado sedutor de ser professor, de ter contato com muitas inteligências, várias maneiras de fazer. E isso porque eu não tenho aquela visão do professor “deus’’. Aquela figura que tem o conhecimento, e vai chegar lá do alto e distribuir isso pros alunos, e talvez até por lidar com esse lado lúdico de ser professor, de você ser um pouco coringa, um malabarista, um palhaço, um ator dramático, isso te leva pra vários lugares dentro da sala de aula, você pode ser até o ‘’deus’’, mas você pode virar o “diabo’’, também vira o ‘’bufão’’, então isso te coloca em vários lugares o que te permite transitar por essas inteligências em níveis muito distintos. E quando eu não me coloco nesse lugar único do professor eu posso, eu me permito ser aluno também, então isso é muito legal. 14

Daniela Admiro o modo como, em seu trabalho, sua prática de desenho estrutura a sua aula, e como a aula te devolve coisas pra sua prática. Podia falar, nem que fosse do prazer que tem nisso. Eugênio É, acho que essa foi a coisa mais legal, que ao longo do tempo aconteceu. Acho que no Brasil existe um preconceito muito grande com essa ideia do professor, do ensino. O brasileiro tem uma relação difícil com o aprendizado, pra começo de conversa é uma profissão que não é valorizada, por ninguém. Não acho que é só pelo governo não, acho que é pelo povo também, de um modo geral. E acho que a educação é vista muito do ponto de vista do treinamento, ela não é formativa, é pra treinar. Vejo alunos que entram aqui na escola que foram treinados pra passar no vestibular, mas eles não conseguem falar nada sobre si próprios, o mundo em que eles vivem. Tem esse condicionamento do ensino também que reflete na própria postura, a gente não tem alunos questionadores, são medrosos. Eles entram dentro de uma sala de aula, eles tem medo de se expor, de contestar, dizer que não, que não acha que é isso. O que torna o ambiente mais favorável pro conhecimento é uma postura crítica o tempo todo, e ela não é colocada, então normalmente as pessoas ... o professor fala, o aluno cala e recebe aquilo e pronto e acabou, e tchau — espera a nota no final. Mas num ambiente em que essa relação é mais rica todos tem a ganhar, inclusive o professor. Enquanto artista, se estou num lugar onde tem um monte de gente criando, com referências das mais diversas, origens das mais diversas, gente que veio de Israel, como eu tenho uma aluna agora e um aluno que veio do sertão, que trabalhava lá na plantação com os pais. É muito fértil pra quem está criando. Sobre meu processo foi a partir de proposições de ensino em um festival de inverno que se sucedeu em aplicar algumas dessas práticas, que ligavam a experiência da dança com o desenho, dentro da sala de aula. Procurei observar as demandas dos alunos, cada um tem uma demanda muito específica, e mesmo que tenham um objetivo comum é interessante procurar atender também objetivos que são diversos. Já tive alunos que vieram da Geografia, da Comunicação, e alunos aqui da escola e são pessoas que tem um mesmo interesse, mas com desejos de aplicar isso de forma distinta. Dentro de sala de aula já comecei a ter mais liberdade pra trabalhar, comecei a me dar mais liberdade também para fazer experimentações que eu acho que ... é muito fácil como professor cair numa rotina também, terrível. Ainda mais depois de muito tempo dando aula, a gente pode se sedimentar na nossa própria prática. Todas as ciências se transformam, o conhecimento é muito móvel. Então, acho que há algum problema com um professor que está dando a mesma aula há dez anos, o sistema de ensino também está há tanto tempo trabalhando da mesma maneira, algo tem que ser pensado. Claro que existem coisas que são clássicas, que não vão mudar, mas poxa há dez anos atrás eu estava comentando com você, que não tinha computador na escola. Você ia pagar uma conta, você entrava


numa fila, não tinha máquina pra isso, e hoje eu não consigo imaginar — me imaginar sem toda essa estrutura que é muito nova, muito recente e que faz a gente pensar de outra maneira. Os alunos que eu recebo atualmente, eles são muito diferentes de alunos que tive há quinze anos atrás, mas é muito mesmo. A maneira de raciocinar, de lidar com a imagem dessas pessoas é outra, eu não poderia jamais estar com a mesma aula, se eu tivesse, algum problema estaria acontecendo comigo, e acho que isso acontece com as instituições também, porque elas não pensam muito a respeito. E aí, nesse caso, acho muito interessante, apesar de não ser nenhuma novidade o professor trazer as suas questões também dentro de sala de aula e trabalhá-las, e pensar nesta criação até enquanto processo didático. Eu falo que não é novo, porque eu fico pensando nos ateliês antigos, então outro dia eu fui num museu e vi um trabalho que era da escola de Leonardo Da Vinci, não se podia identificar a autoria, não se saberia dizer se aquilo era uma obra do Leonardo Da Vinci, mas sim que era da escola dele. Assim como a gente vê algumas coisas do Aleijadinho, que não sabe se é de autoria dele, mas se não é, tem a escola dele.

É essa convivência, de você dividir com o outro uma prática artística. Aqui em Belo Horizonte teve muito isso com o Guignard também. Não que eu ache que o aluno tem que sair desenhando como um Leonardo Da Vinci, como um Michelangelo, mas eu acho que um artista professor pode dividir o seu processo e colocar o seu processo criativo enquanto material de reflexão dentro de sala de aula, até pra que ele mesmo possa ser criticado. Uma coisa que eu falo muito com os meus alunos, eu gosto disso, eu acho que eles ficam mais tranquilos depois. Eu falho, olha. Vejam meu trabalho e vejam se realmente é algo que vocês acham interessante, porque de repente eu posso estar falando coisas aqui, e você tomar como verdade, e aí você vai ver meu trabalho e falar não, mas eu não gosto nada disso. Então é até bom pro aluno realmente entender que aquele ser que está ali, está passível de ter também os seus momentos de crise, de crítica, de êxito. Acho que a gente aprende muito com o ser humano de um modo geral, então o convívio com o outro é muito rico. Então, se eu posso, por exemplo, dentro de uma estrutura curricular, trabalhar com o que é proposto dentro do 15



ponto de vista dessa estrutura e acrescentar coisas, eu acho interessante acrescentar um pouco do meu processo criativo, não só do ponto de vista de um trabalho individual, mas de um trabalho didático que eu vejo como uma possibilidade artística. Então, tem momentos da aula, que acho que são momentos puramente estéticos, que todos ali conseguem entrar numa experiência de desfrute estético coletivo, que é muito interessante, seja na montagem de uma cena pra ser desenhada, seja numa prática de desenho que é feita junto, que reverbera um som, sabe? É isso, e no meu trabalho acontece, esse trabalho que a gente está fazendo aqui, ele é um pouco disso, porque essa própria estrutura desse teatrinho eu coloquei dentro de sala de aula, foi um êxito. E é curioso porque tem pessoas que tem medo disso, poxa ... eu vou colocar meu trabalho para virar prática didática? Mas, por exemplo, não houve problema nenhum, só enriquecimento, na maneira como cada pessoa trabalhou com essa estrutura. Despertou interesse em algumas, em outras não despertou interesse nenhum. Mas de qualquer maneira o conteúdo que eu queria trabalhar naquele momento utilizando essa estrutura funcionou muito bem, então acho interessante pensar nisso, não do ponto de vista de catequizar alguém ou querer que a pessoa acredite nas minhas verdades, mas de levar uma prática a qual eu estou experimentando e acredito pra uma experiência coletiva do ponto de vista da investigação estética. Daniela São poucos professores que eu vejo falar disso, mas já te vi falando: sobre lidar com o fracasso, acolher o fracasso, acolher o erro. Eugênio É isso, acho que é interessante porque os “esquemões’’ de ensino mais tradicionais não lidam com isso, tem uma péssima relação com isso. Daí comento com alguns colegas aqui na UFMG, por que uma dissertação, uma tese ela tem que ter êxito, por que um trabalho final de um aluno tem que ser exitoso? Por que não pode ser um grande fracasso? E aí a partir desse desejo de você conseguir êxito nas coisas você acaba estabelecendo padrões de investigação que vão te levar ... que vão garantir esse êxito, de repente eles garantem, eles estão limitando possibilidades. Então, por exemplo, ontem mesmo estava comentando com os alunos, do ponto de vista da investigação dentro da universidade eu só trabalhei no padrão de pesquisa considerado acadêmico fazendo o mestrado e o doutorado, nas minhas outras pesquisas, esse padrão eu não gosto, ele não funciona pra mim. Porque tem uma coisa que acho muito importante que é o acaso. Gosto, enquanto investigador em arte, eu gosto de trabalhar com o acaso, e o acaso te propicia o êxito e o fracasso também. Tudo pode dar errado, mas existe uma diferença entre você executar um trabalho e construir uma obra, eu penso muito nisso aqui na universidade, desde quando eu era aluno. Eu pensava, não estou aqui pra fazer um trabalho, estou para construir uma história, e uma história ela é feita de fracassos também, então se eu quiser... ficar querendo acertar sempre, não vou poder arriscar, porque se quero acertar eu não posso nem arriscar na minha aula, porque de repente alguma prática pode não funcionar. E como

é que eu lido com isso, como professor e como um profissional que quer oferecer o melhor? É talvez até oferecer um belo de um fracasso para ser analisado, falar assim: olha isso aqui não funcionou, vamos pensar por que não funcionou. E acaba virando uma aula superinteressante. Pra mim, o fracasso é isso, é inerente a quem está investigando bem. Comparando às outras áreas, gosto muito de comentar isso com os meus alunos, às vezes eles ficam com muito medo de fazer um desenho errado ... ah, mas não vai funcionar. Eu comento olha, se nem na medicina as pessoas estão ... elas erram, e erram feio, pois tem o caso da talidomida que era um remédio que as pessoas começaram a tomar e os filhos nasciam deformados, a gente tem uma geração de pessoas deformadas que foram vítimas da talidomida. Um erro de investigação científica. O médico, que não poderia errar, mas errou, errou feio. Agora, por exemplo, se você faz um trabalho artístico que é um verdadeiro fracasso, ninguém vai morrer por causa disso, as consequências pra humanidade não vão ser assim tão terríveis. Acho importante, todo mundo que investiga bem, com seriedade é passível de cometer fracassos e tem que estar aberto pra isso, porque senão você fica no limite do correto, e no conhecimento o correto é pouco. Se estou querendo lidar com conhecimento mesmo, se ficar dentro dessa perspectiva eu não avanço, eu não experimento coisas. Daniela Fico numa dificuldade de denominar o que é que eu sou dentro dessa prática que tenho. Essa coisa... Artes Plásticas/Artes Visuais/Professor/Artista. Você se coloca como artista plástico? Eugênio Detesto esse nome. Daniela Mas como é que é isso, tem também uma outra questão: vi você falar plástico, invocando a relação com os materiais. Isso traz ainda um aspecto da relação com a tradição. Eugênio Oh, tem umas coisas que são muito curiosas, eu particularmente, gosto e não gosto desse termo artista plástico. Não gosto porque tem todo um estereótipo por trás disso, então esse estereótipo eu detesto, acho que é chato sabe, você falar pra alguém, ah, sou artista plástico, e aí já vem a pessoa e constrói uma imagem e, infelizmente tem um julgamento por trás disso, por trás dessa imagem. Seja favorável ou não, existe. Então o termo plástico se solidifica e deixa de ser plástico. Aí um artista plástico nessa concepção é algo já muito estabelecido. O plástico que eu gosto é o artista plástico como aquela coisa moldável, quem vai trabalhar com o moldável, com o que pode adquirir várias formas diferentes, aí acho interessante. Belas Artes, eu gosto, acho lindo esse nome, gosto da palavra “belas”. Não tenho nenhum problema com o belo, e o belo também tem uma plasticidade, pode virar feio assim de uma hora para outra, acho interessante, acho que o belo é mais plástico e flexível que o feio. O feio não tem jeito, mas o belo ele... uma coisa horrível, pode ser maravilhosa. Então me denominar. O que é que eu sou? Eu sou artista? Depende muito da situação das pessoas e do lugar pra eu me denominar assim, então é isso, do ponto de vista pro-

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fissional me nomeio como professor. Porque ganho a minha vida como professor. Agora enquanto artista, eu não gostaria de ser um artista profissional, não gostaria de ganhar minha vida com os meus trabalhos artísticos, não, isso não me deixaria feliz. Porque, de alguma maneira, eu sinto que teria que fazer algum tipo de concessão e as pessoas pedem mesmo. Acho maravilhoso alguns artistas que conseguem fazer isso, então vendo lá o Michelangelo foi contratado para pintar a Capela Sistina, ele faz uma coisa assim, eu não conseguiria fazer isso. Se um Papa chegasse pra mim e falasse: olha, quero que você pinte esse teto aqui assim, e aí eu já ia querer fazer coisas que talvez não fossem ser do agrado, e não ia conseguir sublimar, porque acho que um Michelangelo e muitos artistas que trabalharam, por exemplo, pra igreja, eles sublimaram. Trabalharam em cima de um tema fechado, mas foram muito mais além, e acho que eu não conseguiria, não seria profissional o suficiente pra isso não. Então como profissional é professor; artista eu vejo ... me vejo num outro lugar, que me permite trabalhar quando eu bem entendo. Ia falar isso, mas quando falo isso penso, mas... professor não é artista também? E aí nesse caso esse discurso que eu acabei de fazer se desmancharia, porque trabalho pra uma instituição, sinto que consigo produzir conhecimento e arte em algumas situações — nas aulas o conhecimento sempre é produzido e arte acho que acontece em algumas situações dentro das salas de aula, e até na estrutura da aula. Aí eu teria que falar que sou um artista profissional, que ganho com o trabalho pra minha arte, e teria que voltar atrás também e pensar que o Michelangelo também foi professor, a partir do momento em que ele tinha ateliê, que pessoas aprendiam com ele. O Leonardo Da Vinci e muitos artistas de certa maneira foram professores também, então essa coisa de ficar numa história só, não poderia ser, e aí tenho que falar que eu sou um professor artista ou um artista professor. Que essa é a minha profissão. Daniela E a relação com a tradição? Percebo em você um respeito pelo que já foi feito, respeito pelo conhecimento que foi produzido. Na verdade, o que consigo perceber é que há uma fala que se repete por várias respostas. Que é: você evita engessar as coisas. Não é nunca uma recusa, mas é sempre um cuidado de não deixar as relações se tornarem limitadoras. Então, percebo que essa relação com a tradição vem disso também, às vezes a gente fica nesse desejo de querer ser mais, ser inédito ... antes era de vanguarda e agora é contemporâneo. Percebo que se trata de olhar praquilo ... Então fale disso, dessa relação interessante. Eugênio Não é assim negando o que aconteceu anteriormente, a gente sabe que todos os grandes investigadores, eles não pensam dessa maneira, eles tem um diálogo sim com toda a tradição. Como eu posso falar que um artista ... queria pegar um mais antigo ainda, um, ah, vamos pegar um Hieronymus Bosch, como é que eu posso falar que aquele sujeito é passado? Como é que eu posso ficar diante de uma pintura, vamos lá pegar ‘’O Jardim das Delícias’’, e conseguir não me identificar com coisas que estão ali, e achar que aquilo ali é algo que não me diz mais respeito, que eu não tenho mais relação com aquelas imagens, aquelas cores, que 18

tudo ali é passado. Então vamos um pouco mais antes da ... teve uma vez que eu fui numa caverna que tem ali perto de Cocais, de Barão de Cocais, fui até com o Marcos Hill, e que era pra ver umas pinturas de caverna que nem são tão incensadas, não é a mais conhecida. E é chocante a experiência que você tem com aquilo ali, você fala: nossa, o que é isso? Sabe? Como é que eu vou me desvincular daquilo? Porque parecia que eu estava numa catedral, ou que aquilo ali tinha muito de mim, é emocionante. Sabe quando você olha pra alguma coisa e se emociona? E você fala: nossa, que é isso? Como que eu vou achar que isso é passado? Que não tenho mais nada, nenhuma ligação com isso? Então, acho que tem termos como “passado” que são vistos de uma maneira meio tola. Até o próprio termo “contemporâneo”, acho que ele se engessou atualmente, porque dentro do que as pessoas chamam de “contemporâneo”, consigo identificar uma série de situações que já são congeladas, é um termo que até já é utilizado corriqueiramente. Quando algumas empresas querem se dizer pra frente elas usam esse termo e às vezes o raciocínio que está por trás do uso dessa palavra “contemporâneo” é o mais estúpido possível, o mais limitador possível. Então, a minha relação com tradição é isso, acho que tradição pra mim é o conhecimento, não associo com a tradicional família mineira. Então, tem palavras que elas são ... elas tem um peso que é limitador, no caso essas palavras elas te levam imediatamente — acho que as pessoas mais ingênuas e mais inseguras, elas tem um receio muito grande dessas palavras. Mas, para um pesquisador, elas são maravilhosas, porque quando penso em tradição, vou nesse povo, começo lá nas cavernas e vou passando pela idade média, pela Grécia, pelo Egito — olha que pratos saborosos, e que não estão desvinculados da nossa realidade. Tem uma visão historicista que contribui pros preconceitos, que acha que o mundo caminha em linha reta e sempre o melhor é o que está — é o atual. O que é uma bobagem, não tem, do ponto de vista da produção do conhecimento, melhor e pior, você não pode — eu acho difícil você estabelecer o que é ruim, o que é bom.


Editora Daniela Maura Diagramação Amir Brito Cadôr Imagens Eugênio Paccelli Horta e Daniela Maura Tradução Daniela Maura e Amir Brito Cadôr Transcrição da entrevista Lucas Repetto Interlocutores Amir Brito Cadôr, Andréia Dulianel, Eduardo Bernardes, Eugênio Paccelli Horta, Jakeline Lins, Wilson de Avellar. número 01 outubro de 2013 Belo Horizonte/MG contato danimaurasan@gmail.com



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