FICHA TÉCNICA
CATÁLOGO Título: SUL/ SUL Propriedade e Edição: Município da Figueira da Foz Coordenação: Margarida Perrolas Coordenação Editorial: Anabela Bento Textos e poemas: Fernando da Glória Dias Design gráfico: Eduardo Oliveira Impressão: Tipografia Cruz & Cardoso Lda Tiragem: 200 ex. Depósito legal: 463023/19 ISBN: 978-989-8903-20-4 EXPOSIÇÃO Título: SUL/ SUL Organização: Município da Figueira da Foz . Divisão de Cultura . Centro de Artes e Espectáculos Coordenação: Margarida Perrolas Curadoria: Anabela Bento . Mário Tendinha Apoio Técnico: Euclides Domingues . José Dias . Teresa Vilallobos Divulgação: G.A.P - Gabinete de Apoio à Presidência
Figueira da Foz, outubro 2019
MÁRIO TENDINHA SUL/SUL
As telas de Mário Tendinha, pintor autodidata que divide a sua vida entre Portugal e a sua terra natal, Moçâmedes, estão imbuídas de histórias e memórias. Num breve olhar, descobrimos uma paleta de cores quentes e vibrantes que nos levam até Angola e suas emoções - o sol, o fogo e a alegria, mas também o sangue e a guerra. Cada trabalho, que temos o privilégio de contemplar, narra uma história plena de signos e símbolos, revelando que a riqueza cultural de um povo não depende de conjunturas políticas ou sociais, de modelos económicos ou ideologias dominantes. Complemento indispensável da exposição SUL/SUL, neste catálogo, as pinturas são magistralmente acompanhadas por textos e poemas do poeta anglo-luso Fernando Glória Dias, estabelecendo um forte elo entre a expressão plástica e a força das palavras. O encontro destas diferentes linguagens artísticas resulta num verdadeiro testemunho da cultura angolana, que o Município da Figueira da Foz se orgulha de acolher. Quem visita o Centro de Artes e Espetáculos sabe que este constitui um espaço único, que prima pela qualidade e diversidade cultural, proporcionando a fruição não só da arte pela arte como da arte empenhada, com mensagem própria. Num Mundo cada vez mais global, desejamos que esta exposição possa contribuir para que o visitante atente a cada detalhe presente nas telas, compreenda e se deixe contagiar pelo calor da arte Angolana.
O Presidente da Câmara Municipal Carlos Monteiro
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Lá no Sul mais a sul
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mucaia colocou sua ompota escolhida, a mais vistosa de cores e desenhos, sobre a cabeça, ompola, parece que diz e são os olhos que falam, brilhavam-lhe argolas, muitas, nos braços e nas pernas, oluvuli lhes chama, e missangas separando seios firmes, porque era jovem e não esposa ainda. Outra, de seios espalmados com otiamitilo de pele, correia de finíssimo ponto, apertando o busto, traz cabelos crespos descobertos com carrapitos, impregnados de óleo de mupeque. Ambas, de panos às cores, garridos, da cintura até acima dos joelhos, caminham sobre areias a perder de vista ao sol rigoroso que as deslumbra. Quem viu assim, e muitas vezes, foi Mário e tantos outros meninos que moravam por perto dali, na pequena cidade entre o deserto e o mar, onde muitos deles nasceram, lá no Sul mais a sul. Essas e outras mulheres de outros povos por ali, com seus trajes e penteados próprios, sua altivez antiga. Eram meninos brancos, esses, que cresceram bem comportados na liberdade de comer compota de mirangolo ao lanche, passavam os bois para a recolha na paliçada do sambo, levados pelo pastor cuvale de longa vara, lá nas faldas da Chela, marcando um cenário que a memória sempre recupera, se por ali brincavam desde sempre que se lembram, esses meninos, como seus pais e até avós e bisavós, que davam com as azagaias bem manejadas dos
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Coi-San, e ou Mucuisse, caçando, se os procurassem bem, de Camucuio ao Curoca, que são poucos, nos areais para além das dunas que se transmudam com os ventos. E com todos os povos dali, desse vasto, largo Sul dos meninos, os Herero, não só Cuvale, mas os Himba e os Dimba, e lá mais para Leste, entre os Ovambo ou Ambó diversos, os Cuanhama no Cunene, uns e outros, sacando a vida da ausência aparente de tudo, sábios todos, senhores de si e donos desse Mundo, por entre os quais, à esquina, os meninos se entressachavam paralelos, ouvindo estórias das que se contam à volta das fogueiras na onganda, sobre ogres de arrepiar, ou aventuras de razia proveitosa nas sombras mais esconsas das noites de perdida lua, ou das antigas guerras da resistência. Esses meninos nasceram bem nutridos e vestidos e estudados e aprendidos. Brincavam, de bibe e sandálias, livres, com os filhos dos pastores, de tanga, o tchitato, e descalços, alargando perspetivas carregadas dos odores das mucaias e seus adornos, da pose apolínea dos caçadores, de como os bois passam e a vara é longa, de como se escutam cadências à volta das fogueiras ao luar e das estrelas acesas, nas festas da circuncisão. Até que chegou um dia de sagrações, já eram grandes. Deram todos com uma estrela diferente de todas as que qualquer menino alguma vez lançara, fosse os que se lambuzavam de compota de mirangolo, ou dos que usavam
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tchitato, bem brilhando, parecia mais que rindo de profundo contentamento, uma estrela de puxar com barbante invisível, balanceando nos ares, não presa, mas livre, que a prendiam mãos do Povo e os sonhos dele, que era ver a Nação nascer e se afirmar de Cabinda ao Cunene. Houve então quem quisesse perturbar esses sonhos, por isso a estrela diferente ora baixava, ora levantava, ora levantava, ora baixava, e os meninos brancos que moravam por ali, muitos deles, foram-se embora para o Norte, para longe e lá ficaram crescidos. Desde então, sempre em seus olhos, quando falam, há aqueles brilhos de otingos e otivelas, das pulseiras e das argolas de quem assim o diz e são dali também, e ainda aquela sede que o hidromel deslaça, aquele Sul, enfim, que é de todos os que o amam. Mas agora, gassaquirila Gana Zambi, os que procuravam, encontraram, ou assim parece, as confusões terminaram e desse longo parto deu-se à luz a Nação Total que se vai forjando, tenteando, se firmando e afirmando, finalmente, e os meninos que ficaram crescidos e longe, voltam a esse Sul de vez em quando, para ver como as dunas se transmudam, e se os rios continuam invisíveis. Ou apenas falam disso constantemente, contam estórias velhas, que, repetidas, são sempre novas, de quando meninos e jovens, dizem palavras que sabem a sede como se a desejassem para se
dessedentarem murmurando-as, ou escrevendo-as para que perdurem e façam sonhar e mostrem as raízes que bebem nas areias (*1), como o poeta que jaz na estrada justo quando viramos para o Virei e ali poisam pedras que sinalam esse menino Ruy (*2) que contou que ia lá visitar pastores, mas como podia ser, visitar, se o menino tinha os pastores consigo, em seu bolso, seu coração, na memória e na alma, mesmo quando jaz mas perdura no que escreveu - em Chão de oferta -, quando disse, “fazem-se os rios / despontam os capins / passam rebanhos / e cruzam-se recados de água achada”. Ou a menina que também escreveu sobre o Sul, se é do Sul, lá dos altos da Chela, e falou do deserto - em Ritos de Passagem -, essa menina Paula (*3), contando, cantando, Trago nas pernas as pulseiras pesadas / Dos dias que passaram... / Sou do clã do boi — / Dos meus ancestrais ficou-me a paciência / O sono profundo do deserto, / a falta de limite... Esses meninos são assim, continuam lá no Sul, onde quer que estejam, naquele Sul deles, de muitos rios invisíveis, e, pois, se pintam quadros, é nas cores desse Sul que colocam a sua sede e dessas águas subterrâneas se saciam. Assim Mário...
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...Assim Mário, como se vê, posto que pinta e no que pinta se vê esse Sul lá mais ao sul, é só olhar e com o olhar palpar, sentir no tato, no âmago, vejam bem, quem passa e vai longe mas não tem pressa, homens, mulheres, crianças, no deserto, nas areias e na cor delas, levando bois em busca das águas por achar, e como passam e onde passam, porque passam nessas areias escaldantes a toda a volta com uma ausência de tudo e a sábia manha dos que lá vivem para tomar seu leite azedo, misturá-lo com fuba de milho ou massango, o mahini, separar sua manteiga com que untam os corpos, preparar o hidromel, fazer sua caça, suas trocas e vencer os medos para o que invocam, no terreiro em suas ongandas onde estala o fogo sagrado, ogres e lendas com estórias de arrepio e danças de entrega e aceitação, de súplica e augúrio. Mário toca nesse mundo, com amor, nem precisa abrir os olhos porque é um mundo que está dentro de si, e assim o sente à flor do tato, da pele, do sonho que o alimenta, amor maior ainda, se está ausente, porque o sacia, e lhe dói. É mesmo um, entre os pequenos deuses, aqueles que fazem acontecer, que estão à esquina do mundo como se deles viesse proteção e assim desabassem águas alimentadoras de rios invisíveis, e que tudo o que se movimenta é da sua vontade, os lagartos, os insetos, as aves, as mulheres, os homens e os ogres, e que é por isso que se multiplicam as welwítchias e as sedes, e as fomes, os medos e os sonhos por onde estão os “caminhos cruzados dos bois”, nada mais azulíneo que eles, que não param nunca, deixam marcas como trilhos nas areias, que logo se apagam, menos na mente de quem os conduz, onde ficam para sempre, é Mário que o mostra, porque assim se repetem mil vezes, mil vezes diferentes, e sempre iguais, esses caminhos que não admitem fronteiras, nem vedações, porque por eles se busca a vida, de saciá-la em tantas cabeças que mugem, e nas dos pastores atentos aos sinais que trazem recados de água achada na constante e paciente busca da transumância, e disso falam os poetas e
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pintam os pintores, aqui de um “pastor e o espinheiro”, ele com sua vara, omuole, anunciando os bois que se omitem num deserto que apenas lhe toma a cabeça, não estão lá os bois mas nós os vemos e não é miragem, reparem bem, e mais além é um “colo” que revela quanto esse mundo é seguro escarranchado no dorso do homem que parece forte, pai, ou tio, e é extenso, a perder de vista, porque assim vai longe, o olhar do “caçador”. Ainda o tempo de uma guerra que fez “boom” por todo o lado, mesmo sob o sol de Tchitundo - Hulo, o dos círculos concêntricos das grutas no Capolopopo, no morro sagrado dos Mucuisse. E outros motivos, não do sul, alguns marotos, traquinas, são sempre assim todos os meninos, como o daquela que está “ready” e provoca, ou melhor se quem provoca é mesmo Mário em “ainda Kamassutra”. Mas o que mais fica em nós são, sempre, as cores, mesmo se o quadro é todo em branco onde predomina o traço do desenho no limite imponderável de um virtuosismo instantâneo e luminoso, que se diria colorido, e nos surpreende. Enfim um Mário pintando para se firmar e que, sim, se enraíza inteiro, ágil e hábil como, maravilhados, se nos mostra e alicia. Esse menino Mário é do Sul, daquele Sul, mas só do Sul? É do mundo.
Luanda, setembro de 2019 Fernando da Glória Dias
(*1) - verso do poema inédito Sempre o Sul de FGD (*2) - Poeta Ruy Duarte de Carvalho (*3) - Poeta Ana Paula Tavares
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GLOSSÁRIO berrida - fuga, correndo Cabocomeu - União Operário Kabocomeu, grupo carnavalesco de Luanda (bairro Sambizanga) camacovo - comboio de mercadorias esquebra - corruptela de quebra(s) - brinde/abatimento funje - farinha de milho, ou mandioca (bombó), cozida gaieta - corruptela de gaiata (de beiços) gassaquirila Gana Zambi - obrigada/o Senhor Deus ginvuluvulo - rapaz adolescente que já toma conta de bois Kianda/quianda - figura mítica - sereia Lara - Ernesto Lara, poeta angolano de Benguela mahini - papa de milho ou massango massuícas - pedras na fogueira para servir de trempe Miau - Edelfride de nome, craque do Portugal de Benguela Minguito - cantor angolano popular nos anos 60 e 70 mucaia - mulher mupeque - arbusto e fruto de cujas sementes se extrai óleo para o corpo e cabelo; esse óleo olongombe - bois - ongombe - boi oluvuli - argola, em língua cuvale ompota - de ompola, na língua cuvale, turbante de panos coloridos, ou de pele, sobre armação omuole - vara do pastor com que cutuca os bois onganda - aldeamento, senzala otingo - pulseira otiamitilo - correia de pele, usada por mulheres cuvale otivela - argola quinda - cesta artesanal, circular, de vários tamanhos razia - prática de saque para apropriação de cabeça(s) de gado tchitato - tanga Tchituca - figura mítica que provoca medo às crianças vissapas - ou bissapas, arbustos, matagal ximbico - de ximbicar, dar impulso ao dongo (canoa) com uma vara comprida welwitchia ou tômbua - planta de apenas duas folhas largas e compridas, rés das areias zungal - capinzal zungueiras - vendedoras ambulantes
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A ARTE só serve para alguma coisa se for irreverente, atormentada, cheia de pesadelos e de desespero. Só uma ARTE irritada, irreverente, violenta, grosseira, pode mostrar-nos a outra face do mundo, a que nunca vemos ou nunca queremos ver para evitar incómodo à nossa consciência… Assim mesmo. Nem paz nem tranquilidade. Quem consegue repouso em equilíbrio está demasiado próximo de Deus para ser artista. Pedro Juan Guttierez Escritor e jornalista Cubano
MÁRIO TENDINHA Nascido em Maio de 1950, na cidade do Namibe, sempre teve o mar, as pescas, o deserto, o povo cuvale, como referências naturais marcantes na sua vida. Começa a desenhar e a pintar aos 18 anos, muito influenciado pelas correntes modernas na época, a música pop, os hippies e os movimentos sociais. A banda desenhada, uma das suas paixões desde a infância, deixa marcas no seu trabalho inicial, que se traduz pelas técnicas e suportes então utilizados, o papel, o guache e aguarela, a tinta da china. Em 1975, quando as tropas Sul Africanas invadem Angola, a sua residência e atelier no Lubango são assaltados, completamente vandalizados, e deixa de pintar. Foi militante do MPLA, sindicalista da UNTA e gestor de empresas. Só volta a pintar e a expôr em 2003. Está representado em coleções em Angola, Brasil, Portugal, Itália, Reino Unido, França, Nova Zelândia, Austrália, Estados Unidos da América, Moçambique e África do Sul.
EXPOSIÇÕES INDIVIDUAIS 2019 “SUL/SUL”, CAE, Centro de Arte e Espetáculos, Figueira da Foz, Portugal. 2017 “OHOPE SERIES”, Galeria ART&ACRE, Whakatane, Nova Zelândia. 2016 “MERIDIONÁLIS”, Galeria Nuno Sacramento, Aveiro/Ílhavo, Portugal. 2015 “KI MONA MESU”, Mediateca do Huambo, Huambo, Angola. 2015 “KI MONA MESU”, Centro Cultural do Instituto Camões, Luanda, Angola. 2012 “ATRAVÉS DAS PORTAS”, Centro Cultural do Instituto Camões, Luanda, Angola. 2009 “NGOLA MIRRORS” Centro Cultural do Instituto Camões, Luanda, Angola. 2008 “ORATURA...dos Ogros e do Fantástico” SIEXPO, Museu Nacional de História Natural, Luanda, Angola. 2008 “ORATURA...dos Ogros e do Fantástico”, Horto Municipal, Namibe, Angola. 2007 “RISKUSS”, Galeria Celamar, Luanda, Angola. 2004 “PARTILHAR - (I)”, Casa das Artes, Famalicão, Portugal. 2004 “PARTILHAR - (II)”, Centro Cultural do Instituto Camões, Luanda, Angola. 2003 “...lá para o Sul”, Galeria Cenarius, Luanda, Angola. 1973 CITA, Luanda, Angola. 1972 Biblioteca Municipal, Huambo, Angola.
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EXPOSIÇÕES COLETIVAS
OUTRAS PARTICIPAÇÕES
2019 “Colectiva”, Mov’Arte, Luanda, Angola. 2018 “Artes Mirabilis”, UCCLA, Lisboa, Portugal. 2018 “Untitled 01” This is not a White Cube, Galeria BESA, Luanda, Angola. 2017 “Caix’Arte” Memorial Agostinho Neto, Coleção do Banco Caixa Angola, Luanda, Angola. 2017 “Brainstorming”, Casa da Cultura de Esposende, Esposende, Portugal. 2016 “Um Encontro na Casa das Artes”, Inauguração da Casa das Artes, Luanda, Angola. 2016 “(Zero) Figura”, homenagem ao pintor Miguel Da Franca, Centro Cultural Brasil-Angola, Luanda, Angola. 2016 “Projecto Olongombe”, Moçâmedes, Lubango, Benguela, Luanda, Angola. 2015 “International Expo Contemporany Art”, Mov’Arte, Luanda, Angola. 2014 “The Angels Share”, Apresentação do projecto Ki Mona Mesu, Oon.dah, Luanda, Angola. 2014 “Fenacult/14”, Galeria UNAP, Luanda, Angola. 2014 “39º Aniversário da UNAP”, Galeria Unap, Luanda. Angola. 2013 “Arte 100 Fronteiras”, Centenário do Lobito, Estação Velha do CFB, Lobito, Angola. 2013 “Há JAZZ no Camões”, Centro Camões, Luanda, Angola. 2010 “Solidariedade com o Haiti”, SIEXPO, Luanda, Angola. 1974 “Semana de Arte”, Oficina d’Arte, Atelier Livre de Artes Plásticas, Lubango, Angola.
2009 “BAI Arte 09” - Participação na apresentação da Coreografia da Ana Clara Guerra Marques, com as reproducões fotográficas impressas em acrílico dos quadros da “ORATURA...dos Ogros e do Fantástico”, SIEXPO, Museu Nacional de História Natural, Luanda, Angola. 2010 “Huambo/10” - Apresentação da coreografia com as reproduções fotográficas impressas em acrílico dos quadros da “ORATURA…dos Ogros e do Fantástico”Auditório da Rádio, Huambo, Angola. 2011 “O Homem que chorava sumo de tomates” - Dança/teatro da coreografa Ana Clara Guerra Marques - concepção e execução de uma peça escultórica NKissi máscara/fetiche - Temporada 2011, Teatro Nacional, Luanda, Angola. 2012 Edição e lançamento da sua obra/livro “VENTO LESTE” 2012 Confecção de painéis em azulejo, no âmbito da participação no workshop sobre azulejaria, no Atelier de João Carqueijeiro, Matosinhos, Portugal. 2012 É capa do livro com a obra “ONG”, da tese de Doutoramento da Professora Doutora Maliano Serrano, apresentada na Universidade de Wageningen, Holanda. 2013 “XA-MALUNDO” - Pintura com vidrados sobre painel de mosaico porcelânico de 600x300 cm, atelier do escultor cerâmico João Carqueijeiro, Matosinhos, Portugal (que se destina a um edifício institucional em Luanda). 2016 Lidera o Projecto OLONGOMBE, em conjunto com os artistas plásticos António Gonga, António Ole, Paulo Amaral, Paulo Kussy e Masongui Afonso, que levam uma exposição de pintura, desenho, escultura e instalação às Províncias Angolanas do Namibe, Huíla, Benguela e Luanda, cuja temática tem a ver com a pastorícia, o gado e as vivências dos povos do sul de Angola. 2017 Participa como formador no Workshop (Caix’Arte), em Luanda, promovido pelo Banco Caixa Angola, dirigido a um conjunto de clientes convidados pelo Banco.
WORKSHOPS 2012 Workshop de Azulejaria, Atelier João Carqueijeiro, Matosinhos, Portugal. 2007 Atelier de Litografia, Coop. Arvore, Porto, Portugal. 2005 Workshop de Gravura, Ar.Co., Almada, Portugal. 2004 Workshop de Desenho e Pintura, Ar.Co., Lisboa, Portugal.
XA MALUNDO 2013 Pintura com vidrados de um painel em mosaico porcelânico, “XA-MALUNDO” de 300x600 cm, que se destina a um edifício institucional.
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Olongombe, Mucaia e o caçador Na parede branca meu ombro dando costas a bois na esquina do mundo são quadros com mulheres e homens e meninos traçados de risco aberto e sonho, há bois murmurando uma palavra longa olongombe com marcas e manchas nas paredes brancas sobra deserto areias dunas escasseiam águas e os bois esfadigados pasmam há uma vaca sagrada e leite azedo, uma mucaia amacia descalça a areia quente remexe com a lentidão do olhar descansado a reparação das fomes antigas é mãe de pastores desde o começo da vida espera a chegada do caçador não há princípio nem fim a eternidade existe está nessa espera da mucaia e até onde chega o longo olhar do caçador
As entradas do catálogo obedecem à seguinte estrutura:
Título Data Materiais Dimensões em centímetros
quanto a nós podemos ficar de costas que não deixaremos de ver os anjos e o caos.
Ílhavo, 15/10/2016 - inédito
MÁRIO TENDINHA SUL/SUL
Sempre o Sul Sul é o meu corpo, tem raízes que bebem nas areias. Alma é a luz ao meio-dia sem uma sombra que o reduz, camarim de atrizes sem uma alfombra que a não pedia, senão areias e uma welwitschia Nesse corpo, uma ponte olhos de ver e de olhar que medem o horizonte e o bebem verso a verso a toda a volta de o encontrar, sem divergir do centro o Universo, fora ou dentro. O Sul é assim, esquina do Mundo, Sul desnorteado, sem princípio ou fim o Universo dado no centro do Sul amado, profundo de onde não saio nem entro Se tudo acaba, já não és, nem medras, nem morres, é igual, o sonho se desaba restam estas pedras que nuas, dão o sinal do corpo que ali jaz e sobre o corpo que se desfaz as mesmas pedras, tantas pedras, dão um sinal inverso. Nessas pedras, tantas pedras, está o Sul, ainda é o Sul rodeando o Universo um Sul imenso, intenso, azul. Nessas pedras, quem passa intui o corpo que jaz, e não só, diverso, em cada pedra disperso um poema, um aviso do Ruy fui lá, vou lá visitar, fico lá no Sul, e ali ficamos todos, e ali é o Sul
Luanda, 10/08/2018
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African Angel 2017 Pigmento negro c/acrílico s/papel 42 x 30
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MÁRIO TENDINHA SUL/SUL
Sul, sul, sul, sul, sul O trem vai no sul, o trem vai no sonho, de dormir e acordar. Esse trem não tem, diz que tem, não tem nem de ir nem de voltar O trem, o trem não vai no sul, nem vem, não vai, nem vem não vai, nem vem não há sul no trem Camarada presidente, faz o trem ir no sul vir do sul esse trem, comboio seja, tro-fa-fa-fe, tro-fa-fa-fe, com fumaça sem fumaça, comboio seja ou camacovo, vai não vai pouca-terra – pouca-terra passa, não passa Assim deseja o povo, pára aqui, pára acolá, de ir e voltar TGV devia ser, um ás, um zás, um trem com paz, o trem, um trem a ver o mar mas comboio ou camacovo tanto faz Um trem do Sul, o trem do sonho que vai e que vem que vai e que vem alegre e tristonho, assim quem chega assim quem vai de ir e voltar, que leva e traz gente bonita muita gente, pouca gente, muita gente para lá e para cá e o que Deus dará, ou não dará à gente bonita Camarada presidente, corte essa fita. Já! Luanda, 22/08/2018
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Caminhos Cruzados 2019 Acrílico s/tela 116 x 90
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Carta a Mário sobre rios Nosso vero rio Bero, de quando lhe sentimos as secas quando assim o vemos e aos seus donos, os cuvale e os himba e os dimba que andam por ali, pelo Bero e outros rios de que não lhe vemos as águas, pachorrentos os bois entre ventos que transmudam dunas e uivam pelas frinchas das portas da casa de teu avô, como dizes. É, o Bero é o teu Bero. O meu Bero é o Cavaco. Rios de nos saciarmos rendidos e entregues se alí estamos com os donos, e ali somos os donos de nós, nosso reino, nossa tribo, nossos cheiros e cores, nossa vida, nossos rios de que lhe não vemos as águas. Já o Este é outro rio, rio da nossa diáspora, é no longe que fica, que rola com devagar suas poucas águas que mostra sob plátanos, fora de todos os desertos não tem dono, nem donos. Se ali estamos, e o vemos, ao Este, somos nós o deserto por de trás de todas as dunas, onde, para não ficar alucinado como Alba, fiz chegar as batucadas de Cabocomeu e a gaieta do Minguito e os funjes de dona Mena, e os brinquedos dos poetas longe dos cheiros, das cores e silêncios do teu Bero, do meu Cavaco, nossos rios de águas escondidas, guardadas, dadas por deuses, mostradas por ogros e poetas No Este não tem frinchas nas portas, nem Herero, nem bois, nem banana do Cavaco que Lara surripiava, com Miau. No Este ansiamos o Bero e o Cavaco, no Este estamos, mas não somos Não precisamos de estar no Bero ou no Cavaco para que sejam nossos, o Bero e o Cavaco não são nossos, nós somos o Bero e o Cavaco
Luanda, 28/10/2014 - inédito
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Lucira 2019 Pigmento negro c/acrílico s/papel 60 x 42
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Vara e pastor
I - Vara Com a vara do ximbico cutuca o pastor os bois Não há dongo nem água é frágil a vara e poucos são os bois Grande, é o sonho
Luanda, 29/06/2011 – in Sagração
II - Pastor Pastor de poucos bois e poucos sonhos, apenas paz A mancha azul será o céu e tudo o mais, deserto. Pastor e bois, apenas vida Segura o pastor a longa vara, os poucos bois quietos. A paz e a vida, o grande sonho
Braga, 27/08/2004 – in Sagração
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Pastor 2018 Pigmento negro c/acrílico s/papel 59 x 42
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Ongombe nossos no sul
São muitos bois que parecem demais, é um exagero de Mário? Andou lá pelo Sul tanto tempo deve ter contado muito bem São muitos os bois, mas não demais, apenas enchem a tela com as cores certas do deserto ao fim das tardes, e trazem a luz e o ardor dos ares, o pó se lhe dá o vento às areias O pastor é apenas um, aceito o número, toma conta da manada dentro do quadro de flanco para quem pinta e para quem vê os bovídeos e as sombras Assim podemos sonhar as estórias da transumância buscando abeberamento saciando-nos num manancial de sonho ou de miragem, não ficamos com sede, somos a sede
Braga, 14/05/2018 - inédito
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Anjo da Guarda 2016 Pigmento negro c/acrílico s/papel 76 x 40
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O pastor e o espinheiro
O pastor e o espinheiro e uma ausência de cores. Ele está de costas para quem o vê, e segura a vara que o identifica e o define Tudo em volta de si está invisível, uma falta de limites que nos prende uma branca na memória, um lapso. No entanto pressentem-se as areias são elas que nos cegam não se vêm os bois e são tantos, estão lá ouvem-se os mugidos de vacas prenhas, balidos, latem cães, choram nenés, zunem insetos crepita um fogo, abrimos os olhos desmesurados como se estivéssemos cegos, mas crentes porque está lá tudo, e o céu não foi pintado. Contudo há um sol com as cores do deserto detido retido escondido pela cabeça do pastor. Quem isso vê pode puxar essas cores e entorna-las pelo quadro, é isso que deve fazer se conhece o deserto e vê um pastor. Quanto ao céu é o do meio-dia pois tudo o que está em branco sãos os olhos pasmados assim feridos que o miram e o sentem interiormente. Nota-se bem que não há água, mas é preciso olhar melhor porque os rios estão lá mas escondidos, ou não haveria bois, nem pastor, talvez só o espinheiro. Há pastor, e todo o quadro se enche.
Luanda, 25/02/2019 - inédito
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Gimba Caminhos 2016 Pigmento negro c/acrílico s/papel 42 x 30
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Caçadores
Levam arcos e flechas e são dois entre cores quentes do deserto que nos queimam, vão, buscam deixando quietos os bovídeos serenos que mugem, assim ouvimos Vão, parecem a sombra na duna mal definida no desenho que contornam, do outro lado as vissapas e as pedras, supomos nós e as marcas ressequidas do rio que cruzam de leve sem levantar pó, com pés antigos. Lentos vão de tão parados parecem ao olhar do último boi que os retém na retina e somos nós a ver, ávidos de ali ficar julgando pressentida a flecha que fatal e brusca irá zunir no justo ápice do declive da tarde que cai e com ela a peça logo ali espostejada para o regresso Voltam então, apressados, vêm rápidos, chegam, os bois dormindo e nós rendidos à magia do que se espera numa estória sem começo nem fim, o quadro na parede e quem o pinta, aquele ápice da queda que não foi pintado, mas vivido, …que vivemos ainda, nós – os caçadores?
Braga, 13/03/2017 - inédito
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Caminho do Mato 2016 Pigmento negro c/acrílico s/papel 42 x 30
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O caçador Achou a marca, era uma unha, uma úngula perfeita, várias, seguidas, sentiu os cheiros mas tinha pressa voltaria com azagaia e paciência teria carne, sim, voltaria e voltou, inteiriçado pronto seco e por aí afora foi seguindo sábio as marcas de úngula, o casco reconhecido, fresco, não de hoje, tinham rodado luas e sóis, o zungal crescera verde ainda e não escondera as marcas Contou as úngulas enterradas a toda a margem do largo charco, muitas, ia teso, hirto, lento Mudou então a brisa, virando a sul assim escondeu seu cheiro, assim serenou, não tenso já, porejado de suor, mas atento Abandonou enfim o trilho, entrou de manso nas vissapas até especar, pronto. Passou um tempo indefinido… Assim viveu toda a vida
Luanda, 23/05/2016 - inédito
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O Caçador 2016 Pigmento negro c/acrílico s/papel 120 x 90
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Apenas… nadas
Um reflexo do céu nos poucos bois de muitos chifres ou azul apenas O pastor com sua vara detém os bois o azul, as sombras No vasto campo que o sol esmaga desvaira a vara A luz é tudo e os bois pouco a vara o centro o pastor… Nadas. Esse azul no couro e no céu essa mancha distendida, referência. Apenas. Um apenas, tudo pouca coisa, nadas
Zungueiras na berrida
Vão na berrida as zungueiras, coitadas diz quem passa sua pressa é a da fuga não apregoa seu peixe carapau, carapau-ué sua pressa não apregoa laranja minha senhora manga docinha do Loge carapau, carapau-ué sua pressa é a da fuga, foge vão na berrida as zungueiras levam as quindas pesadas fogem não tem licença, não paga imposto, fogem estão atentas ao percalço fogem a quinda ou a vida? fogem mas voltam sempre e dão esquebra.
Braga, 26/11/2004 – in Sagração
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Braga, 17/05/2018 - inédito
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Farol 2018 Pigmento negro c/acrílico s/papel 45 x 30
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Kianda no Mussulo
Apanho aquele barco no Mussulo que traz a quianda, por isso vem leve e sigo dizem que é a brisa que cutuca a larga vela na tarde que fulge sob o gazear das garças mas nessas águas que serenam há brilhos dos meus olhos ansiando casuarinas coqueiros e palmeiras daquele areal contínuo que repiso sem nele pousar meus pés fogem pequenos caranguejos assustados alguma cigarra pára de zinir assim vou, levado por essa brisa, ou essa quianda por esse anseio, entre espumas e algas e sal mas é o quadro que me traz …e eu vou.
Braga, 16/05/18 - inédito
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Marítimo 2018 Técnica mista s/gaze colada em papel 86 x 61
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Leite Azedo 2016 Pigmento negro c/acrílico s/papel 76 x 60
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Pregancy 2017 Pigmento negro c/acrílico s/papel 42 x 30
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Ginvuluvulo
Quando Mário trouxe ginvuluvulo, pensei era Papão, Joana Maluca. Mário explicou, esse é o Tchituca, ginvuluvulo é um menino, no tempo de já olhar pelos bois, tomar conta deles, Tchituca ainda lhe arrepia mas o menino abandonou brinquedos, a estrela fica solta nos ares, perdida, como se vê, e ginvuluvulo, fica sério, lábios fechados, um só olhar na hora de cuidar os bois, é menino, mas nesse tamanho, que Mário mostra… Ai-ué ginvuluvulo! A estrela essa que paira largada dos dedos de ginvuluvulo, antes que chegue a noite, antes que venha Tchituca que venha Joana Maluca que venha o Papão, o Homem-do-saco… come a sopa menino… … somos nós que a seguramos, ávidos, mais velhos, na hora de tomarmos conta da vida a fingir de meninos para sempre com nosso medo maior, brincando ao menino que não brinca para tomar conta dos bois e nós, da vida Nós, sim nós, ainda hoje com nossos arrepios de agora, a fingir de menino, para sempre. carregadinhos de tantos medos, a comer a sopa toda como nunca a fingir de ginvuluvulos da vida
Braga, 14/05/2018 - inédito
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Colo 2016 Pigmento negro c/acrílico s/papel 120 x 90
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O roboteiro
Com seu cangulo pesado de nadas candandos e risos brinquedo apenas trepa estripado o roboteiro e vai subindo assobiando, alheio à curibotice da sombra da mandioqueira que o apetece Vai rindo e sonha ...é quianda quem o leva no cangulo ligeiro d’imbambas e assombros curibota de si roboteiro de nadas de candandos e risos e de sonhos e de sombras ...a quianda o leva de leve brincando, e brinquedo
Barcelona, 17/07/2006 – in Sagração
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Lord of Something 2016 Pigmento negro c/acrílico s/papel 42 x 30
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O cão a tomar conta da menina no quintal
Essa menina é a minha prima Celeste, mas só para mim e há muito tempo a que dizia bó! e repetia bó! quando chegou no Niassa trazida de Trás-os-Montes, mãe, o que é bó? Debaixo da mulemba do quintal eu disse vamos brincar de marido e mulher e ela disse, bó! a culpa foi do cão, descobri, mas só agora, bó!
Braga, 14/05/2018 - inédito
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O Beijo 2019 Pigmento negro c/acrílico s/papel 42 x 30
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Ready 2018 Pigmento negro c/acrílico s/papel 42 x 30
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Kamasutra V 2017 Pigmento negro c/acrílico s/papel 42 x 30
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Os ténis do homem que lia o livro de capa preta
O homem começou a ler o livro de capa preta de pé e calçado foi esfolheando sem atenção as primeiras páginas, quando deu por si absorvido pelo texto, sentou-se cómodo no chão contra o muro e descalçou-se, agora sim, folheava vagarosamente a ampulheta do tempo foi marcando a passagem mais lenta das folhas vemo-lo a meio do livro de capa preta a boca aberta porque lê em voz alta ou para que as palavras lhe empapem a língua e lhe cheguem ao sangue aos haustos que o espessem até ganhar febres que podem dar delírios, os olhos porém parecem cerrados, ou seja não há olhar nesses delírios, quando cheguem, mas o gesto das mãos que seguram o livro de capa preta é recoletor como o de homens antigos - pré-históricos nos plainos junto aos rios mais suaves acedendo à natureza oferecida não já a caça ou a pesca numa pedrada, não já os frutos amadurados ou vegetais mais tenros, mas palavras elaboradas que saciam fomes e sedes desde Gutembergue em 1439, ou antes mesmo com Bi Sheng em 1041 por isso o homem aparenta a calma dos saciados pode começar a andar descalço a qualquer momento nunca antes de chegar ao fim do livro de capa preta, quando já entendeu a extensão do título invisível caminhos, veredas, sendas… trilhos muito antes porém de reverter a ampulheta lenta que lhe dá a ilusão do tempo transcorrido
Braga, 14/05/2018 - inédito
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Ainda Kamasutra 2017 Pigmento negro c/acrílico s/papel 44 x 30
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Carroça cheia de nada São as palavras que marcam o desenho sobre tons do deserto quando o sol pinta dunas e os homens - três falando a mesma língua, parecem descansados e seguros pois de costas virados para quem os toma por donos à esquina do mundo. A cena é silenciosa acende-se em esplendor, daqui a pouco estarão entre os seus na onganda que a paliçada protege das feras, a meio de uma noite estrelada, tomarão hidromel ou leite azedo de cabaças afagadas pelas brisas do deserto, pirão de milho com leite calará sua fome, ficarão sentados ao pé de massuícas negras com lume aceso estalando em paus antigos enquanto o mugido de vacas cheias cruza outros sons ao acaso latidos de cães a espaços risos de crianças, choros, vozes. Soam tambores também, é uma festa que se anuncia no dia aprazado matarão 4 bois, virão de longe os que transumem com os gados e os de outras regiões com vários dias andados. As mucaias colocarão suas ompotas mais vistosas em seus braços e pernas douram oluvulis, missangas entre os livres seios, os pés batem na contorção dos corpos com a cadência do que brota e ferve há palmas e cânticos monocórdicos - e êxtase e mesmo assim há silêncios que esmagam as derrotas escondidas na memória, os que se apressam para chegar ouvirão contar estórias de ogros e de razias para que não esqueçam os caminhos que calam as sedes do gado… O que estes levam pois, na carroça, pelas sombras que se adensam não tem peso porque o chão não é de oferta por isso são as palavras que marcam o desenho que nos prendem, carroça cheia de nadas e afinal está ali tudo, não tão pouco assim, à esquina do mundo
Braga, 14/05/2018 - inédito
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Kuduro 2019 Pigmento negro c/acrílico s/papel 60 x 42
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Show da Jardada 2019 Pigmento negro c/acrílico s/papel 42 x 30
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Focinho de Porco dá Nisso 2018 Pigmento negro c/acrílico s/papel 44 x 30
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Café 2018 Pigmento negro c/acrílico s/papel 45 x 30
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Charro 2018 Pigmento negro c/acrílico s/papel 45 x 30
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Alex Está na Mutamba em cadeira displicente na pose, blasé Mas tem um sorriso e a roupa limpa com a república dourando segmento catana e estrela no peito magro Cumprimenta sempre Quando lhe dou a nota escolhida, kwanzas, já se vê, mal agradece Será que sente o cálculo sem nunca ter lido Pessoa? Aliás não sabe ler Tem suas manhas, passa por príncipe Tem um retrato na exposição, surreal e belo, a tinta da china, com preço no catálogo, em usa dólares já se vê, ...vendido Não foi ele que pintou, aliás não pinta, nem comprou - aqui um frouxo de riso estremece como brisa compondo a carapinha retorcida A cadeira em que se senta é de rodas, das baratas, já se vê Mutamba é o seu reino quem passa é vassalo do seu riso e pose, mesmo a brisa
Luanda, 02/07/2007 – in Sagração
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Untitled 2016 Pigmento negro c/acrílico s/papel 60 x 42
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Annorum Plumbum 2019 Pigmento negro c/acrílico s/papel 33 x 33
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No Lumbiri 2019 Acrílico s/tela 100 x 90
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Boom 2018 Pigmento negro c/acrílico s/papel 44 x 30
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Cattle Shepherd 2017 Pigmento negro c/acrílico s/papel 40 x 30
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Experiência de Merda 2019 Madeira, sisal, metal, acrílico s/papel 59 x 54
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S/ Título Barro cozido 59 x 54
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My Land 2019 Técnica mista 116 x 85
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Alucinação 2019 Acrílico s/tela 180 x 135
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OLONGOMBE, MUCAIA E O CAÇADOR Na parede branca meu ombro dando costas a bois na esquina do mundo são quadros com mulheres e homens e meninos traçados de risco aberto e sonho, há bois murmurando uma palavra longa olongombe com marcas e manchas nas paredes brancas sobra deserto areias dunas escasseiam águas e os bois esfadigados pasmam há uma vaca sagrada e leite azedo, uma mucaia amacia descalça a areia quente remexe com a lentidão do olhar descansado a reparação das fomes antigas é mãe de pastores desde o começo da vida espera a chegada do caçador não há princípio nem fim a eternidade existe está nessa espera da mucaia e até onde chega o longo olhar do caçador quanto a nós podemos ficar de costas que não deixaremos de ver os anjos e o caos.
Fernando da Glória Dias